O ENSINO DE HISTÓRIA: TRAJETÓRIAS E NOVAS PERSPECTIVAS1
Edna Maria dos Santos
Para que escrever a história, se não for para ajudar nossos
contemporâneos a ter confiança em seu futuro e abordar
com mais recursos às dificuldades encontradas no
cotidiano?!
Georges Duby
As pessoas que viveram séculos atrás não eram nem mais, nem menos inquietas do que
nós. O contexto em que estavam inseridas e as respostas que deram às suas necessidades
e desejos é que foram diferentes. Para que serve a história no mundo atual?! Para
responder a esta questão, torna-se necessário um inventário de como a história, seu
conhecimento e ensino, em nossa realidade brasileira, foi efetivado.
Desde a segunda metade do século XIX, face à influência do darwinismo social, do
positivismo e, em meio à realidade circundante da Revolução Industrial com um
paradigma de progresso tomado na época como modelo a ser seguido, que o ensino da
História se pautou por algumas características, a saber:
a) a história teria a pretensão de ser uma “ciência objetiva” e, desta forma, sua
produção não poderia ter dados subjetivos;
b) os fatos, ou seja, os acontecimentos, deveriam ser analisados através de suas
causas e conseqüências. A história factual, linear encadeava sucessões
temporais, não dando importância às contradições, às dinâmicas próprias das
mudanças sociais;
c) a história política de dinastias, conquistas, formação de impérios e datas cívicas
faziam parte do ensino da História.
A partir, principalmente das décadas de 60 e 70, no Brasil, sob a influência da Escola
dos Annales e da historiografia marxista, novos rumos foram dados ao ensino da
História. A história social de Marc Bloch, Febvre, Braudel e as idéias de “modo de
produção” e de “lutas de classes” irrigam a historiografia sobre o Brasil e o próprio
ensino da História. Teóricos como Gorender, Caio Prado, Florestan Fernandes e outros
inscrevem no campo dos estudos históricos os movimentos sociais, a história agrária, a
formação econômica do Brasil. O período ditatorial e a lei 5.692/71 instauraram uma
ruptura em relação às mudanças que se vinham processando. História e Geografia se
transformaram na área de Estudos Sociais, e se tornaram “Moral e Cívica” e “Problemas
Brasileiros”. Houve um esvaziamento das áreas de Ciências Humanas e Sociais, da
reflexão e do pensamento crítico. Poucos foram os materiais pedagógicos que tentaram,
sem perder a especificidade dos conteúdos históricos, fornecerem alguma ferramenta de
apoio ao trabalho do professor. Um exemplo dessa tentativa foram os Guias de Estudos:
Estudos Sociais, constituído de cinco volumes (Tempo; Espaço; Cultura; Grupos
Sociais; Brasil, América e Mundo) produzidos pelas professoras Lená Menezes e Edna
Maria dos Santos, na década de 70, para a Secretaria Municipal de Educação e Cultura
1
Artigo publicado no Caderno de Graduação Ensino e formação de professores na perspectiva das
licenciaturas em Ciências Humanas. Rio de Janeiro: UERJ, Departamento de Ensino de Graduação,
2002, v.4, p.19-22.
da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, editados pela Imprensa Oficial do Estado do
Rio de Janeiro, Niterói, 1978.
A década de 80, com a política de distensão dos generais-presidentes, com os
movimentos pela anistia, com a luta dos sindicatos e, em especial, com a batalha pelo
retorno da História e da Geografia, além de um debate geral historiográfico, que
buscava novos rumos para a História, motivaram bastante as novas discussões no campo
do ensino. Temas – tais como: interdisciplinaridade; novas idéias para a história (esta
não mais vista apenas como “ciência do passado”, mas também “construção possível”
de um conhecimento, onde as relações presente-passado e passado-presente se fazem
em tensão); participação do historiador como sujeito, diminuindo o velho debate entre
real/ficcional – passam a ser objetos de discussões. Os governos democráticos que
assumiram o poder a partir de 1984 incentivaram novas pesquisas, novas idéias de
escola e de ensino. Voltaram à cena Darcy Ribeiro, Paulo Freire, entre outros, e o
ensino de História passou a participar da luta pela palavra política, pelo estabelecimento
de uma alfabetização consciente e crítica. Novos materiais pedagógicos de auxílio ao
ensino da História foram elaborados, cursos e especializações para docentes foram
oferecidos, inovadoras propostas pedagógicas se destacaram, principalmente no Rio de
Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul.
A década de 90, em meio a pretensas idéias de homogeneização e a um capitalismo
hegemônico, detentor dos meios de comunicação e dos saberes, trouxe a imposição de
um novo paradigma de aceitação de suas idéias, ou seja:
a) a América Latina e, portanto, também o Brasil, como ainda as demais áreas
periféricas do mundo passam a ter que seguir o receituário do FMI para se
desenvolverem;
b) não há mais necessidade de o Estado dirigir, coordenar as áreas sociais
prioritárias como Educação, Saúde, Habitação, uma vez que é a iniciativa
privada quem deve dar conta delas;
c) caem em descaso as idéias nacionalistas, pois os recursos energéticos, minerais,
de subsolo e o campo das comunicações internacionalizam-se;
d) o ensino superior deve se livrar do “estatuto acadêmico que entrelaçava ensinopesquisa-extensão”, tornando-se organização social.
Desta maneira, para que serve, então, o ensino da História na “terra brasilis”?! Em
nossa opinião, defendemos que, cada vez mais, o ensino da História sirva para
desmistificar estas e outras proposições ensejadas pelo neoliberalismo no mundo atual.
Precisamos retomar a confiança em nossa nação, mesmo que ela seja “imaginada”,
conforme nos diz Benedict Anderson. Necessitamos relembrar lideranças que
construíram o “ser brasileiro” e o “latino-americano”: Tiradentes, Bolívar, José Martí,
Guevara e também outros. Cabe-nos contestar a banalização das injustiças sociais.
Estamos vivendo um período de razão cínica nas análises sobre a sociedade de trabalho.
Querem nos impor idéias de que o progresso tecnológico e a robótica acabaram com a
sociedade do trabalho, que este perdeu seu mistério, que não suscita mais nenhum
problema científico. Tudo isso pode ser rebatido, já que o trabalho não se tornou artigo
raro, pois, enquanto “enxugam os quadros”, os que continuam a trabalhar o fazem mais
intensamente, com menos direitos e com aumento da duração real de seu trabalho; são
cada vez mais numerosos os incidentes e acidentes que comprometem a tal “qualidade
total”. Além disso, numa situação de desemprego e injustiça ligada à exclusão, os
trabalhadores que tentam lutar por meio de greves e de outras formas de resistência
ainda se deparam com a “culpabilização” por estarem empregados, quando tantos outros
não estão, fora a “vergonha espontânea” de protestar, quando existem tantos
desfavorecidos. É penetrando mais fundo no mundo do trabalho que podemos
compreender muitas das razões da “tolerância social” atual ao sofrimento e à injustiça.
O ensino da História, sem perder suas especificidades, deve abrir-se às categorias de
construção de outros conhecimentos (literários, lingüísticos, semiológicos, filosóficos,
psicológicos, etc). Sem dúvida, a aprendizagem da História deve partir do que está mais
próximo da realidade do aluno, mas deve também chegar ao conhecimento universal, às
imbricações entre “história-mundi”, nacional, regional e local. Além disso, o ensino da
História deve estimular a liberdade de pensamento, de criação, deve utilizar as novas
tecnologias da inteligência como, por exemplo, as redes da informática, mas para
possibilitar ao homem maior socialização das informações. Como afirma Georges
Duby, ao tratar dos medos ancestrais e contemporâneos, tais como o medo da miséria,
da violência, das epidemias, dos preconceitos, o ensino da História deve “explorar as
mentalidades de ontem, para de modo mais lúcido enfrentarmos os perigos atuais”.
2
Afinal, o ensino da História deve ajudar as pessoas e os povos a se tornarem mais
críticos, mas, ao mesmo tempo, mais solidários e mais felizes, mais respeitosos em
relação às diferenças, mais abertos ao ser plural como possibilidade para a construção
da cidadania.
2
DUBY, Georges. Ano 1000, ano 2000, na pista de nossos medos. Assis, SP: Editora da UNESP, 1998,
p. 9,
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