Diversidade ÉtnicoRacial e Educação
Superior Brasileira
Conselho Editorial
Ahyas Siss, Alvanísio Damasceno, Gláucio Pereira,
Iolanda de Oliveira, Mariluce Bittar,
Paulo Vinicius Baptista da Silva.
LEAFRO
Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (NEABi/UFRRJ)
[email protected]
Ahyas Siss (Org.)
Diversidade ÉtnicoRacial e Educação
Superior Brasileira:
experiências de intervenção
Aloisio Jorge de Jesus Monteiro
Cláudia Regina de Paula
Dalila Fonseca Benevides
Daniela Silva Santo
Darci Secchi
Delcele Mascarenhas Queiroz
Iolanda de Oliveira
Leila Dupret
Lucília Augusta Lino de Paula
Maria Alice Rezende Gonçalves
Maria Lúcia Rodrigues Muller
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Rio de Janeiro
2008
Copyright © 2008 by Ahyas Siss, Aloisio Jorge de Jesus Monteiro, Cláudia Regina de
Paula, Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo, Darci Secchi, Delcele Mascarenhas
Queiroz, Iolanda de Oliveira, Leila Dupret, Lucília Augusta Lino de Paula, Maria Alice
Rezende Gonçalves, Maria Lúcia Rodrigues Muller e Paulo Vinicius Baptista da Silva.
Todos os direitos desta edição reservados à Quartet Editora & Comunicação Ltda.
É proibida a duplicação ou reprodução deste volume, ou de partes do mesmo,
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Editoração
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SUMÁRIO
Introdução ........................................................................ 7
Ahyas Siss
O Leafro, relações étnico-raciais e a
formação de professores: uma experiência
de intervenção multicultural . ...................................... 15
Ahyas Siss
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei
n. 10.639 na abordagem do ciclo de políticas ........... 41
Cláudia Regina de Paula
Jovem da Baixada Fluminense, religião
de matriz afro-brasileira e subjetividade:
um entrelaçamento à luz da complexidade ............... 65
Leila Dupret
A incorporação da dimensão racial do
fenômeno educativo às funções da universidade:
origem e atuação do Programa de Educação sobre
o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb) ................ 87
Iolanda de Oliveira
Educação e relações raciais em Mato Grosso .......... 129
Maria Lúcia Rodrigues Muller
Educação das relações étnico-raciais
na terra das araucárias................................................ 149
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Para além do imaginário congelado
do território e da identidade brasileira:
entre memória e tradições indígenas........................ 177
Aloisio Jorge de Jesus Monteiro
Formação de professores para
a autonomia indígena.................................................. 197
Darci Secchi
Relações raciais e desigualdade: resistências
à política de cotas na universidade . ......................... 219
Lucília Augusta Lino de Paula
Estudantes de uma universidade estadual
com cotas: a percepção do racismo e da
política de ações afirmativas...................................... 241
Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo
e Delcele Mascarenhas Queiroz
O sistema de reserva de vagas na Universidade
do Estado do Rio de Janeiro e a participação
do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ
na permanência de alunos afro-brasileiros ............. 269
Maria Alice Rezende Gonçalves
INTRODUÇÃO
Esse livro foi escrito a várias mãos e em lugares diferentes. Sob o título Diversidade étnico-racial e educação
superior brasileira: experiências de intervenção, reúne
experiências diversificadas de intervenção na educação
brasileira. O livro possui, como eixo articulador, as intervenções efetivadas por diferentes pesquisadores e por
seus grupos de pesquisa, na confluência estabelecida pela
educação superior brasileira como política pública, ou
seja, o Estado em ação e as desigualdades étnico-raciais
brasileiras. Esses pesquisadores estão preocupados e comprometidos com a qualidade da educação superior brasileira como política pública.
Há a mesma preocupação em construir mecanismos
que possibilitem o efetivo cumprimento das Leis 10.639/03
e 11.645/08, interferindo nos processos de inserção precarizada de diferentes segmentos populacionais brasileiros
no processo educativo e na forma pela qual se configuram
o acesso e a permanência na educação superior brasileira,
de grupos étnicos, colocados em posição de subalternidade social e política.
O papel que o Estado brasileiro vem desempenhado nesse processo é identificado, analisado e questionado
7
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
nos vários artigos da coletânea. São apresentadas intervenções nos processos de formação de professores nas
suas dimensões inicial e continuada, buscando efetivá-los
sobre bases multiculturais, como convém a uma sociedade
étnica e racialmente estratificada como é a brasileira.
Ainda que não se possa negar o caráter multicultural
da sociedade brasileira, os currículos dos cursos de formação de docentes, tanto inicial quanto continuada, vêm
sistematicamente ignorando essa realidade ao homogeneizar racialmente a população brasileira. Essa constitui, sem
dúvida, uma das formas de se promover à invisibilidade
dos diversos grupos étnico-raciais que compõem a sociedade. Promovida essa invisibilidade, não haverá motivos
para se implementar uma política pública de educação em
perspectiva multicultural. A lacuna deixada pelos cursos
de formação de professores, no que diz respeito à prática
docente no seio de uma sociedade plural, bem como à
diversidade étnico-racial de seus alunos, obstaculizará o
professor na identificação de práticas discriminatórias em
sala de aula, dificultando, ainda, a criação de estratégias
e de mecanismos de combate às mesmas por esse profissional, a quem caberá, nas salas de aula, explicitar – sem
hierarquizar – as diferenças étnico-raciais, culturais, econômicas e de gênero de seus alunos, transformando as
salas de aula e, por conseguinte, a instituição escola, em
um espaço democrático, “espelho da riqueza humana”.
Diversas universidades brasileiras vêm implementando experiências de políticas públicas de ação afirmativa
e de cotas étnico-raciais, privilegiando os aspectos da democracia de acesso e de permanência no ensino superior,
para negros e indígenas. Podemos encontrar algum tipo
de política de cotas, ou de ação afirmativa, social, étnica
e racialmente enviesadas em diversas universidades estaduais e federais como: Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (Uerj), Universidade Estadual do Norte Fluminense
(Uenf), Universidade do Estado da Bahia (Uneb), Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul (UEMS), Univer8
Introdução
sidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), Universidade
Estadual de Montes Claros (Unimontes), Universidade do
Estado de Goiás (UEG), Universidade do Estado de Santa
Catarina (Udesc), Universidade do Estado de Mato Grosso
(Unemat), Universidade do Estado do Amazonas (UEA),
Universidade Estadual de Londrina (UEL), Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), Universidade Federal de Alagoas
(Ufal), Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal da Bahia (UFBA), Universidade Federal de Juiz de
Fora (UFJF), Universidade Federal do Maranhão (UFMA),
Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal do Paraná (UFPR), Universidade Federal de São Paulo
(Unifesp), Universidade Federal de Santa Maria (UFSM),
Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), Universidade Federal do Tocantins (UFT) e na Escola Superior
de Ciências da Saúde de Brasília (ESCS), as duas últimas,
voltadas para alunos oriundos de escolas públicas e, as
supracitadas, com forte viés de classe social.
Democratizar o acesso à universidade é um passo.
Entretanto, como se viabiliza a democracia de realização
dos alunos negros e indígenas, quando comparados aos
alunos brancos das universidades brasileiras? Quais os mecanismos que asseguram a permanência não subalternizada desses alunos na universidade? O que nos ensinam as
experiências de universidades pioneiras na implementação
das políticas de cotas étnicas ou racialmente definidas?
Ahyas Siss, em “O Leafro, relações étnico-raciais e
a formação de professores: uma experiência de intervenção multicultural”, ao discorrer sobre a necessidade de se
implementar a formação de professores em perspectiva
multicultural, analisa a contribuição que o Leafro (Laboratório de Estudos Afro-brasileiros), o núcleo de estudos
afro-brasileiros da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro (UFRRJ) oferece ao processo de formação continuada de professores da Baixada Fluminense, no Rio de
Janeiro, e ressalta as formas pelas quais esse laboratório
9
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
vem, efetivamente, intervindo nesse processo. Criado em
2006, o Leafro desenvolve atividades de ensino, pesquisa
e extensão, aprofundando análises das articulações estabelecidas entre as dimensões raciais e étnicas, de classe,
cultura, de gênero, bem como do mundo do trabalho
na sua interseção com as relações étnico-raciais brasileiras e com o processo educativo formal. Nesse sentido,
esse laboratório promove ações afirmativas étnica e racialmente enviesadas, com resultados significativos no
processo de formação de professores, no âmbito da Baixada Fluminense e da própria UFRRJ, além de participar
ativamente das discussões sobre as possibilidades de
implantação de políticas de cotas étnico-raciais naquela
universidade.
“Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n.
10.639 na abordagem do ciclo de políticas” é o artigo
assinado por Cláudia Regina de Paula, em que a autora
discute as contribuições da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball e seus colaboradores,
especificamente sobre a política que inclui no currículo
da escola básica a história e a cultura afro-brasileira, através da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004).
O artigo “Jovem da Baixada Fluminense, religião de
matriz afro-brasileira e subjetividade: um entrelaçamento
à luz da complexidade”, da pesquisadora Leila Dupret,
apresenta estudos realizados a partir de 2006 com jovens
habitantes da Baixada Fluminense, levando em conta o
que é decantado pela mídia, incluindo sua concepção
étnico-racial, acrescida pelo atravessamento cultural afrobrasileiro advindo do campo religioso, considerando suas
informações míticas como fonte para a construção do conhecimento, destacando neste contexto o papel ativo da
mulher em sua participação no cenário político, econômico e divulgador dos usos, costumes e tradições constituintes de nossa brasilidade. A autora analisa também
10
Introdução
como supostos futuros professores estão lidando com as
diferentes modalidades de saber.
Iolanda de Oliveira, em seu “A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo às funções da universidade: origem e atuação do Programa de Educação
sobre o Negro na Sociedade Brasileira (Penesb)”, discorre
sobre a criação do Penesb e de sua incorporação à estrutura da Faculdade de Educação da Universidade Federal
Fluminense (Feuff), além de fazer considerações sobre
referenciais teóricos pertinentes à pesquisa e à formação
dos profissionais da educação com vistas ao atendimento
satisfatório aos grupos humanos diferenciados cultural e
biologicamente, particularmente os grupos negros.
“Educação e relações raciais Em Mato Grosso” é o
artigo em que a pesquisadora Maria Lúcia Rodrigues Müller discute os processos intra-escolares que produzem o
fracasso escolar de alunos negros, que, quando não fracassam, têm trajetórias escolares mais acidentadas que alunos
brancos. No texto, a autora aborda alguns aspectos das relações raciais nas escolas de Mato Grosso tomando como
base os resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação
(Nepre) da Universidade Federal de Mato Grosso.
Paulo Vinicius Baptista da Silva, pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal
do Paraná (Neab-UFPR) contribui, nessa obra coletivamente produzida, com o seu artigo intitulado “Educação
das relações étnico-raciais na terra das araucárias”, no qual
discute o processo de formação de professores (as) sobre
História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais desenvolvido pelo Neab-UFPR desde
o ano de 2004.
A educação indígena se faz presente, neste livro,
por meio de dois artigos, dos pesquisadores Aloisio Jorge
de Jesus Monteiro e Darci Secchi. Monteiro, em seu “Para
além do imaginário congelado do território e da identidade brasileira: entre memória e tradições indígenas”, fun11
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
damentado em Walter Benjamin, afirma que a luta pela
demarcação dos territórios indígenas, em conexão com a
defesa das identidades de seu patrimônio histórico cultural, assume características de centralidade no debate atual.
O autor procura, ainda, identificar os conceitos de território e identidade, bem como, suas possíveis confluências
com a complexidade das novas configurações atuais. Já
Secchi, em “Formação de professores para a autonomia
indígena”, afirma que o debate acerca da implantação de
políticas públicas dirigidas a segmentos sociais específicos
(negros, índios, pobres, etc.) tem ocupado um lugar de
destaque no cenário acadêmico contemporâneo. O autor
discute a educação escolar indígena por considerá-la uma
das âncoras do movimento de consolidação do chamado
protagonismo indígena e assegura que a consolidação de
uma nova perspectiva para a educação escolar indígena
em Mato Grosso na última década foi possível graças a um
amplo programa de formação de professores, mas que foi
necessário conjugar a educação escolar a outras iniciativas
que procuraram superar as atuais políticas compensatórias
e se voltaram para a construção de relações pautadas na
autonomia e no protagonismo dos brasileiros indígenas,
quer vivem nas aldeias, quer vivam nas cidades.
A pesquisadora Lucília Augusta Lino de Paula, ao
discutir as “Relações raciais e desigualdade: resistências à
política de cotas na Universidade”, não nos deixa esquecer
que este é um dos grandes desafios com que a universidade brasileira se depara desde a Reforma Universitária de
1968, colocando em xeque concepções e práticas arraigadas e marcadas pelo elitismo e pela meritocracia. Afirma
que os debates sobre a instituição do sistema de cotas nas
universidades públicas brasileiras trazem à luz resistências
à institucionalização da adoção de políticas afirmativas e
ao reconhecimento de tensões nas relações étnico-raciais
no interior do campo acadêmico e que se, hoje, a universidade apresenta uma crescente produção científica sobre
a diversidade cultural e as relações étnico-raciais, quando
12
Introdução
o assunto é a democratização do acesso às camadas populares, mais especificamente à população afro-descendente,
as resistências são enormes.
As considerações elaboradas pelas pesquisadoras
Dalila Fonseca Benevides, Daniela Silva Santo e Delcele Mascarenhas Queiroz, no capítulo “Estudantes de uma
universidade estadual com cotas: a percepção do racismo e da política de ações afirmativas”, têm sua origem
em dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que
ingressaram no ano de 2005 naquela universidade pelo
sistema de cotas. As autoras pretendem contribuir para o
debate em torno das ações afirmativas e, particularmente,
levar à reflexão sobre a experiência de adoção de tais
medidas naquela instituição. O primeiro levantamento
identificou as características socioeconômicas e acadêmicas dos estudantes que ingressaram em cursos de elevada
concorrência. O segundo compreendeu a percepção dos
estudantes sobre as relações raciais, as ações afirmativas e,
particularmente, a política de cotas que os beneficiou.
Maria Alice Rezende Gonçalves, ao analisar “O
sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado
do Rio de Janeiro e a participação do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Uerj na permanência de alunos afrobrasileiros”, nos remete ao campo das políticas publicas
e descreve as fases de implantação e implementação
da política pública Sistema de Reserva de Vagas para
Negros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2002/2008), além de destacar a participação do Sempre Negro – Coletivo de Professores Negros da Uerj, o
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UERJ, nesse processo. A autora pontua que, desde sua criação (2003), o
núcleo promove atividades nos eixos formação, publicação e permanência de alunos afro-brasileiros, e que
as ações do Neab, um ator emergente no campo das
políticas de inclusão no ensino superior nas universidades públicas, contribui para consolidação dessa política
no interior da instituição.
13
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Os autores, cujos textos integram o presente livro,
percebem as representações de raça, classe e gênero
como o resultado de lutas sociais ampliadas “sobre signos
e representações”. As desigualdades são compreendidas
como produto de relações históricas, de cultura e de poder e a diversidade é afirmada na perspectiva da justiça
social. Diferença não significa desigualdade.
Ao atuarem nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da
extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados na confluência das áreas das desigualdades e das
diversidades étnico-raciais e da educação, esses pesquisadores ampliam e consolidam sua intervenção na educação
brasileira e nos oferecem subsídios para uma nova prática
pedagógica menos excludente, vale dizer, mais democrática, propiciando que a educação brasileira possa efetivarse sobre bases multiculturais.
Ahyas Siss
14
O Leafro, relações étnico-raciais
e a formação de professores:
uma experiência de intervenção
multicultural
Ahyas Siss
Introdução
Sabemos que a formação continuada de professores constitui-se, entre nós, como necessidade premente.
Desde os anos sessenta do século passado esse tema vem
ganhando importância significativa, provocada por aceleradas transformações pelas quais a sociedade brasileira
vem passando. As demandas educacionais colocadas pelo
avanço tecnológico, econômico e científico nas diferentes
áreas do saber, somadas a outras originadas pela ação dos
diferentes movimentos sociais que, a partir da década de
1970, reemergiram ou potencializaram suas ações no cenário nacional, vêm impactando fortemente o processo de
formação de professores, nos seus aspectos inicial e continuado. A dinâmica social exige dos professores novas
competências e habilidades que, muitas das vezes, não
foram construídas quando de sua formação inicial.
Não devemos nos esquecer de que, se a formação
continuada de professores é um direito do professor, esse
processo formativo coloca algumas exigências para esses
profissionais, tais como disponibilidade para aprendizagem e vontade de aprender a aprender, dentre outras. Da
instituição escolar, por outro lado, requer-se que sejam
15
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
criadas alternativas, ou condições, que propiciem a esses
profissionais a continuidade de seu processo formativo.
Se a formação de professores é dever do Estado e tarefa
da universidade, exige-se, do Estado, a formulação e implementação de políticas públicas voltadas para a qualificação desses profissionais. Da universidade, por sua vez,
exige-se a elaboração de programas de formação continuada que possibilitem o desenvolvimento e a qualificação
profissional em uma dimensão permanente.
No que diz respeito ao trinômio educação, relações
étnico-raciais brasileiras e formação de professores, tanto
na sua dimensão inicial quanto na continuada, os resultados de pesquisas contemporâneas e de outras não tão
recentes assim, posto que foram desenvolvidas ao longo
das últimas décadas do século passado, apontam na direção da existência de um verdadeiro divórcio entre essas
três áreas, quando entre elas deveriam existir interseções
significativas.
Estudos realizados nessas áreas por pesquisadores
como Ana Célia da Silva (1995, 2001), Ana Lúcia Valente
(1995,) Delcele Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de
Oliveira (1999, 2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985,
1998), Luiz Cláudio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes
(1997, 2000), Petronilha B. G. e Silva (1993, 2003), Regina
Pahim Pinto (1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), dentre
outros, permitem inferir-se, por meio de seus resultados,
que a instituição escola é étnico-racial e culturalmente seletiva. Em outras palavras, a escola é discriminatória e excludente. Nela, o processo de aprendizagem vem sendo
feito contra os interesses de uma parcela significativa do
alunado – os afro-brasileiros – e as memórias desse grupo
étnico-racial, bem como as dos indígenas, são invisibilisadas, quando não apagadas, e o sabor do saber se faz
amargo. Essa memória, que deveria se tornar mecanismo
de potencialização do processo de ensino-aprendizagem,
transforma-se em mordaça que atrofia a aprendizagem do
aluno e torna perversa a prática do professor.
16
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
Os resultados de diferentes pesquisas desenvolvidas
contemporaneamente sobre esses temas apontam, também,
para a importância e necessidade de se formar professores
para uma prática pedagógica eficiente do ponto de vista
das diversidades, no âmbito de sociedades culturalmente estratificadas. Em vários países assim diversificados, as
interseções entre políticas educacionais, relações étnicoraciais e formação de professores, tanto no seu aspecto
inicial quanto no continuado, ocupam lugar de destaque.
No Brasil, porém, país de dimensões continentais, com
sua população caminhando para a casa dos 200 milhões
de habitantes, dos quais cerca de 50% são afro-brasileiros,
essas interseções não se constituíam, até bem pouco tempo, em motivo de preocupação significativa por parte dos
formuladores das políticas educacionais, os quais vinham
relegando sistematicamente essas interseções quase que
à invisibilidade. Como conseqüência, os programas das
faculdades de formação de professores, na sua maior parte, sistematicamente desconsideravam a importância da dimensão dessas interseções, o que justificava sua ausência
no processo formativo dos professores brasileiros.
As desigualdades social e étnico-racial operam como
poderoso mecanismo de estratificação social em qualquer
sociedade em que elas se manifestem. É certo, também,
que a sociedade brasileira possui altos níveis de desigualdades, tanto sociais como étnico-raciais, de gênero e geracional.
Pesquisas importantes desenvolvidos por estudiosos das relações étnico-raciais brasileiras como Azevedo
(1953), Fernandes (1965), Harris (1964), Pierson (1945),
Telles (2003) e Wagley (1952), indicam que a maior parte da população brasileira, tanto branca como negra, é
economicamente empobrecida. Não obstante, segundo
esses mesmos estudiosos, as pessoas negras em processo de mobilidade vertical ascendente parecem sofrer menos preconceito do que os demais membros desse grupo
étnico-racial. Daí inferirem que o preconceito existente
17
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
contra os negros está baseado muito mais em distinção de
classe que em marcadores raciais; afirmam, também, que
a discriminação ocorre porque a maior parte dos negros
brasileiros são pobres e portadores de baixo capital educacional e não por não pertencerem à parcela branca da
população brasileira. Acreditavam que, com o aumento do
capital educacional dos negros e com o desenvolvimento
da sociedade de classes no Brasil, o preconceito e as desigualdades étnico-raciais tenderiam a desaparecer.
Fundamentados nesses argumentos, alguns estudiosos das relações estabelecidas entre etnia/raça e educação
brasileira, acreditando ser a discriminação de classe mais
importante que a discriminação étnico-racial, opõem-se
de forma veemente, a qualquer tipo de modificação no
processo de formação de professores que confira ênfase à
dimensão étnico-racial da população brasileira.
Em sentido diametralmente oposto a essa primeira
perspectiva, outros tantos pesquisadores dessas mesmas
relações postulam ser o preconceito e a discriminação
étnico-racial mais importante que a condição de classe.
Afirmam, também, que ambos concorrem para produzir
e reproduzir as condições de subalternização dos afrobrasileiros frente ao grupo étnico-racial branco, político
e socialmente dominante. Por isso, os processos de formação de professores não podem prescindir de formar
profissionais aptos a desenvolver sua prática docente no
âmbito de sociedades multiculturais.
Nesse sentido, estudos elaborados mais recentemente por Guimarães (2001, 2002, 2003), Hasenbalg (1979,
1990), Hasenbalg e Silva (1990), Munanga (1996) e Henriques (2001) afirmam a existência de barreiras étnica e racialmente seletivas que obstaculizam os processos de implementação da cidadania dos afro-brasileiros, bem como
de mobilidade vertical ascendente para os membros desse
grupo. Eles permitem, ainda, perceber-se que, mais do
que um legado do passado, a discriminação racial constitui-se na principal característica da sociedade brasileira
18
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
do período pós-abolição, produzindo e reproduzindo desiguais oportunidades de realizações sociais para brancos
e afro-brasileiros, com a variável raça ou cor – como atributo social elaborado – sendo percebida como “um princípio racial classificatório”, sobre o qual as desigualdades
cultural, social e econômica existentes entre os diferentes
grupos étnico-raciais são produzidas e reproduzidas de
modo ininterrupto. Esse princípio classificatório permite
que se perceba como
Esse perfil de desigualdades raciais não é um simples
legado do passado: ele é perpetuado pela estrutura
desigual de oportunidades sociais a que brancos e
não-brancos estão expostos. Negros e mulatos sofrem
uma desvantagem competitiva em todas as etapas do
processo de mobilidade social individual. Suas possibilidades de escapar às limitações de uma posição
social baixa são menores que a dos brancos da mesma
origem social, assim como são maiores as dificuldades para manter as posições já conquistadas (HASENBALG, 1988, p. 177).
Novamente nos referimos às pesquisas realizadas
na interseção estabelecida entre as relações étnico-raciais, educação e formação de professores por Ana Célia
da Silva (1995; 2001) Ana Lúcia Valente (1995,) Delcele
Mascarenhas Queiroz (2003), Iolanda de Oliveira (1999,
2000), Luiz Alberto O. Gonçalves (1985, 1998), Luiz Cláudio Barcelos (1993), Nilma Lino Gomes (1997, 2000), Petronilha B. G. e Silva (1993; 2003,), Regina Pahim Pinto
(1993a, 1993b) e Siss (1994, 2003), pois elas enfatizam
o papel que o professor, devidamente instrumentalizado, estará apto a desempenhar no âmbito de sociedades
multiculturais, como é o caso de nossa sociedade. Esse
professor estará capacitado, por exemplo, a perceber e
combater as ideologias racistas e os estereótipos veiculados pelos diversos materiais didáticos colocados à sua
disposição.
19
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Ele poderá desmistificar os valores particulares que
os currículos escolares tentam tornar gerais ou hegemônicos. Ele poderá combater a forma estereotipada e
preconceituosa com que a história dos afro-brasileiros é
enfocada nos livros didáticos nos quais, na maior parte
das vezes, os afro-brasileiros são enfocados apenas, e
quase sempre, como e enquanto escravizados. Os afrobrasileiros no Brasil de hoje são ignorados, permanecendo invisíveis nesses livros. A estrutura dos currículos
dos cursos de formação de professores, (se) privilegia as
diversidades de classes e de gênero, silencia a respeito
da história da África e das diversidades étnico-racial e
cultural brasileiras.
No Brasil, no período compreendido entre o pósabolição e o fim dos anos oitenta do século XX, a produção acadêmica envolvendo as áreas das relações étnico-raciais, educação, formação de professores e de um
multiculturalismo que já se insinuava, constituiu-se como
qualitativamente significativa, embora seja, em termos
quantitativos, pouco expressiva. Pesquisas foram realizadas nessas áreas nesse período, mercê do esforço de
alguns poucos pesquisadores. Entretanto elas foram, na
maior parte das vezes, relegadas ao ostracismo ou reduzidas à invisibilidade quando comparadas a outras áreas
de produção do conhecimento nessa mesma época, como
demonstrado por Hasenbalg e Silva (1992), Pinto (1993) e
Silva (1996), dentre outros.
A partir da primeira metade dos anos 1990, o panorama dessa produção começará a se transformar, tanto
quantitativa como qualitativamente. Essa transformação
será propiciada, por um lado, pelo aparecimento de novas
pesquisas situadas na confluência das áreas entre educação brasileira e formação de professores inicial e continuada, pesquisas essas que, em grande parte, se constituem
como o resultado de discussões e análises elaboradas na
segunda metade da década passada, tanto na academia
quanto nos movimentos sociais, como o movimento ne20
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
gro nacional, o novo movimento sindical, o movimento
feminista e o movimento de mulheres negras, para citar
apenas alguns. A importância dessas pesquisas pode ser
comprovada pelo interesse que despertam na academia e
também em diferentes fóruns privilegiados de discussão,
como nos encontros da ANPEd (Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação), e da Anpocs
(Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em
Ciências Sociais).
Entre nós, a relação atualmente estabelecida entre
racismo e educação dos afro-brasileiros é bastante diferente da existente no século passado. A publicação e o
reconhecimento oficial e tardio da existência de discriminação racial e da violação dos direitos constitucionalmente declarados dos afro-brasileiros e de que a educação
brasileira em todos os seus níveis é racialmente excludente conferiram dinâmicas novas aos processos de discriminação racial.
Dificilmente alguém, hoje, desconheceria o fato de
que somos um povo multicultural e que convivemos com
o fenômeno do racismo, característica estrutural da nossa sociedade. Não obstante, a formação de professores
continua a acontecer como se fôssemos uma sociedade
monocultural. Ainda que as desigualdades de classe sejam
abordadas, a perspectiva multicultural das relações sociais
e seu correspondente na educação permanecem, quase
sempre, fora dos currículos que orientam tal formação.
Creio não ser difícil constatar-se que a sobrevida do
mito da democracia racial se faz presente hoje e atua com
relativa intensidade na maior parte dos currículos dos cursos de formação de professores. Ainda que não se possa
negar o caráter multicultural da sociedade brasileira, os
currículos dos cursos de formação de futuros docentes,
com honrosas exceções vêm, sistematicamente, ignorando
as contribuições que as pesquisas elaboradas em perspectiva multicultural oferecem ao processo de formação de
professores.
21
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
A Lei n. 10.639, de 09/01/2003 determina no seu
Artigo 26-A, que “nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira” e
que o “conteúdo programático [...] incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no
Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da
sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo
negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil”.
Essas determinações, somadas à publicação e intensidade das discussões sobre a implementação de uma
política de cotas como mecanismo de acesso à educação
superior, voltada para os afro-descendentes, vêm redimensionando a política educacional brasileira, as relações
étnico-raciais e as formações inicial e continuada de professores. Nesse contexto, a formação continuada de professores ganha relevância, por permitir a atualização dos
conhecimentos e da prática pedagógica desses profissionais de ensino.
A Lei n. 11.645/08, que altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, modificada pela Lei n. 10.639, por sua
vez, confere ênfase à educação indígena, assegurando que
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se
obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena.
§ 1o O conteúdo programático a que se refere este artigo incluirá diversos aspectos da história e da cultura
que caracterizam a formação da população brasileira,
a partir desses dois grupos étnicos, tais como o estudo
da história da África e dos africanos, a luta dos negros
e dos povos indígenas no Brasil, a cultura negra e indígena brasileira e o negro e o índio na formação da
sociedade nacional, resgatando as suas contribuições
nas áreas social, econômica e política, pertinentes à
história do Brasil.
22
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
§ 2o Os conteúdos referentes à história e cultura afrobrasileira e dos povos indígenas brasileiros serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em
especial nas áreas de educação artística e de literatura
e história brasileiras.
É nessa perspectiva que se inserem tanto o Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros – Leafro (Neabi/UFRRJ)
quanto sua produção de conhecimento viabilizada pelas pesquisas desenvolvidas por seus pesquisadores e os
seus cursos de pós-graduação lato sensu Diversidade Étnica e Educação Brasileira e de extensão Afro-Brasileiros,
Desigualdades Étnico-Raciais e Educação no Brasil. Sua
principal proposta está voltada para oferecer subsídios e
orientação às ações educativas de intervenção pedagógica
direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03 de
“9 de janeiro de 2003, que Altera a Lei n. 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases
da educação nacional, para incluir no currículo oficial da
Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática História e
Cultura Afro-Brasileira”.
Dessa forma, atendemos a uma demanda reprimida
dos professores da rede municipal de ensino do Município de Nova Iguaçu e de outros profissionais da educação
localizados em seu entorno, no que diz respeito ao estabelecido pela referida lei, bem como ao que determinam
as Diretrizes Curriculares Para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e ao Parecer 003/20041.
Trata-se de Parecer do Conselho Nacional de Educação aprovado no
mês de março de 2004, que “visa a atender os propósitos expressos na
indicação CNE/CP 6/2002, bem como regulamentar a alteração trazida
à Lei 9.394/96 de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, pela Lei
10.639/2000, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e
Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica”.
1
23
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
O Leafro – Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros
(Neabi da UFRRJ): intervindo e transformando
O Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros (Leafro),
Neab da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
(UFRRJ) e proponente do curso de pós-graduação lato
sensu em Diversidade Étnica e Educação Brasileira, iniciou suas atividades no primeiro semestre de 2006. Suas
fundação, institucionalização e consolidação no âmbito do
Programa de Pós-Graduação Mestrado em Educação Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da UFRRJ
têm proporcionado a continuidade do desenvolvimento
de pesquisas voltadas para a produção e divulgação de
conhecimentos acadêmicos e de intervenção, no processo
de formação de professores da Baixada Fluminense em
uma perspectiva multicultural, tanto no seu aspecto inicial quanto continuado, nas modalidades presencial e a
distância.
Integrante da rede nacional de Neabis (Núcleos de
Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas) existentes e atuantes
na maior parte das universidades públicas brasileiras, o
Leafro tem, como objetivos, produzir, incentivar e acompanhar as políticas de ação afirmativa nas instituições no
âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Ele possibilita, ainda, o ensino da cultura afro-brasileira, africana e indígena, além de atuar nos âmbitos
do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados na confluência das
áreas das desigualdades e diversidades étnico-raciais e da
educação.
A criação do Leafro se justificou pela necessidade
de se produzir, incentivar e apoiar a produção e a difusão de conhecimentos novos nas áreas dos estudos afrobrasileiros e da educação em consonância com o que é
preconizado pela Lei n. 10.639/03, intervindo no processo
de formação de professores nos seus aspectos inicial e
continuada, bem como nas modalidades presencial e a
24
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
distância. A relevância desse laboratório deve-se ao fato
de a formação de professores em perspectiva multicultural
se constituir como um dos principais desafios contemporâneos colocados para os diferentes cursos de licenciaturas e de especialização, seja na modalidade presencial,
seja na modalidade a distância, cuja solução é fortemente
demandada pela educação brasileira, bem como por professores dos municípios que formam a chamada Baixada
Fluminense, de acordo com levantamento preliminarmente realizado.
O Leafro acompanha as políticas de ação afirmativa
etnicamente definidas, já implementadas, ou em fase de
implementação e desenvolvimento no âmbito da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, além de participar
ativamente das discussões internas sobre as necessidade
e possibilidade de se implementar na UFRRJ uma política de cotas étnico/raciais voltada para os afro-brasileiros,
como forma de democratização do acesso desse segmento
étnico-racial aos cursos dessa universidade. O Leafro também favorece o ensino da cultura afro-brasileira e africana,
atuando nos âmbitos do ensino, da pesquisa e da extensão, produzindo e divulgando conhecimentos localizados
na confluência das áreas das desigualdades e diversidades
raciais-étnicas e da educação.
Ao longo de sua existência, esse laboratório vem se
consolidando como um centro de excelência de elaboração de estudos e de pesquisas sobre as relações étnicoraciais e de implementação de políticas públicas em educação, bem como na formação de professores na Baixada
Fluminense, implementando parcerias com diferentes órgãos dos governos federal, estadual e municipal, além de
ampliar um ambiente propício às pesquisas voltadas para
os estudos das desigualdades étnico-raciais na UFRRJ que
permitam intervir na formação continuada de professores
de toda a Baixada Fluminense ajudando-os a superar as
dificuldades encontradas em suas práticas pedagógicas e
a promover um “saber com sabor”, ou seja, um saber que
25
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
não seja etnicamente excludente, mas que potencialize os
processos de aprendizagem dos diversos sujeitos sociais.
O Leafro procura também oferecer respostas efetivas às demandas educacionais dos professores da Baixada
Fluminense possibilitando-lhes tornarem-se sujeitos ativos
nos processos de produção de seu conhecimento, bem
como agentes multiplicadores de uma educação emancipatória. Esse laboratório preocupa-se em construir, com os
professores da Baixada Fluminense, estratégias de combate às desigualdades étnico-raciais no cotidiano escolar e
na sociedade abrangente.
A produção e divulgação de estudos de impacto e
de intervenção no campo educacional do poder público na esfera dos estudos étnico-raciais também constitui
objetivo desse laboratório. Ele contribui, portanto, para
instituir e legitimar a Universidade Federal Rural do Rio
de Janeiro como ator e canal privilegiado de interlocução
com o poder público por meio da discussão dos resultados alcançados, e, pela socialização de suas realizações,
seja por meio da mídia eletrônica, ou por meio impresso.
O curso de pós-graduação lato sensu:
diversidade étnica e educação brasileira
A pós-graduação, tanto lato, como stricto sensu possui um papel decisivo e fundamental na consolidação da
área da educação nos diferentes campi da UFRRJ implementando-a como centro de produção de conhecimento
orientado por padrões de excelência acadêmica nas áreas de concentração de seus professores-pesquisadores e
pela perspectiva de construção da interdisciplinaridade.
Assim, considera-se fundamental estimular o intercâmbio
de experiências, em parceria com entidades e instituições
do país e do exterior, expandir a cooperação interinstitucional, bem como criar oportunidades para a incorporação de novos pesquisadores. As atividades desenvolvidas
26
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
são pautadas pela inovação, tanto no que diz respeito às
abordagens de pesquisa quanto às formas de relação entre
conhecimento e sociedade. Um exemplo significativo diz
respeito à realização de diagnósticos participativos socioculturais e econômicos que contribuam para práticas educativas, levando-se em conta as estratégias cotidianamente
construídas pelos diferentes atores sociais da Baixada Fluminense e para além dela.
A proposta de criação do curso de pós-graduação
lato sensu: Diversidade Étnica e Educação Brasileira foi
apresentada por meio de duas unidades acadêmicas da
UFRRJ: o Instituto de Educação (IE) e o Instituto Multidisciplinar (IM). Integrado por pesquisadores de ambos os
institutos, o Leafro entende a docência como inserida em
um projeto formativo mais amplo e não na visão reducionista de um conjunto de métodos e técnicas supostamente
neutros, descolados de uma dada realidade histórica, conforme explicitado pelo Fórum de Diretores das Faculdades de Educação das Universidades Federais (Forumdir) e
pela Associação Nacional pela Formação dos Profissionais
da Educação (Anfope). Em síntese, uma formação que
contribua para a instituição de sujeitos capazes de exercer
a docência na atual complexidade do mundo em que o
educador reconhece nas práticas cotidianas elementos essenciais para a construção do conhecimento. O IE e o IM,
por meio do Leafro, contribuem para o desenvolvimento
dos potenciais da pesquisa e da pós-graduação da UFRRJ
como um todo, tanto pela criação de programas e cursos
próprios quanto pela colaboração com áreas afins dos demais institutos.
Justificativa do curso
A relevância da criação e implementação do curso
de pós-graduação lato sensu Diversidade Étnica e Educação Brasileira está presa ao fato de ser este um dos
27
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
principais desafios contemporâneos colocados para os diferentes profissionais da educação brasileira e cuja solução é fortemente demandada pela educação. Os recursos
didáticos e demais materiais empregados são o quadro de
giz, livros, papel, lápis, computadores, datashow, retroprojetores e telas de projeção.
O oferecimento desse curso, na modalidade presencial, encontra suas justificativa e relevância por estar
voltado para o atendimento de uma demanda específica
na esfera da educação, propiciando o acesso à formação
continuada de professores pública, gratuita e de qualidade. Nossa proposta se prende ao fato de concordarmos com o princípio de que a formação de professores,
tanto inicial quanto continuada, constitui-se como dever
do Estado e tarefa da universidade pública, gratuita e de
qualidade.
A formação de professores inicial e continuada, voltada para uma prática pedagógica no âmbito de sociedades diversificadas por classe social, etnia, cultura, gênero
e idade, constitui-se em importante desafio contemporâneo que precisa de respostas positivas urgentes. Linhares
(1997) postula que isso equivale a redefinir o papel que
escola e professores vêm desempenhando, pois
Se entendemos a escola como uma instituição social densa de relações educativas onde o ensinar e
o aprender podem-se abrir em caminhos para distinguir opressões, comunicar-se com outras culturas,
ressignificar conhecimentos por situá-los dentro de
uma lógica marcada por perspectivas do que constitui problemas para nós, [...] vamos ter que apostar
que a fabricação de novos lugares para a escola não
poderá dispensar professores e alunos [...]. São estes
que [...] irão traduzir os saberes populares em cultura
escolar, acolhendo os desejos dos trabalhadores, das
mulheres, dos negros, de saberes que os fortaleçam
(LINHARES, 1997, p. 146).
28
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
Acreditamos que o curso Diversidade Étnica e Educação Brasileira possa contribuir no processo de superação desse desafio, propiciando aos professores e aos demais cursistas uma transformação qualitativa e positiva de
sua práxis pedagógica, no que diz respeito à educação das
relações étnico-raciais na escola e na sociedade abrangente, qualificando a prática docente desses profissionais da
educação e ampliando sua formação inicial.
Objetivos específicos do curso
O curso possui, como específicos, os seguintes
objetivos:
• Possibilitar a compreensão da diversidade étnicoracial da sociedade brasileira.
• Possibilitar, aos professores e demais profissionais
do ensino, identificarem ações etnicamente estereotipadas ou racistas no ambiente escolar e na
sociedade abrangente.
• Influenciar no processo de desconstrução de imaginários que justifiquem ações etnicamente estereotipadas, ou racistas.
• Conduzir ao conhecimento e à valorização das
culturas dos povos africanos, dos afro-brasileiros
e de indígenas
• Permitir aos professores e aos demais profissionais
da educação, construírem estratégias efetivas de
resistência e de combate às desigualdades étnicoraciais no cotidiano escolar.
• Compreender o princípio da igualdade básica entre os seres humanos como direito.
• Potencializar a consciência política e histórica da
diversidade.
• Potencializar a intervenção critica dos cursistas
frente a situações de racismo e de preconceito no
cotidiano escolar e na sociedade mais ampla.
29
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
A avaliação dos alunos é presencial, processual e
diagnóstica, o que prevê aplicação de provas presenciais
e individuais ao final de cada módulo, como um dos instrumentos de avaliação. A juízo de cada professor que
ministrará o módulo, a prova pode ser substituída pela
elaboração de papers individuais. Já a avaliação do curso
ocorre em dois momentos: por uma análise ex-ante, com a
participação de toda a equipe pedagógica e por uma análise ex-post em forma de pesquisa qualitativa e quantitativa
abrangendo os corpos docente e discente, onde são avaliados o processo, as metas e os resultados alcançados.
O curso se desenvolve em duas partes: a parte de
créditos e a parte de elaboração do trabalho monográfico.
A parte de créditos corresponde às disciplinas que integram o curso e que são as seguintes: História e Cultura
Afro-Brasileira; História, Cultura e Educação dos Povos Indígenas; Diáspora Africana e a Construção do Brasil-Nação;
Diversidade Étnico-racial e Educação Brasileira; Desigualdade Étnico-racial e Mercado de Trabalho; Subjetividades
e Religiões Afro-Brasileiras; Turismo Étnico no Brasil e na
Baixada Fluminense; Gênero, Etnia e Docência; Etnicidade, Práticas Culturais e Narrativas; Pesquisa, Educação e
Relações Étnico-raciais Brasileiras.
As primeiras quatro disciplinas que integram a grade
curricular desse curso compõem o que entendemos como
sendo de fundamentação básica. As outras, que lhe seguem,
são caracterizadas como de saberes contextuais. Isso significa dizer que, ainda que ocorram modificações nas disciplinas que integram esse curso por conta do perfil necessariamente diferenciado que cada nova turma que lhe freta, as
disciplinas de fundamentação básica serão mantidas, principalmente, em respeito às leis 10.639/03 e 11.645/08.
O aluno desenvolve um projeto de pesquisa sob
orientação de um membro do corpo docente do curso
e elabora um trabalho monográfico necessariamente ligado à temática do curso, cujas defesa e aprovação perante
banca constituem-se como requisito parcial à obtenção do
30
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
título de especialista em Desigualdade Étnica e Educação
Brasileira.
Por ser este um curso que, se espera, seja de intervenção, seus resultados e impactos serão mensurados
através da prática pedagógica dos seus egressos. Espera-se
que tais egressos transformem-se em agentes multiplicadores do curso que, com sua prática, possam instituir a
educação na Baixada Fluminense sobre bases igualitárias,
democráticas e inclusivas.
O curso de extensão afro-brasileiros,
desigualdades étnico-raciais e educação no Brasil
O que justificou a implementação desse curso foram
as necessidade e possibilidade de se intervir na formação
continuada dos professores e dos demais profissionais da
educação da Baixada Fluminense em um curto espaço de
tempo, em uma perspectiva mais pragmática, crítica, transformadora e capaz de produzir conhecimentos novos no
que diz respeito à relação estabelecida entre educação,
prática pedagógica inclusiva e as relações étnico-raciais
brasileiras.
O curso, com carga horária de 45 horas, é oferecido
na modalidade presencial e apresenta-se estruturado em
módulos. Cada módulo é integrado por duas atividades
pedagógicas: uma, de formação teórica e outra, de atividade de intervenção, na modalidade de oficinas, onde a teoria apreendida é aplicada na prática, simulando possíveis
situações problematizadoras ocorridas “no chão da escola”, onde a intervenção do professor se faz necessária.
Temos, como metodologia dessa atividade de extensão, aulas expositivas, dialogais e oficinas de práticas
pedagógicas. O curso também conta com duas conferências: uma, proferida na forma de aula magna e outra, de
encerramento. A avaliação é diagnóstica e processual. O
curso é gratuito e está voltado, preferencialmente, para os
31
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
professores da rede pública municipal dos municípios que
compõem a Baixada Fluminense e demais profissionais
da educação, bem como para estudantes de licenciatura e
de cursos afins. São oferecidas 45 vagas. Os módulos de
ensino e pesquisa, por ordem de estruturação do curso,
são: História da Cultura Africana; Diversidade Racial, a Lei
n. 10.639/03 e a Educação Brasileira; Gênero, Raça e Docência; Educação, Desigualdade Racial e Mercado de Trabalho; Multiculturalismo e Ação Afirmativa; Subjetividades
e Religiões Afro-Brasileiras.
Os resultados das avaliações do curso, do maior ou
menor alcance das metas propostas, dos principais obstáculos interpostos e da nossa metodologia de trabalho
indicam que o curso caminha dentro do previsto, quando de sua implementação, oferecendo uma formação que
vem contribuindo para a instituição de sujeitos capazes
de exercer a docência na atual complexidade do mundo
em que o educador reconhece nas práticas cotidianas elementos essenciais para a construção do conhecimento. Há
uma demanda crescente por esse curso, o que nos permite
(que se perceba) avaliar o acerto da sua implementação,
que já está em sua terceira versão.
O Leafro e a produção de conhecimento
Os pesquisadores que integram o Leafro desenvolvem estudos acadêmicos inseridos na perspectiva do multiculturalismo crítico (MCLAREN, 1977; GRANT e TATE,
1995), voltados para oferecer subsídios à qualificação de
docentes do ensino fundamental, médio e superior. Dessa
forma, o Leafro intervém no processo de formação de professores que atuam preferencial, mas não exclusivamente,
na Baixada Fluminense, tanto no seu aspecto inicial quanto continuado, na modalidade presencial, favorecendo o
diálogo, o respeito às diferenças étnico-raciais, de classe e
de gênero. Alguns desses estudos são:
32
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
Educação, cidadania, políticas de ação
afirmativa e cotas para afro-brasileiros
no acesso ao ensino superior
O objetivo desse estudo consiste em identificar, analisar e caracterizar as necessidade e viabilidade de que
seja implementado pelo Estado um programa de políticas
de ação afirmativa e cotas (no ensino) na educação superior, racial ou etnicamente definido na direção dos afrobrasileiros. Os avanços e limites dessas políticas são aqui
analisados e caracterizados, bem como a pertinência de
tais políticas para a sociedade brasileira. Essa pesquisa se
justifica por produzir conhecimentos novos na interseção
estabelecida pela educação superior, cidadania e as políticas de ação afirmativa e de cotas.
Sua relevância se prende ao fato de ser esse um
tema candente, que tem mobilizado a comunidade acadêmica e a sociedade, não só tendo-se em vista a forma pela
qual essas políticas vêm sendo implementadas, mas, também, pelo próprio conteúdo de tais políticas. A pesquisa
será qualitativa. Ela privilegia a análise do plano político
educacional, sem se descuidar das relações e interseções
que esse plano estabelece com o social. Ela é integrada
por alunos de licenciatura em Pedagogia e Química, estando vinculada ao Programa Institucional de Bolsas de
Iniciação Científica do CNPq, Pibic.
O acesso de alunos da Baixada Fluminense
à universidade pública: o caso da UFRRJ
Dois são os objetivos básicos dessa pesquisa, desenvolvida no âmbito do Leafro. O primeiro deles é identificar,
analisar, caracterizar e elaborar e construir o perfil dos alunos com matrícula ativa que freqüentam os cursos oferecidos pela UFRRJ nos seus campi Sede e de Nova Iguaçu.. Os
dados dessa pesquisa são desagregados por classe social,
33
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
etnia/raça, gênero, local de residência e religião. O segundo
objetivo é conhecer e mapear as formas pelas quais esses
alunos chegaram à UFRRJ, seus mecanismos de resistência,
bem como as possíveis estratégias de superação de obstáculos por eles construídas, ou empregadas, que lhes permitem êxito em suas trajetórias acadêmicas. Espera-se que
os resultados dessa pesquisa, ao serem publicados, possam
contribuir para os processos de construção de estratégias de
democratização de acesso e de permanência dos alunos das
classes populares da Baixada Fluminense à UFRRJ, em todos os seus campi. A essa pesquisa estão agregados alunos
de diferentes cursos de ambos os campi..
Desafios contextuais e construção subjetiva:
alternativas do jovem da Baixada Fluminense
Esse estudo pretende apontar outro caminho a ser
seguido na compreensão do que pensam os jovens da
Baixada Fluminense, trazendo para a discussão acadêmica tanto o olhar do jovem a partir dele mesmo, e não de
alguma hipótese do pesquisador que vai a campo testá-la,
como a universalização de padrões de comportamento que
concepções teóricas em Psicologia do Desenvolvimento
pretendem estabelecer, as quais acabam por classificar, estigmatizar e marginalizar, não respeitando singularidades
individuais e contextos socioculturais. Está vinculada ao
Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica do
CNPq, Pibic e Faperj.
Baobá: gênero e africanidades na sala de aula
Essa pesquisa possui, como principal objetivo, oferecer oficinas com diferentes linguagens aos educandos do
primeiro segmento de uma das escolas da rede pública da
cidade de Nova Iguaçu, que abordem as temáticas de raça e
34
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
gênero de forma a garantir o reconhecimento da diferença
e a igualdade na diversidade. Tal iniciativa visa a aplicar a
Lei n. 10.639, bem como atender às Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004) e abordar a questão da hierarquia de
gênero no cotidiano escolar. A pesquisa está vinculada ao
Programa Institucional de Bolsas de Extensão da UFRRJ.
Considerações finais
A Baixada Fluminense, com população aproximada
de 3,5 milhões de habitantes, é formada pelos municípios
de Belford Roxo, Duque de Caxias, Guapimirim, Itaguaí,
Japeri, Magé, Mangaratiba, Mesquita, Nilópolis, Nova Iguaçu, Paracambi, Queimados, São João de Meriti e Seropédica, e abriga cerca de 30% da população do estado do
Rio de Janeiro, população essa que é, majoritariamente,
descendente de imigrantes, afro-brasileira e pertencente à
classe trabalhadora.
É nesse espaço social e geográfico que o Leafro desenvolve atividades de ensino, de pesquisa e de extensão
aprofundando análises das articulações estabelecidas entre as dimensões étnico-raciais, de classe, de cultura, de
gênero, bem como do mundo do trabalho na sua interseção com o processo educativo formal, além de oferecer
subsídios e orientações às ações educativas de intervenção
pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n.
10.639/03. Ao atuarmos, também, no processo de formação de professores nos seus aspectos inicial e continuada,
acreditamos intervir positivamente nesse processo de forma a possibilitar a construção de novas subjetividades, de
mudança de atitudes frente às relações de dominação e de
exclusão, tanto no interior da instituição escolar quanto na
sociedade ampliada.
Entendemos que essa intervenção se faz relevante por percebermos esta dinâmica em perspectiva multi35
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
cultural, o que se constitui como dos principais desafios
contemporâneos colocados para os diferentes cursos de
licenciaturas em todo o país, a que buscamos responder.
O olhar multicultural lançado sobre a sociedade brasileira
e as contribuições que o multiculturalismo vêm oferecendo ao campo educacional são significativos e possibilitam
que reformulações sejam operadas no que diz respeito aos
processos de formação de professores, no sentido da valorização da história e da cultura afro-brasileira e indígena,
além de promover o questionamento e a descolonização
do imaginário dos educadores, ajudando-os a abandonar
novos e velhos preconceitos e práticas pedagógicas.
Nesse sentido, o multiculturalismo crítico pode propiciar, aos professores, tornarem-se sujeitos ativos da construção de conhecimentos, sem que esse processo implique um
doloroso exercício de negação, tanto de si quanto de seus
alunos e de seus lugares sociais de origem. O ato de tornarse sujeito implica uma luta constante contra as tentativas de
sujeição. Nesse processo e através de seus pesquisadores,
o Leafro vem desempenhando um importante e significativo papel junto aos professores da Baixada Fluminense,
ao mesmo tempo em que vem sendo reconhecido pelas
secretarias municipais dessa região geográfica como um importante ator social, principalmente através das demandas
educacionais que vem atendendo e das diversas parcerias
que vem estabelecendo. No âmbito da UFRRJ, sua ação se
faz sentir por sua atuação nos âmbitos do ensino, da pesquisa e extensão, além de inserir-se ativamente nas discussões sobre a implementação de políticas de cotas e de ação
afirmativa étnica e racialmente enviesada.
36
O Leafro, relações étnico-raciais e a formação de professores...
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históricas. Rio de Janeiro: Quartet; Niterói: Penesb, 2003.
VALENTE, A. L. Proposta metodológica de combate ao racismo. Cadernos de Pesquisa, São Paulo: Fundação Carlos
Chagas, 1995.
39
Políticas curriculares nacionais:
o caso da Lei n. 10.639 na
abordagem do ciclo de políticas
Cláudia Regina de Paula
Um currículo constitui significativo instrumento utilizado
por diferentes sociedades tanto para desenvolver os processos de conservação, transformação e renovação dos
conhecimentos historicamente acumulados como para
socializar as crianças e jovens segundo valores tidos como
desejáveis (MOREIRA, 1997, p. 11).
Resumo
A promulgação da Lei n. 10.639, de 09/01/2003,
parte das políticas curriculares de âmbito nacional, pois
altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
(LDBEN), resulta de processo de longa duração, permeado de lutas e negociações dos movimentos sociais (com
destaque para o movimento negro) com setores mais progressistas do cenário político nacional. O presente artigo
pretende discutir as contribuições da abordagem do ciclo
de políticas, formulada por Stephen Ball e colaboradores
(Ball e Bowe, 1992; Ball, 1994, apud Mainardes, 2006),
especificamente sobre a política que inclui no currículo da
escola básica, a história e a cultura afro-brasileira, através
41
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
da Lei n. 10.639, bem como as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais
(Parecer 003/2004).
Palavras-chave: ciclo de políticas, políticas curriculares,
Lei n. 10.639.
Introdução
O presente artigo pretende discutir as contribuições
da abordagem do ciclo de políticas, formulada por Stephen Ball e colaboradores (Bowe e Ball, 1992; Ball, 1994,
apud Mainardes, 2006), especificamente sobre a política
que inclui no currículo da escola básica a história e a cultura afro-brasileira, através da Lei n. 10.639, bem como as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais (Parecer 003/2004). Esse referencial
analítico me parece bastante adequado para analisar as
políticas públicas, sociais e educacionais brasileiras, uma
vez que a abordagem do ciclo de políticas rejeita a concepção fragmentada entre as fases da formulação e implementação das políticas, e, nesse sentido, entende que
os processos são continuamente influenciados, disputados
e negociados. Tal concepção difere do modelo verticalizado atribuído às políticas oficiais, que veiculam a idéia
de imposição estatal que ignora a participação, atuação e
influência daqueles que serão atingidos diretamente pela
política.
No desenvolvimento das políticas educacionais, as
percebemos como arenas de significados contextuais e
culturais, em que teorias, narrativas, visões e interpretações de mundo se constituem, são elaboradas e endereçadas. Apesar da polissemia do termo “cultura”, que abarca
diferentes interpretações, percebe-se que ela tem adquirido
crescente centralidade, assumindo cada vez mais relevância,
42
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
tanto na estrutura da sociedade como na constituição de
novos atores sociais (HALL, 2003). Ao interpretar a cultura
e suas representações na construção do Estado-nação, o
autor descreve:
As culturas nacionais são compostas não apenas de
instituições culturais, mas também de símbolos e representações [...] As culturas nacionais, ao produzir
sentidos sobre “a nação”, sentidos com os quais podemos nos identificar, constroem “identidades”. Esses
sentidos estão contidos nas estórias que são contadas
sobre a nação, memórias que conectam seu presente
com o seu passado e imagens que dela são construídas (HALL, 2002, p. 50 e 51).
A partir das simbologias e representações culturais
de que nos fala Hall (2002), tomei como exemplo nacional o caldeamento étnico e a miscigenação1, princípios de
sociabilidade vastamente incentivados pelo Estado-nação
brasileiro. Esse encontro de culturas tem sido marcado,
como afirma Macedo (2006), pela construção de ilusões de
homogeneidade. Se os ideais de nação e de Estado moderno foram instrumentos eficazes dessa construção, assim
como a ilusão de pertencimento pela via do nascimento
(que também se aplicou muito bem à realidade nacional),
desperta em nós e nos faz “sentir brasileiro”2. No entanto,
o paradigma da convivência pacífica entre os diferentes
grupos raciais, a fábula do encontro espontâneo e romanA mistura racial brasileira foi incentivada como princípio de sociabilidade e inexistência de racismo. Embora a Gilberto Freyre, a expressão
“democracia racial”, segundo Guimarães (2002), é de autoria de Roger
Bastide.
2
A valorização da mestiçagem deu uma carteira de identidade para a
parcela imensa da população que tinha “sangue negro”. Essa carteira
de identidade veio embalada na teoria da “democracia racial”: no Brasil, o confronto entre as raças dera lugar à harmonia. Nascia o país do
samba, do carnaval e do futebol. (MAGNOLI e ARAÚJO, 2001, apud
VAZZOLER, 2006, p. 126).
1
43
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
tizado das três raças, se revelou uma falácia, embora permaneça em discursos hegemônicos, comprometidos com
o ideário de nação.
É que, quando acreditamos que o Brasil foi feito
de negros, brancos e índios, estamos aceitando sem
muita crítica a idéia de que esses contingentes humanos se encontraram de modo espontâneo, numa
espécie de carnaval social e biológico. Mas nada disso é verdade. O fato contundente de nossa história
é que somos um país feito por portugueses brancos
e aristocráticos, uma sociedade hierarquizada e que
foi formada dentro de um quadro rígido de valores
discriminatórios (DAMATTA, l990, p. 46).
Para vários estudiosos (HALL, 2003; TODOROV, 1993;
GEERTZ, 1987/1997), o que caracteriza os seres e as sociedades humanas não é a similaridade e sim a diferença.
As identidades são construídas por meio da diferença
e não fora dela [...] As identidades são, pois, pontos
de apego temporário às posições-de-sujeito que as
práticas discursivas constroem para nós. [...] São as
posições que o sujeito é obrigado a assumir, embora
sabendo sempre, que elas são representações, que a
representação é sempre construída ao longo de uma
falta, ao longo de uma divisão a partir do lugar do
Outro [...] (HALL, 2000, p. 110-112).
Para Macedo (2006), no entanto, há uma tendência dos processos multiculturais em resposta às políticas
discriminatórias, em fixar a diferença transformado-a em
diversidade, para a autora:
Na perspectiva aberta por Bhabha3 (2003), seria mais
produtivo pensar na diferença como define Derrida4
3
4
Bhabha, H. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
Derrida, J. Margens da filosofia. Campinas: Papirus, 1991.
44
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
(1991) no que denomina différance. Como no estruturalismo, a cultura é vista como um processo de atribuição de significados, significados estes que dependem
de um sistema de diferenças. No entanto, na perspectiva pós-estruturalista de Derrida, tais significados não
podem ser fixados de forma decisiva. Ainda que se
mantenha a fantasia de um significado fixo, cabal, ele
nunca será totalmente apreensível. Ao invés de oposições binárias fixas, a différance introduz a incerteza
que põe em interação as relações entre as culturas e
os espaços que as distinguem, tornando a identificação dos sujeitos com determinadas culturas um processo ativo e contingente. Assim, o que muitas vezes
denominamos diferença entre culturas vistas como repertórios partilhados de significados nada mais é do
que um retrato cristalizado de um momento particular
(MACEDO, 2006, p. 350).
Assim como Derrida (1991, apud MACEDO 2006)
nos desafia a refletir além dos significados e de sua forma
fixa, também procuro identificar uma abordagem conceitual mais adequada ao uso do termo “raça”, dada sua ambigüidade conceitual.
Entendo que os significados e as categorias raciais
são construídos em termos sociais e não biológicos, mas,
no Brasil, a raça tem sido uma variável fundamental na
reprodução da desigualdade social. A discrepância encontrada entre a ascendência biológica e a classificação racial
demonstra que, aqui no Brasil, as classificações raciais são
especialmente ambíguas e fluidas, com uma preferência
pela noção de cor, que equivale ao conceito de raça, pois
hierarquiza as pessoas de cores diferentes de acordo com
uma ideologia racial (SANTOS, 2005). Dentre os desafios
conceituais em torno do termo, creio que Guimarães nos
apontou um caminho possível:
[...] “raça” não é apenas uma categoria política necessária para organizar a resistência ao racismo no Brasil,
45
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
mas também é uma categoria analítica indispensável:
a única que revela que as discriminações e desigualdades que a noção brasileira de “cor” enseja são efetivamente racistas e não apenas de “classe”. Reconheço,
todavia, que não há raças biológicas [...]. O problema
que se coloca é, pois, o seguinte: quando no mundo
social podemos dispensar o conceito de raça? (GUIMARÃES, 2002, p. 50).
[...] fica muito difícil imaginar um modo de lutar contra
uma imputação ou discriminação sem lhe dar realidade social. Se não for a “raça”, a quem atribuir as discriminações que somente se tornam inteligíveis pela
idéia de “raça”? (GUIMARÃES, 1999, p. 25)
A abordagem do ciclo de políticas
As possibilidades analíticas oferecidas pelas formulações de Stephen Ball5 (apud LOPES, 2006) contribuem
para o entendimento das políticas educacionais, em especial da política curricular no contexto da Lei n. 10.639 e
suas Diretrizes Curriculares.
São três os contextos principais do ciclo contínuo de políticas: o contexto de influência, o contexto da
produção dos textos e o contexto da prática. Esses se
articulam, sem obedecer a seqüências predefinidas. Cada
contexto envolve arenas e grupos de interesse em permanente disputa.
O contexto de influência se caracteriza pela construção das políticas e dos discursos; onde acontecem as
disputas entre quem influencia a definição das finalidades
sociais da educação e do que significa ser educado. Atuam
nesse contexto as redes sociais dentro e em torno dos
BALL, Stephen J. The Policy Processes and the Processes of Policy. In:
Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing School:
Case Studies in Policy Sociology. London, New Iork: Routlegde, 1992.
5
46
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
partidos políticos, do governo, do processo legislativo, das
agências multilaterais, dos governos de outros países cujas
políticas são referência.
O contexto de produção dos textos é constituído
pelo poder central, que mantém uma associação estreita com o primeiro contexto, e formula os textos
visando ao direcionamento das ações nas práticas. O
contexto da prática, para Ball, é eminentemente plural,
nele, as definições curriculares são recriadas e reinterpretadas e são também incorporadas pelos outros dois
contextos, conferindo o caráter circular dos discursos
nesse ciclo.
Considerando o contexto de influência preconizado por Ball, no aspecto dessa política, percebemos que
os movimentos sociais, organizações não governamentais e demais instituições de luta e garantia de direitos
das populações, historicamente, têm fomentado dispositivos legais, em âmbito local e global, com políticas
e ações governamentais. Assim como, com propostas
educacionais para a conquista plena dos direitos humanos, calcado em valores éticos livres de preconceito e/ou
discriminação acerca de gênero, raça, etnia, orientação
sexual, geração e religião.
Temos assistido nas últimas décadas a um crescente debate e conseqüente visibilidade em torno das
desigualdades raciais no Brasil e no mundo. Podemos
atribuir esse movimento pela igualdade racial às políticas
de ação afirmativa6, inicialmente aplicadas na sociedade norte-americana e que refletiram expressivamente em
outras sociedades. Nessa perspectiva, a política curricuA antiga noção de ação afirmativa tem, até os dias de hoje, inspirado
decisões de cortes norte-americanas, conservando o sentido de reparação por uma injustiça passada. A noção moderna se refere a um programa de políticas públicas ordenado pelo executivo ou pelo legislativo,
ou implementado por empresas privadas, para garantir a ascensão de
minorias étnicas, raciais e sexuais (GUIMARÃES, 1999, p. 154).
6
47
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
lar, objeto de análise nesse trabalho, embora um projeto
contra-hegemônico, utiliza a tradição iluminista na garantia de espaço e poder. Essa configuração também aponta
outras contradições: diferentes grupos, em disputa por
territórios e demandas comuns, se aliam oportunamente para questões mais amplas, como é o caso do movimento negro e de mulheres negras, por exemplo. Se, no
primeiro instante, a causa é do conjunto da população
negra, essa articulação entre homens e mulheres negras
é possível. No entanto, há uma cisão quando o aporte de
gênero se sobrepõe, e mulheres negras se posicionam
em campos políticos distintos dos homens negros, assim como o fazem em relação às mulheres brancas. Para
Macedo (2006, p. 333), não se pode negligenciar que há
programas assistenciais e/ou compensatórios que visam
domesticar a diferença e que lançam projetos contra-hegemônicos e emancipatórios para o controle e regulação
da diferença. Esse pensamento também é compartilhado por Apple (2003), quando critica as concessões do
discurso hegemônico, ao incluir a cultura e história do
outro nos currículos.
Tendo em vista que o debate profícuo em torno da
questão racial favorece novas abordagens analíticas, prossigo nesse intento, apoiada em Ball.
O contexto de influência
São inúmeras as iniciativas da sociedade civil organizada no campo da luta pela igualdade racial no Brasil.
Se tomarmos o movimento negro como referência, constatamos que sua luta se desenvolveu no pré-abolição em
diferentes campos: nos quilombos, nas rebeliões urbanas
e rurais, nas irmandades religiosas e em muitos outros.
Mas, desde a pós-abolição e a suposta liberdade, a maior
demanda desse movimento está centrada na educação da
população afro-brasileira.
48
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
Confirmam essa hipótese as iniciativas históricas do
movimento negro nessa direção, como a da Frente Negra
Brasileira (1932-1937), o maior e mais amplo movimento
negro do século XX, presente em São Paulo, Rio de Janeiro,
Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Bahia e Pernambuco,
que constituiu extensas turmas de alfabetização de jovens
e adultos negros; o TEN (Teatro Experimental do Negro)
que, além de criar escolas de atores, também oferecia aulas
de alfabetização; A União Cultural dos Homens de Cor do
Distrito Federal promoveu cursos de corte e costura para
empregadas domésticas e, em seu estatuto, determinava
que todos os seus membros alfabetizados deveriam tomar
para si a responsabilidade de alfabetizar pelo menos uma
pessoa ligada aos seus quadros, garantindo, desta forma,
que no futuro todos os que a ela fossem filiados deixassem de ser analfabetos.
A partir de 1945, assistimos a um “Renascimento Negro” (MOURA7 1988, apud SILVA, 2003) contra a
discriminação racial. Para Andrews8 (apud Silva, 2003),
no entanto, o que houve foi uma renovação do movimento, já que, apesar do banimento da Frente Negra na
ditadura varguista, os clubes sociais e associações cívicas continuaram a se organizar. A Associação José do
Patrocínio em São Paulo, por exemplo, teria solicitado,
em 1941, ao presidente Getúlio Vargas, a proibição dos
anúncios discriminatórios contra os trabalhadores negros. Ancoradas na esteira da democratização por que
passava o país, aquelas novas organizações negras promoviam campanhas educacionais, a fim de integrar o
negro na sociedade brasileira. Havia um sentimento de
euforia e realização coletiva expandido pelo território
nacional (SILVA, 2003).
MOURA, C. História do negro brasileiro. São Paulo: Editora Ática.
1988.
8
ANDREWS, G. R. Blacks and whites in São Paulo, Brasil. 1888–1988.
The University of Wisconsin Press. 1991
7
49
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
A UHC (União dos Homens de Cor) tem por finalidade manter moços e moças em cursos superiores,
concedendo-lhes roupa, alimentação, etc. para que
possam concluir os estudos [...] E ampla campanha
de alfabetização, de forma que, dentro de 10 anos,
não exista um único homem de cor que não saiba ler
(ALVES9, 1948, apud SILVA, 2003.)
As iniciativas da sociedade organizada na época
já enunciavam o que atualmente entendemos por ações
afirmativas10. A luta por reparação, valorização e reconhecimento da identidade e da cultura da população negra é ancestral, mas a atuação desses movimentos tornou-se mais efetiva, recentemente, a partir da formação
de grupos de interesses na formulação e implementação
das políticas.
No Governo de Fernando Henrique Cardoso foi instalado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra (GTI), afirmando em seu
texto básico a inscrição definitiva da questão do negro na
agenda internacional. Destacou-se também a formação de
uma delegação brasileira para comparecer à Conferência
Mundial da ONU contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, em Durban, África do Sul, em 2001.11
ALVES, J. Jornal Quilombo, ano I, n. 1, p. 3, dez. de 1948.
Um conceito de ação afirmativa pode ser encontrado em Gomes
(2001, p. 41): “Um conjunto de políticas públicas e privadas de caráter
compulsório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação racial, de gênero e de origem nacional, tendo por
objetivo a concretização do ideal de efetiva igualdade de acesso a bens
fundamentais como a educação e o emprego.”
11
Conferência Mundial contra o Racismo e a Discriminação Racial: duas
primeiras em Genebra (1978 e 1983) e a terceira em Durban (2001). O
ano de 2001 foi proclamado Ano Internacional de Mobilização contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância Correlatas.
9
10
50
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
Atualmente, percebemos que algumas lutas da comunidade negra estão (em parte) contempladas no conjunto de propostas do governo federal, que agrega em
seus quadros muitos parlamentares oriundos do movimento social que pressionaram (e ainda pressionam) por
políticas sociais dirigidas aos excluídos. Entretanto, os
grupos de interesse atuam ainda de modo informal. Segundo Lobato:
O processo político é tanto mais amplo, quanto mais
atores sociais dele fizerem parte, sejam institucionalizados ou não, estejam ou não representados em
grupos formais de interesse. Mesmo sob as mais variadas formas organizacionais, com interesses os mais
diversos e, portanto, com diferentes graus de poder, o
processo político engloba tanto atores sociais quantos
dele quiserem fazer parte, ao menos onde existirem
canais democráticos de manifestação de demandas.
Das relações estabelecidas entre esses atores resultará
a política em si, sendo esta apenas uma das etapas de
todo o processo (1996, p. 40).
Sabemos que a relevância do estudo de temas decorrentes da História e Cultura Afro-brasileira e Africana
não se restringe à população negra. Ao contrário, diz respeito a todos os brasileiros, uma vez que devem educarse enquanto cidadãos atuantes no seio de uma sociedade
multicultural e pluriétnica, capazes de construir uma nação democrática (Parecer 003/2004).
Para Henriques (2002, p. 15), a educação é uma variável crucial para transformar a situação desigual em que
se encontram os indivíduos de diferentes raças. No entanto, no Brasil, a invisibilidade do problema, ou o nosso “o
racismo à brasileira” é bem mais eficaz e excludente do
que parece: os negros se vêem descartados dos principais
centros de decisão política e econômica, sofrendo desvantagens no processo competitivo e em sua mobilização social e individual. Isso significa “simbolicamente” um corte
51
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
de poder e uma exclusão social, levando à alienação e à
depreciação da identidade pessoal e étnica (D’ADESKY,
2001).
Percebemos que o contexto de influência na formulação da Lei n. 10.639 abarcou diversos atores do cenário político, social, acadêmico, nacional e internacional. As influências internacionais: Movimento pelos Direitos Civis americano, pela luta contra o apartheid, pelo
processo de independência colonial de países africanos
e, no Brasil, somos influenciados desde os quilombos
e quilombolas e sua luta por liberdade e justiça, pelo
movimento abolicionista e a defesa de costumes, saberes e religiosidade de matriz africana. Na pós-abolição,
pelo projeto educativo e inclusivo do movimento social
negro, pela cultura e resistência, pelo movimento dos
PVNCs (Pré-Vestibulares para Negros e Carentes), a luta
por reserva de vagas nas universidades e pelas políticas
de ação afirmativa em geral.
O contexto da produção dos textos
A Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003, altera a Lei
n. 9. 394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
temática História e Cultura Afro-Brasileira. O enfoque da
lei no campo curricular é político e seria, para Giroux:
O reconhecimento de que as escolas são instituições
históricas e culturais que sempre incorporam interesses ideológicos e políticos. Elas atribuem à realidade significados muitas vezes ativamente contestados
por diversos indivíduos e grupos. As escolas, neste
sentido, são terrenos políticos e ideológicos a partir
dos quais a cultura dominante “fabrica” suas “certezas” hegemônicas; mas elas também são lugares nos
quais grupos dominantes e subordinados definem e
52
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
pressionam uns aos outros através de uma constante batalha e intercâmbio em resposta às condições
sócio-históricas “contidas” nas práticas institucionais,
textuais e vividas, que definem a cultura escolar e a
experiência professor/estudante. As escolas são tudo,
menos inocentes, e também não reproduzem simplesmente as relações e interesses sociais dominantes. Ao
mesmo tempo, as escolas de fato praticam uma forma de regulação moral e política, intimamente relacionada com as tecnologias de poder que “produzem
assimetrias nas habilidades dos indivíduos e grupos
de definirem e satisfazerem suas necessidades”. Mais
especificamente, as escolas estabelecem as condições
sob as quais, alguns indivíduos e grupos definem os
termos pelos quais os outros vivem, resistem, afirmam
e participam na construção de suas próprias identidades e subjetividades (GIROUX, 1997, p. 204 e 205).
Conforme mencionado no início, a abordagem do
ciclo de políticas não mantém uma linearidade. Tomamos
como exemplo o quanto o contexto de influência atravessou o contexto da produção de textos. A sanção da lei,
um dos primeiros atos do governo Lula e do ministro da
Educação na época, Cristovam Buarque. O projeto de lei
apresentado pelos deputados federais Ester Grossi (educadora do Rio Grande do Sul) e Ben-Hur Ferreira (oriundo
do movimento negro de Mato Grosso do Sul), ambos do
PT, foi incisivo:
§ 1o. O conteúdo programático a que se refere o caput
deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil;
§ 2o. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afrobrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currí53
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
culo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileira (SILVA, 2003).
A lei também inclui no calendário escolar o dia 20
de novembro como Dia Nacional da Consciência Negra.
Também se constitui como marco nas leis educacionais a aprovação unânime em 10/3/2004, pelo
Conselho Nacional da Educação, do Parecer n. CNE/
CP 003/2004, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. A professora Petronilha Beatriz Gonçalves e
Silva, relatora desse parecer, com significativa atuação
e produção acadêmica no campo das relações raciais,
representou naquele contexto o grupo de interesse na
produção do texto legal.
O contexto da prática
O contexto da prática, na abordagem do ciclo contínuo de políticas, envolve modelos de interpretação, recriação e recontextualização12. Os docentes que atuam na
prática educativa são atores ativos no processo de reinterpretação das políticas curriculares e, como defende Ball,
No processo de recontextualização, Bernstein (1996, 1998) interpreta
que os textos, assinados ou não pela esfera oficial, são fragmentados
ao circularem no corpo social da educação, alguns fragmentos são mais
valorizados em detrimento de outros e são associados a outros fragmentos de textos capazes de ressignificá-los e refocalizá-los.[...] Em
suas análises, Bernstein diferencia o campo recontextualizador oficial e
o campo recontextualizador pedagógico. O primeiro é criado e dominado pelo Estado; o segundo, é composto por educadores nas escolas
e universidades, bem como por produtores de literatura especializada
e fundações privadas de pesquisa. No complexo quadro da recontextualização, Bernstein ainda situa o campo internacional, as relações deste
com o Estado, os campos de produção material e controle simbólico e
o campo recontextualizador nas escolas (LOPES, 2005, p. 54).
12
54
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
essas precisam ser interpretadas como redes de poder, discursos e tecnologias que se desenvolvem no campo social
da educação (LOPES, 2004).
Os profissionais que atuam no contexto da prática [escolas, por exemplo,] não enfrentam os textos políticos
como leitores ingênuos, eles vêm com suas histórias,
experiências, valores e propósitos [...]. Políticas serão
interpretadas diferentemente uma vez que histórias,
experiências, valores, propósitos e interesses são diversos. A questão é que os autores dos textos políticos
não podem controlar os significados de seus textos.
Partes podem ser rejeitadas, selecionadas, ignoradas,
deliberadamente mal entendidas, réplicas podem ser
superficiais etc. Além disso, interpretação é uma questão de disputa. Interpretações diferentes serão contestadas, uma vez que se relaciona com interesses diversos, uma ou outra interpretação predominará embora desvios ou interpretações minoritárias possam ser
importantes (BOWE et al.13, 1992, apud MAINARDES,
2006, p. 53).
Uma das questões chave na crítica resistente a reforma curricular consistia na falta de materiais e recursos
pedagógicos para o desenvolvimento desse trabalho. Mas
em resposta à demanda surge uma relevante produção
de material didático e de consulta bibliográfica no campo
das relações raciais. Ao ingressar na agenda política, o
tema alcançou visibilidade no cenário nacional e suscitou
amplo debate: desde os inconformados, descontentes
com a política, considerando-a desnecessária, um verdadeiro “racismo às avessas”, os defensores aguerridos dessa proposta, aos indiferentes e os críticos. Por outro lado,
é crescente a produção de pesquisas no campo racial,
como revelam: o GT 21 – Afro-brasileiros e Educação da
Bowe, R.; Ball, S.; Gold, A. Reforming Education & Changing Schools:
Case Studies in Policy Sociology. London: Routledge, 1992.
13
55
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
ANPEd (Associação Nacional de Pós-graduação e Pesquisa em Educação); a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN), que promove os Congressos de
Pesquisadores Negros; a ABA (Associação Brasileira de
Antropologia). Além das teses e dissertações produzidas
em diferentes programas de pós-graduação espalhados
pelo país, estimuladas por linhas de pesquisa criadas a
partir dos Neabs (núcleos de estudos afro-brasileiros) das
universidades públicas e privadas.
No campo institucional recente, tivemos a criação
da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) e das Coordenadorias de Promoção da Igualdade Racial, que, além da
produção de textos, também atuam no campo políticoorganizacional e no apoio às causas raciais, como a dos
quilombolas, entre outras. Creio que esse momento fecundo é parte desse ciclo contínuo de políticas, em que
se alternam participação e influências no cenário político
e no poder.
Mas entendemos que a legislação e as políticas
educacionais e/ou sociais dependem mais do que de sua
publicação. Pôr em prática conteúdos relativos à história
e cultura afro-brasileira que não fizeram parte da formação dos docentes, na educação básica ou superior,
torna-se tarefa árdua, de permanente embate junto aos
sistemas de educação de âmbito municipal, estadual ou
federal, que priorizem a formação continuada desses
profissionais. Algumas iniciativas nesse sentido podem
ser citadas com êxito, dentre elas o projeto piloto Gênero e Diversidade na Escola, lançado e desenvolvido em
2006, resultado da articulação entre diversos ministérios
(Secretaria Especial de Políticas para Mulheres, Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial e Ministério da Educação), o British Council (órgão
do Reino Unido atuante na área de Direitos Humanos,
Educação e Cultura) e o Centro Latino-Americano em
56
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
Sexualidade e Direitos Humanos (CLAM/IMS/UERJ). Tal
projeto, do qual fiz parte como docente on-line, buscava
a atualização de 1.200 professores de 5ª a 8ª série do
Ensino Fundamental da rede pública de seis cidades do
país – Dourados (MS), Maringá (PR), Niterói e Nova Iguaçu (RJ), Porto Velho (RO) e Salvador (BA), nas temáticas
de gênero, sexualidade e relações étnico-raciais. O curso
teve carga horária de 200 horas aula, sendo 30 horas presenciais e 170 horas a distância.
Em 2008, o MEC, em parceria com outros ministérios (Desenvolvimento Social e Combate a Fome; Ciência
e Tecnologia; Esporte; Meio Ambiente; Cultura; Secretaria Nacional da Juventude), desenvolve o projeto de Educação Integral Mais Educação, que incluiu entre os seus
macrocampos Direitos Humanos14, Ética e Cidadania, em
que se discutem: Relações étnico-raciais, Cultura e Identidades Indígenas, Relações no Campo, Diversidade Sexual e Gênero e Direitos de Crianças e Adolescentes. Tal
projeto pretende atender a escolas públicas do ensino
fundamental, em municípios que assinaram o Compromisso Todos pela Educação.
Várias universidades, através dos Neabs, oferecem
cursos presenciais e/ou a distância, de extensão e/ou pósgraduação, além de produção acadêmica no campo. Podemos citar a UFRRJ/Leafro (Universidade Federal Rural
do Rio de Janeiro/ Laboratório de Estudos Afro-brasileiros),
Creio ser oportuna a reflexão de Candau (2007), sobre a educação
em direitos humanos: “[...] Entendemos os Direitos Humanos como
mediações para a construção de um projeto alternativo de sociedade:
inclusiva, sustentável e plural. A educação que se articula com estas
perspectivas enfatiza a formação para uma cidadania que favorece a organização da sociedade civil e promove o empoderamento dos grupos
sociais e culturais marginalizados, inferiorizados e subalternizados. Coloca no centro de suas preocupações a inter-relação entre as diferentes
gerações de direitos e trabalha a articulação entre direitos relativos à
igualdade e aqueles relacionados às questões das diferentes identidades culturais presentes na nossa sociedade.”
14
57
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
UFF/Penesb (Universidade Federal Fluminense/Programa
de Educação sobre o Negro na Sociedade Brasileira), a Uerj/
PPCor/LPP (Universidade do Estado do Rio de Janeiro/Programa de Políticas da Cor/Laboratório de Políticas da Cor),
a UFMT/Nepre (Universidade Federal do Mato Grosso/
Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e
Educação) entre outras. Essas iniciativas, ainda tímidas,
dado o universo de alunos da educação básica e de
docentes que se pretende atingir, são bem-vindas. No
entanto, são insuficientes se não for incluída nos currículos das licenciaturas15 essa temática, pois a cada ano,
novos profissionais chegam ao mercado educacional,
muitos deles ainda despreparados para trabalhar com a
questão racial.
Considerações finais
Em todo o mundo as pessoas são mais afirmativas
para exigir respeito pela sua identidade cultural. Muitas vezes, o que exigem é justiça social e mais voz
política. Mas não é tudo. Também exigem reconhecimento e respeito... E importam-se em saber se eles e
os filhos viverão em uma sociedade diversificada ou
numa sociedade em que se espera que todas as pessoas se conformem com uma única cultura dominante
(PNUD, 2004, p. 22).
Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das
Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura AfroBrasileira e Africana (Brasil. MEC, 2004), esse ensino se fará por diferentes meios, em atividades curriculares ou não. As Diretrizes destacam
a inclusão da discussão da questão racial como parte integrante curricular, tanto dos cursos de licenciatura para Educação Infantil, os anos
iniciais e finais da Educação Fundamental, Educação Média, Educação
de Jovens e Adultos, como dos processos de formação continuada de
professores, inclusive de docentes no ensino superior.
15
58
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
Metade da sociedade brasileira é composta de afrodescendentes. Nem essa a parcela nem a outra, composta
por brancos, tiveram acesso ao estudo da História da África
e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, sua cultura e
a formação da sociedade nacional, temas que integram o
conteúdo programático das Diretrizes Curriculares.
Essa nova perspectiva curricular também exige revisões profundas nos livros didáticos, silenciados sobre
essas questões, reprodutores do racismo e da imagem
subordinada da população negra. Evidentemente, esses
estudos produzem impacto na formação, na subjetividade e na identidade da criança, negra ou branca, além de
permitir que se amplie sua visão de mundo e do outro,
valorize outros saberes, crie alternativas às perspectivas
eurocêntrica, capitalista, patriarcal e cristã dominantes.
Entretanto, a formação e prática docentes, profundamente marcadas e influenciadas por esses mesmos valores
dominantes, agigantam a tarefa de desconstruir, para reconstruir alternativas plurais que produzam novos sentidos. Esse desafio aponta para a nossa realidade, pósjaneiro de 2003, em que a lei foi promulgada. São mais
de cinco anos de debates intensos, recursos jurídicos e
tentativas de viabilizá-la. Esse desafio, é bem verdade,
era esperado. As transformações culturais e políticas não
se fazem com discursos isolados, mas com reflexão e
prática.
Ainda nos confrontamos com a perspectiva de escola redentora, a instituição capaz de “resolver” os grandes dilemas e mazelas sociais. Mas nos perguntamos:
Como educar meninos e meninas, mulheres e homens
na contemporaneidade? É consenso que a escola é um
espaço privilegiado, pois por ela passa a maior partet da
população e ela se apresenta como um locus fundamental de formação e restauração dos valores, perdidos ou
afetados pela modernidade. Mas, assim como o conjunto da sociedade, a escola também está em crise. Crise
de paradigmas, de visão de mundo, de papel social...
59
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Mas algumas certezas nesse panorama de incertezas são
fundamentais: sabemos que a educação é um dos mais
importantes instrumentos de transformação social, pois
agrega valores, conhecimentos e informações que permitem em grande medida a emancipação dos indivíduos.
E, mais do que instrumento potencial de transformação,
a educação é um direito, implica que ampliemos a noção
de cidadania, enquanto direito a ter direito.
Nesse sentido, creio ser necessário um redirecionamento, nas ações e nos discursos, capazes de desnaturalizar os lugares sociais demarcados, educar para
a promoção humana, elevar a auto-estima e renovar a
esperança.
60
Políticas curriculares nacionais: o caso da Lei n. 10.639...
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Jovem da Baixada Fluminense,
religião de matriz afro-brasileira
e subjetividade: um entrelaçamento
à luz da complexidade
Leila Dupret
Introdução
Em 2006, ao me engajar no corpo docente da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), em
seu campus de expansão no município de Nova Iguaçu,
percebi que a região da Baixada Fluminense havia sido
muito pouco explorada em sua riqueza de contribuições
às Ciências Humanas Sociais. Poucos pesquisadores haviam se debruçado com afinco acadêmico e investimento
científico em investigações sobre fenômenos locais, principalmente os do campo das relações interpessoais.
Essa percepção me fez escolher tal recorte geofísico
para iniciar uma pesquisa que pudesse revelar algo que
pertencesse, de fato, à região eleita. A partir do local estabelecido, passei a escolha de quem seriam os sujeitos da
investigação e optei pelos jovens habitantes da Baixada.
Primeiro, por entender que eles são pessoas que, a médio
prazo, poderão fazer opções diferentes, escolhas novas;
segundo, por acreditar em suas potencialidades para pôr
em prática transformações advindas de seu desenvolvimento, seu modo prospectivo de propor e sua coragem
em executar o que sugere a partir de questionamentos.
65
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
[...] com todos os limites dados pelo lugar social que
ocupam, não podemos esquecer o aparente óbvio:
eles são jovens, amam, sofrem, divertem-se, pensam
a respeito das suas condições e de suas experiências
de vida, posicionam-se diante dela, possuem desejos
e propostas de melhorias de vida (DAYRELL, 2007,
p. 1108).
Ademais, só o município de Nova Iguaçu possui cerca de 122 mil habitantes na faixa etária de 18 a 24 anos
e mais de 200 mil habitantes com menos de 18 anos (dados de 2000 obtidos junto à Prefeitura Municipal de Nova
Iguaçu, em 2003, os quais constam do Projeto Acadêmico
do Instituto Multidisciplinar da UFRRJ). Estas pessoas estão inseridas em um contexto com características sociais
importantes, pois revelam o cotidiano da Baixada Fluminense, definida por Alves (2003) a partir das relações entre
a violência, o poder local e as esferas “supralocais” de
poder, nas quais é possível identificar questões que prosseguem em debate, tais como:
Impunidade; corrupção policial; crime organizado; descrédito dos políticos e da polícia; ineficiência do estado;
atração dos jovens pobres pelo tráfico como alternativa
econômica e social; globalização da criminalidade e da
cultura individualista acompanhada pelo espírito capitalista e pela lógica empresarial do tráfico; concepção
hierarquizada da sociedade e modelo inquisitorial, presentes na cultura jurídica e no sistema processual penal;
combinação de novas formas de organização familiar,
novos padrões de consumo, novo ethos do trabalho, do
hedonismo, do sistema escolar, das políticas públicas
para o menor [...] (ALVES, 2003, p. 26).
Delimitados sujeitos e local para o estudo, era preciso conhecer o contexto compreendido por eles mesmos,
na tentativa de estar o mais próximo possível desta realidade. Assim a pesquisa deveria conter um levantamento
das demandas dos jovens habitantes, um mapeamento de
66
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
suas representações pessoais sobre a Baixada e um elenco
de possíveis alternativas sugeridas por eles diante da situação de serem moradores da região.
Obviamente, este caminho investigativo exige uma
metodologia apropriada, que não tenha hipóteses a serem confirmadas ou rejeitadas; em que não haja também
categorias a serem constatadas ou uma concepção anterior do pesquisador sobre algo a ser certificado posteriormente. Ao contrário, é fundamental uma metodologia que
tenha como referência o aprender a olhar, a ler indícios
e o aleatório; que entenda a ciência como exercício de
criatividade e atividade que permite integrar os diferentes
conhecimentos: científicos e populares. Cabe lembrar que
não pertence ao nosso recorte investigativo o campo das
representações sociais, pois isso exigiria uma abordagem
teórico-metodológica específica diferente da que sugerimos em nossos estudos.
Neste sentido, a metodologia da pesquisa de cunho
qualitativo está fundamentada na perspectiva de Vygotsky
(1988, 1996), no que se refere à base teórica de sua abordagem, a qual se funda em três princípios: analisar processo
e não objeto, isto é, ter como tarefa o reconhecimento da
dinâmica dos constituintes da história do que está sendo
investigado; diferenciar explicação de descrição, ou seja,
desvelar a dinâmica causal não se detendo apenas nas
aparências mais comuns e nas relações lineares de causa
e efeito; desprender-se do “comportamento fossilizado”,
isto é, da manifestação de comportamento automatizado
que, por sua origem remota e suas inúmeras repetições,
tornou-se mecanizado. A técnica utilizada para a operacionalização da pesquisa é a da construção de “unidades de
sentido” (REY, 1997), que permitem realizar uma análise
de conteúdo a partir de expressões dos sujeitos estudados e integram um conjunto diverso de indicadores ou
categorias reveladas no decorrer da própria investigação
e pertencentes ao contexto social no qual os participantes
da pesquisa estão inseridos.
67
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Então, o método utilizado sustenta-se no dinamismo do processo do que está sendo investigado e toma
como referências as expressões dos entrevistados; além
disso, as entrevistas são “abertas”, para que não haja
qualquer tipo de condução nas respostas e elas possam trazer à tona indicadores que convirjam em configurações singulares do que é estudado, dissolvendo
pré-concepções ou comportamentos “fossilizados” por
parte do pesquisador. Deste modo, o desenvolvimento
da pesquisa permite que aflorem questões que se configuram como importantes e passam a compor o arsenal
do campo de investigação.
Nesta perspectiva, durante a fase inicial dos estudos
surgiu a primeira inquietação que se transformou, de imediato, em mais uma fonte para a investigação, ampliando o campo de análises. Referimo-nos à contraposição
das informações veiculadas pela mídia sobre os jovens da
Baixada Fluminense e as que obtivemos deles a partir de
entrevistas.
Ainda no ano de 2006, a criação do Laboratório de
Estudos Afro-brasileiros (Leafro), que pertence ao Núcleo
de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (Neabi) da UFRRJ
e integra a rede de Neabis das universidades públicas
brasileiras, fomentou a importância de incluir nas discussões as desigualdades sociais e as discriminações raciais.
Desenvolvendo atividades de ensino, de pesquisa e de
extensão, o Leafro pretende o aprofundamento de análises sobre as articulações estabelecidas entre as dimensões
raciais e étnicas, de classe, cultura, de gênero, bem como
do mundo do trabalho na sua interseção com o processo
educativo formal, além de oferecer subsídios e orientação
às ações educativas de intervenção pedagógica direcionadas para a implementação da Lei n. 10.639/03, atualizada
pela Lei n. 11.645/08.
Sendo assim, ao final de cada entrevista aberta realizada com o jovem pela equipe de trabalho composta por
mim, bolsistas do CNPq/UFRRJ e Faperj, alunos auxiliares
68
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
de pesquisa e profissionais voluntários, passamos a perguntar de modo simples e objetivo, mas sempre em tom
de um assunto para conversa, o seguinte: qual é sua cor?
O que, sem dúvida, enriqueceu a coleta de dados e as
análises do material obtido.
Completamente engajada no Leafro, comecei a realizar um trabalho de extensão junto à comunidade do município de Nova Iguaçu, representando a UFRRJ como um
dos membros da comissão responsável pelo I Censo dos
Terreiros de Umbanda e Candomblé. Iniciativa que se justifica com propriedade porque, em Um Rio de Atabaques,
Alves Filho (1997) relata que por volta da década de 90
ocorre uma grande concentração de terreiros na Baixada
Fluminense, até mais que em Salvador, local reconhecido
como de culto aos orixás. As informações mostram uma
relação de aproximadamente três mil contra mil terreiros
nestas regiões, respectivamente. Mesmo que esses números tenham estagnado ou diminuído, existe uma quantidade significativa destas casas, principalmente em Nova
Iguaçu, fato que motivou a Prefeitura junto com a Secretaria Municipal de Participação Popular e Coordenadoria de
Promoção da Igualdade Racial a realizarem o I Censo dos
Terreiros de Umbanda e Candomblé da cidade. Esta iniciativa tem como objetivos prioritários: identificar os terreiros
existentes em Nova Iguaçu e criar com representantes das
Casas de Culto aos Orixás, um fórum de discussão sobre
políticas públicas em nível local e regional.
No decorrer deste investimento, uma outra questão
emergiu com vigor surpreendente e se referiu à participação do jovem nas casas de culto aos orixás. Jovens de diversas orientações religiosas se apresentam publicamente,
divulgam e fazem propaganda de suas respectivas doutrinas, não se preocupando com meios ou modos de atingir
cada vez mais pessoas como adeptos de suas crenças. E
os jovens que participam dos terreiros, se revelam socialmente? Divulgam suas crenças e princípios? Incorporamos
também esta questão em nosso estudo sobre os jovens.
69
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Entrar em contato com a comunidade dos terreiros nos remeteu a outros campos de saber que também
passaram a pertencer ao nosso arsenal de conhecimento,
tais como as tradições, os usos e os costumes africanos
que se transformaram em afro-brasileiros e que era preciso investigar se os jovens estavam tendo acesso a esse
cabedal de informações tão relevantes para sua formação
profissional e cidadã. Nesta perspectiva e entendendo a
importância da implementação da lei de 2003, quesito
constitutivo das diretrizes curriculares do nível escolar
básico e fundamental desde esta época, acrescentamos à
pesquisa três outras questões a serem investigadas: Como
os mitos africanos estão sendo trazidos aos conteúdos
escolares? O que jovens de nível médio, do curso de
formação de professores, estão estudando para a futura
transmissão destes conhecimentos a seus alunos e implementação da lei? E, na vertente sócio-histórica brasileira,
qual é o papel da jovem e sua importância no contexto
dos terreiros?
A partir deste campo circunscrito para a investigação, é necessário iniciarmos o texto definindo que conceito de jovem está sendo utilizado pela pesquisa, já que
ele é o foco do estudo para todas as relações que estamos
estabelecendo com diferentes fontes de informação: midiática, religiosa e educativa.
Jovem e subjetividade
Inegavelmente, o jovem cresce de maneira intensa e
rápida, e seu corpo aproximando-se ao do adulto, desperta curiosidades e propõe desafios que se manifestam em
tanto sua conduta, quanto em sua vida interior. Segundo
Vygotsky,
Nesta idade se abre um novo mundo de vivências interiores, impulsos e atrações: a vida interior se vai fazen70
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
do infinitamente mais complexa em comparação com
a idade infantil mais tenra; as relações com o meio e
o que o rodeia se fazem muito mais complexas; as impressões provenientes do mundo exterior se submetem
a uma elaboração mais profunda (1999, p. 46).1
Para o autor, há uma elevada emocionalidade e
excitabilidade nas ações do jovem e ele pretende nos
chamar a atenção para a importância e participação dos
seus sentimentos no que pensa e realiza; pois embora
isto aconteça conosco em qualquer fase da vida, nesta etapa, caracterizada muitas vezes como uma fase de
trânsito, são comuns situações mais agudas provocadas
organicamente pela produção hormonal e transformações corporais; mas também, o desempenho de um novo
papel social lhe é exigido, só que agora está atravessado
por seu amadurecimento sexual e seu discernimento intelectual, conjuntamente.
Discordando de alguns autores que definem a adolescência como um momento tipicamente transitório e de
crise, concordamos com Dayrell quando afirma que:
A juventude constitui um momento determinado, mas
não se reduz a uma passagem; ela assume uma importância em si mesma. Todo esse processo é influenciado pelo meio social concreto no qual se desenvolve
e pela qualidade das trocas que este proporciona
(2003, p. 42).
Deste modo, entendemos a juventude como parte
constituinte do processo de desenvolvimento humano,
En esta edad se abre un nuevo mundo de vivencias interiores, impulsos y atracciones: la vida interior se va haciendo infinitamente más
compleja en comparación con la edad infantil más temprana; las relaciones com el médio y lo que le rodea se hacen mucho más complejas;
las impresiones provenientes del mundo extrior se sometem a una elaboración más profunda (VYGOTSKY, 1999, p. 46).
1
71
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
mas que o integra com especificidades marcantes para a
vida de cada um. Assim, considerar os diferentes contextos
nos quais os jovens estão inseridos, suas condições econômicas e sociais, é fundamental para que, por exemplo,
não se assuma o posicionamento de generalizar a apatia
juvenil, que culmina em expressar recusa ou impossibilidade de perceber possíveis engajamentos do jovem em
projetos que despertem seu interesse ou que ele possa se
reconhecer como produtivo. Além disso, identificar outras
práticas de participação comunitária, de solidariedade e,
até mesmo, explicitar conflitos ou evidenciar ações com
as quais aceitaram se envolver.
Segundo Ozella (2003, p. 23), a adolescência deve
ser entendida como o resultado de uma construção social:
“depende das relações sociais estabelecidas durante o processo de socialização, incluídos aqui fatores econômicos,
sociais, educacionais, políticos, culturais etc.”, o que difere
de abordagens teóricas em psicologia, que ao assumirem
suas tendências em generalizar, adotam modelos preestabelecidos para o comportamento do jovem, independente do contexto em que estão inseridos e suas interações
socioculturais. Em outras palavras, entender o jovem com
o olhar sócio-histórico é concebê-lo na dinâmica transformacional de seu processo de desenvolvimento, acreditando na importância de estimular suas potencialidades e
no inesperado das expressões de seus comportamentos.
Além disso, é fundamental compreender que, sem a possibilidade de generalizar, afloram as diferenças entre os
jovens, caracterizando suas singularidades e enriquecendo
o estudo psicológico com esta diversidade.
Ademais, cabe ressaltar que os desafios apontados
por Martinez (2005) aos psicólogos, quais sejam, a necessidade de lidar com a subjetividade social, a urgência de
mudanças de concepções cristalizadas e a importância do
compromisso social, sustentam nossa postura interpretativa
e de análise das informações fornecidas pelos jovens a partir do material coletado nas diferentes esferas de estudo.
72
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
O conceito de subjetividade social nos permite compreender a dimensão subjetiva dos diferentes processos e instituições sociais, assim como o da rede
complexa do social nos diferentes contextos em que
ela se organiza através da história. Esta visão facilita
transcender a divisão dicotômica entre o social e o
subjetivo, assim como da dicotomia entre o individual
e o social (REY, 2003, p. 78).
As palavras de Rey (2003) permitem delinear uma
concepção de subjetividade que não prioriza o individual
em detrimento do social, ou o social em detrimento do individual, mas enfatiza a interferência mútua e a referenciação recíproca, de ambos no processo de construção subjetiva. Deste modo, sugere uma mudança paradigmática em
relação ao próprio conceito de subjetividade, que embora
se mantenha por definição configurado como tudo o que
é da ordem do sujeito, deixa de ser considerado apenas
em âmbito singular para assumir seu caráter plural, mantendo-se como uma característica do ser humano, construída pelo atravessamento cultural.
Assim, no grupo de jovens, circunscritos em um
ambiente educativo, por exemplo, cada participante possui sua bagagem de vivências, experiências, crenças, sua
subjetividade pessoal construída ao longo de sua história
de vida. Mas, ao estarem compartilhando socialmente de
momentos comuns, interagindo uns com os outros, interferem-se mutuamente, construindo uma subjetividade
que pertence a esta coletividade, e embora esteja composta pelas subjetividades individuais, não se configura
como a soma delas, mas emerge como uma outra: a do
grupo.
Nesta perspectiva, o desenvolvimento humano é entendido como um processo, cuja dinâmica está constituída
pelo entrelaçamento do que é individual e coletivo, a um
só tempo, estando reservado à cultura um lugar de participação efetiva na construção subjetiva.
73
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Imagem e mídia
A mídia apresenta uma imagem ideal do jovem, com
atributos de beleza, saúde e alegria. Esse padrão corresponde perfeitamente ao perfil do jovem de camadas médias. Há, no entanto, uma outra juventude,
pobre, que na retórica da mídia, passa a ser representada como delinqüente, drogada e criminosa. O
discurso sobre esses jovens, moradores das periferias
ou favelas, pelos meios de comunicação, está associado frequentemente à questão da marginalidade. Dessa
forma, os meios de comunicação, que muitas vezes
têm a função de denunciar situações de desrespeito
aos diretos de cidadania, também contribuem para a
construção e manutenção dos estereótipos negativos
dos jovens pobres, tratando-os como “criminógenos”
(MINAYO, 1999, p. 19).
Na Baixada Fluminense encontram-se bairros de
comunidades populares, onde residem jovens, principalmente, negros e pobres, filhos de trabalhadores que têm
sido excluídos e discriminados, constantemente, de forma
injusta e desumana. Assim, este é um lugar onde a criação
de estereótipos e preconceitos estão presentes em todos
os espaços.
As revelações produzidas pelas investigações farão
com que a imprensa funcione ao mesmo tempo como
elemento de segregação da Baixada, identificando-a
como outra sociedade, terra sem lei, lugar onde a feiúra se associa ao crime ou câncer vizinho, e como
instrumento de pressão no aprofundamento das investigações promovidas pela Delegacia de Homicídios.
Uma ambigüidade que se estabelece entre a solidariedade e a rejeição (ALVES, 2003, p. 154).
Há na Baixada Fluminense uma demasiada situação
de exploração da violência e da pobreza pelos veículos
de comunicação, justificando assim as palavras de Alves
74
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
(2003) a respeito da forte presença de segregação da Baixada, que tende a ser historicamente legitimada pela mídia.
Portanto, revelar as imagens reconhecidas pelos jovens da
Baixada Fluminense como suas representações pessoais,
levando em conta o contexto em que estão inseridos; divulgar demandas reconhecidas por eles, sobre a exploração da mídia à Baixada Fluminense e seus sentimentos
acerca desta temática; e apresentar possíveis alternativas
deles frente aos desafios encontrados diante desta situação, é fazer o caminho inverso do que tem sido efetivado
pela mídia.
Deste modo, a famosa imagem que prioriza a marginalização dos jovens da Baixada classificando-os como
irresponsáveis, delinqüentes, inconseqüentes, alienados
e violentos, está presa a um preconceito veiculado maciçamente pela mídia. Entretanto, estes ditos “coitados”
são muitas vezes autônomos e responsáveis por seus
atos, além de preocupados com o futuro, pois, na realidade, existem jovens totalmente engajados social e
politicamente, que estão fartos desses estereótipos e de
estarem sempre vinculados à imagem negativa da Baixada. Mas, infelizmente, o lado produtivo do jovem e
de sua consciência social dificilmente é ou será retratado e veiculado pelos meios de comunicação, pois não
atende ao sensacionalismo que ajuda a produzir o lucro
midiático.
Visando a uma maior lucratividade, a mídia torna
a informação mais apelativa, e o caminho mais fácil para
isso é o da opção pela informação-espetáculo, norteada
pelos critérios de noticiabilidade, que consistem em um
conjunto de acontecimentos selecionados.
Fica evidente o papel central dos jornalistas – repórteres, editores, pauteiros e âncoras de jornal e televisão – na produção de explicações e enquadramentos
predominantes na cultura política de massa. Através
de quadros de referências valorizados, significativos
75
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
dentro do ambiente cognitivo de grande parte das
pessoas, os jornalistas dão credibilidade a certas visões de mundo, a enquadramentos sobre a realidade que, por sua vez, são influentes nas construções
do cidadão comum sobre a política (ALDÉ, A. et al,
2005, p. 187).
Em outras palavras, a mídia utiliza um modo persuasivo de transmitir conteúdos, visando a fazer com que as
pessoas acreditem e se mantenham presas às ideologias
que são disseminadas de forma subliminar. Assim, instaura-se um senso comum acerca da Baixada, sendo este uma
forma de violência indireta (latente).
O senso comum, obviamente nem singular nem inconteste, é por onde devemos começar. O senso comum,
tanto expressão como precondição da experiência. O
senso comum, compartilhado ou ao menos compartilhável é medida, muitas vezes invisível, de quase todas as coisas. A mídia depende do senso comum. Ela
o reproduz, recorre a ele, mas também o explora e
distorce... (SILVERSTONE, 2002, p. 21).
Desta forma, fazer o trajeto oposto ao que a mídia tem feito, revelar o não dito por quem agora tem
oportunidade de dizer, oferecer ao jovem da Baixada
Fluminense a chance de falar acerca si mesmo e também a respeito do que tem sido propagado pelos meios
de comunicação sobre ele, e o que pensa ser relevante divulgar, ressaltando a importância do seu olhar em
relação ao contexto em que está inserido, desvelando
a exploração negativa da mídia em relação aos jovens
da Baixada Fluminense e seus sentimentos acerca desta
configuração, é viabilizar a construção de imagens diferentes das comumente associadas a estes jovens que
se vêem depreciados a todo instante pelos veículos de
comunicação.
76
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
Raiz afro-brasileira e complexidade
Desde a colonização, o africano escravizado ao sair
de seu lugar de origem, tem seus costumes, usos, rituais,
tradições, cultura fortemente reprimidos. Mesmo assim,
os escravos não deixam de realizar seus cultos e praticar
seus rituais, mantendo-se ligados às suas origens, crenças
e história. Ainda que séculos tenham se passado e algumas mudanças ocorrido em termos políticos, econômicos e sociais, incluindo a própria assinatura da Lei Áurea
(1888), a partir da qual, supostamente, teria sido abolida a escravidão, as repressões e perseguições ao negro
continuaram. Entretanto, o culto aos orixás e a crença
neste tipo de religião permaneceram e transformaram-se
no berço da transmissão e manutenção da cultura afrobrasileira.
Abruptamente separados de seus contextos de origem, a eles restava apenas seus valores espirituais ou,
..., sua religião e seus deuses. Aos poucos, vão criando formas de revitalizar suas tradições religiosas preparando assim, o suporte ideológico de suas revoltas
(GONÇALVES e SILVA, 2006, p. 19).
Para que se iniciasse o movimento de valorização
das contribuições do africano foi necessária toda uma
história de entraves políticos, debates filosóficos e muitas
lutas, melhor visualizadas durante o século XX, pela articulação de movimentos sociais, artísticos e educativos,
muitos deles encabeçados por mulheres negras em prol
da sua afirmação e de sua cultura.
O ponto central destas organizações tradicionais e
contemporâneas são os propósitos de libertação, busca
de liberdade de processos opressores: da escravidão,
do colonialismo, de capitalismo em suas mais diversas
formas de dominação, exclusão, exploração, discriminação racial, expropriação (SIQUEIRA, 2006, p. 165).
77
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Embora a mulher negra tenha tido um papel decisivo na constituição cultural deste país, atuando em várias
frentes de combatividade, a imagem que se propagou e
se propaga com muito sucesso ainda hoje é a da negra
escrava doméstica, subserviente e também a da mulata
“tipo exportação”. Isso se deu porque sua história – uma
história que não devia ser contada – foi suplantada intencionalmente por intermédio de desapropriações teóricas.
As amas-de-leite, na relação com os filhos dos senhores, influenciavam diretamente em sua educação, por
exemplo, a partir de sua comunicação, misturando vocábulos africanos na língua portuguesa, o que culmina na
construção da fala destas crianças e mais tarde desemboca no movimento fundamental da constituição da “língua
brasileira”.
Outra imagem de profunda representatividade no
cenário nacional até os dias atuais é a da negra cozinheira
que, na casa-grande, introduziu definitivamente elementos
genuinamente africanos na culinária brasileira, tais como:
o azeite de dendê, a pimenta-malagueta, o leite de coco, o
quiabo, o maior uso da banana e inovações na maneira de
preparar o peixe e a galinha. A maior contribuição destas
mulheres foi a utilização da técnica e condimentação africanas na preparação de pratos já apreciados por brasileiros brancos e indígenas; a farofa, o quibebe, o vatapá.
O domínio culinário da negra forra acabou por representá-la socialmente, mesmo que numa posição subalterna, por meio da comercialização de seus quitutes nas
ruas da cidade. A figura da quitandeira, que hoje é representada pela baiana, assim como suas ancestrais, vende
suas iguarias nas ruas da Bahia e de outras cidades brasileiras. Com essa atividade econômica, muitas delas puderam prover suas famílias, que, com o fim da escravidão,
não tinham o apoio do homem negro.
Conforme Souza (2006), no final do século XIX, com
essa nova configuração na sociedade, que contava agora
com a liberdade dos escravos e com a proclamação de uma
78
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
República, os homens negros se viram diante de uma barreira: muitos imigrantes europeus e asiáticos vieram como
mão-de-obra especializada e tomaram o lugar antes destinado ao negro, que ficou à margem do mercado de trabalho,
restando a ele atividades artesanais e militares. Além disso,
devemos citar o fato de que esses imigrantes representavam
também o branqueamento da população brasileira, idéia
originária do “darwinismo” e sua concepção de evolução,
que viam o negro como uma raça inferior e ameaçadora,
até mesmo, para a economia de um país. Portanto devia ser
eliminada através deste branqueamento.
Neste novo contexto, a mulher negra continuou a
realizar serviços que antes já realizava: era empregada,
lavadeira, cozinheira, babá (ama-de-leite); trabalhos esses
oferecidos por baixíssimos “salários” nas casas de ex-senhores. No entanto, foi através destas atividades que muitas dessas corajosas mulheres conseguiram manter suas
famílias e com isso transmitir e manter suas tradições.
Colocadas à margem da sociedade, embora essenciais para a formação do Brasil, as mulheres negras realizam uma guinada em sua história porque reencontram no
terreiro de culto afro-brasileiro sua identidade, sua força,
sua ligação com os orixás e com a verdadeira história de
seu povo. Dentro dessa sociedade que a coloca sempre
em lugares inferiores, a existência do terreiro como lugar de encontro com suas raízes e de envolvimento com
uma esfera de pertencimento estabelece a possibilidade
de uma construção de identidade pautada em valores ancestrais de luta e auto-afirmação.
Deve-se à maneira de ser das antigas escravas emancipadas o sucesso da permanência de valores e tradições
da cultura africana até os dias de hoje. Independentes,
elas eram o verdadeiro centro da família: tudo e todos
giravam em torno delas. Em sua maioria, mais ricas que
os homens, viviam com companheiros e pais sucessivos de seus filhos.[...] Na cidade da Bahia marcaram
79
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
presença com a força do trabalho ao ocupar ruas e
mercados com seus tabuleiros de quitutes. Boas comerciantes, algumas enriqueceram e ostentaram seu sucesso cobrindo-se de jóias e vestimentas finas. Foram elas
ainda que, na metade do século XIX, organizaram e
dirigiram às escondidas as cerimônias religiosas africanas, conhecidas mais tarde pelo nome de Candomblé
(ECHEVERRIA e NÓBREGA, 2006, p. 30).
Sendo esta, uma religião primordialmente matriarcal, a mulher assume papéis centrais na produção de sua
cultura. Como sacerdotisa, transmissora do conhecimento,
tendo o domínio da cozinha, como griottes (mulheres que
cantam a história de seu povo e contam as trajetórias de
suas raízes para a comunidade do terreiro do qual faz
parte). Ela é também a portadora do conhecimento dos
elementos da natureza, das ervas em especial, assumindo o papel de curadora; é conhecedora dos mistérios e
segredos que envolvem a magia dos cultos aos orixás. É
também ekede, incumbida de cuidar da vida de sua mãede-santo. E ainda conselheira e organizadora de sua comunidade.
É essa mulher, que é a presença viva da ancestralidade incitada na oralidade, que repassa os valores do seu
povo para as novas gerações. A transmissão oral constitui
um traço marcante para a história de seu povo; a educação
no terreiro se dá de forma preferencialmente oral, através
da mãe-de-santo, que sabe, não apenas contar, mas interpretar os acontecimentos vividos por seus ancestrais, que
agora servem de parâmetro para a configuração do grupo
dentro do terreiro, permitindo um movimento de interação entre as gerações.
Com uma trajetória de fé, luta e resistência, a mulher
negra foi traçando sua história em cima de valores ancestrais e pôde assim, manter viva sua afro-ascendência. A
obstinação feminina na manutenção de seus valores, de
suas tradições, se encontrava também na escrava emanci80
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
pada que mantinha sua família, quando tudo e todos giravam em torno dela, que estava à frente desse movimento
de afirmação do espaço dos negros no país. Inclusive em
quilombos, articulando saídas, estratégias e organizando
o cotidiano daquele grupo.
As raízes históricas que possibilitam entender possíveis evidências a respeito da Baixada Fluminense merecem atenção especial, para que se possa contextualizar a
importância da cultura afro-brasileira advinda do viés religioso, especialmente, para esta região. Nos anos 70, com
o fechamento de locais religiosos de matriz afro-brasileira
no município do Rio de Janeiro, os terreiros que se encontravam principalmente nas favelas do Rio tiveram que buscar outros lugares para a sua prática religiosa, e a Baixada
Fluminense foi um deles, conforme as informações do site
www.favelatemmemoria.com.br.
Os terreiros espíritas nas favelas do Rio tiveram seu
auge entre os ano 40 e 60. Na década de 70, começaram
a fechar as portas nos morros para reabrir em cidades da
Baixada Fluminense, em áreas mais isoladas. Segundo alguns praticantes da umbanda e do candomblé, a lei do silêncio, que proibia os batuques religiosos, ajudou a expulsar alguns desses centros. Os que sobraram, enfrentaram a
dura concorrência com os novos templos evangélicos...
Portanto, a concentração de terreiros e, por extensão, a presença da cultura afro-brasileira transmitida pelo
culto aos orixás passa a se concentrar e crescer, particularmente, no município de Nova Iguaçu.
Protegida por uma rígida lei do silêncio, praticada no
passado como se fosse crime e perseguida pela polícia, a religião dos negros chegou ao Brasil para fazer história. Uniu escravos e descendentes espalhados
pelo país com a força da fé e a obediência irrestrita
aos líderes espirituais, substitutos da família dispersa e
do governo que não era o deles. O povo da África no
Brasil encontrou no candomblé identidade, proteção
81
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
e apoio, um espaço próprio onde foi possível plantar
os fundamentos de seus deuses. (ECHEVERRIA e
NÓBREGA, 2006, p. 14).
As contribuições de matriz afro-brasileira advindas
do referencial mitológico da religião oferecem outras bases para o entendimento das relações dos sujeitos entre si
e com a natureza, um outro viés como referência para a
construção do conhecimento. Nesta perspectiva, através
das histórias dos orixás que correspondem aos mitos africanos, temos diretrizes para a construção do conhecimento que não admitem a soberania e domínio do homem
sobre a natureza, mas sua cumplicidade com ela.
As informações passadas pela transmissão oral e
que, certamente, estariam compondo o arcabouço teórico
do terreiro, são ouvidas, em um primeiro momento e respeitado o saber do mais velho, por conta de sua experiência e conhecimento, mas precisam ser transformadas em
práticas para se configurarem como aprendizado de fato.
O que, por um lado, nos lembra Mãe Beata de Yemonjá,
com seus contos de O caroço de dendê: a sabedoria dos
terreiros, transformados em prática do dia-a-dia e, em outra área de conhecimento, de cunho tecnológico, revela
Papert (1994), quando relata sobre sua experiência pessoal de aprender a fazer croissants seguindo corretamente
a receita, e afirma que para aprender é preciso colocar a
“mão na massa”, sentir sua temperatura, textura, ter o contato direto com o que se faz: estar envolvido. Por outro
lado, todos os participantes compartilham dos ensinamentos, quer sobre os orixás em seus preceitos, mitos e ritos;
quer sobre as ervas em suas aplicações e possibilidades.
Todo e qualquer membro de um terreiro conhece o
princípio da obrigação. Ele a cumpre não para obter
qualquer salvação (noção inexistente na cultura negra), qualquer remissão de pecado (noção também
ausente), qualquer esperança de uma vida melhor
82
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
além-túmulo (idéia que igualmente não há), nem mesmo para pagar quaisquer “dívidas simbólicas”. Cumpre-se a obrigação para viver a intensidade da regra,
para ir ao encontro daquilo que atrai irresistivelmente
as coisas, os bichos, os homens, os deuses: o Destino
(SODRÉ, 2005, p. 109).
Quanto ao preconceito racial e social, cotidianamente, as pessoas sentem-se mais à vontade em dizer que
são católicas, protestantes, ou de qualquer outra religião
do que revelar que são adeptas da religião de matriz afrobrasileira. Isso ocorre porque visões e pensamentos préformados que discriminam os negros ainda constituem
nossa sociedade, como tem sido amplamente mostrado
em estudos atualizados.
Ainda hoje, várias comunidades-terreiro enfrentam
perseguições de vizinhos e praticantes de outros cultos religiosos. Podemos observar, em nosso dia-a-dia,
como essas manifestações de preconceito racial e religioso recaem sobre os cultos afro-brasileiros (MUNANGA e GOMES, 2006, p. 147).
A falta de clareza sobre a religião de matriz afro-brasileira, culminando em “perseguições”, permanece norteando atitudes e posicionamentos que não levam em conta
a complexidade cultural do nosso país da qual a religião
afro-brasileira faz parte. Segundo Morin,
...complexus é o que está junto; é o tecido formado
por diferentes fios que se transformam numa só coisa.
Isto é, tudo isso se entrecruza, tudo se entrelaça para
formar a unidade da complexidade; porém a unidade
do complexus não destrói a variedade e a diversidade
das complexidades que o teceram (1996, p. 188).
Aliás, as práticas educativas deveriam se preocupar
em adotar procedimentos que viabilizassem a compreen83
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
são da história dos negros e a gama de suas contribuições
ao processo de construção subjetiva do brasileiro. Para
tanto, especialmente os alunos de ensino médio dos cursos de formação de professores que irão lidar com alunos
das classes iniciais da trajetória escolar, deveriam estar em
contato com a gama de informações de a matriz afro-brasileira. Isto porque
A visão de mundo nagô e sua compreensão de aprendizagem, nos permite encontrar pontos de ancoragem
com o olhar educacional pela perspectiva de conhecer/aprender pela via da experiência comunitária que
provém de uma cultura não-disjuntiva. A aprendizagem do terreiro é construída, principalmente, através
do respeito às tradições e um jeito peculiar de aprendizado e transmissão de saber que religa permanentemente o homem à natureza (SANTOS, 2006, p. 168).
Em resumo, pesquisar sobre os jovens da Baixada Fluminense, levando em conta o que é decantado
pela mídia, incluindo sua concepção racial, acrescida
pelo atravessamento cultural afro-brasileiro advindo do
campo religioso, considerando suas informações míticas
como fonte para a construção do conhecimento, destacando neste contexto o papel ativo da mulher em sua
participação no cenário político, econômico e divulgador dos usos, costumes e tradições constituintes de nossa
brasilidade; percebendo como supostos futuros professores estão lidando com as diferentes modalidades de
saber, é olhar de um modo complexo para a investigação
científica, sustentada pelo entrelaçamento interativo sugerido pelo modelo teórico-práxico que admite o diálogo
das diversidades.
84
Jovem da Baixada Fluminense, religião de matriz afro-brasileira...
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86
A incorporação da dimensão
racial do fenômeno educativo
às funções da universidade: origem
e atuação do Programa de Educação
sobre o Negro na Sociedade
Brasileira (Penesb)
Iolanda de Oliveira
A criação do Programa de Educação sobre o Negro
na Sociedade Brasileira data de agosto de 1995, quando foi
incorporado à estrutura da Faculdade de Educação da Universidade Federal Fluminense (UFF), por meio da Resolução n. 151/95, do Conselho de Ensino e Pesquisa da UFF.
Buscando dar destaque aos estudos sobre esta parte
estigmatizada da população, quatro pesquisadoras propuseram o projeto que, após a devida tramitação e aprovação em diferentes instâncias da universidade, teve sua
criação legitimada pelo órgão competente.
Além do comprometimento da equipe proponente
do projeto que deu origem ao programa com a promoção da população negra, outros fatores contribuíram
para a sua criação. Entre estes, destaca-se o equívoco
da prevalência da classe social sobre a raça, muito difundido na época e que persiste até os nossos dias, de
parte de alguns profissionais, comportamento de um
significativo segmento da população, aproximando-se
do senso comum. Para esses profissionais, os problemas raciais se reduziriam a um subgrupo dos problemas
socioeconômicos que perpassam as sociedades caracterizadas pelo sistema capitalista de produção. Em conseqüência
87
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
da prevalência desta posição no âmbito da Faculdade
de Educação da UFF até o final da década de 1990, os
estudos sobre a população negra na época eram quase
inexistentes.
A situação descrita provocava nas poucas profissionais pesquisadoras da área População Negra e Educação um certo desconforto, e em um significativo número dos outros profissionais, suas questões de pesquisa, bem como, sua militância acadêmica sobre o negro
em educação, causava estranhamento. Paralelamente,
tinha-se parte de professores desta unidade que se tornaram aliados do Programa, inclusive as diretoras que
atuaram no período de criação do Penesb (1994/1995),
que foi uma fase de transição da direção da unidade de
ensino aqui considerada. Os profissionais aliados atuaram como orientadores de monografias dos estudantes
do curso de pós-graduação lato sensu, com grande dedicação, contribuindo fortemente para a consolidação
do programa. O ambiente era antagônico, o que permanece até os nossos dias, com a presença daqueles que
apóiam o Neab sem restrições, aqueles que ainda mantêm restrições aos princípios que orientam o trabalho e
a daqueles que mantêm uma posição intermediária, isto
é, apóiam com restrições. Esta situação em que os antagonismos coexistem é afirmada por Bourdieu no plano
individual; aqui eu que tomo a liberdade de estendê-la
para o plano coletivo.
É importante registrar que, precedendo o Penesb,
um grupo de estudantes de Ciências Sociais e de História
da UFF criou, com o apoio de alguns dos seus professores,
o Grupo de Trabalho André Rebouças, na década de 1970,
o qual teve uma expressiva atuação, nos anos 1970/1980,
discutindo, entre outros temas, a questão da educação da
população negra.
88
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
A incorporação do tema População Negra e
Educação às funções da universidade brasileira
Considerando que a educação brasileira está a exigir
substanciais transformações para promover a igualdade
entre a população negra e a branca e sendo tais transformações determinadas, predominantemente, pelas práticas
pedagógicas estabelecidas na relação professor-aluno, faço
também algumas considerações sobre referenciais teóricos pertinentes à pesquisa e à formação dos profissionais
da educação com vistas ao atendimento satisfatório aos
grupos humanos diferenciados cultural e biologicamente,
particularmente os grupos negros.
Na elaboração da proposta do programa, procurouse dar destaque ao papel social da universidade, em confronto com questões pertinentes à condição do negro no
setor educação, a fim de fundamentar a proposta. Assim,
procurou-se responder à questão: Qual o papel social da
universidade junto à educação da população negra?
Tendo a universidade brasileira as funções que incorporam a pesquisa, o ensino, a extensão e um papel
social a cumprir, decidiu-se, no início da década de 1990,
incorporar o tema População Negra e Educação no desempenho das citadas funções, quando a proposta ainda
era muito incipiente.
O grupo de pesquisadoras, autoras da referida proposta de incorporação da dimensão racial do fenômeno
educativo às funções da universidade, além de considerar
a necessidade de resistir ao reducionismo de parte de alguns docentes, propôs-se a construir uma universidade a
serviço da promoção da sociedade, incorporando, principalmente à sua função investigadora, os problemas que a
sociedade enfrentava, para que a população pudesse, ao
acessar aos resultados das investigações realizadas, tomar
conhecimento dos elementos da sua situação, da forma
pela qual os problemas foram construídos através da história e, não raro, mantidos no mundo contemporâneo de
89
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
forma ressignificada. Considerava-se que, a partir daí, os
atingidos pelos problemas teriam condições de atuar para
eliminá-los, tornando a convivência social mais humana,
mais igualitária e menos injusta.
Atuando na Faculdade de Educação da UFF, considerou-se legítimo que a universidade contemplasse, no
exercício de suas funções, a questão da educação da população negra, que se apresentava como um dos mais
graves problemas da educação brasileira, por seus elevados índices de estrangulamento desde as séries iniciais
de escolarização, ou seja, a partir do ensino fundamental,
passando pelo ensino médio e atingindo a universidade,
onde a presença de negros é, ainda, a despeito das políticas estabelecidas, muito reduzida.
Investigar o que ocorre no interior do sistema de
ensino brasileiro para explicar como tal estrangulamento ocorre tornou-se tarefa urgente, urgência esta que se
fazia e se faz sentir também na disseminação dos conhecimentos produzidos pelas pesquisas junto à população
em geral e particularmente aos profissionais da educação.
A apropriação de tais saberes, como instrumentos para
a ressignificação das suas práticas sociais e pedagógicas,
anuncia a possibilidade de colocá-las a serviço da promoção da população negra.
Neste contexto adverso, alem dos estudos quantitativos, emergem pesquisas de caráter qualitativo, que revelam algumas circunstâncias em que a criança e o jovem
negro são colocados em situações que os desestimulam a
empenhar-se nas atividades escolares, havendo, alem destes, ainda muitos espaços que estão a exigir investigações
esclarecedoras.
Entende-se que a universidade, para cumprir o seu
papel social, deverá colocar-se a serviço do bem-estar da
coletividade, principalmente buscando beneficiar os deserdados, resistindo à solicitada colaboração com o pacto
social que agrava a condição dos despossuídos. Neste sentido, o Penesb colocou as funções da universidade a favor
90
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
da educação da população negra, como uma das parcelas
da população brasileira deserdada, tendo o objetivo que
se segue, como orientador de suas atividades: “Realizar
pesquisas sobre a população negra em educação e disseminar tais conhecimentos, junto à população em geral
e principalmente junto aos profissionais da educação em
sua formação inicial e continuada.”
Priorizando a pesquisa sobre a população negra em
educação, foram realizadas inicialmente três investigações:
Desigualdades raciais: construções da infância e da juventude, por Iolanda de Oliveira, a qual desvelou a evolução
do pensamento de crianças e jovens entre cinco e 14 anos,
sobre as desigualdades entre a população negra e branca
na habitação e no trabalho. Negros na universidade, que
foi realizada pela pesquisadora Moema de Poli Teixeira
em uma universidade pública do Rio de Janeiro e que
investigou as trajetórias acadêmicas de professores e alunos negros. E Professoras negras na 1ª República: história
de um branqueamento, realizada pela pesquisadora Maria
Lúcia Rodrigues Muller.
De modo concomitante à realização de tais pesquisas, realizaram-se cursos de formação continuada para
profissionais da educação que atuam na escola básica,
em nível de especialização e de extensão, incorporando
conhecimentos das seguintes áreas: História: História da
África e O Negro na História do Brasil; Relações Raciais no
Ensino da Língua e da Literatura; Relações Raciais e Religiões de Matriz Africana; Pesquisa Educacional e População
Negra; Raça, Currículo e Práxis Pedagógica, Teoria Social
e Relações Raciais e Educação e Identidade Racial. Tais conhecimentos são administrados atualmente em um curso
de pós-graduação lato sensu com um total de 390 horas e
em dois cursos de aperfeiçoamento, um presencial e outro
semipresencial, nos quais os mesmos conhecimentos são
condensados em 180 horas.
Ao mesmo tempo, realizam-se palestras e seminários com a participação de pesquisadores destas diferentes
91
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
áreas, abertos a toda a população a fim de esclarecer a
sociedade sobre a condição da população negra em geral
e sobre sua projeção, no interior do sistema de ensino,
provocando os estrangulamentos constatados, os quais
não raramente, são injustamente atribuídos à suposta inferioridade inata da população atingida pelos processos
escolares excludentes. Em todas as suas formas de disseminação dos conhecimentos produzidos sobre a questão, incluem-se a resistência negra ao longo dos anos e
suas conquistas, as políticas públicas para promoção da
igualdade racial, apontando fatos históricos e contemporâneos, destacando-se na atualidade a criação de órgãos
públicos e as diferentes formas de políticas de ação afirmativa vigentes.
O Penesb atua, também, na formação de pesquisadores iniciantes, em nível de graduação, mantendo sob
sua orientação bolsistas negros vinculados ao CNPq e ao
Programa Bolsa Treinamento, mantido pela UFF. No início da década atual, contou-se com bolsistas vinculados
ao Programa Políticas da Cor, vinculado ao Laboratório
de Políticas Públicas (LPP) da Universidade do Estado
do Rio de Janeiro. Nesta atividade, realiza-se junto aos
bolsistas um acompanhamento acadêmico, com ênfase
na elaboração de suas monografias e uma formação paralela complementar sobre a população negra, com o
propósito de formar profissionais comprometidos com a
igualdade racial.
No programa de pós-graduação stricto sensu, o
Penesb atua na docência e na orientação de mestres e
doutores.
Sempre exercendo as três funções de modo concomitante, realizou-se a pesquisa Cor e magistério, através da
qual procurou-se verificar se a discriminação da população
negra no trabalho atinge também o magistério, ou se nesta profissão, excepcionalmente, a condição da população
negra é equiparável à dos brancos, pelas pesquisadoras
anteriormente mencionadas. Como medida esclarecedora
92
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
de alguns aspectos complementares desta pesquisa, foi realizado o estudo Raça, demografia e indicadores sociais,
por André Augusto Pereira Brandão, que também realizou
uma pesquisa sobre a pobreza em periferias urbanas com
recorte racial e estudos sobre um curso de preparação de
negros para o ensino superior.
A professora Márcia Maria de Jesus Pessanha concluiu um estudo sobre o negro na confluência da educação e da literatura e o professor Sérgio da Rocha e Souza
discutiu o pré-vestibular para negros como instrumento de
política compensatória.
No mesmo período, o professor Ahyas Siss realizou
a pesquisa Políticas de ação afirmativa: razões históricas.
Percebendo-se que o desconhecimento de parte da
UFF e da UFMT (Universidade Federal de Mato Grosso),
da distribuição racial do seu corpo discente, dificultava
a apresentação de propostas para o estabelecimento de
políticas para a eliminação da discriminação da população negra no seu interior, realizou-se, em 2003, o censo
étnico-racial, sobre aproximadamente 65% dos estudantes matriculados nas duas universidades. Este censo, coordenado em Mato Grosso pela professora da UFMT e
pesquisadora associada do Penesb Maria Lúcia Rodrigues
Muller e pela professora Moema de Poli Teixeira, contribuiu para a tomada de consciência sobre o lugar que o
estudante negro ocupa no interior das duas universidades. A partir de tal estudo, foi elaborado um projeto de
reserva de vagas para negros na UFF, que ora se encontra
em processo de reformulação para a reapresentação aos
órgãos competentes.
No elenco de pesquisas realizadas destacam-se também as seguintes: A prática pedagógica de egressos dos
cursos de pós-graduação lato sensu: afro-brasileiros e educação e A questão racial no projeto político-pedagógico das
escolas, por Iolanda de Oliveira; Censo étnico-racial na
UFF e na UFMT: alguns desdobramentos e A cor dos vestibulandos da UFF, por Moema de Poli Teixeira; e Cor e
93
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
magistério no Rio de Janeiro, por Maria Lúcia Rodrigues
Muller.
Atualmente têm-se os seguintes eixos temáticos, com
as respectivas investigações:
EIXO TEMÁTICO
PESQUISAS
INCORPORADAS
PESQUISADORES
A questão racial
e a formação de
profissionais da
educação
A questão racial
nos cursos de
Iolanda de Oliveira
licenciatura da UFF
Negros na
universidade
O impacto do
Moema de Poli
vestibular da UFF
Teixeira
nos candidatos
Iolanda de Oliveira
negros nos anos
José Marcos da Silva
2004, 2005 e 2006
Imagens de
Negros e educação: professoras e alunos
Maria Lúcia
história e memória negros na Primeira Rodrigues Muller.
República
Os diferentes eixos temáticos têm, em comum, referenciais teóricos que tratam da construção sócio-histórica
do racismo e seus efeitos no imaginário social e individual, bem como suas repercussões na sociedade contemporânea. Entretanto, cada eixo temático tem também seus
referenciais teóricos particulares. Em ambas as situações, a
teoria não é um a priori definitivo, mas atua como hipótese que pode ou não ser confirmada pelo universo privilegiado pelas pesquisas ou ainda corresponder parcialmente
ao que está posto pelas teorias selecionadas para análise
dos dados.
Ao longo dos seus primeiros 12 anos, o Penesb contou com o financiamento da Fundação Ford para a realização das suas atividades. A partir do momento em que foi
criado o edital Uniafro, momento este que coincide com a
retirada da Fundação Ford, do setor educação, o programa
94
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
ficou desprovido de recursos para a pesquisa, porque o
órgão federal que oferece recursos para a pesquisa, CNPq,
até o momento não reconhece a pesquisa sobre a população negra em educação como subárea. Além disso, a
ausência de pesquisadores comprometidos com a produção de conhecimentos na referida subárea da educação e
a inclusão significativa de outros pesquisadores entre os
bolsistas do CNPq trazem dificuldades para a realização
das investigações, o que conduz alguns professores a utilizarem seus próprios recursos para garantir o desenvolvimento desta atividade.
O edital Uniafro representa, sem dúvida, uma grande conquista, porque torna disponível verba pública para
a realização das atividades dos Neabs. Entretanto, a situação atual ameaça a realização de pesquisas pelos Neabs,
o que é essencial para garantir a qualidade dos trabalhos
realizados. Sabe-se que, diante do conhecimento, o ser
humano tem os seguintes comportamentos: utilizar, criticar e produzir o conhecimento. Nas condições presentes
e com o expressivo número de Neabs emergentes, a produção de conhecimentos fica comprometida, correndo-se
o risco de reduzir os Neabs, a meros consumidores de conhecimentos e no máximo críticos dos saberes produzidos
por outros, sem desenvolver a vocação primeira da universidade, que é o espaço de produção dos conhecimentos, o espaço da produção teórica. Sem dúvida, que é de
extrema importância a preservação da relação de unidade
teoria-prática e para isto “o fazer” deverá estar atrelado à
produção teórica, o que justifica o comprometimento dos
Neabs com a formação de profissionais da educação básica e com a produção e disseminação de materiais didáticos destinados a este nível de ensino. É urgente, portanto,
que de modo paralelo às atividades de ensino e extensão,
tenhamos o necessário apoio financeiro para a realização
de pesquisas.
95
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
A disseminação de saberes
por meio de publicações
A mídia escrita é também uma das formas privilegiadas pelo Penesb para a disseminação de conhecimentos
pertinentes à sua área de atuação. Recorreu-se primeiramente à publicação por meio de um dos periódicos da
UFF, Estudos e Pesquisas e, posteriormente, de modo paralelo à publicação de livros sobre suas diferentes produções, criou-se um periódico próprio, o Cadernos Penesb,
publicado anualmente, estando com seu nono número em
fase de preparação.
Formação de profissionais da educação para
a educação das relações raciais: fundamentos
teóricos dos cursos ministrados pelo Penesb
Entende-se que os projetos educacionais destinados
à democratização do acesso e da permanência de estudantes negros em todos os níveis de ensino têm estreita
relação com a atuação dos profissionais que exercem suas
funções na relação direta com o aluno. É no cotidiano
escolar que as reformas educativas concretizam-se ou se
dão as diferentes formas de resistência às mesmas. É este
o motivo pelo qual o Penesb enfatiza os cursos de formação continuada de profissionais que atuam em estabelecimentos de ensino, em contato direto com os estudantes,
atribuindo-se, também, fundamental importância à formação inicial em nível de graduação.
A Conferência Internacional de Durban e o movimento negro brasileiro ao longo de sua história têm destacado
em suas propostas e reivindicações a educação da população negra, enfatizando, portanto, a diversidade racial.
Os efeitos da atribuição de significados sociais à
diversidade racial, cultural e biológica, que hierarquizam
a humanidade, provocando as desigualdades raciais, são
96
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
claramente constatados por meio das denúncias, de caráter primeiramente político-social e posteriormenteacadêmico.
Esses aspectos particulares decorrentes da diversidade humana e seus efeitos na sociedade e na educação
estão a exigir uma formação dos profissionais da educação, que dê conta da eliminação desse problema social
que atinge não só a sociedade brasileira, mas a toda a
humanidade.
Neste artigo, destaco aspectos que considero, na
minha visão de professora/pesquisadora, condições necessárias a uma atuação profissional que contribua para
recuperar a dignidade da população negra por meio do
respeito que lhe é devido, o qual foi colocado à margem
das relações inter-raciais. Tais aspectos orientam não só as
pesquisas em desenvolvimento neste eixo temático, mas
também a formação que é oferecida pelo Penesb aos profissionais vinculados ao programa em sua formação inicial
e continuada.
Sem pretender esgotar as teorias inerentes ao tema
proposto, destaco os seguintes pontos:
• Formação fundamentada em uma pedagogia progressista, comprometida com a promoção da humanidade
em sua diversidade.
• A relação teoria-prática na formação do profissional da educação.
• A questão dos valores na formação do profissional
da educação.
• A formação dos profissionais da educação na legislação brasileira: possibilidades de reversão das desigualdades raciais.
Nos três primeiros itens, discuto a fundamentação
teórica que orienta as pesquisas no referido eixo temático
e os cursos ministrados pelo Penesb.
No quarto item, faço uma apreciação de aspectos
da Lei de Diretrizes e Bases, que tratam da formação de
profissionais da educação diante da necessidade de uma
97
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
atuação satisfatória com os grupos discriminados, em particular com os grupos negros.
Formação fundamentada em uma pedagogia
progressista, comprometida com a promoção da
diversidade humana
Cabe aqui fazer algumas considerações sobre o caráter tridimensional da formação dos profissionais de educação baseadas em Antônio Joaquim Severino:
A dimensão dos conteúdos que está vinculada à
área de formação privilegiada pelo formando; são conhecimentos específicos oriundos de uma determinada área
de estudos a partir do seu objeto particular.
Nesta dimensão, os conhecimentos a serem ministrados em cada área devem orientar-se por uma dupla
classificação:
- Conhecimentos que o formando deverá ministrar
aos destinatários do seu trabalho, que deverão incluir os
conhecimentos relativos ao segmento social negro incorporados pela respectiva área de conhecimentos objeto da
formação profissional. Não é admissível, por exemplo,
que, na formação do licenciando em história, não sejam
estudados os conteúdos relativos à História da África e à
História do Negro no Brasil, com destaque para o ideal
de branqueamento, como invenção particular do racismo
brasileiro.
- Conhecimentos para ampliação e aprofundamento
da área de estudos objeto da respectiva formação, a fim de
que o profissional em formação tenha melhores condições
para selecionar e manipular os conteúdos de sua área que
sejam socialmente relevantes para os seus futuros estudantes e para que possa ultrapassar o estágio de mero
utilizador de conhecimentos já produzidos. Ultrapassando
este estágio, o futuro profissional deverá também ter uma
atitude crítica diante dos referenciais teóricos disponíveis,
98
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
pertinentes ao seu trabalho e ultrapassá-los quando for o
caso, por meio da produção de novos saberes.
A ampliação e o aprofundamento aqui considerados, aliados a uma sólida formação pedagógica progressista ampla, darão ao profissional condições de atuar com
liberdade e competência na sua área de conhecimentos
e conseqüentemente de averiguar a sua dimensão racial
e os conteúdos a ela pertinentes, que deverão ser selecionados na elaboração e desenvolvimento dos currículos
escolares sob sua responsabilidade.
Tendo apenas uma visão limitada e superficial da
área de conhecimento com a qual trabalha, o profissional
fica impedido de circular com liberdade, como sujeito ontocriativo no seu campo de conhecimentos, e de descobrir
o potencial do mesmo para eliminar ou pelo menos reduzir os problemas raciais vigentes.
- a dimensão pedagógica deverá garantir a formação
didático-pedagógico que vai dar a esse profissional o domínio de conhecimentos e habilidades que caracterizam o
profissional da educação, assegurando-lhe condições de
cumprir o seu papel profissional junto à sociedade a que
a educação se insere.
Nesta dimensão, o profissional deverá adquirir a habilidade de fazer a mediação entre os conhecimentos a serem ministrados ao aluno, manipulando-os para dar-lhes a
forma didática adequada aos seus destinatários para a sua
assimilação.
É ainda nesta dimensão que, orientado pela concepção progressista de educação, o profissional deve adquirir
a capacidade de selecionar, no acervo cultural disponível,
os conhecimentos socialmente relevantes para promover
os estudantes, devendo atentar para os saberes sobre a
população negra em uma sociedade caracterizada pela
diversidade racial, cultural e biológica, cujos significados
inventados socialmente deram origem a preconceitos, estereótipos e discriminações. Além de atentar para os aspectos
citados, no exercício de sua função, o profissional em for99
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
mação deverá estar atento às diferentes formas de resistência negra que se dão de modo paralelo à sua deserção
social. Entretanto, esta proposta só é realizável dentro de
uma concepção pedagógica progressista, que ultrapasse
as posições baseadas em um marxismo ortodoxo, cuja
percepção das relações de poder não se dá para além das
denominadas “classes sociais”.
A dimensão das relações situacionais em que o autor
em questão considera as questões existenciais dos sujeitos
envolvidos no processo educativo, em minha opinião, está
atrelada à teoria pedagógica progressista, que pressupõe
uma estreita relação da educação com a sociedade, com
as práticas sociais dos sujeitos.
As três dimensões, devidamente articuladas e desenvolvidas sem superposição, irão garantir a formação
satisfatória do profissional considerado. Entretanto, o
tema aqui proposto exige um destaque especial da dimensão pedagógica. Cabe, portanto, considerar o que
é a pedagogia, qual o seu âmbito e objeto, e situar a
pedagogia progressista, por mim denominada ampla, no
âmbito das diferentes concepções deste campo de conhecimentos.
A pedagogia é uma área de conhecimentos multirreferencial, que incorpora aspectos filosóficos e científicos
sobre educação, abarcando também as práticas educativas
e os saberes produzidos a partir da ação pedagógica. Seu
objeto é, portanto, o fenômeno educativo, a partir do qual
são produzidos saberes de caráter filosófico e científico,
os quais devem contribuir para reorientar as políticas e
práticas educativas.
Tratando-se da docência, a didática ganha um espaço importante, por ser uma área científico-filosófica que
tem a ação docente como objeto. Tal qual a pedagogia, a
didática é uma área de conhecimento teórico-prática com
múltiplas referências.
Ao longo dos séculos, foram desenvolvidas teorias
em torno do fenômeno educativo, sendo destacadas as
100
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
teorias pedagógicas denominadas: tradicionais, liberais, e
progressistas.
As teorias tradicionais, tendo como um das suas características a desvinculação completa da educação com
a realidade social vigente, trata os conteúdos como fins
em si mesmos. Esta teoria, ainda evidenciada em práticas
contemporâneas descontextualizadas, não se prestou para
tratar da diversidade humana pelo seu caráter estático,
através da utilização de modelos desvinculados da vida
das crianças e dos jovens.
A concepção pedagógica liberal, embora incorpore
entre outras, a concepção da escola nova, que estabelece
a relação com o contexto social dos alunos, se aplicada
à formação de profissionais da educação, não tem elementos para contemplar a diversidade humana porque
sendo liberal e espontaneísta, não tem compromisso com
a transformação social. Seu propósito, através do estudo
do meio, é a adaptação, o ajustamento do educando à
sociedade.
Resta-nos a pedagogia progressista como única concepção pedagógica que contém os elementos necessários
a uma atuação comprometida com a transformação da sociedade e, portanto, com a eliminação de qualquer tipo
de discriminação. Cabe ressaltar, entretanto, que, dentro
da pedagogia progressista, a conhecida pedagogia críticosocial dos conteúdos, considerando as relações de poder
inerentes apenas às classes sociais, com efeitos negativos
na educação, é reducionista, não possibilitando ao educador uma formação que lhe permita considerar as relações de poder exercidas entre outros grupos para além
das “classes sociais”.
Consideramos, portanto, neste trabalho, o potencial
da pedagogia progressista, que não se restringe a analisar
as relações de poder apenas entre os segmentos sociais
diferenciados por seu poder econômico, mas aquela pedagogia progressista que, caracterizada pela amplitude,
considera as relações de poder exercidas entre todos os
101
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
grupos humanos, podendo-se particularizar aqui o seu potencial para tratar da questão racial negra em educação.
Snyders (1974) faz considerações sobre as pedagogias tradicional e nova, precedendo uma terceira alternativa, a pedagogia progressiva, teoria privilegiada neste
trabalho. Critica a pedagogia tradicional por ser baseada
em modelos; metodologia que consistia em conduzir o
aluno às grandes realizações da humanidade na literatura,
nas artes, reflexões e demonstrações elaboradas e conhecimentos científicos postos à disposição da humanidade
por meio de métodos seguros. Tais modelos, destinados a
guiar os estudantes, eram distantes do seu cotidiano, e, no
entanto, os alunos deveriam guiar-se por eles. Snyders considera que o aluno, neste caso, não é passivo, porque há
uma busca a partir dos modelos que lhe são oferecidos.
Além da não passividade, Snyders aponta outros aspectos positivos deste tipo de pedagogia e, a despeito de
suas limitações, salienta a possibilidade da originalidade, a
alegria, a apreciação da beleza e da verdade, a experimentação do progresso científico.
Concluo, a partir deste autor, que, apesar da falta
de compromisso da pedagogia tradicional com a transformação social, a proposta atual de referências negras na
literatura, nas artes e mesmo em se tratando de trajetórias
de vida, consideradas como patrimônio cultural, são uma
herança positiva da escola tradicional, incorporada pela
pedagogia progressista.
Visando à superação das falhas da educação tradicional, surge, no século XIX, o movimento da escola
nova cujo aspecto essencial nesta superação é a articulação entre a educação e a vida do estudante, apesar de ser
uma pedagogia liberal, que não incorpora a transformação
social, mas mantém a proposta de permanência do que
está posto na sociedade. Este movimento dá ênfase à influência dos fatores sociais na educação, mas mantém o
aspecto relativo ao ajustamento/adaptação do estudante à
sociedade vigente.
102
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
Snyders aponta alguns aspectos positivos desta concepção de educação, estando entre estes: a alegria do presente, de ser criança, o privilegiar os interesses dos estudantes, liberdade, iniciativas, atividades grupais, relação
entre a cultura e a existência.
Eliminando os modelos, a escola nova tem o demérito de fazer a criança e o jovem permanecerem em seu
próprio mundo, sem a referência às grandes obras e aos
grandes autores. Há nesta pedagogia um espontaneismo
extremamente prejudicial à formação dos estudantes, pela
desvalorização do mundo adulto.
A concepção de escola progressista não abandona
totalmente as duas anteriores, mas se apropria de seus
aspectos positivos e os atualiza. Retomam-se os modelos, mas aqueles que se relacionam como o mundo do
estudante. Assim, faz sentido tomar a trajetória de vida
de pesquisadores negros como patrimônio cultural a ser
utilizado pela educação, no sentido de encorajar a criança
negra com trajetórias semelhantes a ter um nível de aspiração elevado, ao mesmo tempo que tais modelos vão
inspirar na criança branca, o respeito que é devido ao
negro. Assim também, outros modelos significativos contidos na literatura, nas artes, na história e em outras ciências, são positivos no trabalho educativo a ser realizado,
tendo em vista a recuperação da dignidade da população
negra. Há neste caso a conciliação de aspectos da escola
tradicional e da nova: os modelos e a alegria do presente
em uma terceira concepção da educação que visa educar
para a construção de um novo mundo, para o que as duas
anteriores não atentavam, sendo este um dos propósitos
da formação dos profissionais da educação na atualidade,
que, pela legislação atual, deverá incorporar aspectos relativos à população negra na atividade profissional.
Snyders denomina esta concepção de “pedagogia
de esquerda” e afirma: “uma pedagogia de esquerda é
fundamentalmente uma pedagogia que enuncia idéias de
esquerda, transmite conteúdos de esquerda, suscita uma
103
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
visão um método, atitudes de esquerda” (SNYDERS, 1974,
p. 193). E acrescenta que “o ponto decisivo é o conteúdo
das idéias adquiridas: o racismo, a divisão da sociedade
em classe, as condições e as perspectivas que põem fim
à exploração”, à discriminação racial entre outras, sendo
essencial enfatizar as experiências dos alunos. Em uma
concepção pedagógica de direita conforme a tradicional
e a nova, e mesmo em uma concepção pedagógica de
esquerda marxista ortodoxa, torna-se impossível formar
profissionais comprometidos com a eliminação das relações raciais verticalizadas.
Referindo-se à concepção pedagógica progressista
aqui privilegiada, Tomaz Tadeu da Silva a denomina de
pós-crítica por ultrapassar as limitações da teoria progressista crítica que se restringe ao estudo da projeção das
desigualdades de classe no sistema de ensino. As teorias
denominadas pós-críticas incorporam, segundo o autor, aspectos positivos das teorias tradicionais e críticas
e acrescenta aspectos inovadores como: “identidade, alteridade, diferença, subjetividade, significado e discurso,
saber, poder, representação, cultura, gênero, raça, etnia,
sexualidade, multiculturalismo” (SILVA, 1999, p. 17).
É, portanto, a concepção pedagógica progressista
ampla que deverá orientar as pesquisas e a formação de
profissionais da educação com vistas a uma atuação satisfatória com a diversidade racial brasileira.
A relação teoria-prática na formação
do profissional da educação
A teoria e a prática são dois aspectos que não se
reduzem um ao outro, mas mantêm uma unidade entre si,
sendo que os dois aspectos caracterizam a práxis: a teoria,
o seu aspecto ideal e a prática o seu aspecto real.
A práxis é um conceito de extrema relevância na
formação do educador, porque conjuga teoria e prática
104
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
de maneira intencional . Segundo Kosik, a praxis é o poder e a arte de manipular os homens e/ou as coisas de
maneira deliberada para transformar-lhes.Esta arte e este
poder devem ser garantidos ao profissional da educação,
para que tenha condições de colocar a educação a serviço
da promoção de todos os estudantes, a despeito de sua
diversidade, quer seja cultural e/ou fenotípica.
Na formação do educador, teoria e prática têm uma
dupla função: a de garantir tal unidade no planejamento
e na dinâmica curricular dos cursos de licenciatura e de
pedagogia e a de desenvolver, nos formandos, a capacidade de transferir tal atuação quando em exercício de suas
atividades profissionais.
Recorrendo à filosofia, verifica-se que a teoria é
considerada uma construção especulativa do espírito com
conseqüências próximas a princípios; a prática, é vista
como atividade transformadora do ambiente.
A teoria e a prática, sua unidade enfrenta problemas
mais acentuados nos campos de conhecimento que incidem mais diretamente na prática social: educação, direito,
serviço social, medicina...
Na elaboração e desenvolvimento dos currículos de
formação de profissionais da educação, observa-se certos
equívocos em face da relação aqui tratada. Para compreendê-las e conseqüentemente alterá-las, apresentamos de
modo sintético as formas de relacionamento teoria-prática.
A visão dicotômica separa uma e outra, considerando a sua plena autonomia e, portanto, a sua completa
separação. Decorre desta posição a visão dicotômica dissociativa e a visão dicotômica associativa..
A visão dicotômica dissociativa afirma a separação
entre o pensar, refletir, planejar e o fazer, agir, executar.
Encontram-se no cotidiano escolar afirmativas que evidenciam a presença desta teoria nas falas de professores,
tais como: “na prática a teoria é outra...”. Pode realmente
ocorrer que uma dada teoria não dê conta de explicar uma
determinada realidade, mas isto não significa que a teoria
105
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
deve ser abandonada, mas sim recriada, desestabilizada
e/ou ainda substituída por outra que contenha elementos
capazes de explicar a realidade considerada, seja esta outra já disponível ou criada pelo profissional da educação,
em moldes rigorosamente científicos. Nesta visão, cabe
aos teóricos pensar, planejar e aos práticos executar, agir.
A prática atrapalha aos teóricos e a teoria, atrapalha aos
práticos.
Esta forma de relacionamento teoria-prática é oriunda da sociedade capitalista de produção, que separa teoria
e prática. Esta posição é assumida em várias instâncias
da educação, evidenciando-se desde o cotidiano escolar,
que atribui a elaboração do planejamento aos supervisores e orientadores, até o Ministério da Educação e Cultura,
que em propostas educativas, reduzem os profissionais
da educação, a meros executores de propostas elaboradas em gabinetes, sem a participação dos que atuam nas
escolas. Digo escolas porque, sem o envolvimento dos
profissionais que atuam neste nível, nenhuma proposta
educacional torna-se realidade.
A visão dicotômica associativa admite a teoria e a
prática, não como atividades opostas e sim justapostas.
Nesta forma de relacionamento, a teoria precede a prática, sendo a prática uma aplicação da teoria. A prática é
relevante na medida em que mantém fidelidade aos parâmetros da teoria. Quando há desvios, é a prática que deve
ser alterada. Baseia-se nesta concepção a visão positivotecnológica, porque o percurso é da teoria à prática.
O domínio da realidade depende dos modelos teóricos, normas e regras oferecidos pela teoria. As conseqüências desta concepção positivista, segundo Marilena Chauí,
são três: a teoria é a organização sistemática e hierárquica
das idéias sem nenhuma tentativa de explicar e interpretar
a realidade; estabelece uma relação autoritária de comando pelos teóricos e obediência pelos práticos; a prática
é considerada mera técnica de aplicação automática das
normas, regras e princípios, vindos da teoria.
106
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
Esta forma de relacionamento é encontrada em
grande número dos currículos de licenciatura, nos quais
os conhecimentos teóricos da área de formação do sujeito precedem a parte pedagógica, na qual se dá como
culminância dos cursos a prática de ensino e/ou o estágio supervisionado. Percebe-se nestes casos, claramente, a
justaposição teoria-prática nos moldes aqui descritos.
Uma terceira forma de relacionamento centra-se na
união teoria-práticas, não como aspectos idênticos, mas
simultâneos e recíprocos, gozando ao mesmo tempo de
autonomia e de dependência. Mais uma vez recorro a Marilena Chauí, que afirma ser a relação teoria-prática, simultânea e recíproca do seguinte modo: a teoria nega a prática enquanto algo imediato, afirmando-a como atividade
socialmente produzida e –produtora – da existência social.
Trata-se, segundo a teoria, de processos históricos construídos pelos homens, os quais determinam as suas ações;
a prática nega a teoria como saber autônomo e separado,
como idéias puras, rejeitando a postura idealista. Nega a
teoria como um saber acabado, que guiará e comandará
de fora a ação dos homens; nega-a como um saber separado do real que pretende governá-lo; ela é o conhecimento
das condições reais da prática existente, de sua alienação
e transformação.
Nesta visão, teoria e prática são dois componentes
indisssolúveis da práxis, cuja dissolubilidade só é possível
por abstração. Ao tomar a concepção progressista ampla
da educação para fundamentar uma formação comprometida com a questão racial negra, tem-se o aspecto ideal
da práxis, sendo os diferentes cursos que se orientam por
esta teoria o lado material ou real da práxis educativa.
A prática é fonte da teoria. A teoria nutre-se da prática como objeto de observação, análise, interpretação e
transformação. A prática é anterior a teoria, sendo o seu
fundamento e critério de verdade. A teoria, sendo a explicação da realidade, goza, entretanto, de uma certa autonomia em relação à mesma, porque originando-se de um
107
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
determinado universo empírico, pode servir de fundamentação para práticas cujos componentes são incorporados
pela teoria anteriormente produzida.
Nos currículos dos cursos fundamentados nesta forma de relacionamento, a teoria e a prática se articulam,
sendo simultâneas e indissolúveis. Como exemplo desta relação, vivencio o currículo do Curso de Pedagogia
da UFF, que, planejado para promover a concomitância
destes dois aspectos da práxis, incluiu, desde o primeiro
período como obrigatória, a disciplina Pesquisa e Prática Pedagógica, que, anunciando esta postura, contem na
prática alguns equívocos que comprometem este aspecto
da sua fundamentação teórica, ainda que representando
um grande avanço na formação dos profissionais da educação.
A visão de unidade teoria-prática na formação dos
profissionais da educação, para a diversidade racial, é uma
condição necessária, mas não suficiente. È preciso que,
além de privilegiar esta relação, os cursos incluam nos
currículos as questões raciais. Por outro lado, se este tipo
de relacionamento, por si só, não dá conta das questões
raciais em educação, os outros tipos de relacionamento a
inviabilizam.
A formação de profissionais da educação deverá
garantir não somente uma atuação em que os objetivos
previamente determinados sejam alcançados, mas também
uma formação como pesquisadores. Neste sentido, é preciso que os níveis de produção de conhecimentos sejam
do domínio dos formandos, os quais deverão atuar em
coerência com os mesmos.
A produção de saberes, isto é, a pesquisa acadêmica, quando se caracteriza pela empiria, tem os seguintes
níveis ou graus:
1 - Percepção sensível, que consiste no contato com
o universo selecionado para estudo, podendo ser, no caso
do profissional da educação, algum aspecto da dinâmica
escolar e/ou do ensino. Nesta fase, coletam-se e registram108
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
se cuidadosamente todas as ocorrências, para análise e
interpretações posteriores. Este é o momento do contato e
registro dos fenômenos educativos que estão ocorrendo.
Este nível não permite um conhecimento imediato do fenômeno em sua totalidade, suas contradições e
outros aspectos da realidade considerada. A essência dos
fenômenos só pode ser compreendida pelo pensamento
lógico, racional, a partir do próprio fenômeno. Todos os
conhecimentos autênticos resultam da experiência direta,
não sendo concebida a sua desvinculação da prática. Selma Garrido Pimenta afirma a necessidade de sólidas bases
empíricas para a produção do bom conhecimento.
2 - Análise e interpretação dos dados coletados, à luz
de teorias pertinentes ao objeto de estudo da pesquisa. É
o momento da elaboração de conceitos, a partir da análise
dos graus de freqüência com que os fenômenos ocorrem,
seu maior ou menor grau de estabilidade, estabelecimento
das relações lógicas e ratificação de teorias existentes e/ou
elaboração de novas teorias.
Comprova-se aí, a precedência da prática em relação à teoria e a importância da primeira para a elaboração
de saberes, o que é indispensável para que a educação
seja revisitada e ressignificada.
Tratando-se da pesquisa, reafirmamos a nossa posição no sentido de que o ato de pesquisar não seja exclusivo do profissional da educação superior, mas há necessidade de criar condições para incluir esta atividade no
cotidiano dos profissionais da escola básica. Sobre este
assunto, Paulo Freire afirma:
Não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino.
Esses fazeres se encontram um no corpo do outro.
Enquanto ensino, continuo buscando, reprocurando.
Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando,
intervenho, intervindo, educo e me educo. Pesquiso
para conhecer o que ainda não conheço e comunicar
ou anunciar a novidade (FREIRE, 1996, p. 32).
109
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Ter uma formação que permita ao profissional conhecer os seus alunos, particularmente o aluno negro, sua
cultura, seus conhecimentos e valores acumulados, e permita principalmente averiguar o tipo de relacionamento
estabelecido pelo sistema escolar com este grupo racial, é
um direito que, raramente, é assegurado aos profissionais
considerados.
Privilegiada esta forma de relacionamento teoriaprática, os profissionais devem adquirir a capacidade de
realizar o percurso prática-teoria-prática, fazendo o recorte racial em todo o seu trabalho. Isto significa que os mesmos devem manter-se vigilantes em relação ao papel que
a escola está desempenhando junto à população negra e
alterá-lo, nos casos em que a educação esteja a serviço da
sua degradação.
A questão dos valores na formação
dos profissionais da educação
Ao tratar da conceituação de pedagogia, nas páginas iniciais deste estudo, demos destaque não somente ao
seu caráter científico, mas também ao filosófico, porque
reduzir o campo de conhecimentos pedagógicos somente
à ciência é negar o seu caráter filosófico, através do qual
são determinados os valores e os fins da educação.
É através da sua dimensão filosófica que a pedagogia vai determinar o que deve ser a educação e, portanto,
determinar os valores que serão considerados no trabalho
pedagógico.
É importante destacar que os conhecimentos são incorporados pela racionalidade e os valores pertencem à
área afetiva. Entretanto, a racionalidade não pode estar
desvinculada da afetividade e esta necessariamente incorpora o aspecto racional.
A questão dos valores, entretanto, têm sido negligenciadas pela educação, o que leva muitos profissionais
110
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
à indiferença diante de posturas racistas, quer sejam de
caráter emergencial ou sistemático. Ninguém nasce com
valores. Eles são aprendidos ao longo da nossa história de
vida, e a educação básica é um dos lugares privilegiados
para essa formação. Para tanto, os profissionais da educação precisam ser preparados.
Os valores decorrem de uma postura de não-indiferença diante de determinados fenômenos. A educação
da população negra está a exigir uma postura de não indiferença de parte dos profissionais da educação em relação às desigualdades de condições e de oportunidades
a que este grupo é submetido. Cabe questionar, diante
deste quadro, qual o papel da educação? Qual é o papel
social dos profissionais da educação? Que tipo de serviço
deverão prestar à sociedade? Estas questões precisam ser
respondidas pelos profissionais em questão, a partir da
formação recebida.
Recorrendo a vários conceitos de educação, percebemos que todos eles privilegiam a promoção humana e,
segundo Dermeval Saviani, promover o homem significa, tornar esse “homem cada vez mais capaz de conhecer
os elementos de sua situação, para intervir nela, transformando-a, no sentido de uma ampliação da liberdade, de
comunicação e colaboração entre os homens” (SAVIANI,
1986, p. 41).
É importante que os profissionais da educação confrontem a citada finalidade com a dinâmica escolar, para
averiguar se o espaço escolar está realmente promovendo a
população negra, ou se está provocando a sua degradação.
Recorrendo mais uma vez a Saviani, encontramos
na filosofia da educação respaldo para a nossa proposta
de inclusão dos estudos sobre os valores em educação na
formação de seus profissionais. Segundo o referido autor,
Os valores indicam as expectativas, as aspirações que
caracterizam o homem em seu esforço de transcenderse a si mesmo e à sua situação histórica; como tal,
111
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
marcam aquilo que deve ser em contraposição aquilo
que é. A valoração é o próprio esforço do homem
para transformar aquilo que é, naquilo que deve ser
(SAVIANI, 1986, p. 41).
O sistema educacional brasileiro está a exigir uma
formação de profissionais, que, privilegiando certos valores em educação, transformem a realidade educacional do
negro brasileiro, realizando o percurso entre o que é e o
que deve ser a educação, isto é, da degradação constatada
à promoção humana. Neste sentido, as políticas em nível
macro deverão exercer o seu papel, no sentido de garantir o cumprimento de aspectos legais inerentes à questão
e que não têm recebido dos órgãos oficiais brasileiros o
devido investimento.
A questão dos valores nos leva a questionamentos
tais como: existem valores universais, ou todos os valores
são relativos? Que valores privilegiar em educação?
Sabe-se que as sociedades têm valores particulares
e que todas as vezes que se eleva o particular ao nível de
universal, hierarquiza-se os grupos sociais, tal qual ocorreu com a Europa em relação aos outros continentes, especialmente com a África.
Entretanto, há certos valores que parecem ser universais, como a igualdade e o respeito, que devem perpassar as relações entre todos os grupos humanos. O respeito
incorpora necessariamente a não-violência física e moral,
as quais atravessam toda a educação sem a devida postura de um significativo número de profissionais e mesmo
dos níveis de administração de ensino mais elevados. Se
por um lado assiste-se à indiferença dos educadores no
nível da escola, diante dos apelidos pejorativos aos alunos
negros, por outro, assiste-se, por exemplo, à cooptação
das nossas crianças e jovens para o tráfico de drogas no
interior das escolas e/ou em suas mediações sem a tomada de medidas necessárias de grande parte das instâncias superiores de administração dos sistemas de ensino,
112
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
que não acionam os órgãos de segurança para impedir
tal ocorrência, que consiste em uma violência brutal aos
nossos estudantes, reduzindo a expectativa de vida dos
nossos jovens negros.
Sem pretender hierarquizar os valores, consideramos
que uma educação para a promoção humana não pode
deixar de priorizar a igualdade e o respeito como valores
universais, a despeito da origem ocidental da igualdade
como princípio.
Para tratar da igualdade, é preciso contrapô-la às
desigualdades sociais e raciais existentes, porque, concretamente, a humanidade só conhece as desigualdades,
sendo a igualdade uma abstração, uma aspiração, cujos
esforços para alcançá-la resultaram em sociedades menos
desiguais.
Segundo Turner, a persistência dos escritos tipicamente sobre as desigualdades em sociologia indica o seu
prolongamento na sociedade capitalista contemporânea,
parecendo ser um tanto óbvia no campo da política social
e da pesquisa. Por outro lado, a igualdade é um princípio
das lutas políticas dos movimentos sociais modernos, sendo um dos seus componentes, ao contrário da desigualdade, cuja história é tão antiga quanto a humanidade.
O privilegiar a igualdade em educação exige a determinação da concepção de sociedade e de homem privilegiada, sendo este tipo de educação incompatível com
os propósitos neoliberais de mundialização do capitalismo, “entendido como processo civilizatório destinado a
realizar uma espécie de coroamento da história da humanidade” (IANNI, 1996, p. 82). Baseado na exploração do
homem pelo homem, o capitalismo tem a desigualdade
como um dos seus princípios, ainda que em alguns países
capitalistas haja a possibilidade de oferecer à coletividade
padrões razoáveis de bem-estar social.
Sheler apresenta uma hierarquia de valores que podem ser objeto de reflexão em educação:
113
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
valores
valores
valores
valores
valores
valores
úteis – econômicos
vitais – afetivos
lógicos – intelectuais
estéticos
éticos – morais e
religiosos.
Segundo Saviani, a hierarquia torna rígido o lugar
dos valores, devendo-se estabelecer prioridades, porque
estas permitem uma flexibilidade coerente com os destinatários da educação. O referido autor apresenta os valores
que se seguem, sem hierarquizá-los:
Educação para a subsistência
Educação para a liberdade
Educação para a comunicação e
Educação para a transformação.
Apontando o que deve ser, os valores salientam o
problema das finalidades e objetivos da educação.
Ainda que sendo apenas valores declarados e não
reais, as finalidades da educação brasileira dão ênfase a
valores extremamente relevantes.
O artigo 2º da Lei de Diretrizes e Bases determina os
seguintes princípios e fins da Educação Nacional:
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
Liberdade, solidariedade, plenitude, cidadania e
trabalho, são palavras-chave de tais finalidades, o que
aponta para a elaboração de objetivos da educação coerentes com a promoção dos estudantes. Entretanto, entre
o declarado e o real na nossa educação, há uma grande lacuna, cujos responsáveis pela educação, não só os
114
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
profissionais que atuam na escola, devem coletivamente
fazer desaparecer.
Para incluir os valores nas práticas educativas, é preciso fazer superar o equívoco de parte de muitos educadores de que os conteúdos escolares são apenas os conhecimentos científicos acumulados pela humanidade e
colocados à disposição de todos. Não resta dúvida que
a apropriação de tais conhecimentos por todos em uma
democracia é um direito, devendo ser transformados em
coisa pública. Os conteúdos incorporam também habilidades, hábitos, atitudes e valores, que devem ser objeto
da educação intencional, como expectativas e aspirações.
Sendo os valores aquilo que deve ser em confronto com
o que é, a valoração é o procedimento humano para eliminar esta lacuna em direção ao pretendido. A distância
entre aquilo que deve ser e aquilo que é, afirma Saviani,
é o espaço da vida humana. O mesmo autor afirma que
tanto a possibilidade de coincidência total entre o que
deve ser e o que é como a impossibilidade completa dessa
coincidência tornam a vida humana inviável.
Projetando essa idéia na educação, podemos dizer
que o que justifica o trabalho educativo é a possibilidade
de transformar aquilo que é naquilo que deve ser. Neste
sentido, torna-se necessário que os profissionais da educação tenham uma formação que lhes garanta a autonomia
profissional necessária para que se tornem autores dos
seus projetos de trabalho, tanto no nível de escola quanto
no nível de sala de aula. Se por um lado é da responsabilidade de todo o coletivo da escola elaborar o projeto político-pedagógico, é da responsabilidade de cada professor, individual ou coletivamente, elaborar o seu plano de
ensino, visando a alterar o comportamento dos estudantes
sob sua responsabilidade. Isto significa que a educação
deverá ajudar aos estudantes a perceberem criticamente a
sua condição na sociedade, o seu caráter social e histórico e a elaborarem um projeto de vida com vistas à plena
coincidência entre o que é e o que deve ser, diante das
115
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
desigualdades sociais e particularmente raciais que afetam
a humanidade.
A formação dos profissionais da educação, orientada pela teoria pedagógica progressista considerada em seu
sentido amplo, deverá, entre outros aspectos, dar ênfase
ao desenvolvimento da capacidade de elaborar os planos
de trabalho que o cotidiano escolar exige, em contraposição à improvisação e à submissão aos projetos elaborados
por outros, que consistem no sucateamento da educação
e na renúncia à autonomia que o exercício da função confere ao educador, renuncia esta que acontece porque o
profissional delega a outros profissionais um fazer que
violenta e degrada a sua atuação.
A formação dos profissionais da educação na
legislação brasileira: possibilidades de reversão das
desigualdades raciais
Nesta parte final do trabalho, decidi analisar a proposta de formação incorporada nos itens anteriores em
confronto com as determinações legais contidas nos documentos oficiais.
Neste item, nosso propósito inicial foi de confrontar
o proposto legalmente e os processos de reformulação
dos cursos de pedagogia e licenciatura em curso com as
possibilidades de formar profissionais para uma atuação
satisfatória com os grupos discriminados, particularizando
a situação da população negra. Entretanto, as limitações
relativas principalmente de tempo e de espaço para este
artigo não permitem avançar para além do que está posto
na Lei de Diretrizes e Bases, na qual a formação de profissionais da educação é tratada no título VI – Dos profissionais da Educação.
A seguir, transcrevemos os artigos aqui considerados
e seus respectivos itens e parágrafos, a fim de facilitar estudos comparativos.
116
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
Art. 61 – A formação de profissionais da educação, de modo a atender aos objetivos dos diferentes níveis e modalidades de ensino e às características de cada fase do desenvolvimento do
educando, terá como fundamentos:
I – associação entre teorias e práticas, inclusive
mediante a capacitação em serviço;
II – aproveitamento da formação e experiências
anteriores em instituições de ensino e outras atividades.
Art. 62 – A formação de docentes para atuar na
educação básica far-se-á em nível superior, em
curso de licenciatura, de graduação plena, em
universidades e institutos superiores de educação,
admitida como formação mínima para o exercício
do magistério na educação infantil e nas quatro
primeiras séries do ensino fundamental, a oferecida em nível médio, na modalidade Normal.
Art. 63 – Os institutos superiores de educação
manterão:
I – cursos formadores de profissionais para a
educação básica, inclusive o curso normal superior, destinado à formação de docentes para a
educação infantil e para as primeiras séries do
ensino fundamental.
II – programas de formação pedagógica para portadores de diplomas de educação superior que
queiram se dedicar à educação básica;
III – programas de educação continuada para os
profissionais da educação dos diversos níveis.
Art. 64 – A formação de profissionais de educação para administração, planejamento, inspeção,
supervisão e orientação educacional para a educação básica, será feita em cursos de graduação
em pedagogia ou em nível de pós-graduação, a
critério da instituição de ensino, garantida, nesta
formação, a base comum nacional.
117
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Art. 65 – A formação docente, exceto para a educação superior, incluirá prática de ensino de, no
mínimo, trezentas horas.
Art. 66 – A preparação para o exercício do magistério superior far-se-á em nível de pós-graduação, prioritariamente em programas de mestrado
e doutorado.
Parágrafo único – O notório saber, reconhecido por
universidade com curso de doutorado em área afim,
poderá suprir a exigência de título acadêmico.
Art. 67 – Os sistemas de ensino promoverão a
valorização dos profissionais da educação, assegurando-lhes, inclusive nos termos dos estatutos
e nos planos de carreira do magistério público:
I – ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos;
II – aperfeiçoamento profissional continuado, inclusive com licenciamento periódico remunerado
para esse fim;
III – piso salarial profissional;
IV – progressão funcional baseada na titulação
ou habilitação, e na avaliação do desempenho;
V – período reservado a estudos, planejamento e
avaliação, incluído na carga de trabalho;
VI – condições adequadas de trabalho.
Parágrafo único – A experiência docente é prérequisito para o exercício profissional de quaisquer outras funções de magistério, nos termos
das normas de cada sistema de ensino.
O item I, do artigo 61, é coerente com a nossa proposta de estabelecimento de uma relação de unidade entre teoria e prática na formação profissional tanto inicial
quanto continuada. Quanto ao item II do mesmo artigo,
percebe-se a abertura para aproveitamento de estudos,
sem impedir que esta tramitação se faça no sentido vertical, o que compromete a qualidade da formação.
118
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
O artigo 62, determinando os diferentes níveis para
a formação de profissionais da educação, comete o grave
equívoco de perpassar nas entrelinhas a idéia de que a
atuação na educação infantil e nas séries iniciais do ensino
fundamental pode ser feita por profissionais com uma formação inferior à realizada na graduação, em nível médio
e fora do ambiente universitário. No entanto, sabe-se que
o trabalho educativo com crianças menores exige uma formação, se não mais, tão rigorosa quanto a formação que é
dada para atuar no ensino superior em termos de aquisição, crítica e produção de conhecimentos, em suas dimensões específicas e pedagógica. A natureza da formação
nos dois casos é diferente porque se trata de educar seres
humanos em diferentes estágios de desenvolvimento, com
características bastante diferenciadas, sendo que, quanto
mais o educando se distancia do educador, em termos
de estágio de desenvolvimento, tanto mais difícil se torna
compreendê-lo para promover o seu crescimento. Portanto, a formação para a atuação na educação infantil e nas
séries iniciais do ensino fundamental deverá ser em termos de rigor e aprofundamento, equiparável àquela preparação para atuar em níveis mais elevados de ensino.
A despeito das dificuldades provocadas pelas diferenças regionais brasileiras que, em certos locais, ainda
admitem a atuação de leigos, consideramos a concessão
equivocada e prejudicial ao sistema de ensino.
A criação dos institutos superiores de educação representa uma regressão na formação docente, por criar
um novo espaço fora do ambiente universitário para a
formação profissional, punindo mais uma vez a educação
infantil e as séries iniciais do ensino fundamental. Sendo a
pedagogia um campo de conhecimentos multirreferencial,
que, centrando-se na educação, tem diferentes dimensões, o contato com diferentes unidades que privilegiam
campos de conhecimentos que mantêm afinidade com a
educação, é extremamente necessário; o isolamento em
ambiente não universitário, sem dúvida compromete a
119
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
qualidade da formação de um profissional cuja atuação na
sociedade é extremamente relevante para o desenvolvimento humano, particularmente tratando-se da responsabilidade de reverter o quadro de desigualdades raciais que
se apresenta na educação e cujos efeitos são mais graves
no início da escolarização, sendo justamente, nos níveis
de ensino em que a população negra é mais penalizada,
que se mantêm os níveis mínimos de formação de modo
paralelo à criação de espaços de formação também precários em se tratando também do nível superior.
A necessidade de que toda a formação para o exercício docente seja feita em nível superior é apontada por
Piaget do qual transcrevo alguns parágrafos:
[...] há ainda numerosos países, onde a preparação de
mestres não tem qualquer relação com as faculdades
universitárias: só os mestres secundários se formam
na universidade e somente no que se refere às matérias a ensinar, sendo a preparação pedagógica nula
ou reduzida a um mínimum, enquanto os mestres primários são em parte preparados nas escolas normais,
sem vinculação direta com a pesquisa universitária [...]
(PIAGET, 1972 p. 28).
Em outra obra Piaget, referindo-se aos problemas
gerais do ensino, escreve:
[...] o primeiro relaciona-se com a formação de professores, o que constitui realmente a questão primordial
de todas as reformas pedagógicas em perspectiva, pois
enquanto não for a mesma resolvida de forma satisfatória, será totalmente inútil organizar belos programas
ou construir belas teorias a respeito do que deveria ser
realizado. Ora, esse assunto apresenta dois aspectos:
em primeiro lugar existe o problema social de valorização ou de revalorização do corpo docente primário
e secundário, a cujos serviços não é atribuído o devido valor pela opinião pública, donde o desinteresse
e a penúria que se apoderam dessas profissões e que
120
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
constituem um dos maiores perigos para o progresso
e mesmo para a sobrevivência de nossas civilizações
doentes (PIAGET, 1974, p. 14).
Ainda continuando com Piaget, temos:
[...] uma formação universitária completa para os mestres de todos os níveis (pois quanto mais jovens são os
alunos, maiores dificuldades assume o ensino, se levado a sério) a semelhança da formação dos médicos
etc. A preparação universitária completa é sobretudo
necessária para a formação psicológica satisfatória, e
isto para os futuros mestres, tanto no nível secundário
quanto no primário (PIAGET, 1974, p. 29).
Ainda o item II do artigo 61 penaliza a educação básica, criando a possibilidade de uma formação pedagógica
para portadores de diploma de outros cursos superiores
que não fizeram opção inicial pela profissão docente. Tal
abertura apresenta dois graves problemas. Permite a criticada justaposição no relacionamento teoria-prática na formação profissional e admite o magistério como atividade
profissional de reserva, para aqueles que, tendo inicialmente feito opção por outra atividade que não a educação, a utilizem como reserva para uma possível atuação,
no caso de fracasso na opção profissional priorizada.
O item III, prevendo a formação continuada em todos os níveis, é um aspecto positivo da questão, se realmente for concretizado.
O artigo 64 faz referência ao curso de pedagogia,
que tem sido objeto de discussões, cuja formação caracterizada pela multihabilitação está a exigir rigorosas reflexões e propostas de reformulação.
O artigo 67, referindo-se a aspetos relativos a valorização dos profissionais da educação, destaca a formação
continuada, possibilitando o afastamento periódico com
remuneração, o que só excepcionalmente acontece na escola básica, sendo apenas privilégio das instituições públicas
121
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
de ensino superior e das escolas básicas federais. O piso
salarial permanece sem nenhuma medida objetiva, bem
como a formação continuada incluída na jornada de trabalho que acontece com uma certa freqüência com a determinação de uma carga horária extremamente reduzida e
só excepcionalmente com determinação de períodos que
atendem aos propósitos declarados, mas, em alguns casos,
sem a necessária administração e aproveitamento do tempo determinado para este tipo de formação.
Embora não seja nosso propósito fazer uma análise
de outros documentos oficiais que tratam da questão considerada, faremos algumas considerações sobre a formação dos profissionais da educação contida no Programa
Universidade para Todos (Prouni), em vigor no ano em
curso através da Medida Provisória n. 13, de 10 de setembro de 2004. Através desta medida provisória, a escola básica pública é novamente punida com a possibilidade de
formação dos seus profissionais em curso de licenciatura
e em pedagogia em instituições particulares.
Os prejuízos desta formação aqui considerados são
os seguintes:
Prováveis deficiências na formação do profissional
como pesquisador. Sabe-se que as instituições particulares
de ensino superior, em sua grande maioria, principalmente as isoladas, não incluem a pesquisa na carga horária
dos professores, tal como acontece nas instituições públicas. Esta situação terá certamente seus efeitos negativos na
formação desses profissionais oriundos da escola pública,
principalmente em relação à sua formação como pesquisadores, que ficará comprometida, além dos prejuízos por
terem professores que não têm o necessário apoio institucional para a realização de pesquisas que aprimorariam a
sua atuação docente.
Os aspectos negativos aqui salientados, se não inviabilizam, pelo menos prejudicam extremamente a concretização da proposta de formação discutida neste estudo.
122
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
Aos aspectos destacados, acrescenta-se o problema
que ocorreu nas últimas décadas de desmantelamento das
universidades públicas e do estímulo às instituições privadas por meio de autorizações para funcionamento, culminando em 2004 com o Prouni, que, através da isenção de
impostos a instituições particulares, destina indiretamente verbas públicas para atender a interesses privados em
face aos altos índices de inadimplência no ensino superior
particular que o ameaçam, em detrimento das instituições
públicas, que, apesar de todo o descaso de parte do poder constituído nos últimos anos, mantêm um ensino de
qualidade.
Minha proposta é de que seja cessada a isenção concedida às instituições privadas e que os recursos coletados
sejam investidos na expansão e melhoria das universidades públicas.
A formação dos profissionais da educação para toda
a escola básica deveria fazer-se em universidades, em nível de graduação, com ênfase no ensino e na pesquisa,
com garantia de formação continuada em serviço e possibilidade de real afastamento periódico remunerado para
este tipo de formação.
Precedendo tal medida, teve-se a alteração do artigo
26 A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
pela Lei n. 10.639/03, passando referido artigo a ter a seguinte redação:
Artigo 26 A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório
o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º O conteúdo programático a que se refere o caput
deste artigo incluirá o estudo da História da África e
dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura
negra brasileira e o negro na formação da sociedade
nacional, resgatando a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à
História do Brasil.
123
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
§ 2º Os conteúdos referentes à História e Cultura AfroBrasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras”
Esta legislação, acompanhada das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações ÉtnicoRaciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana, é decisiva em relação à questão tratada nesta
parte deste artigo. Entretanto, a trajetória entre a legislação vigente e o cotidiano escolar, que vai decidir sobre
a sua concretização, exige o estabelecimento de ousadas
políticas governamentais na formação continuada de profissionais da educação, as quais têm sido, extremamente
tímidas, com algumas iniciativas quantitativamente insuficientes, ainda que de qualidade considerável.
Tal qual o Penesb, que, antecipando-se à legislação
apresentada, investe há 13 anos na referida formação, há
núcleos de estudos afro-brasileiros (Neabs), no âmibito de
algumas universidades, que se têm empenhado na formação de profissionais da educação para a diversidade racial.
Entretanto, é preciso garantir a todos os profissionais que
atuam na educação brasileira as condições intelectuais e
afetivas necessárias à implementação da legislação vigente, tarefa esta que me parece estar em fase bastante incipiente.
O desafio da formação continuada de docentes para
a educação para as relações étnico-raciais
Para que a proposta de ampliação de uma educação para as relações étnico-raciais se efetive, torna-se indispensável garantir a todos os profissionais da educação
em exercício o acesso aos conhecimentos sobre a população negra e sobre os aspectos pedagógicos inerentes à
questão. Para isso, todas as propostas de formação, quer
124
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
seja inicial, quer seja continuada, disponíveis no momento
são pelo menos quantitativamente insuficientes. A exemplo, o município do Rio de Janeiro, dispõe na rede 40.000
professores, o que nem os cursos presenciais e nem a
distância dão conta. Resta-nos, e esta medida é de suma
importância, criar e consolidar um sistema permanente de
formação continuada em serviço, incorporando à jornada de trabalho dos profissionais da educação, uma carga
horária significativa, não só para a formação em serviço,
priorizando neste momento a formação para as relações
étnico-raciais, mas também para as atividades de pesquisa,
extensão e de planejamento. Para isto, há que se alterar o
Plano Nacional de Educação, que determina apenas 20%
a 25% da carga horária do professor para a atividade de
planejamento, reduzindo a função docente a uma rotina
que não lhe permite exercer a sua profissão com dignidade e autonomia. Por outro lado, a alteração da legislação
recente, que determina o piso salarial para 40 horas de
pouco mais de R$ 900,00 (novecentos reais) se faz também urgente, porque tal decisão elimina toda e qualquer
possibilidade de fazer do magistério uma profissão que
cumpra o seu papel social.
A despeito de tais condições, o Penesb tem hoje sob
sua responsabilidade a realização de cursos presenciais e
semipresenciais, bem como, orientação de graduandos em
processo de iniciação científica, e a previsão de um seminário e o desenvolvimento das pesquisas apresentadas
anteriormente, uma delas com financiamento da Faperj.
Entende-se, que a proposta de formação continuada no
nível de escola não invalida as outras alternativas que vêm
sendo realizadas pelo Penesb e por outros Neabs, mas as
complementa. Em todas elas, a presença dos Neabs se faz
necessária, ora direta, ora indiretamente, sob a forma de
assessoramento aos órgãos intermediários das secretarias
municipais e estaduais, que se propõe sejam os responsáveis pela mediação entre a produção acadêmica e as
escolas.
125
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Outra medida que se propõe seja tomada, principalmente nos grandes centros urbanos em que a presença de docentes com formação a nível de pós-graduação
stricto sensu se faz sentir de modo expressivo nas redes
federais, estaduais e municipais da escola básica, é o
levantamento do pessoal com tal formação e o seu aproveitamento nas equipes que lideram a formação continuada e o estímulo à pesquisa e à participação em eventos,
a fim de utilizar e valorizar o potencial humano disponível na rede.
126
A incorporação da dimensão racial do fenômeno educativo...
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VASCONCELLOS, Celso dos Santos .Planejamento – projeto de ensino-aprendizagem e projeto político pedagógicoSão Paulo:Libertad, 2007.
128
Educação e relações raciais
em Mato Grosso
Maria Lúcia Rodrigues Muller
Pretende-se aqui discutir os processos intra-escolares que produzem o fracasso escolar de alunos negros.
Estes, quando não fracassam, têm trajetórias escolares
mais acidentadas que alunos brancos. Neste capítulo, serão abordados alguns aspectos das relações raciais nas escolas do estado de Mato Grosso, tomando como base os
resultados de pesquisas realizadas no Núcleo de Estudos
e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação (Nepre),
da Universidade Federal de Mato Grosso. Nesse Núcleo,
foram defendidas, entre 2002 e 2008, 20 dissertações de
mestrado, no âmbito do Programa de Mestrado em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso, o que nos
dá um relativo acúmulo de conhecimentos sobre o tema.
Vale ressaltar que essa linha de pesquisa inaugurou-se
com uma investigação sobre trajetórias de professoras não
brancas, financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado de Mato Grosso (Fapemat), na qual o conjunto
dos depoimentos obtidos retratava os processos discriminatórios que professoras não brancas (na sua maioria negras) enfrentaram durante toda sua vida, em especial na
escola. Os resultados dessa pesquisa sugeriam que, mais
que a condição social, eram motivos de discriminação e
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
estigmatização a cor da pele, os traços fisionômicos, o
tipo de cabelo, enfim o fenótipo da pessoa. Foi possível
perceber que as marcas da discriminação permaneciam
durante toda a vida, mesmo as professoras tendo atingido
a vida adulta. Com base nessa constatação decidimos incorporar aos nossos estudos os escolares negros, crianças
e jovens.
As desigualdades raciais na educação brasileira são
significativas. Não é casual que os indicadores sociais
apontem grandes discrepâncias entre a realização escolar
de alunos brancos e alunos negros. Negros não só têm
que lidar muitas vezes com piores condições econômicas
e sociais, mas também com atitudes e processos fortemente discriminatórios.
Henriques (2001), estudando a incidência da pobreza com base em um recorte que contemplava, simultaneamente, raça, gênero e faixa de idade dos indivíduos,
identificou uma nítida hierarquia de discriminação no interior da pobreza, na qual os mais pobres dos pobres são
homens e mulheres negros entre 0 e 14 anos de idade. Em
todos esses grupos, a incidência da pobreza é superior a
60%. No outro extremo, os relativamente menos afetados
entre os pobres, são todos brancos adultos.
Portanto, a cor da pele está fortemente associada à
probabilidade de se encontrar indivíduos no estágio que
representa a mais drástica forma de privação material: a
pobreza. A “probabilidade de um branco ser pobre situa-se em torno de 22%, mas se o indivíduo é negro, a
probabilidade é mais que o dobro – 48%” (JACCOUD e
BEGHIN, 2002, p. 28).
Diversos estudos apontam para o imenso fosso entre
os níveis educacionais alcançados por brancos e negros no
Brasil. Em todos os níveis de ensino e em todas as faixas
de renda, os brancos alcançam mais anos de estudo e realizam uma trajetória escolar mais homogênea. Contudo, só
a pobreza não explica as desigualdades raciais. Parte dessa desigualdade escolar entre os dois grupos só pode ser
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Educação e relações raciais em Mato Grosso
explicada pela existência de mecanismos intra-escolares
de discriminação que penalizam crianças e jovens negros,
desestimulando-os a permanecer na escola ou a obter um
rendimento adequado para seu sucesso escolar.
Outros estudos enfatizam o despreparo dos professores, e demais profissionais da educação, para trabalhar, do
ponto de vista pedagógico, com situações de racismo declarado que ocorrem freqüentemente no cotidiano escolar.
Diversos aspectos parecem estar relacionados ao
fato de os negros não estarem conseguindo ascender socialmente através dos níveis de escolarização na mesma
proporção que os brancos. Algumas pesquisas mostram,
por exemplo, que o tipo de escola que a população negra
freqüenta tem menor qualidade de ensino que a escola
freqüentada pelos brancos (ROSENBERG, 1987; HASENBALG, 1987). Pesquisas realizadas com estudantes negros
demonstram que estes desenvolvem uma auto-imagem
negativa, o que chegaria a comprometer o próprio desempenho escolar. Outras pesquisas revelam a existência de
preconceito racial nas escolas contra o aluno negro, tanto
por parte de professores como de seus colegas brancos
(CAVALLEIRO, 2004; PINHO, 2004; JESUS, 2005; SANTOS,
2005). Discriminação também observada nos conteúdos dos
textos dos livros didáticos (SILVA, 1995; COSTA, 2005).
É evidente que existem condições hostis aos alunos negros nas escolas brasileiras. Essas condições atuam
permanentemente para o agravamento das diferenças de
desempenho escolar desse segmento. Um estudo realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), em 2003, que observou a
evolução dos resultados do Sistema Nacional de Avaliação
da Educação Básica (Saeb) no período de 1995 a 2001,
mostra que a média obtida pelos alunos brancos da 4ª
série do ensino fundamental em Língua Portuguesa, em
1995, era de 193,4; enquanto, dos alunos negros era de
173,8. Naquele ano, a diferença era de 19,6 pontos na
escala que vai de 125 a 425. Já em 2001, a média entre os
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
brancos foi de 174 e a dos negros de 147,9, uma diferença
de 26,1 pontos. Segundo o então diretor de Avaliação da
Educação Básica do Inep, Carlos Henrique Araújo, esse
resultado revelava que havia um aprofundamento da desigualdade nos últimos anos entre negros e brancos. Ele
apresentou duas hipóteses que podem ajudar a entender
por que ocorre essa diferença no aproveitamento escolar.
A primeira, diz respeito à entrada mais tardia dos negros
na economia. Isso se reflete em pais e mães com menor
escolaridade, por exemplo. Uma segunda explicação, que
não é excludente em relação à primeira, está relacionada
ao racismo difuso, ainda presente na sociedade brasileira: “Uma atitude racista, mesmo que inconsciente, afeta a
auto-estima dos alunos e reflete-se no desempenho deles.
Dentro do sistema de ensino há um aprofundamento da
desigualdade” (ARAÚJO, 2004). A segunda hipótese apontada por ele reafirma os estudos que enfatizam a importância de uma formação do professor que abranja a discussão
sobre as diferenças raciais e étnicas na escola.
Somos a segunda maior nação negra no mundo depois da Nigéria. Apesar disso, os brasileiros negros são
obrigados a conviver ao longo de suas vidas com inúmeros momentos de preconceito racial e de discriminação.
Além do mais, o Brasil destaca-se no cenário internacional como uma sociedade marcada pelos piores índices
de desigualdades sociais, Muitas dessas desigualdades são
atribuídas ao racismo internalizado nas nossas relações sociais. Por esse motivo, nos referimos à expressão relações
raciais quando queremos frisar que são nessas relações
onde podem acontecer o racismo, a discriminação e a conseqüente desigualdade racial. Negros e indígenas, quando
se relacionam com outras pessoas de seus próprios grupos
raciais, não sofrem discriminação, possibilidade que surge quando eles têm contato, quando se relacionam com
pessoas de outros grupos, principalmente com indivíduos
do grupo branco.
132
Educação e relações raciais em Mato Grosso
Em todas as sociedades humanas existe algum tipo
de preconceito e discriminação contra pessoas ou grupos
“diferentes” da maioria, ou que se consideram maioria.
Isto é, as pessoas costumam considerar “feios” ou “sujos”,
ou qualquer outro atributo negativo, a todos aqueles que
são “diferentes”, que não pertencem a seu grupo (ELIAS,
2000). Todavia, em nosso país, a cor da pele ou os traços
fenotípicos, que também englobam o tipo de cabelo, os
traços fisionômicos, etc., muitas vezes são tidos como diferentes e inferiores. Inferiores na inteligência, inferiores
nos valores morais.
Norbert Elias (2000) afirma que se inscreviam num
determinado tipo de relação de poder as relações entre estabelecidos, os que se consideravam maioria, e os
outsiders, os que eram considerados minoria, diferentes,
inferiores, etc. Nesse estudo, ele expõe detalhadamente
um processo específico de construção de uma hegemonia
cultural com o conseqüente estabelecimento de um imaginário social que penalizava constante e definitivamente o grupo outsider. Parece-me ser válido buscar alguns
elementos da construção do imaginário social brasileiro
referente à população negra. De que maneiras e em que
momento se estabeleceu essa hegemonia cultural? Penso
que a escola, mas não só ela, tenha sido uma agência
importante nessa construção, que conferiu imagens tão
negativas aos negros.
Quais são dados que as pesquisas vêm apresentando desde a década de 80 do século passado? Algumas
mostram, por exemplo, que o tipo de escola freqüentada
pela população negra tem menor qualidade de ensino que
a escola freqüentada pelos brancos (HaseNbalg, 1987;
RoseNberg; 1987). Como já mencionado, estudos realizados com estudantes negros evidenciam que estes desenvolvem uma auto-imagem negativa, o que chegaria a comprometer o próprio desempenho escolar. Outras investigações revelam a existência de preconceito racial nas escolas
contra o aluno negro, tanto por parte de professores como
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
de seus colegas brancos. Em texto mais recente, Osório
e Soares (2005) acompanham uma coorte de brasileiros,
brancos e negros, nascidos em 1980, desde a data de seu
nascimento até o ano de 2003, quando encontraram que,
enquanto 70% dos negros, ainda na escola, cursavam o
ensino básico regular ou supletivo, 66% dos brancos estavam cursando o ensino superior. Os autores concluem:
Os indicadores de educação, em conjunto, nos permitiram documentar um quadro preocupante: além
de serem prejudicados por terem uma origem mais
humilde, o que dificulta o acesso e a permanência na
escola, os negros são prejudicados dentro do sistema de ensino, que se mostra incapaz de mantê-los e
de compensar eventuais desigualdades que impeçam
sua boa progressão educacional (OSÓRIO e SOARES,
2005, p. 34, grifos meus).
A literatura produzida até esse momento sugere que
existem mecanismos intra-escolares de discriminação que
penalizam crianças e jovens negros. Quais seriam eles?
Entendo que sejam processos sociais produzidos sistematicamente no espaço escolar que têm como características
conferir invisibilidade às pessoas negras, sejam crianças,
jovens, sejam mesmo professores, assim como negar-lhes
humanidade.
Qual sentido estou atribuindo ao termo “invisibilidade”? Significa não enxergar as características pessoais desses alunos, principalmente as características pessoais positivas. Estou englobando na expressão “negar-lhes humanidade”, ou a “negação da humanidade da pessoa negra”,
seja criança, jovem ou adulta, a não aceitação dos sentimentos de indignação, de dor ou de humilhação desses
alunos; a não aceitação de suas capacidades intelectuais.
A descrença em sua capacidade de realizar bem uma tarefa que exija competência cognitiva está englobada, a meu
ver, tanto no processo de invisibilidade dos alunos negros
como na negação da humanidade da pessoa negra.
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Educação e relações raciais em Mato Grosso
Há uma escassa literatura sobre as relações que
ocorrem na escola entre indígenas e não indígenas, e a
pouca literatura disponível informa sobre existência de
discriminação quando crianças ou jovens indígenas saem
de suas aldeias para estudar em escolas públicas urbanas.
Segundo esses trabalhos, eles são bastante discriminados
por professores e alunos não indígenas. Em Mato Grosso,
os primeiros anos de escolarização dessas crianças são realizados nas próprias comunidades, em escolas cujos professores são, preferencialmente, da própria etnia. Alguns
grupos têm como estratégia enviar seus filhos às cidades
mais próximas para que dêem prosseguimento aos estudos, com o objetivo de que as novas gerações possam se
apropriar dos conhecimentos e das tecnologias dos não
indígenas (do “homem branco”). O contato interétnico
entre grupos tão diferentes fatalmente produz choques
culturais que ocasionam prejuízos para o lado mais “frágil” da relação: os jovens indígenas e suas comunidades
(REZENDE, 2003; TORRES, 2003). Esses dois estudos (aqui
citados) trazem um número impressionante de exemplos
de discriminação e racismo contra crianças e jovens pertencentes a comunidades indígenas.
A discriminação contra negros foi também observada
nos conteúdos dos textos e nas imagens dos livros didáticos (SILVA, 1995; COSTA, 2003). Apesar de já ter havido
um avanço nos últimos anos, a maioria dessas obras continua conferindo um lugar inferior ou negativo a negros e
a indígenas. Não é de se espantar que as desigualdades na
educação entre brancos e não brancos permaneçam iguais
em todos os níveis, ao longo dos anos.
Quanto a professores de escolas públicas de Mato
Grosso, de maneira geral eles acreditam que tratam todos
os seus alunos de forma igual e têm muita resistência de
se aperceberem de situações preconceituosas ou discriminatórias (COSTA, 2004; SANTOS, 2005; GONÇALVES,
2006).
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Muitas vezes, quando emitem opiniões ou quando
justificam o tratamento mais rigoroso destinado aos alunos
negros, recorrem aos velhos pressupostos das teorias racistas. É como se estivéssemos ouvindo afirmações de Nina
Rodrigues (1930, 1976) produzidas em 1906, ou de Afrânio
Peixoto, publicadas em 1914: “Esses meninos não servem
para estudar, só servem para trabalhos manuais” (sic), palavras de uma professora ao comentar sobre o suposto
desempenho escolar de seus alunos negros (GONÇALVES,
2006). Investigando as percepções de professores de educação física sobre esses estudantes, Pinho (2004) encontrou juízos semelhantes, julgamentos muito negativos sobre seus corpos (negros) e, em especial, julgamentos morais francamente negativos a respeito das alunas negras.
Aqui, também, esses professores não se distanciam muito
das pregações dos eugenistas, que acreditavam serem os
negros dotados de maior vigor sexual, de uma luxúria inata e transbordante.
O futuro do Brasil pertence à raça branca. Vivem principalmente pelos sentidos, os mulatos. As mulatinhas
constituem uma espécie amorosa talvez sem par no
mundo. A atração que exercem, sendo encantadoras,
exige certa cautela (PEIXOTO, 1917, apud CUNHA,
2002, p. 268, grifos meus).
É espantoso verificar que professores não tenham
percepção do tratamento diferente que dispensam aos
seus alunos de pele mais escura, com os quais são mais
exigentes, mais rigorosos, não reconhecendo os progressos deles. Pelo contrário, estereotipam, negativamente,
seu desempenho escolar, ou o desempenho esportivo, no
caso dos professores de educação física. Evitam, professores e professoras, trocas afetivas com crianças negras, sejam verbais, como elogios, palavras carinhosas, etc., sejam
físicas, chegando mesmo a rechaçar o contato corporal
com elas.
136
Educação e relações raciais em Mato Grosso
Professores não percebem, não enxergam quando
seus alunos negros são insultados ou sofrem agressões
físicas por parte dos alunos de pele mais clara. Quando as
vítimas denunciam os maus-tratos, é comum uma destas
atitudes por parte do mestre: recusar-se a punir o responsável e jogar a culpa na vítima ou considerar que se trata
de “brincadeira de criança”, ignorando o acontecido. É
muito forte, entre os professores, a crença na democracia
racial. É como se dissessem: “No Brasil, não existe preconceito racial; eu trato todos os meus alunos da mesma
maneira. Se for mais duro com alguns é porque eles são
preguiçosos, imaturos, não têm aptidão para o estudo,
suas famílias são desestruturadas ou não os apóiam nos
estudos.”
Acontece que todos esses juízos e atitudes foram
destinados a alunos negros. Quanto aos alunos brancos,
às críticas ou tratamentos rigorosos neles aplicados, o professor imediatamente acrescentava algumas palavras de
estímulo.
Finalmente, quando indagados sobre o motivo de
permitirem (ou se manterem omissos) diante dos freqüentes episódios de insultos raciais nas relações interpessoais
entre alunos, os professores muitas vezes se referiram à
dificuldade de exercer uma classificação racial, uma vez
que “todos eles são negros ou quase negros”, (GONÇALVES, 2006).
É fato verificável, empiricamente, que a sociedade
brasileira é uma sociedade multirracial. Temos uma “linha
de cor” que vai da mais clara à mais escura, tanto mais
próxima ou mais distante do branco for. Não é de hoje
que a pele da população brasileira tem muitas cores. Não
é de hoje, portanto, que as denominações de cor provocam distinções. No Brasil, do período colonial até o Império, quando a “cor” das pessoas aparecia nos registros
de nascimento não se fazia, necessariamente, referência à
sua origem racial ou à maior ou menor intensidade de pigmentação de melanina na pele. Na verdade, a denomina137
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
ção de cor referia-se ao lugar social adquirido ou conquistado pela pessoa. Cativos eram denominados pretos ou
negros; homens e mulheres livres eram automaticamente
identificados como pardos, escuros ou morenos (MATTOS,
1988). Muita gente não gosta dos termos “preto” e “negro” por serem utilizados como insulto em situações de
relacionamento social conflituoso ou, então, como uma
forma de inferiorizar alguém (GUIMARÃES, 2002). O que
foi possível perceber nas pesquisas antes mencionadas foi
a ocorrência de processos já analisados em outros estudos
(PETRUCCELI, 1998; GUIMARÃES, 2002). Quanto mais
próximo o indivíduo se encontra do extremo branco mais
se percebe legitimado para utilizar insultos raciais contra
outros indivíduos de pele mais escura.
Ao contrário do que possa parecer, não são discriminados somente crianças e jovens negros e pobres. É
muito freqüente a opinião de que em nossa sociedade
haveria preconceito contra o pobre e não contra o negro.
Como este em geral é pobre, seria discriminado por seu
lugar social e não por sua cor ou raça, consenso firmado
no Brasil desde os anos 1940. Podem-se encontrar no pensamento social brasileiro diversas versões da teoria que
defende a idéia de ser o preconceito de classe mais forte
que o racial. Quem adotava essa opinião esperava que o
futuro desenvolvimento econômico do país atenuasse as
diferenças entre os grupos raciais e que o incipiente racismo aqui existente desaparecesse, posição que se constitui num dos pilares da ideologia da democracia racial.
Os defensores dessa tese consideram que pretos e pardos
estão em situação mais desfavorável devido à herança do
período da escravidão. Não teriam tido tempo, ainda, para
inserir-se, adequadamente, à sociedade de classes. No entanto, como afirmado anteriormente, os estudos mais recentes, de cunho estatístico, desmontam completamente
essa crença.
Retornando à análise das atitudes de professores
com relação a seus alunos negros, pode ser verificado que
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Educação e relações raciais em Mato Grosso
não há correlação entre posição socioeconômica da criança negra e maior proteção contra atitudes racistas. Isto é,
ser de classe média não a livra de ser discriminada por
seu professor ou por seus colegas. Pelo que foi possível
perceber, a conclusão anterior é validada independentemente do tipo de escola pública – mais equipada, menos
equipada – e da origem socioeconômica do alunado, cujas
famílias são igualmente atingidas, sendo freqüentemente
estereotipadas como anômicas, desestruturadas e outros
epítetos que poderíamos chamar de uma visão patológica,
por parte da escola, referente às famílias negras em geral.
Praticamente todos os estudos realizados no Núcleo de
Estudos e Pesquisas sobre Relações Raciais e Educação/
UFMT recolheram informações sobre as percepções negativas que os professores têm sobre esses grupos familiares. Vale ressaltar que a intenção não era buscar as opiniões dos professores sobre esse aspecto, mas eles, sem ser
interrogados direta ou indiretamente, manifestavam tais
apreciações.
Além de preconceitos firmemente arraigados e um
menor sentido de cuidado com os alunos não brancos,
chama a atenção a despreocupação com as conseqüências
que podem advir das interações negativas entre professores e alunos negros ou entre os colegas brancos e estes últimos. Parece-me que crianças e jovens negros, na escola,
freqüentemente estão em situação de desamparo quando
se encontram com situações de preconceito ou discriminação. Como afirmado anteriormente, na maior parte das
vezes, os professores não dão atenção às reclamações dos
ofendidos nem procuram intervir no sentido de mostrar
ao discriminador que sua atitude é moralmente condenável. Mas não parece ser regra a aplicação de algum tipo
de sanção àqueles alunos ou professores que manifestam
comportamentos racistas na escola.
Muitas vezes, as pessoas se perguntam se não é um
exagero falar de negros versus brancos. Na opinião delas,
nem todo branco é racista. Não se trata de individualizar,
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
mas de procurar entender que, ao vivermos em uma sociedade como a brasileira, terminamos por nos “impregnar”
de idéias e sentimentos negativos em relação aos grupos
minoritários. É por isso que, quando se fala em relações
raciais no Brasil, menciona-se o ideal, ou ideologia, do
“branqueamento”, que aqui contribuiu para a legitimação
do sentimento de branquitude que permeia as relações
sociais entre brancos e pretos e que nos faz pensar ser
positivo tudo o que se refere socialmente a um imaginário
branco, europeu, e como negativo tudo o que diz respeito
ao que imaginamos ser proveniente de negros ou indígenas (BENTO, 2002). Muitas vezes, é o próprio professor/
professora que “dá a pauta” do tratamento a ser dispensado às crianças de pele mais escura, que invariavelmente
acabam sendo ainda mais maltratadas pelos colegas nas
turmas em que os professores são particularmente hostis
com eles.
Vale assinalar que nem todos os professores têm
esse tipo de atitude. Alguns embora não sabendo lidar
muito bem com a situação de preconceito e racismo, ou
reconhecendo que lhes falta formação adequada para lidar com elas, procuram intervir da melhor maneira possível, tentando proteger o/a agredido/a.
É de se ressaltar o que temos encontrado em termos
das atitudes de crianças não negras em relação a seus
colegas negros. Crianças possuem menos freios; são mais
verdadeiras no que dizem. Isto é, dizem o que pensam,
ao contrário dos adultos, que já internalizaram os códigos
e as proibições sociais. No caso específico que estamos
discutindo, adultos já incorporaram a “etiqueta das relações raciais” existente na sociedade brasileira; crianças,
não. Por esse motivo, suas interações com os colegas negros, quase despojadas das coerções sociais, demonstram
que o racismo se reatualiza constantemente. É como se, a
cada dia, crescesse um grupo de pessoas que se arvoram,
que acreditam ter o direito de insultar e constranger outras
pessoas só porque têm a pele mais clara que a delas, como
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Educação e relações raciais em Mato Grosso
se a cor da pele se constituísse em um privilégio, no caso
das crianças brancas. Em diferentes pesquisas constatamos
atitudes hostis e desrespeitosas de parte de alunos brancos
para com os alunos negros (PINHO, 2004; SANTOS, 2005;
JESUS, 2005; GONÇALVES, 2006). Nesses estudos, foi possível perceber que são muito comuns interações agressivas e insultuosas contra crianças negras, em especial
as do sexo feminino. Se os insultos dirigidos aos meninos
referem-se sempre a adjetivos negativos à sua cor de pele,
as meninas são em função de características relativas à sua
aparência, o tipo de cabelo, o formato dos lábios ou do nariz, etc. Mesmo quando existem relações cordiais, qualquer
ocasião de conflito é motivo para a criança de pele mais
clara utilizar ultrajes raciais contra o/a colega mais escuro/a.
Essas situações são tão dolorosas para as crianças negras
que ocorrem casos de abandono ou de troca de escola
com o fim de evitar o contato com os agressores.
Jesus (2005), que investigou alunos negros do Ensino Médio da cidade de Tapurah, encontrou as memórias
das discriminações raciais sofridas por seus depoentes. Os
depoimentos obtidos demonstram claramente que a injúria racial com freqüência dirigida a crianças negras cria
marcas indeléveis e, muitas vezes, compromete o futuro
escolar da vítima da discriminação. Não é casual que os
indicadores sociais apontem um fosso significativo entre a
realização escolar de brancos e negros.
Essas memórias parecem permanecer durante toda a
vida. Quando pesquisadas as trajetórias de alunos negros
de cursos de graduação da UFMT, verificou-se que muitos
deles lembravam-se de episódios de discriminação acontecidos ainda na escola primária. Os estigmas que lhes
foram atribuídos na infância ou na juventude só não os
fizeram desistir dos estudos porque contaram com apoios
diversos, de familiares e amigos, que serviram como um
contraestigma a contrabalançar o dano causado por repetidas exposições a situações de preconceito (AMORIM,
2004; SANTOS, 2004; CASTRO, 2005).
141
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Nesse ponto chegamos na última parte desta discussão. Os estudos realizados no Nepre e aqui apresentados
brevemente indicam alguns problemas, a permanência de
um ideário racista, produzido ainda no século XIX, definidor das relações entre brancos e negros na sociedade
brasileira. Aparentemente, esse ideário atinge fortemente as escolas. Pelo fato de não ser discutida, no espaço
escolar, a existência do preconceito e da discriminação,
esses problemas continuam existindo e se reproduzindo
constantemente, através da quase autorização para que
crianças e jovens brancos ou quase brancos maltratem de
diferentes formas seus colegas negros. O aluno, em especial o branco, ao qual não foram passadas noções de
limites nem foi ensinado o dever de respeitar o outro, vive
na escola com num caldo de cultura a propiciar a introjeção desse ideário racista. Além disso, a permanência do
professor no estado de ignorância quanto à sua disposição cotidiana, por mais inconsciente que seja, de agir de
forma discriminatória contra alunos negros, seguramente
não contribui para a mudança de atitudes, concorrendo,
sim, para o fracasso escolar desse alunado. Esses dados
impõem-nos a necessidade de intervir de alguma maneira.
Sabemos da importância de se trazer essa discussão para
a formação, especialmente a inicial, de professores, a qual
poderia, pelo menos, auxiliá-los a conhecer o papel da
população negra, africanos e seus descendentes, na construção da sociedade brasileira. É isso que determina a Lei
n. 10.639/03 ao acrescentar ao Art. 26 da LDBEN a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira
no currículo de Ensino Fundamental e Médio. É importante realizar esse resgate histórico, é importante também
colocar em discussão as possibilidades de uma educação
anti-racista. Possivelmente essa formação auxilie o futuro
professor a perceber seu próprio preconceito e a evitar
situações de discriminação racial de que ele seja partícipe
ou que ocorram nas interações entre os alunos.
142
Educação e relações raciais em Mato Grosso
Não obstante, minha prática, tanto na formação de
professores quanto na pesquisa, indica não ser suficiente
ministrar conteúdos, por mais que sua apresentação ocorra envolta em inovações ou artifícios pedagógicos. Uma
educação anti-racista precisa, de alguma maneira, trabalhar os sentimentos. O racismo não é um ideário que se
sustente racionalmente. Ele se alimenta dos sentimentos,
muitas vezes inconscientes. Racismo e preconceito racial
são modos negativos de ver pessoas ou grupos raciais que
possuem características físicas diferentes daquelas dos que
se consideram maioria ou que se consideram “melhores”,
“superiores”.
Característico da sociedade brasileira é o preconceito de “marca”, cunhado por Oracy Nogueira (1998),
para quem quanto mais o fenótipo, a aparência for negra,
maior será o preconceito, o que se dá contrariamente ao
que ocorre nos Estados Unidos, onde o preconceito é de
origem: se o indivíduo tem um ancestral negro conhecido,
por mais remota que seja essa ancestralidade, ele é considerado negro. Ficou bem evidente, em todas as pesquisas
aqui expostas, que quanto mais escura era a cor da pele
do aluno, mais ele estava exposto a situações de discriminação velada ou explícita.
O racismo e o preconceito nem sempre têm explicações racionais. São sentimentos construídos ao longo da
vida, através do convívio com outras pessoas racistas ou
preconceituosas e que transmitem essas idéias pejorativas
sem nenhuma comprovação, apenas insistindo nos julgamentos negativos que eles têm sobre os outros. É o caso
dos professores que reproduzem pressupostos racistas
construídos no século XIX, repetindo esses preconceitos
automaticamente, sem se darem conta de que não têm nenhuma comprovação empírica dos juízos que emitem.
Em síntese, faz-se necessário colocar em discussão
as relações raciais na escola, o que não é, nem será, um
trabalho fácil. Pelo fato de nós, professores brasileiros, historicamente termos uma formação, um ethos universalista,
143
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
que nos faz acreditar que tratamos a todos os alunos da
mesma maneira, temos dificuldade de aceitar discussões
que promovam a diferença. Quando muito, aceitamos que
existem diferenças de classe social. A meu ver, o trabalho
de desnaturalização do preconceito exige um investimento maciço na formação dos professores e um, ainda distante, controle social sobre as práticas escolares.
144
Educação e relações raciais em Mato Grosso
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147
Educação das Relações
Étnico-raciais na terra
das araucárias
Paulo Vinicius Baptista da Silva
Este artigo discute o processo de formação de
professores(as) sobre História e Cultura Afro-Brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-raciais desenvolvido pelo Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
Universidade Federal do Paraná (Neab-UFPR) desde
2004. Num primeiro momento, estão dispostos alguns
construtos teórico-conceituais que orientam o processo de formação continuada desenvolvido em Curitiba.
A seguir está a discussão sobre desigualdades raciais
no Brasil, no plano estrutural e no plano simbólico,
que orientam as proposições desenvolvidas na formação de professores, cotejando com resultados de
investigações realizadas por pesquisadores do NeabUFPR. Depreende-se dessa discussão a análise das
políticas de promoção de igualdade racial, em especial as políticas afirmativas e seu impacto sobre o debate público brasileiro. Conclui-se com uma análise
crítica que aponta as faltas e quebras do processo
levado a termo.
149
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
1 Um movimento inspirado na Negritude
e no Pan-africanismo
O processo de formação sobre História e Cultura Afrobrasileiras e sobre Educação das Relações Étnico-raciais tem
alguns marcos que estão sempre em pauta, a aprovação
da Lei 10.639 de 2003 e o Parecer 03 de 2004 do Conselho Nacional de Educação. No entanto, a aprovação de tais
propostas em instituições importantes do Brasil contemporâneo tem raízes bastante anteriores. Poderia ser realizada
uma genealogia das proposições que atravessasse as formulações dos movimentos negros(as) ao longo do século XX.
Dados os objetivos deste texto, discutirei o processo a partir
da abertura política e fim da ditadura militar.
O final dos anos 1970, com o início da abertura política,
foi momento de reorganização dos movimentos negros(as)
no país. Na agenda destes movimentos a educação encontrava um papel de destaque e figurava entre as proposições
a necessidade de desvelar elementos da História e da Cultura Africana e Afro-Brasileira. Nós, negros(as) brasileiros(as),
percebíamos a ausência de registros da nossa História social, o processo de leitura etnocêntrica e eurocêntrica da
História sistematicamente difundido pela escola brasileira,
a desvalorização constante de formas de manifestação da
nossa alteridade, de aspectos diversos de nossas culturas
e raízes. Passou a ser cada vez mais contundente a crítica
aos processos de ensino que silenciam sobre os aspectos
civilizatórios da África, sobre as diferentes formas de contribuição de nossas nações negras (e indígenas) ancestrais
para a formação do Brasil, sobre a ausência de registros das
práticas de resistência nossas e de nossos antepassados. As
reivindicações dos movimentos negros(as) para a educação
centravam-se sobre necessidade de mudanças curriculares
e ensino de História e cultura afro-brasileiras
Entre os intelectuais e ativistas negros de então destaco a liderança exercida por Abdias do Nascimento. No
exílio assumira cadeira de Estudos Africanos na Universi150
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
dade do Estado de Nova York, em Buffalo, determinando
que mais que travar conhecimento com os Estudos Afroamericanos, foi sujeito deste processo. De volta ao Brasil,
assumiu mandato de Deputado Federal e apresentou o
Projeto de Lei n. 1.332, de 1983, que dispunha sobre “ação
compensatória visando à implementação do princípio da isonomia social do negro”. Vejamos o texto do artigo que propõe o ensino de História e Cultura Afro-brasileira na íntegra:
Art. 8º. O Ministério da Educação e Cultura, bem
como as Secretarias Estaduais e Municipais de Educação, conjuntamente com representantes das entidades
negras e com intelectuais negros comprovadamente
engajados na matéria, estudarão e implementarão modificações nos currículos escolares e acadêmicos, em
todos os níveis (primário, secundário, superior e de
pós-graduação), no sentido de:
I – Incorporar ao conteúdo dos cursos de História
brasileira o ensino das contribuições positivas dos
africanos e seus descendentes à civilização brasileira,
sua resistência contra a escravidão, sua organização
e ação (a nível social, econômica e política) através
dos quilombos, sua luta contra o racismo no período
pós-abolição;
II – Incorporar ao conteúdo dos cursos sobre História
Geral e ensino das contribuições positivas das civilizações africanas, particularmente seus avanços tecnológicos e culturais antes da invasão européia do continente africano;
III – Incorporar ao conteúdo dos cursos optativos de
estudos religiosos o ensino dos conceitos espirituais,
filosóficos e epistemológicos das religiões de origem
africana (candomblé, umbanda, macumba, xangô,
tambor de minas, batuque, etc.);
IV – Eliminar de todos os currículos referências ao
africano como “um povo apto para a escravidão”,
“submisso” e outras qualificações pejorativas;
151
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
V – Eliminar a utilização de cartilhas ou livros escolares que apresentem o negro de forma preconceituosa
ou estereotipada;
VI – Incorporar ao material de ensino primário e secundário a apresentação gráfica da família negra de
maneira que a criança negra venha a se ver, a si mesma e a sua família, retratadas de maneira igualmente
positiva àquela que se vê retratada a criança branca;
VII - Agregar ao ensino das línguas estrangeiras européias, em todos os níveis em que são ensinadas, o
ensino de línguas africanas (yorubá ou kiswahili) em
regime opcional;
VIII – Incentivar e apoiar a criação de Departamentos,
Centros ou Institutos de Estudos e/ou Pesquisas Africanos e Afro-brasileiros, como parte integral e normal da
estrutura universitária, particularmente nas universidades
federais e estaduais (NASCIMENTO, 1983, p. 5163).
O texto do projeto de lei revela aspectos bastante interessantes. Primeiro, pode-se constatar que as propostas
levadas a termo atualmente, tanto a formação de professores para ensino de história e cultura afro-brasileiras, como
a estruturação de Núcleos de Estudos Afro-brasileiros, são
a concretização de uma agenda antiga. Nas comemorações do centenário da abolição em 1988; na Assembléia
Nacional Constituinte do mesmo ano, Na Marcha Zumbi
dos Palmares pela vida e contra todas as formas de discriminação em 1995; nas discussões sobre a Lei de Diretrizes
e Bases da Educação nos anos que antecederam sua aprovação em 1996; nos eventos preparatórios à Conferência
de Durban de 2001 e nas proposições advindas da própria
conferência, as proposições na mesma direção se renovaram. Vinte anos transcorreram – de 1983 a 2003 – até que
as proposições do Projeto de Lei n. 1.332/83 fossem corporificadas de modo mais enfático. Desse modo, somente
com a Lei n. 10.639/03 (que modificou a LDB) e sua posterior regulamentação com o parecer 03 de 2004 do CNE,
152
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
iniciou-se processo de inserção sistemática de conteúdos
e de formação inicial e continuada de professores sobre
História e Cultura Afro-brasileira e sobre Educação das Relações Étnico-Raciais.
Na proposta original do então deputado Abdias do
Nascimento, pode-se inferir a relação com os propósitos dos movimentos da Negritude e do Pan-africanismo.
Como movimento concomitantemente literário e social, na
Negritude se propôs um retorno às raízes. A idéia foi a de
que a imersão nas tradições e na estética, nas produções
culturais, na literatura em geral e na poesia em particular,
nas representações plásticas e na dramaturgia, operasse
no sentido de valorizar a tradição afro. As proposições
do NEAB-UFPR são herdeiras desta tradição de busca de
expressão da ancestralidade afro como manifestação da
alteridade, da liberdade e da diversidade. No caso específico da formação de professores para a Educação das
Relações Étnico-raciais, os objetivos transcendem aos de
informar sobre o movimento literário, são muito mais uma
busca dos próprios ideais que inspiraram o movimento,
tanto da expressão estética quanto dos valores e da busca
de transformação social.
A negritude é uma subjetividade. Uma vivência. Um
elemento passional que se acha inserido nas categorias clássicas da sociedade brasileira e que as enriquece de substância humana. Humana, demasiadamente
humana é a cultura brasileira, por isso que, sem desintegrar-se, absorve as idiossincrasias espirituais, as mais
variadas. A negritude, com seu sortilégio, sempre esteve presente nesta cultura, exuberante de entusiasmo,
ingenuidade, paixão, sensualidade, mistério, embora
só hoje por efeito de uma pressão universal esteja
emergindo para a lúcida consciência de sua fisionomia. É um título de glória e de orgulho para o Brasil o
de ter-se constituído no berço da negritude (RAMOS,
1950, apud NASCIMENTO, 2003).
153
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
As idéias do Pan-africanismo, em grande medida,
elaboradas por negros(as) na ou da diáspora, objetiva, de
forma similar, estabelecer a África como referência fundamental para os(as) negros(as) do mundo, estejam eles
dentro ou fora do continente, positivando a imagem do
continente, das suas tradições, histórias e diferentes aspectos das culturas. Com isso, contrapõem-se a postulações
até então hegemônicas, e que ainda sobrevivem, da África
como o continente selvagem, primitivo, atávico. A unidade dos países africanos é pensada como estrutura que
mantenha a autonomia dos países por um lado e que por
outro permita a estes mesmos uma atuação conjunta seja
no âmbito das relações internacionais seja para a resolução de problemas comuns. O texto de justificativa relativo
ao art. 8º do Projeto de Lei n. 1.332/83 é revelador:
O conteúdo da educação recebida por aquelas crianças negras que têm oportunidade de estudar representa outro aspecto da desigualdade racial anticonstitucional na esfera da educação [...] a civilização e
história dos povos africanos, dos quais descendem as
crianças negras, estão ausentes do currículo escolar.
A criança negra aprende apenas que seus avós foram
escravos; as realizações tecnológicas e culturais africanas, sobretudo nos períodos anteriores à invasão e colonização européia da África, são omitidas. Também
se omite qualquer referência à história da heróica luta
dos afro-brasileiros contra a escravidão e o racismo,
tanto nos quilombos como através de outros meios de
resistência. Comumente, o negro é retratado de forma
pejorativa nos textos escolares, o que resulta na criança negra em efeitos psicológicos negativos amplamente documentados. O mesmo quadro tende a encorajar,
na criança branca, um sentimento de superioridade
em relação ao negro. O art. 8º deste projeto de lei
objetiva a correção desta anomalia e a implementação
do direito à isonomia assegurada pela Constituição
(NASCIMENTO, 1983).
154
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
A argumentação é explícita. Trata-se de estabelecer a
oportunidade ao alunado brasileiro de obter informações
e reconhecer elementos da complexidade do continente
de origem de metade (pelo menos) de nossa população;
de estabelecer “lugares de memória” (NORA apud KING,
1996, p. 77) sobre o passado afro; de possibilitar a identificação positiva dos(as) alunos(as) negros(as) brasileiros(as)1
com aspectos de seu passado; de possibilitar ao alunado
brasileiro, de todas as cores, reconhecer a diversidade e
complexidade do continente africano e as profundas contribuições das populações africana à humanidade.
Importante observar que a proposta de estudar as
contribuições afro se relaciona com a estruturação da identidade do negro brasileiro (MUNANGA, 1996; MUNANGA
e GOMES, 2005). A percepção é que idéias restritivas e
manipuladas sobre a história e as tradições africanas e
afro-brasileiras, sistematicamente difundidas pela escola,
pelos currículos e pelos livros didáticos (que operam tanto
por informações restritivas ou equivocadas quanto pela
omissão) atuam para criar nos alunos uma predisposição à
hierarquia racial. Possibilitar aos alunos, negros, brancos,
amarelos e indígenas, o conhecimento de História e Cultura Afro-brasileiras teria o objetivo de reconhecer os elementos civilizatórios das culturas africanas e africanas da
diáspora, possibilitando aos alunos em geral o reconhecimento do processo civilizatório dos povos africanos e aos
alunos negros em particular a construção de identidade
pautada em aspectos de positividade sobre seu grupo de
pertença e sobre si mesmo.
O movimento de apagar os “lugares de memória”
das matrizes afro foi bastante efetivo, de forma que a colonização cultural opera, em diferentes níveis, em todos
nós, manifestando-se em hipervalorização de tradições
européias e desvalorização de aspectos da cultura de maSerá utilizado, a partir deste ponto, o genérico masculino, como forma
de aliviar o texto.
1
155
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
triz africana. Possivelmente em função disso o trabalho de
formação de professores é uma “tarefa zumbílea”2, pois na
nossa formação escolar, educacional e cultural, as informações mais simplórias sobre nosso passado afro foram
sistematicamente negadas ou substituídas por informações
estereotipadas. Estamos, portanto, num movimento inicial
de descoberta da riqueza, da pluralidade, dos valores, do
desenvolvimento tecnológico, do alto desenvolvimento
social, de um sem-fim de aspectos civilizatórios de nossos
antepassados africanos e africanos da diáspora.
Para a compreeensão desse processo na educação
é caro o conceito de “alfabetismo da diáspora”, tal como
formulado por King (1996) com o sentido de conhecimento e resignificação da “nossa história”, da história do povo
negro na diáspora. O alfabetismo da diáspora consiste na
aprendizagem da leitura de signos culturais das heranças
africanas, para além das distorções, da parcialidade e das
ausências determinadas pela hegemonia cultural e por séculos de dominação.
O sentido de alfabetismo é de processo inicial e provisório. A luta contra a discriminação racial que percorreu
o século XX se deparou com diversos processos de racialização (APPIAH, 1997), entre os quais o estabelecimento de conceitos e formas de compreensão distorcidos e
restritivos sobre a tradição africana e afro-brasileira. As
proposições do racismo científico, para além de sua rejeição após a segunda guerra mundial, conformaram operadores importantes no campo simbólico. Por exemplo,
no imaginário, a Europa se impôs como modelo e centro
da civilização e civilidade e a África como sua negação,
o locus do primitivo, que passou de terra dos proscritos,
dos descendentes de Cam, compreendida como sinônimo
da ausência de civilização. Estas noções reducionistas,
parciais, sem contradições, ainda são marcadores sociais
Termo que emprestamos de Edna Roland, então coordenadora da
Área de Combate ao Racismo e Discriminação da Unesco no Brasil.
2
156
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
importantes no plano simbólico, como será analisado em
parte posterior do texto. Por exemplo, as nações, impérios
e civilizações de nossos antepassados africanos3 foram e
são denominadas “tribus”.
A busca de “alfabetização da diáspora”, de recuperação de “lugares de memória”, define boa parte das atividades de formação de professores que desenvolvemos no
Neab-UFPR. Passamos do levar a termo eventos de curta
duração para priorizar o desenvolvimento de cursos de
média duração. Os eventos servem principalmente para
mobilizar, para aguçar a curiosidade. Mas uma formação
em que o processo de alfabetização da diáspora se inicie precisa de carga horária mínima para dar início à formação. Os cursos de extensão ofertados pelo Neab-UFPR
para professores da rede estadual do Paraná (parceria com
APP-Sindicato dos Trabalhadores da Educação Pública do
Paraná) e da rede municipal de Curitiba (parceria com
Sindicato dos Servidores do Magistério Municipal de Curitiba - Sismmac), têm carga horária variando de 120 a 180
horas, que considero o mínimo para dar início à formação
de professores sobre os Estudos Afro-brasileiros.
Nos programas sempre constam disciplinas sobre
História da África e História dos Africanos da Diáspora.
Sobre a África, geralmente se trabalha a partir de noções
gerais sobre História da África Pré-Colonial, dando ênfase
a determinados períodos, a determinadas nações ou temáticas da África Subsaariana (exemplo em MARÇAL, 2007).
Os estudos sobre as trocas comerciais entre a África e o
Ocidente e em particular os processo relativos à mercantilização de escravos também são contemplamos (LIMA,
2007). No que se refere à História dos Povos Africanos
da Diáspora, trata-se tanto de aspectos gerais quanto de
questões específicas. Busca-se, naturalmente, a análise dos
povos da diáspora como sujeitos na História, tematizando
Também os americanos e estudar História Pré-colombiana das Américas é outro imperativo para uma visão mais elaborada da diversidade.
3
157
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
os diversos movimentos de resistência, por exemplo os
movimentos negros no decorrer do século XX (exemplo
em SOUZA, 2007). Num estado que nega a presença africana, na sua origem e na atualidade o contexto local sempre é trabalhado a partir de conteúdos específicos sobre
História do Negro no Paraná. Um exemplo significativo é
a análise de fontes históricas paranaenses:
Sofismas como o de que os escravos da Comarca de
Paranaguá e Curitiba representavam contingente tão
escasso que, aqueles que os tinham, colocavam-nos
para realizar trabalhos domésticos, povoam os livros
didáticos e as aulas de História. [...] Bem, seria desnecessário dizer que minha opinião é diferente da veiculada por alguns desses ilustres intelectuais ligados
à construção de um ideário paranista. Mas ter opinião
diferente não basta. Portanto, o texto que você irá ler
a seguir é uma tentativa de reunir alguns poucos documentos – já que o espaço é limitado – e propor formas de interrogá-los. Talvez, daí surja um novo entendimento da experiência negra na História do Paraná
e, de quebra, uma pequena coletânea de documentos
para o estudo da cultura afro-brasileira em sala de
aula (LIMA, 2007, p. 97-98)
Outro tema trabalhado nos cursos do Neab-UFPR
diz respeito à Sociologia dos grupos raciais no Brasil. Tais
conteúdos têm parte de História, relativa ao pensamento
de intelectuais sobre as relações raciais no Brasil, do século XIX aos nossos dias (comportando abordagens tanto
em divisões cronológicas quanto em aspectos específicos.)
Como exemplo, ver Costa (2007), parte relativa a desigualdades raciais no plano estrutural (estudos sobre indicadores de desigualdades entre brancos e negros no Brasil) e
no plano simbólico (estudos sobre os discursos racistas
e racialistas, as compreensões dos diferentes intelectuais,
ideários e imaginários), tópicos que serão tratados em específico logo a seguir.
158
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
Relativo às culturas africana e africana da diáspora,
os cursos do Neab também têm apresentado abordagem
específica, com conteúdos sobre Artes Africanas e Afrobrasileiras, em especial aspectos da estética e das expressões plásticas; Estética e Corporalidade Negra no Brasil;
Aspectos gerais de Literatura Africana, Literatura Afro-brasileira, Literatura Afro-americana, Movimento da Negritude
e suas Repercussões no Brasil (MARTINS, 2007); Literatura
Oral e Alteridade Afro-brasileira (SILVA, 2008). Relativo à
religiosidade afro-brasileira e à presença do negro no catolicismo (em particular Irmandades e Festas de Santos)
são trabalhados tanto conteúdos relativos a uma antropologia de tais manifestações quanto às suas expressões
estéticas e plásticas.
Além dos conteúdos dos cursos de formação, o Neab-UFPR tem promovido eventos diversificados sobre aspectos específicos da cultura afro-brasileira, por exemplo
oficina de construção de instrumentos de congada; oficinas de Maracatu Baque Virado (música e dança); oficinas
de estética e tranças afro; oficinas de contação de histórias
africanas e afro-brasileiras; projeção e discussão de filmes
afro-americanos. Tais eventos têm duplo intuito, de informar sobre aspectos específicos de cultura afro-brasileira
e de continuar o processo de mobilização de professores
e alunos das licenciaturas para o estudo e trabalho com
africanidades.
A formação de professores promovida pelo NeabUFPR trabalha com História e Cultura Afro-brasileiras e
com Educação das Relações Étnico-raciais, como propõe
o Parecer n. 03/2004 do Conselho Nacional de Educação
(que regulou a Lei n. 10.639/03). Farei uma discussão específica sobre isso (para análise específica sobre as proposições da lei e do parecer referidos ver ROCHA, 2007).
159
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
2 Educação das relações étnico-raciais
No Parecer n. 03/04, de forma mais explícita que
no texto da lei, estão expressos que o ensino de História e Cultura Afro-brasileiras deverá se realizar, nos diversos níveis (educação infantil, fundamental, médio e
superior) e modalidades (regular, educação de jovens e
adultos e educação especial) de ensino; que as diversas
disciplinas devem inserir em seus conteúdos elementos
de história e cultura afro-brasileira; que o ensino de
História e Cultura Afro-brasileiras abrange o ensino de
relações raciais no Brasil,
de conceitos e de suas bases teóricas, tais como racismo, discriminações, intolerância, preconceito, estereótipo, raça, etnia, cultura, classe social, diversidade,
diferença, multiculturalismo; de práticas pedagógicas,
de materiais e de textos didáticos, na perspectiva da reeducação das relações étnico-raciais (BRASIL, 2004).
No plano teórico-conceitual adota-se o conceito de
raça como construção social e conceito analítico fundamental para a compreensão de desigualdades sociais – estruturais e simbólicas – observadas na sociedade brasileira
(SILVA, 2008). O uso do conceito de raça ajuda a atribuir
realidade social à discriminação e, conseqüentemente, a
lutar contra a discriminação. No Brasil, as relações raciais
estão fundadas em um peculiar conceito de raça e forma
de racismo, o “racismo à brasileira” (GUIMARÃES, 2002),
cujas especificidades são significativas para compreender as relações entre os grupos de cor e as desigualdades
associadas. Particularidades como a relação entre raça e
classe social na hierarquização das pessoas, as idéias sobre o “embranquecimento”, o “mito da democracia racial”,
construídas na história das relações raciais brasileiras,
mantêm-se atuantes. O racismo “à brasileira” se constrói
e reconstrói mantendo desvantagens para a população
160
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
negra no acesso a bens materiais e simbólicos (PAIXÃO,
2006). Práticas cotidianas de discriminação constitutivas
da sociedade brasileira cumprem o papel de reinstituir a
subalternidade da população negra brasileira. A educação é partícipe importante nesse processo. Os resultados
de pesquisas estão dispostos em dois blocos, o primeiro
sobre desigualdades no plano estrutural, com síntese de
alguns estudos da área após sobre desigualdades no plano
simbólico, com ênfase nos estudos do Neab-UFPR.
Desigualdades educacionais
no plano estrutural
As pesquisas sobre desigualdades raciais que analisaram dados macrossociais - perspectiva que se estende
desde Florestan Fernandes até a contemporaneidade, com
os estudos do Instituto de Pesquisa Econômica Avançada
(Ipea). A melhoria do sistema de coleta e sistematização
de dados pelo IBGE possibilitou avanços na análise das
desigualdades estruturais. Os próprios indicadores das
pesquisas censitárias e da Pesquisa Nacional por Amostra
de Domicílios/Pnad apontam as profundas desigualdades
raciais no Brasil.
Os estudos sobre as desvantagens da população negra apontam que as diferenças do passado não são suficientes para explicar as desigualdades atuais. As diferenças
de oportunidades de ascensão social e o racismo dirigido
aos negros são operantes para manter (e, em casos específicos, acentuar) as desigualdades, num processo de ciclos
de desvantagens cumulativas dos negros (SILVA, 2000).
Diversos indicadores sociais brasileiros revelam um país
com alto índice de desigualdade entre brancos e negros
(que perpassam as classes sociais). O racismo histórico
e contemporâneo constitutivo da sociedade brasileira fica
evidente quando se analisam diversos indicadores sociais,
ou quando se calcula o Índice de Desenvolvimento
161
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Humano (IDH) em separado para a população negra e
para a população branca: o de brancos equivale a 0,791
(41ª posição) e o de negros a 0,671 (108ª posição) (tabulações e análise realizadas por PAIXÃO, 2006). Como
exemplos selecionamos alguns indicadores de renda, saneamento e educação (Tabela 2).
No que se refere à educação, os resultados das pesquisas apontam grande desvantagem da população negra
em relação à branca. Ocorreu um aumento gradativo de
anos de estudo na população brasileira, mas as diferenças
entre brancos e negros se mantiveram. O mesmo ocorreu com as taxas de analfabetismo, que diminuíram no
total e se mantiveram as diferenças. As acentuadas desigualdades educacionais foram analisadas por estudos diversos (HASENBALG, 1987; HASENBALG e SILVA, 1990;
ROSEMBERG, 1998; JACCOUD e BEGHIN, 2002; PAIXÃO,
2006). Em todos os níveis de ensino as desigualdades são
significativas, e aumentam exponencialmente nos níveis
de ensino mais elevados (HASENBALG, 1988, p. 136). A
comparação do desempenho escolar de crianças negras
e brancas, com mesmo nível de renda familiar e de participação no mercado de trabalho, aponta o atraso escolar
significativamente maior entre os negros (ROSEMBERG,
1998), o que leva à conclusão de que o sistema de ensino
discrimina a população negra.
É discurso comum a atribuição das desigualdades
raciais às condições de origem. Por exemplo, as diferenças de escolaridade atual seriam reflexo da baixa
escolarização dos negros quando da abolição da escravatura, que se reproduziram de geração em geração até
nossos dias. Essas explicações são muito parciais. As
desigualdades entre negros e brancos se devem, principalmente, a diferenças de oportunidades de ascensão
social após a abolição e ao racismo dirigido aos negros
(HASENBALG, 1988; SILVA, 1988; JACCOUD e BEGHIN,
2002; PAIXÃO, 2006). A “herança da pobreza” é condição necessária, mas não suficiente, para explicar a po162
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
breza atual das famílias negras. A explicação ancorada
na análise de dados dos censos por Nelson do Valle
e Silva (1988; 2000) é de que as desigualdades raciais
brasileiras são produzidas em ciclos de desvantagens
cumulativas, de funcionamento intergeracional. A mobilidade social e a aquisição de renda são dois elos desta corrente, que se completa com outras características
socialmente relevantes, em primeiro plano educação, e
outras tais como saúde e moradia. São diversos fatores
pelos quais as desvantagens no ciclo vital dos indivíduos negros se acumulam (SILVA, 2000).
As explicações sobre as desigualdades educacionais trabalham com uma ampla gama de fatores. Um
primeiro fator explicativo é a diferença entre as escolas freqüentadas por negros e brancos, que Hasenbalg
(1987) nomeou como “diferença no recrutamento”. As
escolas de locais onde a população apresentava rendimentos mais baixos eram as que recebiam menor aporte
de verbas. O custo-aluno variava de US$ 28,5 no Nordeste rural a US$ 197,2 no Sudeste urbano (ROSEMBERG,
1998, dados do Ministério da Educação de 1990), o que
determinava que as escolas fossem não escolas para carentes, mas as próprias “escolas carentes”. Os dados demográficos indicaram que os negros do estado de São
Paulo freqüentavam, preferencialmente, a rede pública
de ensino, cuja qualidade tende a ser inferior à da escola
privada. Quando freqüentavam a rede privada, os negros ocupavam principalmente os cursos noturnos, que
também apresentam tendência à qualidade inferior. Além
disso, as escolas de 1º grau que freqüentavam tinham
menor número de horas diárias de aula, fator que se sobrepunha a outras carências, como tamanho da escola e
número de turnos. O fato de os negros estarem em maior
proporção nas “escolas carentes” explicaria as desigualdades de aproveitamento dos grupos raciais. Escolas que
atendiam alunos de classe média apresentaram, conforme dados de Dias (apud HASENBALG, 1987), índice de
163
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
sucesso entre 80 e 90%, e as que atendiam alunos pobres apresentaram um fracasso entre 60 e 70%. Alunos de
classe média estudando em escolas pobres tiveram pior
rendimento, e alunos pobres estudando em escolas de
classe média tiveram melhor rendimento. As escolas de
classe média foram designadas como lugares de “otimismo educacional”, que influencia os resultados positivos;
as escolas para pobres, ao contrário, foram designadas
locais da “ideologia da impotência” (HASENBALG, 1987;
ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003, p. 238). Os dois últimos autores descrevem o fenômeno com o conceito de
profecia auto-realizadora. Os alunos negros apresentam
a tendência de freqüentar escolas onde reina a “ideologia
da impotência”. Assim, a seletividade é iniciada pelo recrutamento do alunado negro para essas escolas.
Outra pista para a discriminação imputada aos alunos negros é a segregação espacial (ROSEMBERG, 1998;
TELLES, 2003). É plausível a hipótese de que as famílias
negras de melhor nível socioeconômico tendem a ocupar
espaços destinados a camadas mais baixas da população,
para diminuir as possibilidades de serem discriminadas,
embora faltem dados mais concludentes sobre a distribuição espacial e a utilização dos equipamentos escolares
(ROSEMBERG, 1998).
Correlatas a estas, estão as estratégias utilizadas por
famílias de negros para a socialização de seus filhos. Membros da classe média negra, por vezes, retardam as experiências de enfrentamento de discriminação racial, protegendo as crianças antes de sua entrada na escola. Esta
passa a ser o locus das primeiras situações de conflitos raciais, e podem criar nestas crianças reações ambíguas em
relação à escola, que é local de discriminação e ao mesmo
tempo possibilidade de ascensão social (BARBOSA, apud
ROSEMBERG, 1998).
O preconceito educacional dentro das escolas foi
explicação para as desigualdades, fornecida por estudos diversos, tanto os anteriormente relatados, que ana164
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
lisaram macrodados, quanto os que analisaram questões
no interior da escola. As relações raciais nas escolas
continuam pautadas, por vezes de forma aberta, pela
imputação aos negros de impossibilidades intelectuais, por hostilidades, por desqualificação da identidade racial (GONÇALVES, 1987; FIGUEIRA, 1990; PINTO,
1993). O uso de ofensas raciais entre os pares foi, em
um contexto de educação infantil, freqüente (CAVALLEIRO, 1999). Em escolas determinadas, professores apresentaram uma visão predominantemente estereotipada
a respeito dos alunos, dificuldade em lidar com a heterogeneidade de raça e de classe e reforço da crença de
que os alunos pobres e negros não são educáveis (HASENBALG, 1987). Os brancos em geral não reconhecem
como iguais (portanto discriminam) negros que ascenderam racialmente, e o mesmo pode ocorrer na escola (ROSEMBERG, 1998), com a população negra sendo
nivelada pelo critério racial. A pertença racial nivelaria
as possibilidades de acesso, permanência e sucesso nas
redes de ensino.
Por vezes as discriminações podem se manifestar
de formas mais indiretas ou sutis. Um estudo em escola
de educação infantil revelou que professores mantinham
maior proximidade física com alunos brancos, mais elogiados que as crianças negras, e que ignoravam atos discriminatórios entre os alunos (CAVALLEIRO, 1999).
Outra forma de manifestação não direta de discriminação é a centralidade dos currículos em perspectiva eurocêntrica (simbólica), que valoriza os aspectos de origem
e influência da Europa, tomada como locus da civilização.
Paralelamente, os legados de outras origens são desconsiderados e/ou desvalorizados. Tais explicações que apontam para a efetividade do plano simbólico para reproduzir,
sustentar e criar desigualdades raciais serão examinadas a
seguir. Antes comento a articulação de tais conteúdos com
a proposta de formação para a educação das Relações
Étnico-raciais do Neab-UFPR.
165
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Observei anteriormente a ampliação de horizonte
realizada pelo Parecer n. 03/04 do CNE para a discussão
sobre racismo no Brasil. O conhecimento sobre as desigualdades raciais no plano estrutural é importante como
contradiscurso ao ideário do mito da democracia racial
que, embora pouco aceito na academia atualmente e menos reproduzido nos discursos públicos, continua atuante
na realidade brasileira e certamente foi muito importante
pelo menos na formação da maior parte dos professores. Ou seja, a desconstrução do mito da democracia racial é processo que está em operação. É importante que
os professores tenham conhecimento sobre as pesquisas
brasileiras a respeito das desigualdades raciais, tanto para
modificarem suas concepções como para operarem a desconstrução do mito da democracia racial e fornecerem
subsídios a seus alunos para a análise crítica das desigualdades do país. Em função disso, as formações promovidas
pelo Neab-UFPR tratam do tema da desigualdades no plano estrutural com conteúdos específicos, além de termos
também promovido evento e curso de curta duração específico sobre a temática.
Desigualdades raciais no plano simbólico
As explicações sobre as desigualdades de desempenho de alunos negros e brancos encontram-se na articulação dos estudos sobre desigualdade no plano estrutural e
no plano simbólico. Os movimentos negros e pesquisadores negros mantêm como uma de suas reivindicações no
campo da educação o ensino de História e Cultura Afrobrasileiras como forma de adequar o tratamento do patrimônio cultural negro nos currículos e de dar visibilidade
ao negro na sociedade brasileira “Em uma análise sobre as
manifestações da discriminação racial, na escola, é preciso
que se atente não só para o que se transmite, mas para o
que se impede de transmitir” (GONÇALVES, 1988, p. 61).
166
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
Uma questão importante, portanto, para a compreensão
do racismo na escola brasileira é o silêncio (GONÇALVES,
1987). Tanto sobre a particularidade cultural da população
negra, quanto sobre os processos de discriminação, o silêncio atua como mecanismo que permite ocultar as desigualdades. No Paraná e em Curitiba, estado e cidade que
construíram um ideário de mais europeus que o restante
do Brasil e negam de forma mais veemente a presença e
a importância da população negra (que hoje corresponde
a 25% da população segundo dados da Pnad 2006), tal
análise reveste-se de ainda maior relevância.
A invibilização do negro, a difusão de um imaginário negativo em relação ao negro e dos significados positivos em relação aos brancos é estratégia de discurso
racista observada como forma de discriminação no interior
das escolas, via livros didáticos e literatura infanto-juvenil
(PINTO, 1993; ROSEMBERG, 1998; TELLES, 2003; SILVA,
2006, 2008), atuante também em diversos espaços sociais,
notadamente nos meios midiáticos.
No campo teórico conceitual, considero que o discurso é atuante para a produção e reprodução de desigualdades raciais. As pesquisas brasileiras estiveram atentas à
desigualdade racial no plano simbólico desde a década
de 1950. Os estudos de Moreira Leite (apud ROSEMBERG,
BAZILLI e SILVA, 2003) e de Bazanela (apud ROSEMBERG,
BAZILLI e SILVA, 2003), sobre relações raciais em livros
didáticos, apontaram que a discriminação raramente se
apresentava de forma explícita. A hierarquia entre brancos
e negros se apresentava em formas implícitas, particularmente pela correlação desses com posições de desvalorização social.
Do ponto de vista de produção de conhecimento,
no plano simbólico situa-se grande parte dos estudos do
Neab-UFPR, cujos resultados são uma fonte de alimentação direta de conteúdos ministrados em nossos cursos
de formação. No que se refere à História do pensamento
sobre relações raciais no Brasil, Hilton Costa e um grupo
167
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
de orientandos4 de iniciação científica desenvolvem análise sobre os Cadernos do IHGB do final do século XIX e
início do século XX, vinculados ao projeto de pesquisa
intitulado “Assim se fez um povo”. A análise das idéias
de intelectuais que formataram a compreensão sobre as
relações raciais na República pode funcionar como instrumento importante para a análise das relações raciais em
nosso país.
Faço parênteses para comentar como o Neab-UFPR
e diversos outros Neabs e programas correlatos (são vários os exemplos, Penesb da UFF; Ações Afirmativas da
UFMG; Neab da UDESC; NEAA da UEL, para ficar somente
em exemplos que tive oportunidade de acompanhar um
pouco mais de perto) desempenham um papel na universidade pública brasileira muito comentado mas pouco concretizado, a articulação ensino-pesquisa-extensão.
Como centros produtores de conhecimento, articulados
com movimentos sociais e preocupados em atuar na formação inicial e continuada de professores, os Neabs têm
realizado esta complexa tarefa de articular as três atividades fim da universidade (pública, gratuita e de qualidade,
para repetir as palavras de ordem) brasileira, justamente
por seu caráter de constituição de núcleo de pesquisa que
parte de intensa relação com movimentos sociais e com
formação de professores.
Outra pesquisa, orientada por Alexandro Dantas
Trindade, discute a formação do imaginário brasileiro e os
processos de racialização e de hierarquização entre brancos e negros no cinema. Os estudos sobre racialização
no cinema são parcos no Brasil e a pesquisa pretende
atuar para preencher parte desta lacuna. Os trabalhos de
Os projetos de pesquisa e de extensão do Neab-UFPR são realizados
com apoio do Programa de Apoio a Ações Afirmativas para Inclusão
Social em Atividades de Pesquisa e Extensão na UFPR, financiado pela
Fundação Araucária de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico do Paraná.
4
168
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
referência de Rodrigues (1988; 1997) analisam com os estereótipos sobre personagens negros na literatura são fonte para a construção de personagens negros no cinema
brasileiro.
Para além da Literatura Africana e Africana da Diáspora que pontuada na parte anterior, os conteúdos dos
cursos do Neab-UFPR e de eventos de curta duração voltam-se também para a análise sobre personagens negros
na literatura brasileira (DUARTE e FELIX, 2007), oferecendo aos professores instrumentos teórico-conceituais para
analisar de forma crítica a diferentes formas de hierarquização racial presentes na literatura brasileira e que alimentam diversos outros discursos midiáticos, em particular telenovelas, cinema e literatura infanto-juvenil.
Voltam-se para a literatura infanto-juvenil e para outros discursos dirigidos à infância, de livros didáticos e
de jornais, os trabalhos de iniciação científica, especialização e mestrado por mim orientados, alem das análises
que produzo (SILVA, 2007; 2008). Nos cursos de formação
de professores são trabalhados conteúdos tanto relativos
às pesquisas brasileiras sobre discurso racista em livros
didáticos, na literatura infanto-juvenil e em suplementos
infanto-juvenis quanto os resultados de estudos do NeabUFPR sobre tais meios discursivos.
Além disso, no Neab-UFPR oriento a organização de
um banco de dados sobre o negro em jornais paranaenses
de grande circulação. Trabalhamos com a leitura completa, durante os anos de 2006 e 2007, dos jornais Gazeta do
Povo, O Estado do Paraná e Tribuna do Paraná, separação
e arquivo físico, em categorias predeterminadas, de todos
os textos (notícias, reportagens, cartas, editorias, etc. – qualquer formato textual) com personagens negros e de todas
as peças publicitárias com personagens humanos. Os professores dos cursos de formação do Neab-UFPR são convidados a conhecer o banco de dados e têm acesso à análise
que produzimos (SILVA, OLIVEIRA e ROCHA, 2008; OLIVEIRA, 2007; 2008; ROCHA, 2007; 2008; RANGEL, 2008).
169
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Outro estudo é orientado por Marcos da Silva Silveira, que analisa discursos sobre políticas afirmativas em
diferentes meios, como discurso de revista científica,
discurso no parlamento, discurso no cotidiano. A análise revela como formas de hierarquização típicas do
mito da democracia racial são acionadas para fazer contraposição às políticas afirmativas voltadas à população
negra, em particular às denominadas cotas no ensino
superior.
A discussão sobre políticas afirmativas no ensino
superior é cara ao Neab-UFPR (SILVA, DUARTE e BERTULIO, 2006) e sua análise, tanto no plano de discursivo como promovido pelos estudos de Marcos Silveira,
como na sua implantação e impacto na promoção da
igualdade racial, merecem destaque. Primeiro porque a
discussão pública sobre o tema o tornou alvo de intensa
mobilização. Os professores trazem muitas indagações
a respeito das cotas para negros, no ensino superior e
na própria UFPR. A discussão sobre os fundamentos
das cotas e das políticas afirmativas mobiliza argumentos relativos às relações raciais no Brasil, portanto é
um processo de atendimento ao interesse dos cursistas
relacionado diretamente a conteúdos a serem ministrados nos cursos. Além disso, considero que o debate
público sobre as cotas para negros no ensino superior
apresentou resultado inesperado no plano simbólico.
Os argumentos do mito da democracia racial são cada
vez menos defensáveis e o reconhecimento dos processos de discriminação, implícita e explícita, imputada
ao negro brasileiro, são cada vez mais reconhecidos.
As categorias de classificação étnico-racial do IBGE e a
classificação bipolar são mais reconhecidas, tendo impacto significativo nos índices da população negra nos
resultados da Pnad de 2006, apontando que a estratégia
de embranquecimento na auto-identificação diminuiu
em prol da auto-identificação como negro(a) (categorias preto e pardo do IBGE).
170
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
3 Algumas considerações finais
Diversas vezes professores que freqüentaram nossos
cursos afirmaram que não imaginavam quanto eram ignorantes em relação a aspectos diversos das “africanidades”.
Ao trabalharmos com professores da rede pública estadual
(do Paraná) e municipal (de Curitiba) muitas vezes nos deparamos com suspiros e outras manifestações de perplexidade face a um conjunto complexo de informações sobre
os estudos afro-brasileiros. Em variadas ocasiões, em alto
e bom som, nossas aulas foram espaços para perguntas inconformadas sobre o porquê de a escola não difundir tais
informações. O processo de formação sobre estudos afrobrasileiros muitas vezes tem sido o pilar para novas pesquisas e para o processo de formação continuada de todos
os envolvidos com a temática, ou seja, somos partícipes
do alfabetismo da diáspora. Sobre nós mesmos, pesquisadores e “militantes” pela igualdade racial, diversas vezes o
processo de reconhecimento dos valores e tradições afro
teve impacto de ressignificação sobre o ser negro no Brasil
contemporâneo. Assim, a alfabetização da diáspora atinge,
de forma recíproca, a professores e alunos em processo
contínuo de formação.
No entanto, as lacunas são muitas e o processo de
formação é inicial. Os resultados que conquistamos, no
Neab-UFPR, na formação continuada, convivem com pouco avanço na formação inicial de professores. Poucas vezes conseguimos a aprovação de conteúdos específicos
sobre História e Cultura Afro-Brasileiras e sobre Educação das Relações Étnico-raciais nos cursos de formação de
professores. Mais freqüente é a aprovação de disciplinas
optativas, ou seja, continuaremos formando professores
que necessitarão de nossos cursos de formação continuada para obterem informação mínima.
Além disso, faltam especialistas para diversos conteúdos e são muitas as lacunas que existem em conteúdos que poderiam ser trabalhados e aprofundados, tanto
171
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
no que se refere à História da África quanto a aspectos
variados da Cultura Africana e Afro-brasileira. Em exemplos que certamente poderiam se multiplicar, os cursos
do Neab-UFPR mal tocam em informações sobre o Teatro Experimental do Negro, pouco vamos além das proposições de desenvolver estudos mais específicos sobre
Literatura Africana de línguas Portuguesa, Francesa e Inglesa, como também de autores da diáspora brasileira e
das Américas.
Enfim, essa conclusão é de que bastante temos feito, mas muito mais há que fazer para operarmos uma
mudança de concepção curricular que leve a formação
de professores a uma perspectiva de multiculturalismo
crítico.
172
Educação das relações étnico-raciais na terra das araucárias
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176
Para além do imaginário congelado
do território e da Identidade
brasileira: entre memórias
e tradições indígenas
Aloísio Jorge de Jesus Monteiro
De memórias e tradições
Em cada época, é preciso arrancar a tradição
ao conformismo, que quer apoderar-se dela. [...]
O dom de despertar no passado as centelhas da
esperança é privilégio exclusivo do historiador
convencido de que também os mortos não
estarão em segurança se o inimigo vencer.
Walter Benjamin
Walter Benjamin foi um autor que, sem fugir ao
estudo objetivo do passado, permanecia com seus pés
firmes e seguro na realidade presente, lutando para que
o futuro não se encolhesse, ou seja, caísse exterminado
naquele.
Com isso, colocando a questão da memória e da
alegoria como central no seu trabalho, Benjamin levanta, por um lado, o problema do círculo hermenêutico
que se coloca entre a necessidade de entender o passado para se compreender o presente e a necessidade
de desvelar o presente para se capturar o passado; e
por outro, diz que a escrita alegórica significa o seu
outro. Esta escrita, para ele, realiza o não-ser do que
177
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
ela representa, isto é, o texto do conteúdo latente passa
a ser traduzido pela tarefa do sonho, para o texto do
conteúdo manifesto.
Para Benjamin, no conceito de memória “existe um
encontro secreto, marcado entre as gerações precedentes
e a nossa”. Afirma ele que alguém na terra está a nos esperar e que há uma força, um sopro de ar que já foi respirado antes, um apelo, dos ecos de vozes que emudeceram.
E como um apelo não pode ser rejeitado impunemente,
cabendo a nós ouvirmos estes ecos, identificarmos o tom
e pegarmos daí a canção.
Na geografia o mapa é a representação estática da
totalidade territorial. Já a cartografia é uma forma, um
desenho, que se constrói e se incorpora aos movimentos e transformações dos diversos relevos e paisagens.
Neste sentido, podemos dizer que cartografar significa
romper com a forma estática, quebrar com o sistema
de espelhos, incorporar movimentos, considerar transformações.
Relevos e paisagens, sociais e afetivas, podem também ser cartografadas. Então, a cartografia nada mais seria que “o desmanchamento de certos mundos – sua perda de sentido – e a formação de outros: mundos que se
criam para expressar afetos contemporâneos, em relação
aos quais os universos vigentes tornaram-se obsoletos”.
(ROLNIK, 1989, p. 15).
É neste sentido, ou seja, na apropriação de novas
ferramentas de trabalho, mais plásticas e resistentes, associadas a uma racionalidade mais abrangente, mais plural,
onde os “nós dos sentidos e da intuição” possam ser desatados para participar da “festa das investigações”.
Como nos aponta Linhares1, historicamente, em política educacional, temos repetido ênfases no estudo das
instituições de governo, omitindo ou aligeirando críticas,
Anotações pessoais em encontro do Grupo de Pesquisa Aleph, em
setembro de 2005.
1
178
Para além do imaginário congelado do território...
de como esta perversa utilização do público vem apoiando representações do poder, em imagens do locus do poder, que o legitimam, mas que precisam ser estremecidas,
desnaturalizadas.
Benjamin sublinhou também a necessidade de mergulharmos nos desejos de emancipação ainda presos aos
sonhos das imagens dos velhos conflitos, presentes na história contada oficialmente. “Articular o passado historicamente não significa conhecê-lo tal como ele propriamente
foi. Significa apoderar-se de uma lembrança na forma em
que ela cintilou no instante do perigo” (BENJAMIN, 1985,
p. 224).
É essa história triunfalista e cumulativa, estabelecida
como um “continuum homogêneo”, que Benjamin entende que a política deve combater. Observa que esta é marcada pela ganância da adição típica da produção capitalista, reafirmando, assim, mediante análises e comparações,
a importância das vitórias daqueles que continuam com as
mãos nas rédeas do “mundo civilizado”.
Esta homogeneidade que empobrece a vida precisa
ser aberta, fazendo aparecer as experiências coletivas, os
desejos que fizeram pulsar o presente, densos de conflito
e vazios da história oficial. Sim, porque o presente é o
“presente”. Precisamos abri-lo, em vez de simplesmente
ficarmos a admirar o embrulho e perdermos o prazer de
desfrutar da surpresa. “Todos os que até hoje venceram
participam do cortejo triunfal, em que os dominadores de
hoje espezinham os corpos dos que estão prostrados no
chão. Os despojos são o que chamamos de bens culturais”
(BENJAMIN, 1985, p. 225).
Para Benjamin, é fundamental construir pontes entre a utopia (futuro), os sonhos que pareciam impossíveis
(passado) e a vida (presente). Este antagonismo convida um elemento de mediação, que este filósofo elabora
através do conceito de “zona de despertar”, que para ele
são exatamente os entrelugares da relação entre passado,
presente e futuro.
179
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Nesse encontro, os exercícios de imaginação poderiam ser configurados em uma reapropriação potente e
viva, sem a rigidez das representações científicas e com
vínculos de afeto que tornassem as experiências passadas
imersas de futuro.
A política em Benjamin supõe sujeitos que sonham
e despertam, ligados a uma experiência histórica que
transcende suas vidas individuais e que não cabe em uma
corrida utilitária sem passado e sem futuro, ou seja, sem
memórias e sem projeto.
Territórios e identidades:
debate introdutório à questão indígena
Segundo Walter Benjamin, em determinados momentos históricos a civilização assume características de
barbárie. Podemos perceber um processo acelerado de
exclusão que se alarga e de movimentos plurais que avançam. Uma pilha de produtos culturais sobre nossas cabeças, muitas vezes, nos impede de avançar.
É necessário situarmos o lugar dos movimentos indígenas como instrumentos para superação de uma política
neoconservadora, expressa por uma globalização excludente, não podendo subtrair-se dos impactos marcados
pela polifonia de diversos sujeitos históricos, que se apresentam, concretamente, na transformação do crescente cenário de violência do mundo atual.
Assim, a luta pela demarcação dos territórios indígenas, em conexão com a defesa das identidades de seu
patrimônio histórico cultural, assume características de
centralidade no debate atual.
Buscando radicalizar, nesse sentido, a apreensão de
possibilidades mais plurais, procuramos identificar os conceitos de território e identidade, bem como suas possíveis
confluências com a complexidade das novas configurações atuais.
180
Para além do imaginário congelado do território...
Territórios: tecendo os fios
Vivemos com uma noção de território herdada
da modernidade [...] Trata-se de uma forma
impura, um híbrido, uma noção que, por si
mesmo, carece de constante revisão histórica
[...] Seu entendimento é, pois, fundamental
para afastar o risco de alienação, o risco da
perda do sentido individual e coletivo,
o risco da renúncia ao futuro.
Milton Santos
Partimos de uma noção político-jurídica de território desde a fundação do Estado moderno, no século das
luzes, que se manteve associada ao conceito de EstadoNação, primando, como afirma Milton Santos, pela subordinação eficaz do território ao Estado. O território marcava
e definia o Estado-Nação, enquanto este o moldava como
Estado territorial e território “estatizado”.
Hoje, vivemos um processo de transformações profundas nas diversas esferas do relacionamento humano
mundial de uma modernidade tardia e presenciamos mudanças significativas no processo de transnacionalização
do território. “Mas, assim como antes tudo não era, digamos assim, território ‘estatizado’, hoje tudo não é estritamente ‘transnacionalizado’” (SANTOS, 1994, p. 15).
Portanto, até mesmo nos lugares onde os processos de
mundialização se apresentam de forma cada vez mais eficientes, segundo Santos, os territórios habitados, através
de outras tessituras a partir de novas redes de complexidade, acabam por impor ao processo de globalização
a sua revanche, isto é, um outro convite para um novo
embate.
A crise da modernidade que presenciamos como
atores, muitas vezes como protagonistas e em outras como
coadjuvantes, nos remete a um momento histórico em que
181
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
o velho não dá mais conta de explicar a realidade, ao
mesmo tempo em que o novo ainda não se estabeleceu.
Como pergunta Haesbaert (2002): em relação ao território,
ao espaço humano, o que seriam esse novo e esse velho?
Sabemos que os espaços não foram suprimidos e
que se a velocidade do tempo acaba por destituir as distâncias, os espaços, mas que isto se deve, fundamentalmente, ao aumento do desenvolvimento e avanços tecnológicos, que colocam a relação espaço-tempo em um
processo cada vez mais dinâmico e de virtualidade.
Até mesmo porque, se as relações são instantâneas
e se o tempo desaparece, como podemos ter o chamado
“tempo real”? De qual “real” falamos?
Nessa lógica, a maior parte das argumentações são
marcadas por uma tentativa de dissociação das noções de
espaço-tempo, sem se perceber, muitas vezes, que uma dá
sentido a outra.
Tempo e espaço são referências fundamentais em
nossas vidas. Ao tentarmos suprimir uma ou outra,
podemos suprimir nossa própria identidade. Ou fundando outra, completamente distinta. Mas, como não
acreditamos que a atual crise (de representação, sobretudo) seja uma crise de mudanças radicais a esse
ponto, nossa tese é de que, ao invés de estarem desaparecendo, a geografia e seus espaços – ou territórios – estão, na verdade, emergindo sob novas formas,
com novos significados (HAESBAERT, 2002, p. 31).
Algumas novas formas emergentes de territorialização, muitas vezes, acabam por aprofundar um processo
de desterritorialização, na tentativa de reterritorializar diversos grupos sociais em novas bases territoriais, muito
mais identificadas com um processo de pauperização e
exclusão profundas, ou seja, visam a recompor e deslocar
o espaço, a cultura, a economia e a organização social e
política de um grupo específico, buscando reconstituí-los
em novas bases territoriais, a fim de garantir a manutenção
182
Para além do imaginário congelado do território...
do poder instituído, no interior, inclusive, de suas bases
simbólicas.
Então, muito mais do que a aniquilação dos territórios, o que presenciamos é a tentativa de estruturação de
outras formas de significações e organizações territoriais
das sociedades tradicionais, em que, na realidade, não podemos nos deixar iludir e assim perdemos a perspectiva
de uma territorialização, ainda que permeada pela complexidade de processos múltiplos e diferenciados, deve
estar socialmente referenciada, articulada a seu plano econômico-político e marcada por suas dinâmicas simbólicoculturais.
No que diz respeito ao significado de territorialidade, pode-se defini-lo, segundo Haesbaert, em três grandes
linhas gerais.
A primeira entende o território como a base material
concreta. Isto é, enquanto meio de produção e reprodução da sociedade, criando assim um vínculo estreito de
dependência entre o sentido de territorialidade e a base
de produção material, ou seja, a terra.
A segunda se dá a partir da centralidade da concepção política. Identifica as diversas relações de poder
e controle, individuais e sociais, nos espaços materiais de
existência humana. Aqui o entendimento clássico da noção de território, se dá, a partir de sua vinculação ao conceito de Estado-Nação, mas não reduzido a este, de forma
estrita.
E por último a perspectiva da dimensão cultural no
significado de território, que identifica o espaço territorial
como aquele marcado por suas identidades.
Nesse campo, identificamos aqueles que defendem,
por um lado, uma reterritorialização mais radical, a partir
do tensionamento das identidades, como propõe Huntington, na tese do “choque de civilizações”; e, por outro, os
que identificam a necessidade de uma desterritorialização
a partir do conceito de culturas híbridas, representados
por Néstor García Canclini e Homi Bhabha, entre outros,
183
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
como também, no entendimento de circularidade de culturas, proposto por Carlo Ginzburg.
Concordamos com Haesbaert (2002): “É muito difícil
estabelecer fronteiras entre a concepção política e a concepção cultural de território”.
Entendendo que a produção simbólica é indissociavelmente perpassada pelas relações de poder, a cultura
aqui, necessariamente, precisa ser apreendida enquanto
cultura política. Ou seja, se por uma via identificamos a
dimensão político-ideológica do poder simbólico (cultura
política) no debate da territorialidade, por outra, não duvidamos da existência, na mesma dimensão (político-ideológica), das diversas possibilidades de políticas culturais
homogeneizadoras (muitas vezes enquanto políticas públicas), que visam à desconstrução e à desterritorialização
de conhecimentos tácitos e culturas tradicionais.
É nessa perspectiva de cultura política, ao mesmo tempo material e simbólica, que percebemos a dimensão
cultural dos processos de desterritorialização. Alguns
autores, com tendências culturalistas, afirmam que o
próprio caráter cultural dos territórios precede e/ou
se impõe sobre a natureza política. Não se trata, porém, de substituir uma visão “materialista” por uma visão “idealista” dos processos de desterritorialização
(HAESBAERT, 2002, p. 39).
Hoje, vendo a fragmentação territorial, associada a
um processo de globalização e ocidentalização cultural
planificada, em uma perspectiva instituída (oficial, hegemônica), identificamos, como conseqüência, o declínio
e conseqüente deslocamento do conceito de territórios
Estado-nacionais, para o fortalecimento do caráter político da noção de territórios identitários, a partir de um
processo de etnicização do significado de territorialidade,
em grande parte presente em diversos movimentos sociais
reivindicatórios e, principalmente, na lógica do poder instituído.
184
Para além do imaginário congelado do território...
Entretanto, em uma via instituinte, muito mais do
que um embate entre as dimensões culturais e políticas,
devemos aprofundar a relevância do tratamento das diversas possibilidades e significações de territorialização
e desterritorialização, baseados nos diferentes níveis de
interações complexas – levando em conta objetividades
e subjetividades, sonhos e condições sociais –, que compõem as diversas tentativas de reterritorialização das comunidades tradicionais da sociedade (como é o caso das
diversas tradições indígenas), no interior de uma perspectiva de garantia da autonomia, do respeito às diferenças e
da dignidade humana.
As buscas mais radicais sobre o que significa estar
entrando e saindo da modernidade são as dos que
assumem as tensões entre desterritorialização e reterritorialização. Com isso refiro-me a dois processos: a
perda da relação “natural” da cultura com os territórios geográficos e sociais e, ao mesmo tempo, certas
relocalizações territoriais relativas, parciais, das velhas
e novas produções simbólicas (GARCÍA CANCLINI,
1997, p. 43).
Entendemos, assim, que o debate sobre as diversas
possibilidades da noção de território está estritamente ligado ao significado de identidade.
Identidades: entre fixas e fluidas
Na introdução do debate sobre os sentidos do termo
“identidade”, uma perspectiva bastante esclarecedora é a da
divisão em dois campos centrais de discussão, defendida
por Kathryn Woodward, traduzida na tensão entre a perspectiva essencialista e a não essencialista de identidade.
Para Woodward, o essencialismo identitário pode se
constituir tanto pelo campo da história quanto pelo biológico, ou seja, “certos movimentos políticos podem buscar
185
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
alguma certeza na afirmação da identidade apelando seja
à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado seja a ‘verdades’
biológicas” (2000, p. 15).
Na esteira dessa lógica encontramos também movimentos étnicos, religiosos, nacionalistas, etc., que, com
freqüência, “reivindicam uma cultura ou uma história comum como fundamento de sua identidade” (2000, p. 15).
Já para realizarmos uma aproximação ao campo não
essencialista do conceito de identidade, ainda segundo a
autora, precisamos de uma análise da inserção da identidade naquilo que ela chama de “circuito da cultura”, como
também, concordando com Hall (1997), na “forma como
a identidade e a diferença se relacionam com a discussão
sobre representação” (WOODWARD, 2000, p. 16).
No interior desta perspectiva, Bauman (2005), apoiado em Siegfried Kracauer, define os possíveis significados
de identidade a partir da existência do que ele chama de
“comunidades de vida” e “comunidades de destino”.
A primeira se caracteriza pelas comunidades que
“vivem juntas em ligação absoluta”; e a segunda pelas comunidades cujas ligações são “fundadas unicamente por
idéias ou por uma variedade de princípios”.
Para Bauman, a necessidade da definição identidade
somente surge com a exposição do conceito de “comunidade de destino” (fundada por idéias), na transcendência
de uma possível visão essencialista de identidade, a partir
de uma compreensão fixada de comunidade de vida.
É porque existem tantas dessas idéias e princípios em
torno dos quais se desenvolvem essas “comunidades
de indivíduos que acreditam” que é preciso comparar, fazer escolhas já feitas em outras ocasiões, tentar
conciliar demandas contraditórias e freqüentemente
incompatíveis (BAUMAN, 2005, p. 17).
Por outro lado, ousaria afirmar a também existência
de uma terceira categoria presente na articulação das di186
Para além do imaginário congelado do território...
versas possibilidades de entrelaçamentos complexos entre
as comunidades de vida e de destino, definidas por Bauman, que denomino “comunidades de fronteiras”.
Estas comunidades se caracterizam pela possibilidade de apesar e além de “viverem juntas” (comunidades de
vida), possuírem, dinamicamente, em seu interior, “multicomunidades de destino”, ou seja, uma multiplicidade
de comunidades que se articulam em diferentes esferas e
“variedades de princípios e idéias”.
Assim, a comunidade de fronteira se situa naquilo
que Homi Bhabha chama de “entrelugares”, ou seja, nos
espaços de vida fronteiriços.
Ao pensarmos, nesse sentido, a noção de identidade, não podemos nos fixar em duas únicas dimensões
polarizadas a partir de um determinado espaço territorial,
isto é, nos atermos a uma perspectiva interna e/ou externa
de vidas comunitárias, e, a partir de então, realizarmos as
articulações entre aqueles que pertencem (internos) e os
estrangeiros (externos). Podemos ser, absolutamente estrangeiros, enquanto pertencendo.
O próprio Bauman concorda com esta perspectiva
quando afirma:
Em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa
volta está repartido em fragmentos mal coordenados,
enquanto as nossas exigências individuais estão fatiadas numa sucessão de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que alguém, são capazes de
evitar a passagem por mais de uma “comunidade de
idéias e princípios”, sejam genuínas ou supostas, bemintegradas ou efêmeras, de modo que a maioria tem
problemas a resolver... (2005, p. 18).
O caminho situado nas fronteiras, ao mesmo tempo
em que pantanoso, é o território da produção do outro, do
“novo”, daquilo que transcende as posições fixadas. Mesmo porque, para os residentes das fronteiras, em qualquer
direção que se olhe, se vê um estrangeiro.
187
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Penso que esta seja a emergência do momento da
humanidade atual. Acredito ser esta a marca mais profunda do significado de diferença, em que a ruptura entre os essencialismos possíveis (“estreitos e estritos” ou
“amplos e genéricos”), possa realmente se dar no “ser” e
“fazer” dos relacionamentos cotidianos, marcados, necessariamente, por diferentes pertencimentos; onde, definitivamente, “rótulos” (tais como em remédios e produtos
industrializados) e “marcas” (tais como em grifes e animais
de rebanhos) possam ser superados.
Avançamos em diversos campos, no que concerne
à questão da alteridade. Mas, como nos adverte Carlos
Skliar, não podemos deixar que o outro se transforme em
tema, pois quando esse outro, porque marcado pela diferença, se traduz em temática, tendemos a um processo de
homogeneização das diferenças e incorporamos, mesmo
que sutilmente, uma dimensão essencialista.
É por isso que o território dos entrelugares é o caminho do “fio da navalha”.
Precisamos romper com o sentimento das alteridades fixadas e assumir as perspectivas de nossas alteridades
fluidas, sem perder a dimensão dos enfrentamentos políticos. Em determinados momentos, buscando a superação
das condições de opressão e violências instituídas, devemos fixar nossos campos identitários, enquanto estratégia
política de enfrentamento no processo de luta contra qualquer atitude totalitária. Mas, é preciso manter a lucidez, da
necessidade de rompimento das barreiras entre o “nós” e
os “outros”, em uma sociedade possível, como nos alerta
Todorov.
É nisso, creio eu, que reside a preocupação central
de Stuart Hall, quando ele assume a preferência pelo conceito de identificação, em detrimento do de identidade,
muito menos pela obrigatoriedade de defini-lo categoricamente do que pelo reconhecimento do grau de complexidade presente. Assim Hall busca situar a identificação na
fronteira entre sujeitos e práticas discursivas.
188
Para além do imaginário congelado do território...
Hall concorda com Foucault, quando diz: “o que
nos falta, neste caso, não é ‘uma teoria do sujeito cognoscente’, mas ‘uma teoria da prática discursiva’” (2000, p.
105). Por outro lado, sublinha também, que a emergência
deste “descentramento” não se traduz no deslocamento da
centralidade do sujeito, e mesmo da razão, em detrimento
da prática discursiva, mas na acentuação da exigência de
uma “outra” reconceptualização do sujeito e da racionalidade dominante.
O conceito de “identificação” acaba por ser um dos
conceitos menos bem desenvolvidos da teoria social
e cultural, quase tão ardiloso – embora preferível –
quanto o de “identidade”. Ele não nos dá, certamente,
nenhuma garantia contra as dificuldades conceituais
que têm assolado o último (HALL, 2000, p. 105).
Da Questão Indígena: revisitando memórias
A questão inicial que se levanta quando tratamos das
memórias e história brasileira é: onde começa a história do
Brasil? Será que somente com a chegada dos portugueses,
em uma perspectiva eurocentrada?
Uma segunda questão, que ao mesmo tempo demarca uma posição político-cultural e que pode muito bem
responder às questões levantadas inicialmente, é a própria noção que comumente empregamos para designar o
momento histórico que marcou a chegada dos europeus
em nosso continente, onde, enquanto ao nos referirmos
à América normalmente utilizamos o termo conquista, ao
Brasil, especificamente, chamamos, na maior parte das vezes, de descobrimento.
Marcadamente, a conquista territorial sempre esteve
presente em nosso processo histórico, como não poderia
deixar de ser, em se tratando de perspectiva colonizadora.
Outro ponto central neste cenário, que se associa à luta
189
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
territorial, é a questão populacional, e, no caso brasileiro,
em primeiro um momento, nos referimos à população indígena.
A delimitação populacional indígena no Brasil se
constitui em um amplo campo de debate e divergências
entre diversos estudiosos da área. Mas, segundo Eduardo Góes Neves (2004), na transição do século XV para o
XVI, existiam aproximadamente 52 milhões de indígenas
na América Latina. Já John Manuel Monteiro (2004) estima
entre 8 e 10 milhões somente no Brasil, e, de acordo com
Manuela Carneiro da Cunha (2004), cerca de 5 milhões
ocupavam estritamente a região amazônica.
No limiar do século XVIII e início do XIX, a perspectiva prognóstica colonizadora era marcada pela tentativa
de demarcação do tamanho original da população indígena, em consonância com o grau de declínio desta mesma
população. Tal perspectiva visava a apreender as diversas
possibilidades e tendências de desaparecimento das diferentes nações indígenas, quer sejam por morte (em função
das diversas epidemias) ou pela assimilação cultural.
Ainda segundo relatos do padre jesuíta João Danilo,
os índios Macuxi e os Wapixan já ocupavam a região do
extremo norte de Roraima, conhecida como Raposa-Serra
do Sol e hoje foco de enormes disputas.
A manutenção dos povos indígenas nas regiões de
fronteira era uma estratégia colonizadora, defendida principalmente pelo então Barão do Rio Branco e por Joaquim
Nabuco, visando à manutenção territorial portuguesa e
que ficou conhecida como Muralhas do Sertão.
Hoje, segundo, respectivamente, John Manuel Monteiro (2004) e Manuela carneiro da Cunha (2004), temos
pouco mais de 200 povos indígenas e aproximadamente
270.000 índios, nas diversas etnias, em território brasileiro.2
Também atualmente, em relação à demarcação do
território da região amazônica, dados importantes preci2
Dados do Censo 2000 do IBGE.
190
Para além do imaginário congelado do território...
sam ser sublinhados na relação povos indígenas - empresas
de capital privado. Cabe destacar que somente a Manasa
Madeireira Nacional possuía, em 1986, 4 milhões e 140 mil
hectares no Amazonas, área maior que a Bélgica, Holanda
e Alemanha reunidas. Já a Jarí Florestal Agropecuária possui cerca de 3 milhões de hectares no Pará.
Cabe destacar que o modo de produção no Brasil
colônia se caracterizava pela mão-de-obra escrava. Naquele momento histórico a terra era, em última análise, posse
do colonizador. Daí a estratégia de manutenção dos povos
indígenas nas regiões de fronteira – tendo em vista também a forte resistência destas diversas etnias ao processo
colonizador escravocrata – através das Muralhas do Sertão, tinha endereço certo.
Já no final do século XIX, as mudanças estruturais
nas relações sociais de produção, tendo como base a necessidade da posse da terra, como elemento central de poder no coronelismo, estabelece outras bases nas disputas
territoriais e, por que não, identitárias.
A expansão das fronteiras urbanas destaca-se entre
os fenômenos mais significativos e, contraditoriamente,
pouco reconhecidos no campo das políticas públicas governamentais. Tal fato implica sérios limites sociais e de
possibilidade de vida para as comunidades tradicionais.
Acreditamos que a superação destas condições limitantes de desenvolvimento social e humano poderá ser
alcançada com o reconhecimento das comunidades residentes em espaços populares e tradicionais – dentre elas
as aldeias indígenas – como sujeitos sociais ativos; capazes
de pensar, inventar e realizar seus sonhos de uma vida
mais plena e generosa. É preciso, portanto, desconstruir os
estigmas que marcam os residentes destas comunidades e,
em associação, buscar condições para a reconstrução de
“novos protagonistas” de políticas sociais, em referenciais
participativos, visando à superação daquilo que chamamos de imaginário congelado da identidade brasileira.
191
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Dentre esses, destacamos, sem a menor dúvida, os
jovens das comunidades indígenas em particular, no que
Aracy Lopes da Silva e Luís Grupioni definem como convívio na diferença, ou seja:
A afirmação da possibilidade e a análise das condições
necessárias para o convívio construtivo entre segmentos diferenciados da população brasileira, visto como
processo marcado pelo conhecimento mútuo, pela
aceitação das diferenças, pelo diálogo (SILVA e GRUPIONI, 2004, p. 15).
Acreditamos que para construir um futuro melhor,
se faz indispensável incorporar aqueles que herdarão
esse mesmo futuro. Nesse sentido, as políticas públicas
de combate às desigualdades sociais precisam superar a
concepção de ausência e ações descontínuas, que orientaram diversos projetos, e caminhar na via da construção de
políticas inclusivas para jovens e adultos, e em especial,
neste caso, de comunidades indígenas.
Ainda na perspectiva de Silva e Grupioni:
Nestes tempos de violência generalizada no país, a reflexão sobre os povos indígenas e sobre as lições que
sua história e suas concepções de mundo e de vida
social podem nos trazer, aliada ao exame dos modos
de relacionamento que a sociedade e o Estado nacionais oferecem às sociedades indígenas constituem um
campo fértil para pensarmos o país e o futuro que
queremos (2004, p. 15 e 16).
Nossa proposta se inspira em uma concepção horizontalizada de ação pública, bem como, no envolvimento
dos jovens e adultos moradores de diversos espaços tradicionais de fronteira nas mais diferentes aldeias indígenas.
Nessa perspectiva, devemos identificar a dinâmica
das concepções, ausências institucionais e as novas formas de organização das políticas públicas, nos mais va192
Para além do imaginário congelado do território...
riados campos da questão indígena, como também ações
instituintes, que dizem respeito à superação das condições
de exclusão, abandono, omissões e violências, nas diferentes aldeias e etnias indígenas, que compõem o cenário
cultural brasileiro.
Um dos campos marcadamente grifado pelas lutas históricas dos diferentes povos indígenas, visando a
superação deste quadro de ausências institucionais, é o
educacional. Entendemos que um dos caminhos possíveis
de políticas públicas em educação indígenas mais conseqüentes está na criação de diagnósticos participativos
socioculturais e econômicos que, por definição ética e
política, contribuam para a construção de práticas educativas que levem em conta as estratégias cotidianamente
construídas pelos diversos grupos étnicos, cujo objetivo
maior tem como referência a superação das desigualdades
e violências sociais, marcantemente vivenciadas nos espaços de fronteira.
A implantação de projetos escolares para a população
indígena é quase tão antiga quanto o estabelecimento
dos primeiros agentes coloniais na Brasil. A submissão das populações nativas, a invasão de suas áreas
tradicionais, a pilhagem e destruição de suas riquezas,
etc. têm sido, desde o século XVI, o resultado de práticas que sempre souberam aliar métodos de controle
político a algum tipo de atividade escolar civilizatória
(SILVA e AZEVEDO, 2004, p. 149).
Mas esta é, com certeza, a temática central de um
próximo trabalho.
193
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196
Formação de professores
para a autonomia indígena
Darci Secchi
1Introdução
O debate acerca da implantação de políticas públicas
dirigidas a segmentos sociais específicos (negros, índios,
pobres, etc.) tem ocupado um lugar de destaque no cenário
acadêmico contemporâneo.
Neste capítulo pretendemos discutir uma dessas temáticas – a educação escolar indígena – por considerá-la
uma das âncoras do movimento de consolidação do chamado protagonismo indígena1. Nosso principal argumento
é o de que as atuais políticas compensatórias de cunho
concessivo ou reivindicatório devam ser associadas a iniciativas que reforcem o protagonismo e a autonomia dos
segmentos sociais aos quais se destinam.
Ao tratar das relações históricas dos povos indígenas
com o entorno regional, verificamos que eles já utilizaram
Em um trabalho anterior (SECCHI, 2002), discuti a noção de protagonismo indígena a partir de um duplo enfoque: enquanto uma atitude
de rompimento com as relações de tutela e submissão e, enquanto o
exercício de cargos ou representações de destaque no cenário das relações interculturais.
1
197
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
diversas estratégias para suprir as demandas geradas pelo
contato, tais como as prestações de serviços, o comércio e
trocas simbólicas, os casamentos interculturais, os raptos,
saques, guerras, etc. Porém, nas últimas décadas, constatamos uma mudança substancial nesses procedimentos.
Atualmente as comunidades indígenas encontram nas políticas públicas as principais fontes de recursos externos,
especialmente como forma de atender às demandas de
educação escolar, saúde e economia. Porquanto, é oportuno avaliar qual tem sido a matriz que orientou até aqui
as relações entre o poder público e as comunidades especificas, sejam elas negras, indígenas, pobres, etc. Será
curioso constatar que, nas últimas décadas, essas relações
se alteraram progressivamente. Ocorreram contextos de
completa desatenção ou de exclusão desses segmentos,
seguidos por iniciativas de inclusão tolerada, depois de
inclusão solidária e, finalmente, de atitudes e práticas dialógicas, isso é, de relações igualitárias entre múltiplos protagonistas.
No campo da educação escolar indígena constatou-se um processo de institucionalização da escola e de
aprimoramento do seu perfil mais adequado. A escola
indígena foi concebida sob vários enfoques, especialmente como uma ferramenta que ajuda a conhecer o
“mundo dos brancos”; facilita o trânsito entre as culturas;
defende o território indígena; dá acesso a novos espaços
socioculturais e possibilita a reconstrução dos projetos
de futuro.
A consolidação de uma nova perspectiva para a educação escolar indígena em Mato Grosso na última década
foi possível graças a um amplo programa de formação
de professores cujas linhas gerais e resultados alcançados
serão objeto de análise no final do capítulo.
Tal tarefa, porém, não coube apenas aos professores e à escola. Foi necessário conjugar a educação
escolar a outras iniciativas que procuraram superar as
atuais políticas compensatórias e se propunham a cons198
Formação de professores para a autonomia indígena
truir relações pautadas na autonomia e no protagonismo
dos brasileiros indígenas que vivem nas aldeias ou nas
cidades.
2 As escolas indígenas sob múltiplas perspectivas
Todas as sociedades têm a capacidade de agregar
os elementos culturais externos que necessitam para o
seu desenvolvimento. A instituição escolar caracterizase como um desses elementos e tem uma grande capacidade de promover a autonomia ou de engendrar
a dependência, uma vez que viabiliza o ingresso de
conteúdos financeiros, organizativos e informativos até
então indisponíveis no meio cultural de uma determinada comunidade.
O novo fluxo sistemático de recursos que a escola
proporciona se distingue em forma e em conteúdo dos
procedimentos tradicionais utilizados para a geração de
excedentes. O montante dos valores viabilizados por meio
de equipamentos, alimentação, salários, etc. é bastante
significativo e enseja o surgimento de dinâmicas sociais
antes não existentes.
O impacto da escola em decorrência dos seus conteúdos organizativos é, certamente, o mais explorado
pela literatura, quer por sua visibilidade, quer por seus
efeitos sobre as formas tradicionais de organização social. Por se tratar de uma instituição que desenvolve atividades de longa duração, estabelece uma nova ordem
espaciotemporal que afeta substancialmente a tessitura
intra-societária. Em muitos casos, a escola é o elemento
cultural externo que ocupa a maior parcela do tempo
diário, permanece nas aldeias por muitas décadas e raramente é finalizado2.
São raríssimos os casos de sociedades que conheceram a escola e
posteriormente tiveram condições de “livrar-se” dela...
2
199
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Enquanto geradora de conteúdos informativos, a
escola indígena agrega conhecimentos externos, conferelhes significados e os disponibiliza para eventuais utilizações no cotidiano sociocultural do sistema. Portanto, o seu
potencial de geração de autonomia ou de dependências
estará relacionado diretamente à natureza dos conteúdos
externos que forem incorporados e ao grau de controle que obtiver sobre eles. Nesse sentido, assemelha-se
a qualquer outro elemento cultural externo, seja ele um
equipamento, uma tecnologia ou um serviço. Se por um
lado propicia ao sistema um potencial informativo suficiente para reposicioná-lo frente às novas realidades, por
outro, impõe-lhe seus traços característicos, isto é, a sua
condição de conhecimento externo. Desde essa perspectiva, a escola indígena geradora de autonomia será aquela
que agregar os recursos financeiros, organizativos e informativos disponibilizados pelo meio externos e exercer um
crescente controle sobre eles.
Como qualquer outra instituição socialmente instituída, a escola indígena assume características que lhe conferem uma maior ou menor adequação às expectativas individuais e grupais e pode ser incorporada com diferentes
graus de autonomia, coerência, participação ou imposição.
Para uns, trata-se de um elemento cultural apropriado, ressignificado e transformado em uma nova categoria de escola – a escola indígena. Para outros, caracteriza-se como
uma instituição trazida pelos colonizadores e adaptada ao
cotidiano dos povos ameríndios. As suas características
expressas na legislação (específica, diferenciada, bilíngüe,
intercultural) são percebidas apenas como “ajustes” para
melhor atender aos objetivos colonialistas.
Esses dois extremos sinalizam os limites e possibilidades das escolas indígenas e o seu grau de convergência
com os projetos societários de cada povo. Em um dos
pólos estaria a escola respeitosa, libertadora e promotora
da autonomia indígena; no outro, a escola etnocêntrica,
integracionista e promotora de dependências. A escola
200
Formação de professores para a autonomia indígena
associada ao domínio de códigos alienígenas é contraposta à escola efetivamente indígena, disseminadora dos
valores autóctones. Nessa última perspectiva a escola se
torna um centro de irradiação intercultural que se estende
ao domínio das ciências, linguagens, ética e cidadania.
Portanto, uma escola que “sabe dizer e sabe fazer”, isto é,
uma instituição com o discurso e a prática voltados para a
construção e reconstrução cultural.
Ainda que as perspectivas expressem percepções divergentes, ambas sugerem um movimento no sentido de
apropriar-se de novos conhecimentos e de reinterpretá-los
e incorporá-los, ora individual, ora coletivamente, no cotidiano social, econômico, político e cultural das respectivas
comunidades.
3 Políticas públicas para
o protagonismo indígena
A “conquista da escola” pelas sociedades indígenas
não pode ser dissociada de outras lutas e desafios, como
a demarcação e a gestão territorial, a melhoria das condições de alimentação e saúde, o acesso a fontes alternativas
de renda e o usufruto de bens e serviços disponibilizados
pela sociedade moderna. Cabe ao poder público e às instituições sociais acolherem essas reivindicações e transformá-las em ações concretas, segundo as especificidades
e as responsabilidades de cada um. A história brasileira,
porém, mostra que nem sempre existiu essa preocupação.
Até a década de 1970 houve pouca (ou nenhuma) participação indígena na definição das políticas públicas. As
raras iniciativas do órgão tutor ou das agências externas
eram desenvolvidas sobre as terras indígenas sem o consentimento ou a participação da população.
A partir de 1970 até meados da década de 1980
ocorreu um processo de inclusão compulsória dos indígenas nos programas oficiais voltados para a integração
201
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
nacional e para o desenvolvimento do Centro-Oeste e da
Amazônia. Como os governos objetivavam a captação de
empréstimos externos para a região, era necessário mediar
os conflitos e amenizar os impactos decorrentes da nova
ocupação territorial. Essa aparente inclusão serviu também
como resposta à opinião pública internacional que cobrava do governo brasileiro um tratamento mais adequado
às populações indígenas afetadas pelos programas de desenvolvimento financiados por organismos internacionais.
Em alguns casos, a liberação de recursos externos foi condicionada à implantação de políticas públicas efetivas em
áreas indígenas; em outros, limitou-se a ações mitigatórias
para compensar danos causados pela construção de rodovias, hidrelétricas e outras iniciativas oficiais no interior ou
no entorno das áreas indígenas.
Uma terceira forma de relação entre o poder público e as comunidades indígenas consolidou-se ao longo
do processo constituinte e se estende até os dias atuais.
Caracteriza-se pela chamada política de inclusão solidária e é expresso por um conjunto de iniciativas de caráter assistencial que contam com a participação indígena
e que procuram “resgatar os valores étnicos, culturais e
de cidadania”. Os projetos educacionais são associados
a projetos similares no campo economia, da saúde e da
segurança alimentar. Fundam-se nos direito constitucional
e no “compromisso moral que devemos ter com os nossos
irmãos índios, com eles que foram os primeiros habitantes do Brasil”. Esse modelo de política pública representa
um avanço em relação aos períodos anteriores, porém as
ações ainda continuaram sendo geridas pelas agências financiadoras e/ou pelas equipes técnicas não indígenas.
Uma nova perspectiva de políticas públicas está florescendo nos últimos anos e se projeta como uma alternativa viável para o futuro. É caracterizada por ideais e
por ações que procuram construir o protagonismo indígena. Concebe as políticas públicas como uma parte integrante do plano de vida de um povo ou de uma comu202
Formação de professores para a autonomia indígena
nidade. Leva em consideração os múltiplos aspectos que
compõem a participação indígena, desde a definição das
prioridades, a elaboração de projetos, a busca de financiadores, o planejamento e a administração dos recursos,
o acompanhamento das ações, a avaliação, os registros
e a replicação das iniciativas promissoras. Ao propor o
protagonismo indígena reconhece a importância de manter o diálogo com todos os atores sociais e com todas as
instâncias do poder público. Não se trata, portanto, de um
protagonismo excludente, mas aberto a todos os que desejam cooperar com o movimento indígena na construção
de uma sociedade saudável, fraterna e feliz.
Feitas essas considerações, daremos destaque a seguir a uma iniciativa desenvolvida em Mato Grosso que é
considerada como uma experiência inovadora e demonstrativa de uma política pública voltada para a ampliação
da autonomia indígena. O seu aperfeiçoamento, consolidação e replicação poderá representar um passo importante no desenvolvimento de outras iniciativas voltadas
para o protagonismo das sociedades indígenas no Brasil.
4 Formação de professores
para o protagonismo indígena
4.1 Síntese geral do projeto
Trata-se de uma iniciativa de formação de professores indígenas em serviço desenvolvida pela Secretaria
de Estado de Educação e pela Universidade do Estado de
Mato Grosso, em parceria com uma dezena de instituições
públicas federais, estaduais, municipais e ONGs.
O programa teve início em meados da década de
1990 e foi resultado de uma ampla articulação entre representantes indígenas, poder público e entidades indigenistas com assento no Conselho de Educação Escolar
Indígena de Mato Grosso.
203
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Em sua primeira etapa, priorizou a formação de 200
professores indígenas em nível médio e a regularização de
mais de uma centena de escolas localizadas nas aldeias.
Nos anos seguintes foi responsável pela implantação dos
Cursos de Licenciaturas Específicas para Professores Indígenas nas áreas de Ciências Sociais; Ciências Matemáticas
e da Natureza e, Línguas, Artes e Literatura. As primeiras
turmas totalizaram 180 professores de Mato Grosso e 20
de outros estados brasileiros. Atualmente esses professores já concluíram os cursos superiores e estão atuando em
suas respectivas escolas. Outras turmas estão em processo de formação em diversos cursos de graduação e pósgraduação. Em um período de dez anos a Universidade
do Estado de Mato Grosso se propõe a formar em torno
de 350 professores pertencentes a mais de 40 sociedades
indígenas de Mato Grosso e do Brasil.
O propósito de desenvolver um processo de formação voltado para a solidariedade e a autonomia está
presente nas diferentes fases do projeto, desde a escolha dos cursos, a construção dos currículos, a escolha do
campus universitário, a definição dos quadros docentes,
a composição das instâncias de representação colegiadas,
a elaboração das normas e regimentos e todos os demais
atos de interesse coletivo.
Mais recentemente, a Universidade do Estado de
Mato Grosso está considerando a possibilidade de ampliar
o programa e de destinar um campus específico para atender à população indígena. Tal medida poderá ensejar no
médio prazo a consolidação de uma Universidade Autônoma dos Povos Ameríndios, um antigo sonho acalentado
nas florestas, cerrados, charcos e montanhas da LatinoAmérica-Indígena.
A política de formação de professores e de regularização das escolas indígenas foi reforçada por outras iniciativas similares. No campo da saúde foi desenvolvido o
Programa de Formação de Agentes Indígenas de Saúde e
instalados os Distritos Sanitários Especiais Indígenas. No
204
Formação de professores para a autonomia indígena
campo da economia foram implantadas ações voltadas
para a gestão de projetos econômicos, utilização sustentada dos recursos naturais, produção e comercialização
de artesanato, mel e produtos agrícolas. Apoiou-se também a organização e representação indígena em diferentes fóruns, conselhos e outras instâncias de deliberação
coletiva.
Esse conjunto de ações articuladas gerou um ambiente favorável à inclusão dos “assuntos indígenas” na
pauta de outras instituições sociais (mídia, escolas urbanas, agências de fomento, etc.) o que lhe conferiu maior
reconhecimento e visibilidade. De outra parte, serviu também para amenizar as manifestações contrárias ao avanço
das frentes de exploração agrícola, pastoril, minerária e
madeireira que se expandem desordenadamente por todo
território mato-grossense.
4.2 As etapas do ritual de formação
Como foi dito, a escola é uma instituição sancionada
nas sociedades ocidentais e em processo de consolidação
em inúmeras sociedades indígenas. Ao se instituir como
escola indígena ela incorpora os conteúdos e os significados próprios das sociedades que passam a adotá-la, mas
carrega também as características históricas das sociedades que a adotaram anteriormente.
Com os professores indígenas não é diferente. O seu
perfil é instituído a partir de diferentes expectativas que
sintetizam aquilo que os indivíduos, a comunidades e o
poder público esperam desse novo ator social.
No caso dos professores indígenas de Mato Grosso,
um dos principais critérios para o credenciamento dos candidatos ao cargo docente é a sua participação nos cursos de
formação. No nosso imaginário, o ingresso e a passagem
do professor por esse lugar físico e simbólico assegurará as
condições preliminares para o exercício docente, uma vez
205
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
que o “iniciado” terá atendido às condições (imaginadas)
necessárias para a sua confirmação profissional.
O processo de formação supõe o cumprimento de uma
série de eventos que começa com a escolha dos candidatos,
passa pelo ritual de acesso, se desdobra por diversos rituais
de passagem, depois pela atribuição pública de grau e, finalmente, pela nomeação e confirmação no respectivo cargo.
O ponto crítico desse processo, a nosso ver, reside no fato de que, aparentemente, em nenhuma das
fases desse ritual que se estende ao longo de cinco
anos, o professor indígena detém o controle do processo de formação. Na condição de iniciando, está submetido aos desígnios de outrem. Vejamos algumas dessas
situações:
a) O candidato que pretende se inscrever ao processo seletivo precisa atender a requisitos legais
como os da idade adequada e formação mínima
e depois submeter a sua “candidatura” ao o aval
da comunidade que referendará ou não o seu
pleito;
b) O ingresso nos cursos de formação supõe a aprovação em uma prova escrita ou entrevista realizada pelo poder público ou pela instituição de
ensino;
c) A condição de cursista de nível médio ou superior é assegurada após o atendimento de uma série de requisitos, como o afastamento temporário
da aldeia, aceitação de convívio em alojamentos
coletivos, confirmação de matrícula, cumprimento de horários, etc.
d) A aprovação propriamente dita no curso supõe o
atendimento de outras inúmeras exigências, tais
como o domínio do conteúdo das disciplinas e a
206
Formação de professores para a autonomia indígena
comprovação de resultados. Esses procedimentos
constituem a principal estratégia de transformação
formal do cursista em professor;
e) O ritual de formatura ou atribuição de grau completa o ciclo de preparação e assegura ao cursista a condição de iniciado nos serviços docentes.
Esse ritual atende a dois objetivos complementares: o coroamento do esforço individual dos
estudantes e a chancela de um grau, isso é, a
confirmação da licença para ocupar “de direito”
o espaço institucional de professor;
f) Uma vez formado, o professor será submetido ao
concurso público e posteriormente ao ato de nomeação ao cargo. Um eventual insucesso nessa
fase representaria um descredenciamento de todas as etapas anteriormente.
4.3 Uma tentativa de interpretação
Se analisarmos a “maratona” de formação desde a
perspectiva do poder público, ela nos parecerá pertinente
e adequada. Afinal, é assim que opera a sociedade moderna cujos ideários professam a individualidade, a competição, a hierarquia, a profissionalização, etc. Mas será
que essa lógica é igualmente hegemônica nas sociedades
indígenas? Será que os seus ideais de formação são convergentes com os da sociedade liberal?
As respostas parecem óbvias, mas ainda assim, suscitam algumas questões intrigantes. Vejamos.
Ainda que os cursos de formação não tenham sido
concebidos expressamente sob a lógica de um longo ritual
de iniciação, os acadêmicos parecem interpretá-lo desse
modo. Que outro desafio ou meta lhes seria mais estimulante do que o de vencer todas as etapas de um ritual tão
207
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
complexo e seleto? Que outra conduta teriam senão a de
se submeter voluntariamente às normas de uma nova comunidade educativa que se propõe a desafiá-lo para um
ritual complementar de iniciação e passagem?
Nos processos de formação tradicionais – os que
são adotados pelas sociedades para formar um “bom
Xavante”; um “bom Bakairi”, etc. – a desistência é tida
como rara e excepcional. Afinal, ela enseja a negação do
indivíduo como pessoa e cria um “limbo” social acusativo: “Você desistiu! Não conseguiu ser um dos nossos!”
Se verificarmos as desistências de professores e professoras ao longo dos cursos de formação, constataremos
que, também lá, ela foi insignificante, senão nula. Tal
coincidência poderá sugerir que o ritual de formação estaria sendo interpretado pelos cursistas de forma diversa
daquela esperada pela instituição formadora. Em vez de
ensejar a construção de uma identidade profissional os
cursos estariam sendo percebidos como etapas de um
novo ritual de passagem, um desafio quase impossível
de ser abandonado.
Uma das principais características dos processos de
formação da sociedade moderna é a competitividade. As
classificações, reprovações ou exclusões são tidas como
resultados “naturais”. Aliás, é comum que duas pessoas
disputem uma única vaga e que o vencedor comemore a derrota do outro sem cerimônias... Essa jamais foi
a conduta predominante dos professores indígenas. De
um modo geral, todos zelam por todos! No ambiente dos
cursos de formação existe de fato uma comunidade educativa que se une, se resguarda e se afirma em relação
aos demais atores. É esse “espírito de corpo” que nutre o
pertencimento momentâneo dos “acadêmicos indígenas”
e mais tarde, dos “professores indígenas”, uma nova categoria social e profissional que se estabelece nas comunidades sem eliminações nem disputas.
Ao concluírem o período de “clausura”, os acadêmicos retornam às suas comunidades como aprendizes de
208
Formação de professores para a autonomia indígena
um ofício, desinformados das novidades, cheios de favores a retribuir, enfim, alvos fáceis de diversos interesses.
Mas também levam consigo histórias, saberes, prestígio e
salários. Salários, aliás, que os colocam em situação confortável, em pé de igualdade com os outros “funcionários” (indígenas ou não) e com as lideranças tradicionais
do lugar. Dessa conjugação resultam as mais variadas
dinâmicas que, em linhas gerais, darão os limites do seu
desempenho pessoal e profissional. Existem professores
que trabalham em tempo integral; professores sem sala
da aula; alguns ensinando os conteúdos aprendidos nas
licenciaturas; outros competindo com a programação da
televisão e com o futebol de cada dia, e assim por diante... Todos são reconhecidos como professores indígenas,
e toda essa diversidade de situações é chamada de escola
indígena.
Ao se confirmar no cargo, o professor indígena
submete-se a uma tripla fidelidade, nem sempre fácil de
conciliar: fidelidade ao seu projeto individual; fidelidade
ao plano de vida da comunidade e fidelidade às normas
e orientações do poder público. É no exercício diuturno
dessas fidelidades que o professor toma as decisões que
interferem diretamente no cotidiano da escola. É essa conjugação de forças que definirá, por exemplo, qual será o
currículo da escola, o calendário letivo ou as condições
aceitáveis para a sua saída da aldeia e assim por diante. É
legítimo que o professor tenha poder de decisão, afinal, é
um profissional que se submeteu a tantos anos de preparação. Mas é igualmente legítimo que a comunidade decida, afinal, se a escola está ao seu serviço! Por fim, o poder público também tem legitimidade para decidir, aliás,
assim determina a legislação... Dada a pouca presença do
poder público nas escolas, essas decisões, de um modo
geral, são negociadas entre os professores e suas respectivas comunidades. Existem aldeias em que o professor é a
principal liderança e acumula força suficiente para impor
as suas condições. Por conseguinte, tem possibilidade de
209
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
controlar pessoalmente o funcionamento cotidiano da escola. Em outras palavras, o professor representa apenas
um grupo familiar, o que o obriga a negociar as condições
do funcionamento com as demais forças locais. Há, ainda,
situações em que o professor não conta como apoio formal
da comunidade, o que o torna mais vulnerável às pressões
e interesses.
O exercício do controle social supõe um estreitamento das relações entre todos os atores sociais envolvidos com a escola, particularmente entre os professores,
as comunidades e o poder público. No entanto, isso ainda não acontece em muitas escolas. Ao contrário, em algumas o movimento tendencial parece apontar para um
pacto implícito entre esses atores, o que resulta numa
escola apenas simbólica, isso é, uma escola em que o diferenciado é expresso pela carência factual: poucos conteúdos, poucos materiais, poucas aulas, poucos alunos,
pouca importância, pouco salário, poucas cobranças e
também poucos resultados... Nessas situações, verifica-se
uma enorme discrepância entre o que foi idealizado retoricamente como o perfil desejado pelas comunidades e
agências formadoras e o que se realiza concretamente no
cotidiano das escolas. Inversamente, ocorrem situações
em que o compromisso pessoal do docente, aliado ao
controle social da comunidade ou de agentes externos
(missões e prefeituras), resulta num “formato de escola”
muito próximo ao desejado pelas comunidades, proposto pela instituição formadora e ratificado pela legislação
vigente.
Diante de situações tão díspares é oportuno perguntar em que medida os cursos de formação podem otimizar
esse quadro?
O educador Bartomeu Meliá (1997) parece não ter
dúvidas: para que os cursos se tornem efetivamente espaços educativos é necessário que deixem de ser uma
mão estendida oferecendo dádivas para se tornarem o
movimento de dezenas de mão a elaborar os saberes al210
Formação de professores para a autonomia indígena
mejados pelos acadêmicos e por suas comunidades. Ou,
dito de outra forma: a formação em serviço não pode
ser vista como a “oferta” de um passaporte para os que
resistirem até o final da maratona, mas a construção coletiva de caminhos que conduzam a uma escola indígena
voltada para os interesses e necessidades de suas comunidades.
5 Conclusão
O “modelo oficial” de escola indígena foi definido
na legislação por um conjunto de adjetivos (específica,
diferenciada, bilíngüe e intercultural) e por atitudes valorativas como o respeito pelos saberes, pelas metodologias
e pelos processos próprios de aprendizagem. Esse ideário
está contido num escopo normativo (diretrizes, referencial, parâmetros, resoluções, pareceres, etc.) que objetiva
garantir a especificidade e a diferença, mas que pode resultar também no disciplinamento e na padronização das
escolas, retirando-lhe o direito à iniciativa e ao controle do
seu processo escolar. O ideário oficial inculcou no imaginário e no discurso das equipes técnicas e dos próprios
professores indígenas um modelo de escola que está sendo difícil, senão impossível de ser implementado na realidade concreta das aldeias.
No que trata dos processos de formação docente
a situação é similar. Os programas “oferecidos” aos professores “em serviço”, não são apenas um meio de lhes
assegurar a manutenção do cargo, mas também o lugar
físico e simbólico em que se padronizam as expectativas.
Os cursos de formação instituem a forma e o conteúdo
profissional, ético e político dos docentes por meio de um
conjunto de rituais sobre os quais as comunidades e os
próprios acadêmicos aparentemente têm pouco controle.
Nessa perspectiva a pedagogia utilizada não poderia ser
outra senão a dos rituais de confirmação da sociedade
211
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
moderna, isso é, o ritual da profissionalização. “Cumpra
esses requisitos e serás um profissional!” Ao retornarem
às aldeias, porém, os professores se deparam com outra
“lógica” que orienta a vida social. A noção de profissionalismo é bem diversa daquela proposta pela sociedade moderna. Ninguém suportaria, por exemplo, um
pajé exercendo os seus serviços especializados de forma democrática, dia após dia e com horário marcado. O
mesmo não se esperaria de um cantor, de um ervateiro
ou de um rezador. O exercício dos cargos e serviços
disponíveis nas comunidades exige uma liturgia e uma
conduta que resguardam os saberes especializados e os
mantêm sob o domínio de poucos. Por isso, não lhes é
estranho o argumento de um estudante que questiona a
assiduidade do seu professor nos seguintes temos: Não
sei por que você insiste tanto em dar aula todos os dias.
Não precisa mais mostrar que você é professor, aqui todos
já sabem! Quando a gente precisar de aula, vai na sua
casa e lhe chama, ta bom!
A situação inversa também parece corroborar o
mesmo raciocínio. Alguns professores se mostram arredios às salas de aula e só as ocupam esporadicamente,
após insistentes pedidos da comunidade. Naquelas ocasiões se revestem de liturgia e pompa, apresentam dinâmicas e conteúdos espetaculares (preferencialmente os que
consideraram mais difíceis nas Licenciaturas) e proclamam
publicamente o seu saber e erudição. Depois retornam a
vida cotidiana, certos de que quando a comunidade necessitar novamente dos seus serviços voltará a solicitá-los.
Dessa forma, mantêm o cargo, o prestígio e um ‘estoque’
confortável de saberes acumulados ao longo do seu processo de formação.
Existem ainda escolas em que as aulas ocorrem regularmente, com horários e conteúdos previamente definidos, com sineta, bandeira, chamada, merenda, recreio e
todos os demais símbolos que caracterizam o arsenal das
escolas tradicionais. Essas também são escolas indígenas
212
Formação de professores para a autonomia indígena
e os seus professores freqüentaram os mesmos programas
de formação que os anteriores.
As situações acima indicam que ainda existe pouco
consenso acerca daquele que seria o perfil docente mais
adequado para a construção de escolas indígenas protagonistas.
À guisa de conclusão, gostaríamos de propor algumas medidas diretamente relacionadas aos processos de
formação que, a nosso ver, poderiam contribuir para o
aperfeiçoamento das iniciativas desenvolvidas atualmente
em Mato Grosso e em outros estados do Brasil. Dentre
elas, destacamos:
a) Reduzir o distanciamento (ou discrepância?) existente entre o “modelo” de escola indígena proposto nos cursos de formação e o efetivamente realizado nas aldeias. Tal medida supõe uma ampliação
significativa da presença das agências formadoras
e do poder público nas escolas das aldeias;
b) Propiciar maior envolvimento dos acadêmicos
com a construção e direcionamento do projeto
pedagógico dos cursos de formação para que não
sejam interpretados como meros requisitos externos com o propósito de lhes conferir a condição
de iniciados. Em outros termos: os cursos de formação devem ser percebidos como espaços para
a construção coletivamente do profissionalismo
do docente indígena em vez de clausuras onde
cumprem longos rituais de passagem ao status
de docentes;
c) Reforçar o vínculo dos acadêmicos com as suas
respectivas comunidades ao longo do processo
de formação como forma de se contrapor à tendência corporativa ou burocrática que se institui
no ambiente dos cursos. O professor indígena de213
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
verá ter presente a sua fidelidade primeira com a
comunidade, juntamente com o seu projeto pessoal e com outros vínculos que vier a estabelecer
com o poder público;
d) Subsidiar as comunidades para que ampliem a
sua participação nas decisões que afetam a escola e se tornem protagonistas juntamente com os
professores e com o poder público. Até aqui o
poder público investiu maciçamente no professor
indígena. É necessário reverter a “curvatura da
vara” investindo também na participação qualificada das comunidades;
e) Discutir com as comunidades e com as administrações municipais uma política de contratação dos
professores indígenas que leve em conta a legislação em vigor, bem como as normas tradicionais
de cada sociedade. As noções de vaga, concurso,
efetivação, lotação, remoção, licença, etc., não são
suficientemente reconhecidas e avaliadas pelas comunidades e pelos professores indígenas;
d) Rever a estratégia atualmente centrada na figura
do professor e criar situações pedagógicas reais
que garantam a presença qualificada dos três
segmentos (docentes, comunidade e poder público) no cotidiano escolar. Ou dito de outra forma:
exigir que o poder púbico invista no cotidiano das
escolas e das comunidades educativas de maneira
semelhante que fez na formação dos seus professores. Sem a articulação entre os três segmentos, a
escola indígena não será um instrumento pleno de
luta e de defesa dessas sociedades.
A iniciativa de formação de professores destacada
nesse capítulo é um exemplo de uma nova percepção de
214
Formação de professores para a autonomia indígena
política pública que considera o cidadão um protagonista
do seu Plano de Vida e não apenas um cliente ou usuário
dos serviços oferecidos pelo Estado.
As políticas públicas dirigidas a grupos minoritários
de qualquer natureza devem ser concebidas, implantadas,
avaliadas e replicadas com a participação de todos os segmentos, especialmente daqueles para os quais as ações se
destinam.
O empenho do poder público em ampliar a participação indígena em todas as fases do desenvolvimento das
políticas constitui-se na forma mais adequada para qualificá-la e para possibilitar que as comunidades exerçam o
controle crescente sobre as demandas advindas do convívio intersocietário. Acreditamos que cabe ao poder público, às instituições formadoras e às comunidades indígenas
consolidar os caminhos da sua autonomia por meio dessas
e de outras medidas que promovam o protagonismo de
todos os segmentos e assegurem o diálogo intercultural.
Dessa forma, as políticas públicas em geral, e dentre elas
as que tratam da democratização do acesso e do percurso dos cidadãos na escola, deixarão de ser apenas ações
emergenciais ou compensatórias de alcance duvidoso e
passarão a se constituir em espaços de liberdade, de autonomia e de afirmação de todos os cidadãos brasileiros que
vivem nos campos e nas cidades.
215
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Bibliografia utilizada
BATALLA, G. B. Pensar nuestra cultura. Ciudad de México:
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217
Relações raciais e desigualdade:
resistências à política de cotas
na Universidade
Lucilia Augusta Lino de Paula
Temos direito de ser iguais quando a diferença
nos inferioriza e direito de ser diferentes
quando a igualdade nos descaracteriza.
Boaventura Souza Santos
Os debates sobre a instituição do sistema de cotas
nas universidades públicas brasileiras trazem à luz resistências à institucionalização da adoção de políticas afirmativas e ao reconhecimento de tensões nas relações étnicoraciais no interior do campo acadêmico. A polêmica que
cerca esse debate na atualidade demonstra que se, hoje,
a universidade apresenta uma crescente produção científica1 sobre a temática da diversidade cultural e das relações étnico-raciais, quando o assunto é a democratização
do acesso às camadas populares, mais especificamente à
população afro-descendente, as resistências são enormes.
Estudos, projetos e eventos vinculados a programas de pós-graduação
e linhas de pesquisa em diversas universidades; programas de incentivo
a pesquisas com apoio do governo federal e de fundações internacionais, como a Fundação Ford, e inúmeras publicações são exemplos do
crescimento da produção sobre multiculturalismo e as relações raciais
na educação e na sociedade brasileira, desenvolvidas em sua maioria
no âmbito das universidades que concentram o maior número de pesquisadores do país.
1
219
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Podemos mesmo afirmar que este é um dos grandes desafios com que a universidade brasileira se depara desde
a reforma universitária de 1968, colocando em xeque concepções e práticas arraigadas e marcadas pelo elitismo e
pela meritocracia.
Sabemos que, a partir do processo de democratização da sociedade brasileira, a luta pelo acesso à cidadania deu visibilidade a segmentos sociais, oriundos das
camadas populares, antes marginalizados. Vimos, nas
duas últimas décadas, a intensificação do debate sobre a
exclusão/inclusão socioeconômica de amplas parcelas da
população a serviços essenciais, entendidos e estendidos
como direitos de cidadania, dentre os quais o acesso à
escolarização. A ampliação da obrigatoriedade escolar e a
quase universalização do ensino fundamental provocaram
um aumento progressivo da demanda das camadas populares pelo ensino médio e, em decorrência, pelo ensino
superior.
Entretanto, com a ampliação da demanda também
se acirrou o processo de massificação do ensino superior,
que se deveu, principalmente, à proliferação de instituições privadas, que cresceram 983% nas matrículas, de 1966
a 1976, a maior parte das vagas em cursos de baixa qualidade (Inep, 2000). Entretanto, ao crescimento do ensino
superior privado correspondeu uma redução drástica dos
investimentos nas instituições públicas, principalmente no
governo Fernando Henrique Cardoso. Paralelamente, o
aumento da oferta da educação básica pela rede pública
foi marcado por uma crescente deterioração da qualidade
do ensino oferecido, reduzindo as chances de seus egressos disputarem em igualdade de condições os concursos
vestibulares das universidades públicas, que ostentam índices de excelência acadêmica. Assim, estabeleceu-se um
paradoxo perverso: aos alunos provenientes da rede privada destinam-se as vagas das universidades públicas e aos
oriundos da rede pública restam os cursos oferecidos pela
rede privada. As possibilidades de acesso ao ensino supe220
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
rior pelas camadas populares são geralmente mais amplas
na rede privada, que oferece um número maior de vagas,
portanto menos disputadas, e cursos no período noturno.
As instituições públicas, federais e estaduais, oferecem um
número mais reduzido de vagas, e, dada a sua gratuidade e imagem de qualidade elevada, possuem alta relação
candidato/vaga nos concursos vestibulares, exigindo escores cada vez mais altos, o que impede que candidatos
oriundos da rede pública, em sua maioria de baixa renda,
padrão em que se encontra a maior parte da população
afro-descendente, obtenha o sucesso esperado.
Confirmando este quadro, o predomínio da oferta
de vagas e cursos nas instituições públicas se dá em horário integral ou no período diurno, o que dificulta que os
estudantes conciliem trabalho e estudo, afastando a classe trabalhadora dos bancos das universidades públicas e
direcionando sua “opção” para as instituições particulares. Os custos de manutenção de um estudante na rede
pública são também elevados, apesar da gratuidade, pois
continua a demanda por alimentação, transporte, livros e
equipamentos, que grande parte das famílias não tem condições de satisfazer sem que o jovem ingresse no mercado
de trabalho. Assim, muitas vezes, apesar do pagamento
das mensalidades, o ingresso na rede privada, que permite
que o jovem concilie estudo e trabalho, é mais viável para
uma parcela considerável dessas famílias.
Contraditoriamente, com o expressivo aumento do
número de matrículas que parece indicar uma certa
democratização do acesso, acentuou-se o caráter seletivo do sistema, expresso na diversificação e segmentação entre as diferentes carreiras, cursos, instituições,
turnos de funcionamento e perfil do estudantado
(PAULA, 2004, p. 118-119).
Confirma-se, assim, a contradição do sistema educacional brasileiro no que tange à democratização do acesso
221
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
à escolarização, visto que a universalização do ensino fundamental público não foi acompanhada de uma qualidade
que permitisse o ingresso desses jovens no nível superior
nas instituições públicas – e, portanto, a um ensino com
alto padrão de qualidade –, obrigando-os a “investir” no
ensino superior privado, menos qualificado porém bem
mais acessível. Assim, é cada vez mais patente a hierarquização entre as escolas, cursos e carreiras, conforme o
prestígio social a elas atribuído. Esse quadro confirma a
perversidade do sistema de ensino que exclui as camadas
populares do ensino superior de qualidade – representado
pelas instituições públicas – justamente por serem oriundas da rede pública de ensino, que, salvo algumas ilhas
de excelência, hoje está associada à oferta de um ensino
de baixa qualidade.
Vários estudos comprovam a desvantagem educacional da população afro-descendente no Brasil, confirmando a imensa desigualdade entre negros e brancos no
que tange ao analfabetismo, aos anos de escolaridade e
ao acesso ao ensino superior, com efeitos no mercado
de trabalho, renda e qualidade de vida (ANDREWS, 1992;
BARCELOS, 1992; BARROS e HENRIQUES, 2000; GONÇALVES, 1996; HASENBALG, 1979, 1988; LOVELL, 1991;
TEIXEIRA, 2003). Assim, a desigualdade socioeconômica
é a tônica das relações raciais no Brasil, o que nos obriga
a problematizar o mito da democracia racial e a justificar
a adoção de uma discriminação positiva pela via de ações
afirmativas que, oferecendo um tratamento diferenciado
aos excluídos, promova a inclusão social, principalmente
no que tange a oportunidades educacionais.
O acesso à escolarização e, por conseqüência, ao
conhecimento sistematizado elaborado historicamente
pela humanidade é uma forma de garantir a cidadania.
Esta deve ser entendida como a possibilidade de existência do homem enquanto sujeito histórico consciente
da necessidade de elaborar normas sociais, baseadas no
entendimento geral e no bem comum, que objetivem a
222
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
convivência harmônica de sujeitos e comunidades, sem
discriminação de raça/etnia/cor, sexo, renda, religião, naturalidade, etc. Essas normas deveriam se fundamentar em
princípios como a justiça, a solidariedade, a igualdade, a
liberdade, o respeito à singularidade, à diversidade e à
coletividade. Dessa forma, o cidadão teria o direito a acessar um conhecimento entendido como ferramenta que
potencializa a participação dos excluídos na sociedade e
na história, capazes de orientar ações para compreender
e transformar a vida. Para tanto é fundamental a inclusão das camadas excluídas nos processos de elaboração e
apropriação de outras modalidades de conhecimento, de
escola e de política, mediante a promoção de uma ética
da resistência manifesta e retroalimentada neste processo
(LINHARES, 1999).
Ensino superior, meritocracia e desigualdades
educacionais: a cor da exclusão
Quando analisamos a mobilidade social no Brasil,
constatamos que, nas últimas décadas, esta se caracterizou por muita circularidade, marcada principalmente pelo
processo de urbanização do país e da ampliação da escolaridade da população, que assegurou postos de trabalho
melhor remunerados. Nesse contexto, o papel da Educação é fundamental na melhoria da qualidade de vida e
na mudança do status socioocupacional das famílias, confirmando uma mobilidade social ascendente, ainda que
de pequena distância, e marcadamente inter e intrageracional, mais especificamente entre as décadas de 60 e 80
(PASTORE e SILVA, 2000). A expansão das oportunidades
de escolarização em todos os níveis permitiu a inserção no
ensino superior de estratos sociais anteriormente excluídos, sendo cada vez mais comum a chegada à universidade de uma primeira geração que se beneficiou da ampliação do acesso à educação. Se o número de jovens que são
223
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
os primeiros em suas famílias a ingressar no nível superior
amplia-se cada vez mais, refletindo a mobilidade social
brasileira, o percentual de jovens negros ainda é minoritário, fenômeno que começa a sofrer significativa alteração
após a crescente adoção do sistema de cotas pelas instituições de ensino2. No bojo desta ampliação encontramos a
discussão sobre a adoção de ações afirmativas como política governamental. Se a pobreza e as desigualdades educacionais têm cor, nos perguntamos, como Brooke (2002),
se é possível atacar as raízes das diferenças raciais através
de políticas educacionais de ação afirmativa?
Segundo o discurso neoliberal, que imperou a agenda política brasileira na década de 90, o Estado era isento
das suas responsabilidades para com os pobres, culpados
por sua própria situação de penúria e obsolência social
e, sob a ótica capitalista, do consumo e da mais-valia, fadados a um perene estado de marginalidade, exclusão
social e improdutividade. No Brasil, amplas parcelas da
população – predominantemente composta por negros e
mestiços – encontram-se imersas na pobreza, sendo-lhes
atribuída a negatividade de uma desordem moral, temidas
como obstáculos à ordem social e reiteradamente inferiorizados em suas capacidades. Dessa forma se justificava
o desinvestimento no social promovido pelos governos
neoliberais, que acentuaram o processo de sucateamento
dos serviços públicos, principalmente nas áreas de educação, saúde e segurança, e a privatização de empresas
estatais que forneciam serviços essenciais á população, e
que marcaram os anos 90.
Entretanto, o clamor dos movimentos sociais pela
ampliação do acesso à cidadania, principalmente à educação – educação infantil, educação indígena e quilombola,
educação profissional e tecnológica – e mais especificaHoje o país conta com mais de 20 mil cotistas negros cursando a
graduação, em 69 instituições de ensino superior público que adotam
ações afirmativas.
2
224
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
mente ao ensino superior, ressignificou o debate sobre
o direito à diversidade e a superação das desigualdades
socioeconômicas. A luta pela democratização do ensino
superior é uma luta política, e “a classe trabalhadora merece o conhecimento que a elite pensa ser seu, pois todo
o saber foi elaborado à custa da exploração das vidas dos
povos” (LINHARES e GARCIA, 1996, p. 87).
Sabemos que a sociedade brasileira é uma sociedade de contrastes marcada pela desigualdade de oportunidades de trabalho e educação e pela exclusão socioeconômica. O processo de globalização da economia e de
reestruturação do mundo produtivo requer mudanças no
sistema educacional que superem o atraso e o desenvolvimento desigual, exigindo que a universidade democratize o acesso a segmentos anteriormente excluídos. Obviamente, essas mudanças interferem nos discursos e nas
práticas acadêmicas, provocam reações e resistências na
comunidade universitária e na intelectualidade, trazendo
para o debate a contraposição de concepções elitistas e
meritocráticas que disfarçam relações raciais marcadas pelas desigualdades educacionais e mascaram a noção de
privilégio no acesso aos cursos mais disputados e com
maior qualidade.
No que tange ao acesso à educação superior no Brasil, vemos que o resultado das políticas implementadas
pelo poder central, desde a década de 60, que visavam a
ampliar as vagas via privatização, levaram o país a uma
das mais baixas taxas de escolarização superior da América Latina apesar de o grau de privatização ser dos mais
elevados do mundo. A ampliação dos níveis de escolarização, em especial no nível médio, acirrou a luta pelo acesso
ao ensino superior, que, nos anos 60, gerou o fenômeno
dos “excedentes”. A saída encontrada pelo governo, desde
então, foi alimentar o processo de privatização pela via da
oferta de financiamento estudantil iniciado com o modelo
do “crédito educativo”, destinado tanto ao pagamento das
mensalidades na rede privada quanto à manutenção do
225
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
estudante na rede pública, minimizando o investimento
na assistência estudantil, o que acentuou a mudança de
perfil do universitário, não mais recrutado somente entre
as camadas favorecidas da população.
Hoje o ensino superior no Brasil é marcado por uma
enorme diversidade no que tange aos padrões de qualidade entre as instituições, decorrente da crescente e desigual
privatização e do desinvestimento nas instituições públicas. Visando atender à crescente demanda dos segmentos
populares, confirma-se a tendência à ampliação de vagas
em cursos de baixo custo, como as licenciaturas oferecidas no período noturno.
Esse processo produziu um cenário paradoxal em
que as poucas vagas da rede pública são alvo de elevada
disputa nos concursos vestibulares, favorecendo sua ocupação por estudantes advindos das camadas médias e altas,
em detrimento dos jovens das camadas populares. Excetuando-se as escolas públicas com comprovada excelência
de ensino – a rede técnica federal, os colégios de aplicação das universidades e algumas escolas-modelo das redes estaduais e municipais –, os candidatos aprovados nas
universidades públicas – principalmente nos cursos mais
prestigiosos e disputados – fizeram o ensino fundamental e
médio, em sua maioria, na rede privada, ou prepararam-se
em cursos pré-vestibulares. Restaram para os oriundos das
camadas populares, que desejam cursar o nível superior, as
escolas particulares, principalmente as que oferecem cursos
noturnos, conciliando o estudo com uma jornada diurna de
trabalho, ou os cursos de menor prestígio nas instituições
públicas. Segundo Pinto (2004, p. 727), o “resultado desse
processo foi uma grande elitização do perfil dos alunos, em
especial nos cursos mais concorridos, onde é muito pequena a presença de afrodescendentes e pobres”.
Atualmente, visando a alterar esse panorama, o governo propõe dois tipos de ação sob a forma de programas
institucionais: um refere-se à reserva de vagas em instituições privadas a serem ocupadas por estudantes de baixa
226
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
renda (Prouni) e outro, de caráter afirmativo, identifica as
camadas populares como afro-descendentes, indígenas e
egressos de escolas públicas e propõem a adoção do regime de cotas. O Prouni, ao oferecer bolsas nas instituições
privadas, foi entendido por muitos como um incentivo
à adesão dos jovens das camadas populares aos cursos
oferecidos pela rede privada – a maioria de qualidade duvidosa. Tal medida, criticada como um processo de financiamento da rede privada via renúncia fiscal, não interferia
no padrão “camadas populares/ensino básico público/ensino superior privado” e “camadas médias e altas/ensino
básico privado/ensino superior público”, e confirmava a
relação entre as desigualdades socioeconômicas e raciais
com as oportunidades educacionais.
Hoje a expansão da rede federal, via Reuni3, que
incentiva com verbas e vagas a expansão da rede federal,
prioritariamente no período noturno, é uma resposta da
esfera instituída às críticas ao Prouni, destinando verbas
públicas para o financiamento da expansão da rede pública. A par disso, a ampliação de vestibulares comunitários e principalmente a adoção, ainda tímida e localizada,
de ações afirmativas via reserva de vagas para alunos advindos das escolas públicas ou afro-descendentes – duas
categorias que contemplam características da maior parte
dos estudantes provenientes das camadas populares –, começam a mudar o perfil do estudante universitário.
Sabemos que os valores vigentes na sociedade neoliberal se contrapõem à efetivação da cidadania e impõem
uma ética excludente a amplas parcelas da população brasileira (PAULA, 1994). Nesta discussão faz-se necessário problematizar o papel da educação na camuflagem das necessidades dos sujeitos históricos coletivos e individuais, marcados pela diversidade cultural e étnica, através de políticas
de conhecimento que inviabilizam o acesso e a apropriação
Programa de reestruturação e expansão das universidades federais,
implantado em 2007.
3
227
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
do ferramental necessário à construção de uma sociedade
mais plural e solidária, bem como as resistências dos sujeitos e instituições, ao processo de democratização.
Alguns setores da Universidade brasileira têm travado, nas duas últimas décadas, um combate no campo político, educacional, cultural e ideológico, visando à construção de novos saberes que “reinventem” uma pedagogia
fundada em uma visão multiculturalista e multirracial, omnilateral, sem descuidar da transmissão dos conhecimentos acumulados historicamente pela humanidade e que
foram, durante séculos, privilégio exclusivo das classes
dominantes (PAULA, 2008).
Entretanto, a resolução do problema do reduzido
e elitizado acesso à educação superior no país não passa apenas por ações afirmativas, mas se refere também a
concepções pedagógicas, curriculares e avaliativas cristalizadas, que defendem uma questionável manutenção da
excelência do ensino fundada no mérito. Essas concepções
refletem valores de classe disseminados e assimilados como
neutros, mas que cumprem a função de filtros étnicos4 e socioeconômicos (PINTO, 2004). Entretanto, a pouca expressão numérica das camadas desfavorecidas na universidade
está relacionada não só a fatores étnicos e econômicos, mas
também a diferenças culturais, assim como à confirmação
das desigualdades socioeconômicas mediante a produção
de desiguais desempenhos escolares e oportunidades educacionais preestabelecidas pelo sistema.
Sabe-se que o sucesso ou o fracasso escolar nas instituições de ensino, inclusive na Universidade, mantêm
estreita relação com o ‘capital cultural’ acumulado nas
experiências familiares, escolares e sociais do estudante. Esse capital cultural, para Bourdieu, seria o eleEntre os brasileiros que concluem o ensino superior, 83% são brancos,
2% pretos e 12% pardos, apesar de 45% da população brasileira ser
composta de pretos e pardos, segundo a classificação do IBGE (MOEHLECKE, 2004, p. 758).
4
228
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
mento da bagagem familiar que teria o maior impacto
na definição do sucesso ou fracasso do jovem em sua
carreira acadêmica. A posse do capital cultural favoreceria o desempenho escolar na medida em que facilitaria a aprendizagem dos conteúdos e dos códigos
institucionais, [...] visto que para as crianças e jovens
provenientes de meios favorecidos culturalmente a
educação formal funciona como uma continuação da
educação obtida no lar (PAULA, 2004, p. 191 e 192).
Sabemos que, no próprio nível superior, é intenso o
fenômeno da evasão e da repetência, sendo que as políticas
afirmativas não podem se restringir à garantia do acesso,
mas contemplar também a permanência. Na universidade,
a incidência maior de reprovação ocorre nas disciplinas
básicas cursadas nos primeiros períodos, e que requerem
o domínio dos conteúdos das disciplinas do ensino médio, e que a evasão é também elevada em muitos cursos,
principalmente devido à dificuldade de acompanhamento das disciplinas e às conseqüentes reprovações, sendo
que, às dificuldades acadêmicas, se somam as dificuldades financeiras, que parecem às vezes intransponíveis. A
democratização do acesso requer também uma mudança
de concepção da própria universidade, que deve prover
recursos para a permanência do estudante no curso, pois
“nem sempre a igualdade de condições (eqüidade) será
assegurada com o ingresso na Universidade”, apesar dos
esforços dos serviços de assistência estudantil. É fato que
os estudantes mais pobres, cotistas ou não, “enfrentam
maiores dificuldades, tanto de cunho financeiro quanto
acadêmico, que seus colegas de classe média” (PAULA,
2004, p. 190). Se, além de pobre, o estudante é negro, suas
chances de fracasso aumentam e, mesmo após formado,
enfrentará as desigualdades de renda salarial em relação
a seus colegas brancos, confirmando que muito há que se
fazer em termos de transformação social para assegurar
a igualdade nas relações raciais no país e a existência de
uma sociedade multicultural efetivamente democrática.
229
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Apenas reconhecer-se o caráter multicultural da nossa
sociedade é muito pouco, como também não basta
que a escola reconheça que a sua clientela é diversificada, seja por gênero, por classe, por raça e que
possui culturas diferentes. (...) Se esse reconhecimento não se fizer acompanhar por políticas de respeito
aos diferentes e por uma mudança de atitudes frente
a eles, dificilmente a escola será capaz de criar mecanismos potentes para transformar as relações de dominação e de exclusão, tanto no seu interior quanto na
sociedade ampliada (SISS, 2002, p. 148).
Entre os muitos desafios enfrentados pela universidade brasileira está o de atender aos clamores dos movimentos sociais organizados pelo respeito ao multiculturalismo e
pela democratização do acesso à educação superior pública,
essenciais às necessidades de desenvolvimento socioeconômico e cultural do país. Esse desafio passa necessariamente
pela condução do debate, acerca da adoção de medidas
voltadas para a inclusão das camadas populares no ensino
superior, hoje marcado pela polêmica. Esse debate remete
a questões éticas e morais, ao mito da democracia racial
brasileira, aos preconceitos latentes que marcam as relações
raciais no país, ressignificando o papel da educação na inclusão/exclusão social das camadas populares.
A agudização da problemática da exclusão social, inclusive a do acesso à escolarização, sem que a intromissão da esfera instituída – pela via do Estado,
signifique encaminhar propostas de soluções viáveis
e conseqüentes que possibilitem a efetivação de uma
política social includente. Isto constitui mais um desafio à reflexão e à ação engajada da comunidade universitária (PAULA, 2008).
A adoção de ações afirmativas nas universidades públicas é hoje um dos maiores desafios enfrentados pela academia, pois problematiza uma questão: como manter elevado um padrão de qualidade de ensino, há anos consolidado
230
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
sob a égide da meritocracia, com a entrada massiva de
segmentos sociais excluídos e classificados como inferiores e incapazes. A polêmica construída em torno da adoção de medidas afirmativas, marcada pela manipulação da
mídia, aponta para a permanência de uma visão aristocrática do saber como privilégio, restrito a poucos, apenas
àqueles selecionados nas disputadas vagas dos cursos e
instituições de prestígio, segundo questionáveis critérios
meritocráticos, que mantêm inalterado o status quo, não
contribuindo para uma real transformação social a par da
superação das desigualdades.
Ações afirmativas: diversidade e desigualdade
Hoje a discussão sobre a adoção de ações afirmativas ganhou o cenário nacional e a agenda universitária,
ainda que suscite polêmicas e conflitos. Recentemente o
manifesto Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas contra as
Leis Raciais5, subscrito por “intelectuais da sociedade civil,
sindicalistas, empresários e ativistas dos movimentos negros
e outros movimentos sociais”, como se autodenominaram
os 113 cidadãos que vieram a público para “oferecer argumentos contrários à admissão de cotas raciais na ordem
política e jurídica da República”. Os argumentos apresentados baseiam-se na premissa de que cotas raciais não irão
reduzir as desigualdades sociais, mas sim, que estas
ocultam uma realidade trágica e desviam as atenções
dos desafios imensos e das urgências, sociais e educacionais, com os quais se defronta a nação. E, contudo, mesmo no universo menor dos jovens que têm a
oportunidade de almejar o ensino superior de qualidade, as cotas raciais não promovem a igualdade, mas
Carta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Gilmar Mendes, em 30/04/2008.
5
231
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
apenas acentuam desigualdades prévias ou produzem
novas desigualdades.
O manifesto questiona ainda a racialização do debate afirmado que se “raças humanas não existem”, este fato,
cientificamente comprovado, deveria conduzir a “construção de uma sociedade desracializada, na qual a singularidade do indivíduo seja valorizada e celebrada”, modificando suas convicções e atitudes morais. Admitem que
“existem preconceito racial e racismo no Brasil, mas o Brasil
não é uma nação racista”, e contrapõem-se ao argumento
de que para garantir o princípio da igualdade de todos perante a lei é necessário tratar desigualmente os desiguais,
como sustentam os proponentes das cotas raciais.
Os manifestantes reafirmam que “são diferenças de
renda, com tudo que vem associado a elas, e não de cor,
que limitam o acesso ao ensino superior”, não mencionando que a maior parte da população de baixa renda é negra
ou parda. Finalizam afirmando que as cotas raciais são “a
face mais visível de uma racialização oficial das relações
sociais que ameaça a coesão nacional”, que sua adoção
anuncia o fracasso da “utopia da igualdade” e da “universalização da cidadania efetiva”, acirra “rancores e ódios”
e “representaria uma revisão radical de nossa identidade
nacional”. Para os signatários, “a distribuição seletiva de
privilégios segundo rótulos de raça inocula na circulação
sanguínea da sociedade o veneno do racismo”, sendo que
a “crença na raça é o artigo de fé do racismo”.
Em resposta ao Manifesto dos Cento e Treze Cidadãos Anti-Racistas contra as Leis Raciais, duas semanas
depois, foi entregue também ao presidente do Supremo
Tribunal Federal (STF), outro manifesto6, este em defesa
da política de cotas raciais nas universidades. O docuCarta entregue ao presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro
Gilmar Mendes, em 13/05/2008, data em que se comemoraram os duzentos anos da Lei Áurea, que aboliu a escravidão no Brasil.
6
232
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
mento foi assinado por mais de mil pessoas, incluindo
acadêmicos, estudantes, artistas e militantes dos direitos
de minorias, e defende a constitucionalidade da política
de cotas, entendendo que a mesma promove oportunidades iguais a brasileiros historicamente tratados de formas
diferentes. O manifesto favorável às políticas afirmativas
contra-argumenta que as cotas cumprem sim o papel de
compensar a histórica exclusão dos negros das universidades, já evidente hoje, visto que “apenas nos últimos cinco
anos houve um índice de ingresso de estudantes negros
no ensino superior maior do que jamais foi alcançado em
todo o século XX”.
Em uma crítica ao argumento de que é complicado
classificar os brasileiros por raças, devido à miscigenação,
os defensores das ações afirmativas esclarecem que o aspecto cultural e histórico de uma raça pode ser usado
para fins de discriminação, como tem sido feito até hoje
e confirma os patamares de desigualdade entre brancos e
negros, mas também permite que se faça uma reflexão sobre a adoção de políticas de inclusão que permitam “trazer
para o interior das universidades brasileiras aqueles grupos
sociais historicamente excluídos”. Comparou-se a posição
dos 113 signatários do manifesto contra as leis raciais com
“as posições e práticas adotadas pela elite conservadora,
que reage desesperadamente para manter o poder que acumulou no período da escravidão, do colonialismo e das
repúblicas branqueadas ou excludentes construídas em um
momento político ultrapassado e que agora são obrigadas
a enfrentar as demandas de uma agenda política que exige
justiça social, convivência multiétnica e multirracial, com
divisão proporcional de poder e de riqueza”. Os defensores
da política de cotas acreditam que sua adoção é uma ação
afirmativa importante para assegurar a inclusão do negro à
universidade e, assim, superar as barreiras impostas pelo
racismo. Sem políticas afirmativas, a mudança social será
muito lenta, retardando a instituição de uma igualdade racial efetiva baseada na justiça e na eqüidade de direitos.
233
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Cabe mencionar que a elaboração dos dois manifestos foi provocada pela preocupação com o julgamento
de duas ações7 sobre o tema, e o significado histórico que
os resultados destas ações podem causar em termos de
jurisprudência sobre a constitucionalidade de leis raciais
e demais ações afirmativas. Segundo o discurso jurídico,
a constitucionalidade das medidas de ações afirmativas é
construída, através da fusão de dois fatores, quais sejam:
o modelo de sociedade previsto, construído pelo Estado
constitucional, e a realidade social do povo a que se propõe esse modelo. Assim, o que está em discussão é a
própria constituição da sociedade brasileira e como esta
interpreta e pratica valores como igualdade, equidade e
justiça. Não podemos deixar de destacar que é o fato de
esta ser uma sociedade de contrastes e profunda desigualdade e exclusão socioeconômica que dá sentido e justifica
a adoção de políticas afirmativas que pretendem minimizar esses aspectos.
O recente episódio dos dois manifestos, assinados
por personalidades do mundo acadêmico e por intelectuais respeitados, demonstra a confusão ideológica que
a polêmica que envolve a proposta de adoção de medidas afirmativas, principalmente da instituição de cotas
para acesso de segmentos sociais tradicionalmente excluídos, trouxe para o meio universitário. Os questionamentos apresentados pelos grupos não tão distintos mas com
posições frontalmente contrárias, pro e antipolíticas de cotas, revelam as disputas e contradições na concepção de
universidade, apontando para a existência de enfoques,
perspectivas e lógicas distintas, que representam posturas
progressistas e conservadoras e diferentes campos de poder
Duas ações diretas de inconstitucionalidade (ADI 3.330 e ADI 3.197)
promovidas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen), a primeira contra o programa Prouni e a segunda contra a lei de cotas nos concursos vestibulares das universidades estaduais
do Rio de Janeiro, a serem apreciadas proximamente pelo STF.
7
234
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
acadêmico e político. Também demonstra o diferencial
ideológico de se reconhecer e aceitar a presença da diversidade cultural e étnica na universidade e na sociedade e
de efetivamente se comprometer a impedir que essa diversidade seja a justificativa para um tratamento desigual que
restrinja as oportunidades de uns e amplie as de outros,
e contraditoriamente quando surge a ocasião de corrigir a
histórica desigualdade inverte a noção de privilégio e se
denomina de racismo a constatação de que a democracia
racial no Brasil sempre foi apenas um mito.
A própria utilização do termo “afro-descendente”, para alguns uma expressão imprecisa que pode homogeneizar diferenças, e inclusive divide os defensores
das cotas quanto aos critérios de atribuição do direito às
cotas, pela fenotípia, em que a cor teria um papel importante ou pela descendência, pela avaliação externa das
características étnicas ou pela auto-atribuição, variáveis diferentemente empregadas nas diferentes instituições que
adotam as cotas, muitas delas conjugando fatores econômicos ou referentes à trajetória escolar pregressa entre os
critérios classificatórios.
Cabe destacar, ainda, que dentre os argumentos
contrários às leis raciais, e mesmo entre os favoráveis, os
que defendem a classificação pela descendência e pelo
predomínio dos aspectos culturais na definição de quem
tem direito às cotas, são influenciados pela própria dificuldade de se definir quem é negro, branco, pardo, etc.
na sociedade brasileira. Segundo José Murilo de Carvalho,
a não inclusão de mestiços, mulatos, morenos, caboclos,
nos censos demográficos poderia ser interpretada como
um “genocídio racial estatístico”, impossibilitado traçar um
perfil mais fidedigno e característico da população. Já na
década de 1950, Oracy Nogueira afirmava que “a concepção de branco e não branco, variava, no Brasil, em função
do grau de mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de
classe para classe, de região para região”, indicando que
a multiculturalidade é a tônica da sociedade brasileira.
235
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Assim, podemos afirmar que as relações raciais no Brasil e
o debate sobre a adoção de medidas afirmativas que visam
a diminuir as desigualdades impostas historicamente por
aspectos étnicos, trazem uma enorme complexidade social,
econômica e cultural com fortes componentes ideológicos.
Esse cenário é evidente no episódio dos dois manifestos, quando a polêmica sai dos muros das universidades e ganha a sociedade envolvendo diferentes segmentos
no campo das artes e da intelectualidade brasileira, dividida e confusa entre os diversos discursos e a defesa de
interesses de grupos minoritários ou majoritários. Assim
vemos que a polêmica instaurada em torno de quem ocupará as disputadas vagas das universidades públicas pode
ser também entendida como uma disputa de hegemonia
no campo da produção de conhecimento, ora entendida
como privilégio a ser preservado ora como direito a ser
estendido á população. Assim, acirra-se o debate no sentido da conservação das estruturas de poder instituídas
ou da transformação social de uma sociedade que aceleradamente se adapta a novas demandas de um mundo
globalizado.
O conhecimento produzido na Universidade, apesar
das suas contradições, avanços e retrocessos, pode
indicar pistas para efetivas transformações sócio-culturais-educacionais, nutrindo os sujeitos históricos individuais e coletivos, na busca emancipatória comum
da reinvenção de valores para a construção de novos
padrões civilizatórios visando à construção de uma sociedade cidadã pluralista e inclusiva (PAULA, 2008).
A análise do papel desempenhado pela educação
seja na reprodução das desigualdades sociais seja na superação das mesmas deve ser empreendida em uma perspectiva mais ampla. Nesse sentido, compreendemos que
a sociedade brasileira foi gestada e se desenvolveu alimentando as múltiplas desigualdades sociais, confirmadas
236
Relações raciais e desigualdade: resistências à política de cotas...
pelas diferentes formatações do Estado, que, entretanto,
mantiveram uma estrutura social excludente, que inferioriza amplas parcelas da população, principalmente a
classe trabalhadora predominantemente mestiça e negra.
Assim, a análise das relações assimétricas de poder entre os diferentes grupos e classes sociais é fruto de uma
construção histórica marcada pela sujeição de etnias e que
determinou as relações entre esses grupos caracterizados
não apenas como diferentes, do ponto de vista cultural,
mas, principalmente como desiguais, do ponto de vista
socioeconômico.
Assim, ainda que os diferentes grupos sociais que
compõem a sociedade brasileira hoje, numa concepção
multicultural sejam entendidos, no plano antropológico
como efetivamente diferentes, eles são entendidos, também, no plano sociológico como profundamente desiguais. Dessa forma, ao analisarmos as relações raciais na
sociedade brasileira, bem como a discussão sobre a adoção de políticas afirmativas, como a de cotas no acesso ao
nível superior, tem que se considerar a centralidade das
interseções entre políticas educacionais, culturais, processos de implementação de cidadania plena, classe, renda,
etnias e ação coletiva de atores sociais.
À guisa de conclusão, finalizo com as palavras de
Nigel Brooke:
Se não houver uma intervenção explicita, com o objetivo de aumentar o acesso e a permanência do negro
dentro do sistema educacional, as diferenças educacionais perdurarão, com tudo o que isto significa para
a manutenção dos sistemas de estratificação racial,
para a distribuição desigual da renda e para a perpetuação das desigualdades no exercício dos direitos
humanos e civis que tanto dificultam a consolidação
da democracia no país (BROOKE, 2002, p. 154)
237
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
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239
Estudantes de uma universidade
estadual com cotas: a percepção
do racismo e da política de
ações afirmativas
Dalila Fonseca Benevides
Daniela Silva Santo
Delcele Mascarenhas Queiroz
Introdução
Apesar da forte presença da população negra no
conjunto da população brasileira, até meados da década de 90 pouco se sabia a respeito da sua participação
na universidade. Essa evidência é constatada pela investigação realizada, em 1997, na Universidade Federal da
Bahia (UFBA) (QUEIROZ, 2000). Esse talvez tenha sido o
primeiro levantamento dessa natureza. Mesmo no âmbito
dos movimentos de organização da população negra, em
que houve uma preocupação com o acesso à escolarização, o que se debatia sobre o ensino superior, advinha, de
modo geral, de experiências pessoais ou da observação
mais imediata. Fruto dessa preocupação é a criação, ainda
no início dos anos 90, de cursos preparatórios para o vestibular, em Salvador, cujo pioneirismo cabe ao Instituto
Steve Biko. Fora desse contexto, quase nada se discutia a
respeito.
O questionamento da desigualdade de acesso à universidade ganha efetiva visibilidade nos eventos preparatórios para a participação na III Conferência Mundial Contra
o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas
241
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Correlatas de Intolerância, promovida pela ONU, em 2001.
No contexto da conferência, o tema se coloca como demanda efetiva dos movimentos negros, que o governo
brasileiro é compelido a acolher, através de medidas ainda
muito tênues, como a promoção de cursos preparatórios
para o vestibular. É nesse cenário que se situa o debate em
torno das políticas de ação afirmativa para negros, no Brasil, como medidas de superação das desigualdades raciais,
e a proposta de “cotas raciais” como uma das formas de
materialização desse tipo de política, no ensino superior.
A primeira instituição brasileira a adotar um sistema de cotas raciais para o acesso de negros, tanto aos
cursos de graduação quanto de pós-graduação foi a Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Em maio de 2002,
seu Conselho Superior aprovou por unanimidade a adoção da medida, que passaria a vigorar no concurso vestibular do ano de 20031. A política tinha como alvo os
estudantes negros oriundos de escolas públicas. Naquele
momento, a Uneb implantava também seu primeiro curso de mestrado, o Mestrado em Educação e Contemporaneidade, que desde o seu surgimento contemplou a
política de “cotas”.
Apesar do seu pioneirismo, a implementação e os
resultados da política adotada pela instituição não tem
merecido dos pesquisadores a atenção devida. Salvo o
artigo de Mattos (2003) analisando o primeiro momento
da implantação da política, pouco se sabe sobre esse
processo.
A análise que apresentaremos a seguir resulta de
dois levantamentos sobre os estudantes da Uneb, que
ingressaram no ano de 2005, pelo sistema de cotas, e
pretende contribuir para o debate em torno das ações
afirmativas e, particularmente, refletir sobre experiência
de adoção de tais medidas na própria universidade, con1
A Resolução de n. 196/2002, do Conselho Universitário da Uneb,
instituiu o sistema de cotas da instituição.
242
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
tribuindo para preencher a lacuna de informação e de reflexão em torno desse processo. O primeiro levantamento buscou conhecer as características socioeconômicas e
acadêmicas dos estudantes que ingressaram em cursos
de elevada concorrência. O segundo objetivou conhecer
a percepção dos estudantes sobre as relações raciais, as
ações afirmativas e, particularmente, a política de cotas
que os beneficiou.
1 - Desigualdades raciais na sociedade
e na universidade
Apesar do ambiente marcadamente conflituoso
da sociedade colonial brasileira, durante todo o século
XIX (entre outros, REIS, 1986; MATTOS, 2004; CASTRO,
1999), a imagem do Brasil como uma sociedade de convivência harmônica entre as “raças”, de um “paraíso racial”, difundiu-se e consolidou-se na idéia de “democracia racial”. Tal foi a força dessa imagem que, no final
dos anos 40 do século passado, o Brasil é escolhido
pela Unesco como local de verificação de possibilidades de convivência pacífica entre grupos raciais, para
sediar um amplo programa de pesquisas sobre relações
raciais, destinado a mostrar ao mundo, traumatizado
pelo Holocausto, o exemplo de uma experiência bemsucedida de relações raciais.
Esses estudos, que ficaram conhecidos como O
Programa UNESCO, foram realizados na Bahia, no Rio
de Janeiro, em São Paulo e em Recife, e coordenados,
respectivamente, por: Tales de Azevedo, Luiz Carlos
Costa Pinto, Florestan Fernandes e Roger Bastide, e
René Ribeiro (MAIO, 1997). Os resultados das pesquisas trouxeram à tona uma realidade insuspeitada: contrariando a expectativa otimista dos seus patrocinadores, mostraram a antiimagem do “paraíso racial”, isto
é, revelaram uma sociedade marcada pelo preconceito
243
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
racial, com significativa distinção nas condições de vida
de brancos e negros.
Muito embora os resultados desses estudos pusessem por terra a imagem do “paraíso”, revelando a realidade de um país racialmente desigual, alguns autores
mantinham a fé na “democracia racial” e a crença de que
essa desigualdade era um legado do período escravista,
marcado por relações estamentais, alimentando a expectativa de que tais desigualdades fossem paulatinamente
desaparecendo por efeito do processo de modernização
que se consolidava no país.
Ao revelar a realidade do preconceito racial na sociedade brasileira, contudo, esses estudos abriam caminho para a formulação de novas hipóteses. O aprofundamento dos estudos raciais, nessa vertente, irá evidenciar
que o tempo decorrido, desde a extinção do trabalho
escravo, já não autorizava a invocar a escravidão como
fator explicativo da inferioridade social dos negros. No
final dos anos 70, uma tese de doutorado torna-se um
marco nos estudos sobre relações raciais no Brasil. Ao
examinar as estatísticas oficiais, produzidas pelo IBGE,
Carlos Hasenbalg constata que havia profundas distâncias entre negros e brancos na sociedade brasileira; que
as desigualdades existentes entre esses segmentos sociais
no mercado de trabalho, na distribuição de renda e no
acesso à educação são desigualdades marcadas pelas
características raciais desses grupos e não apenas pela
condição de classe. Essas conclusões o levam a assinalar
que “a persistência histórica do racismo não deve ser
explicada como mero legado do passado, mas como servindo aos complexos e diversificados interesses do grupo racialmente dominante no presente” (HASENBALG,
1987, p. 11).
Para o autor, o preconceito e a discriminação funcionam como mecanismos de exclusão, cotidianamente
atualizados pela realidade brasileira. Daí a sua observação
de que embora se saiba, hoje, que a raça é tão-somente
244
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
uma representação, um atributo que é elaborado socialmente, a partir de marcas corporais, essa representação
continua a operar como um dos critérios mais importantes
no recrutamento dos indivíduos às posições da hierarquia
social (HASENBALG, 1987, p. 180).
A perspectiva adotada por Hasenbalg inaugura,
deste modo, uma nova interpretação sobre as relações
sociais brasileiras, desencadeando uma rica produção de
estudos buscando apreender as relações entre brancos e
negros em vários espaços como o mercado de trabalho, a
educação, a política, entre outros espaços sociais, resultando num consistente mapeamento das desigualdades
raciais no país, o que contribuiu para abrir caminho para
a formulação das políticas de combate ao racismo e à
discriminação racial, em curso, no Brasil, na contemporaneidade.
2 - A invisibilidade dos negros
no sistema de ensino
Em que pese a longa tradição de estudos das relações raciais no país, no campo da educação os estudiosos
permaneceram alheios a essa realidade. Embora a aquisição de escolaridade tenha se constituído, ao longo de
todo o século XX, numa questão importante para a agenda
dos movimentos de organização da população negra, para
os educadores essa preocupação aparece tardiamente. Até
o final dos anos 70 do século passado, o acesso do negro
ao sistema de ensino e a sua trajetória nesse espaço não se
apresentavam como um problema que merecesse a atenção dos educadores, mantendo-se restrito ao âmbito dos
militantes e intelectuais comprometidos com esses movimentos (GOMES, 2004).
No final dos anos 80, no contexto das comemorações pelos 100 anos da Abolição, passa a haver uma ampliação das pesquisas sobre a situação do negro no Brasil,
245
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
inclusive aquelas denunciando o analfabetismo e a baixa escolaridade da população negra. É ilustrativo desse
contexto a publicação pela Fundação Carlos Chagas, em
novembro de 1987, de um número (63) do Cadernos de
Pesquisa, sob o título “Raça negra e educação”.
No entanto, é mais precisamente a partir dos anos
90 que o debate em torno do acesso do negro ao sistema
de ensino vai ganhar visibilidade, para além do âmbito
dos movimentos negros. O debate se intensificou com a
divulgação, no início da década seguinte, de estudos sobre a reduzida presença de negros na universidade, sejam
eles oriundos de organismos oficiais de pesquisa, como o
Ipea2, sejam aqueles realizados por pesquisadores, no âmbito acadêmico, como o de Queiroz (2001), que analisou
comparativamente a presença de negros em universidades
federais brasileira.
3 Quem são e o que pensam
os estudantes da Uneb
A seguir analisaremos um conjunto de dados sobre
as características dos estudantes da Uneb, que ingressaram
em 2005. Utilizando um questionário, como instrumento
de coleta, foram levantadas informações sobre as características pessoais do estudante, sobre sua trajetória escolar
no ensino médio, tais como o tipo de escola freqüentado,
turno em que estudou, associação entre estudo e trabalho, e sobre aspectos referentes à família, como renda,
escolarização e ocupação dos pais. No segundo momento,
examinaremos informações provenientes da coleta realizada, através de entrevistas, entre os estudantes do curso de Pedagogia, que ingressaram na UNEB, também em
2005. A escolha do curso de Pedagogia decorre do nosso
entendimento de que em um curso de formação de pro2
Instituto de Pesquisas e Estudo Aplicados
246
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
fessores, supostamente, haveria uma maior preocupação
com as questões sociais, como o racismo e a discriminação racial, entre outras, e com a tarefa da educação na sua
superação.
3.1 Características do estudante
e percepção das cotas
A pesquisa, cujos resultados serão aqui analisados,
teve como espaço empírico os cursos das áreas de Ciências Humanas, Ciências Exatas e da Terra, e Ciências da
Vida, do Campus I/Uneb. Em cada área, se tomou o curso
de mais elevada concorrência, no caso, os cursos de Enfermagem, Comunicação Social e Análise de Sistemas. A
partir do dessas informações, buscou-se refletir sobre a relação entre a condição socioeconômica do estudante, seu
pertencimento racial, sua origem escolar e o significado
do seu acesso a cursos valorizados, através do sistema de
cotas. Evidentemente os resultados desses levantamentos
não podem ser generalizados, porque se referem a um
conjunto pequeno de estudantes, mas representam uma
amostra significativa desse universo, por tomar para análise cursos prestigiados, no campus da universidade que se
localiza na capital do estado.
A “cor” do estudante
A autoclassificação induzida, pelas categorias do
IBGE, indica que 55,6% estudantes se classificaram como
pardos e 33,3% como pretos, perfazendo um total de 88,9%
entrevistados se classificando como negros (Tabela 1). As
demais categorias têm uma presença reduzida nesse conjunto, realidade que reflete a política de cotas raciais implantada pela instituição.
247
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Tabela 1 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a autodeclaração de cor induzida – Uneb 2005
Cor
Branca
Parda
Preta
Amarela
Indígena
Total
%
3,7
55,6
33,3
3,7
3,7
100
Fonte: Pesquisa direta
Condições de vida dos cotistas
A Tabela 2, a seguir, evidencia que uma parcela
bastante significativa (88,9%) desses estudantes possui
casa própria. Esse dado, ao contrário de indicar uma elevada condição socioeconômica dos seus proprietários,
possivelmente está apontando para um fenômeno muito
característico da urbanização das grandes cidades brasileiras, que são as moradias construídas pelo sistema de
“autoconstrução”, nos bairros populares. Se cruzarmos
essa informação com as que analisamos anteriormente,
sobre o local de moradia dos estudantes, reforçaremos
essa suposição.
Tabela 2 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a condição da residência – Uneb 2005
Condição
Própria
Alugada
Total
%
88,9
11,1
100
Fonte: Pesquisa direta
A análise da renda familiar dos estudantes entrevistados mostra que mais da metade deles (55,6%) não ultrapassa o patamar de cinco salários mínimos (Tabela 3).
248
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Apesar do nível de renda relativamente baixo, este contingente de estudantes se encontra em uma situação, sensivelmente melhor que a da maioria da população negra
brasileira. Analisando dados do Ipea, Henriques (2001)
assinala que
[...] nascer negro no Brasil está relacionado a uma maior
probabilidade de nascer pobre. A população negra
concentra-se no segmento de menor renda per capita
da distribuição de renda do país. Especificamente, os
negros representam 70% dos 10% mais pobres da população, enquanto, entre o décimo mais rico da renda
nacional, somente 15% da população é negra (17).
Tabela 3 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a renda familiar – Uneb 2005
Salários Mínimos
Abaixo de 2
De 2 a 3
De 4 a 5
De 6 a10
De 10 a 20
Acima de 20
Total
%
11,1
44,4
29,6
14,9
100
Fonte: Pesquisa direta
A história escolar do estudante
Cerca de metade do grupo investigado cursou o ensino fundamental em escolas privadas (51,9%), enquanto que uma parcela em torno de um terço, cursou uma
escola pública, nesse nível de ensino (Tabela 4). Todos
os estudantes investigados cursaram o ensino fundamental no turno diurno. Uma proporção também expressiva
(88,9%) fez o curso médio, no turno diurno, o que indica
que, em tese, puderam manter-se afastados do mercado
de trabalho durante a formação básica (Tabela 5, anexa).
249
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Apenas 14,8% estudantes fizeram um curso técnico-profissionalizante, durante o ensino médio (Tabela 6, anexa);
o que leva a supor a existência de um projeto familiar,
cujo horizonte era o ensino superior. Apesar da origem
na escola pública, percebe-se que esse grupo está distante da trajetória freqüentemente encontrada na maioria
dos estudantes negros. Como assinala Nogueira (2000),
ao contrário do que comumente se observa em estudantes oriundos de escolas privadas, estudantes oriundos de
escolas públicas realizam, não raro, um tipo de caminho
dito “circuito vicioso” (p. 128), em oposição ao “circuito
virtuoso”, realizado por aqueles. São trajetórias escolares
acidentadas, marcadas por episódios freqüentes de interrupções ou pelo simples abandono do curso3, seja porque as próprias escolas não reúnem as condições mínimas
necessárias à permanência do estudante, terminando por
expulsá-lo, seja porque ele necessite arcar com o ônus da
própria sobrevivência, ou até mesmo da sobrevivência de
outros, abandonando mais cedo a escola para enfrentar o
mercado de trabalho, ou simplesmente porque a carreira
acadêmica é algo muito distante do horizonte de aspirações do seu grupo social4. Reprovação e repetência são
aspectos destacados pela análise de Portela (1997), como
traços marcantes do sistema escolar público brasileiro, responsáveis pela permanência do estudante numa mesma
série, por anos seguidos.
Queiroz (1997) observou este fenômeno ao examinar as trajetórias
escolares de um grupo de mulheres negras portadoras de instrução
primeira e de segundo grau, ocupadas numa empresa do ramo de comércio, da Região Metropolitana de Salvador.
4
Teixeira (1998), no seu estudo sobre a trajetória de alunos e professores universitários negros no Rio de Janeiro, observou que “para parte
dos entrevistados, a escolha da carreira ou curso não era para a família
uma decisão importante” (p.,241). Para eles, a necessidade de ampliação dos rendimentos da família se sobrepõe, provavelmente, à ambição
de ver um filho na universidade.
3
250
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Tabela 4 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o
tipo de escola freqüentada no Ensino Fundamental – Uneb 2005
Tipo de escola
Pública
Privada
Pública e depois privada
Privada e depois pública
Total
%
33,3
51,9
7,4
7,4
100
Fonte: Pesquisa direta
Mais de um terço dos entrevistados (37%) ingressaram na universidade na primeira tentativa; e uma proporção de 18,5% havia tentado vestibular três vezes ou
mais. Os demais, em igual proporção, haviam feito de
uma a duas tentativas, no mesmo curso ou em cursos
diferentes, como mostra a Tabela 7, a seguir. Investigando as desigualdades raciais no acesso à UFBA, no
final da década de 90, Queiroz (2001) havia observado
entre os estudantes uma gradação de cor que correspondia à sua experiência anterior em concursos vestibulares. Assim, em primeiro lugar, isto é, aqueles com
menor número de experiências anteriores, estavam os
“brancos” seguidos pelos “morenos”, depois os “mulatos” e, finalmente, os “pretos”. Entre os “brancos” e os
“pretos” havia uma distancia de cerca de onze pontos
percentuais, significando que os “brancos” eram mais
bem-sucedidos na sua tentativa de ingressar na universidade. Como se pode observar, há uma proximidade
da situação anteriormente descrita para os estudantes
cotistas da Uneb, com a do contingente de “mutatos” e
“pretos”, da UFBA, o que evidencia que há uma desvantagem para os estudantes negros, mesmo no contexto
de uma política diferenciada de acesso, indicando que
as barreiras presentes nas trajetórias desses estudantes
pesam com rigor especial no momento do seu acesso
ao ensino superior.
251
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Tabela 7 – Distribuição percentual dos estudantes segundo
o número de vezes que prestou vestibular – Uneb 2005
Número de vestibulares
Não fez anteriormente
Uma vez para o mesmo curso
Uma vez para outro curso
Duas vezes para o mesmo curso
Duas vezes para outro curso
Três ou mais vezes
Total
%
37
11,1
11,1
11,1
11,1
18,5
100
Fonte: Pesquisa direta
Coerente com a análise anteriormente apresentada
sobre as tentativas de ingressar na universidade, uma proporção elevada desses estudantes freqüentou curso preparatório para o vestibular; em alguns casos, até por três
vezes, até conseguir aprovação. Apenas 18,5% deles não
passaram por tal experiência (Tabela 8). Se confrontarmos essa informação com outras como a origem escolar,
a renda e o local de residência, p. ex., podemos imaginar,
por um lado, o quanto custou às suas famílias a realização desse projeto acadêmico, por outro, que sua trajetória
está muito distante daquilo que é a trajetória padrão dos
estudantes negros de escolas públicas, como têm evidenciado os estudos de Cavalleiro (2000), Rosemberg (1991),
Hasenbalg (1992), Barcelos (1992).
Tabela 8 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a participação em cursinhos – Uneb 2005
Freqüentou cursinho
Não
Uma vez
Duas vezes
Três vezes ou mais
Total
Fonte: Pesquisa direta
252
%
18,6
44,4
25,9
11,1
100
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Características das famílias
Os pais desses estudantes têm em geral uma escolaridade de nível médio. A observação da escolaridade do
pai, isoladamente, mostra que dois terços deles cursaram
até o ensino médio (66,7%), sendo pouco expressiva a
parcela dos que concluíram um curso superior (7,4%). Entre as mães, o nível de escolaridade é mais elevado, considerando que 59,3% delas têm o segundo grau completo,
11,1% o curso superior incompleto e 7,4% concluíram o
curso superior, o que não chega a surpreender em se tratando da escolaridade das mulheres; a escolaridade mais
elevada entre as mulheres é um fenômeno mais ou menos
universal, em tempos mais recentes (Tabela 9).
Tabela 9 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a escolaridade dos pais – Uneb 2005
Escolaridade
Até primeiro grau incompleto
Primeiro grau completo
Segundo grau incompleto
Segundo grau completo
Curso superior incompleto
Curso superior completo
Total
Pai
7,4
7,4
11,1
66,7
7,4
100
Mãe
7,4
7,4
7,4
59,3
11,1
7,4
100
Fonte: Pesquisa direta
No que diz respeito à ocupação do pai, em proporções muito próximas, eles são comerciantes, assistentes administrativos, autônomos, bancários, funcionários
públicos. Também aparecem, numa proporção menor, os
que são gerente de vendas, instrumentista, almoxarife,
engenheiro mecânico, militar, vendedor, contador, técnico
de segurança do trabalho, inspetor. Há alguns aposentados (11,1%). Quanto à ocupação das mães, chama atenção que 29,6% delas sejam donas de casa, o que demonstra que, mesmo com renda pouco elevada, estas famílias
253
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
têm condições de manter um de seus membros fora do
mercado de trabalho. A ocupação de professora aparece bem representada, com 18,5% delas, nessa categoria.
Uma parcela menor aprece como técnica de enfermagem
e vendedora. A menor participação é daquelas cuja ocupação é agente de limpeza, administradora e comerciante.
O questionário não permitiu conhecer a natureza dessas
ocupações em termos de sua formalização, o que possibilitaria um aprofundamento da compreensão do significado
desse indicador.
Visão dos estudantes sobre as cotas
Indagados sobre a pertinência da política de cotas,
55,6% desses estudantes entendem que a medida “deveria
ser expandida para todos os estudantes pobres”. Apenas
18,5% compreendem que essa “é uma medida reparadora para os negros”, outros “porque favorece os negros
de escolas públicas”. Uma parcela deles considera que
a medida “é discriminatória, pois julga os negros menos
capazes”. Consideramos que a opinião desfavorável ao
interesse da população negra, predominante entre dois
terços desses estudantes, se deve não apenas à invisibilidade da questão racial, na sociedade brasileira, como
porque a informação que eles recebem sobre a medida
provém, possivelmente, dos meios de comunicação, carregados, em geral, de uma visão abertamente tendenciosa, quando se trata do questionamento do racismo brasileiro. Pode-se perceber que, na própria universidade que
adotou a medida, a política de cotas está envolta em desinformação entre os universitários, mesmo entre aqueles
que se favoreceram dela, quando se constata, que 22,2%
dos cotistas entrevistados se recusaram a expor sua opinião sobre a medida (Tabela 10).
254
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Tabela 10 – Distribuição percentual dos estudantes
segundo a opinião sobre as cotas – Uneb 2005
Opinião
A favor porque favorece os negros
de escolas públicas
%
3,7
É discriminatória, pois julga os negros
menos capazes
7,4
É justa, pois é uma medida reparadora
para os negros
11,1
Deve ser expandida a todos
os estudantes pobres
N/D
Total
55,7
22,2
100
Fonte: Pesquisa direta
3.2 Percepção sobre a política de cotas e sobre o
racismo na sociedade e na universidade
Com o propósito de aprofundar nossa compreensão
sobre o que pensam os estudantes a respeito do racismo
e das políticas afirmativas para negros, particularmente
sobre a reserva de vagas nessa universidade, coletamos
informações através de entrevistas semi-estruturadas.
A princípio, as entrevistas deveriam ser realizadas com
quatro estudantes de cada turno de funcionamento do
curso, isto é, dos três turnos diários. Deveriam ser entrevistados dois homens e duas mulheres, dois deles cotistas, e dois não cotistas. No turno matutino, havia apenas
um homem, que atendia às características definidas para
participar da amostra, o que resultou na participação de
apenas cinco homens e sete mulheres; mantendo assim
os doze estudantes entrevistados. Em geral, a idade dos
entrevistados estava em torno de 23 anos. Apenas dois
entrevistados, do sexo masculino, tinham idade superior
a trinta anos.
255
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Percepção sobre o racismo na universidade
e na sociedade
Quando indagados a respeito do que é o racismo, as
respostas foram, de modo geral, inespecíficas. Disse uma
das entrevistadas, negra e cotista:
Racismo é a discriminação... Deixe-me ver... É muito
difícil essa pergunta. A terminologia racismo, raça...
Acho que temos raças diferentes, somos diferentes.
Eu acho que o racismo é isso mesmo, a gente acaba
defendendo a nossa raça e subjugando a outra.
A resposta parece indicar a existência de “simetria”
na possibilidade de subjugação de uma “raça” por outra,
o que parece conferir certa naturalidade e legitimidade
ao racismo. Ao afirmar que “a gente acaba defendendo a
nossa raça e subjugando a outra”, a entrevistada demonstra um desconhecimento das relações de força presentes
na sociedade e do racismo como uma expressão dessas
relações, com suas perversas conseqüências para a população negra.
A pergunta seguinte indagava sobre a existência do
racismo na sociedade. A maioria afirmou não perceber.
Essas respostas evidenciam que o discurso da “democracia
racial” está de tal modo incorporado às estruturas cognitivas desses estudantes (RODRIGUES, 2005), que os impede
de perceber a desigualdade de tratamento e de condições
de vida da população negra, nos vários espaços da sociedade brasileira. A força da imagem da “democracia racial”
entre nós é tal que, até mesmo aqueles que estão submetidos ao racismo, têm dificuldade de percebê-lo, ou não se
sentem à vontade para denunciá-lo, mesmo na universidade, um ambiente onde, em maior ou menor grau, circula
um discurso crítico sobre a sociedade. Podemos também
argumentar que essa invisibilidade do racismo decorre da
ausência do debate, sobre sua existência. Essa ausência
256
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
está também em outros espaços educativos como a “grande mídia”, por exemplo. Tudo isso concorre para o pouco entendimento do que seja o racismo, dificultando uma
interpretação adequada da realidade. Apenas uma entrevistada, negra, e cotista, afirmou a existência do racismo,
contudo, de modo vago:
Sim, eu acho que existe racismo na sociedade sim, eu
não sei dizer por que, mais eu acho que existe.
No entanto, uma outra das entrevistadas, também
negra e cotista, assim se expressou, sobre sua percepção
do racismo na sociedade brasileira:
Demais... E eu não acho que a discriminação racial
seja uma coisa velada, por baixo do pano, acho que
ela é bem evidente, quem pode, quem não pode,
quem é, quem não. E não como as pessoas falam, que
é por baixo do pano. Preto branco, azul...
Questionados sobre a existência do racismo na universidade, dois estudantes do sexo masculino, autodeclarados pretos, disseram não percebê-lo. Entre as mulheres
apenas uma, também autodeclarada negra, afirmou não
perceber. Respondeu um dos entrevistados:
Aqui eu não vi nada nesse sentido, pelo menos não
aqui. Eu, pelo menos, não presenciei.
Embora alguns estudantes tenham admitido a existência de racismo na sociedade, uma de forma veemente, inclusive, quando foram perguntados sobre o racismo
num contexto mais próximo, as respostas mostraram-se
pouco esclarecedoras.
257
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Visão sobre cota e ações afirmativas
Sobre o sistema de cotas, quatro dos entrevistados,
homens, mostraram-se totalmente favoráveis. Entre as mulheres, apenas duas, mostraram-se a favor da medida. O
discurso que prevalece é o de que as cotas devem ser
ampliadas para todos os estudantes de escolas públicas,
como se pode depreender da fala a seguir:
Essa é uma pergunta difícil porque eu sou contra! Eu
sou a favor no sentido que favorece a entrada dos
estudantes negros na universidade, na medida em
que eles concorrem com níveis iguais. Só que eu vejo
como ponto negativo a maneira como o governo, ao
invés de dar base, subsídio para melhorar a base, o
ensino fundamental, ele colocou as cotas.
Essa percepção, vinda até mesmo de uma estudante
beneficiada pela política de cotas, demonstra como tem
eco, no seio da sociedade, o discurso contrário às cotas,
reiterado cotidianamente pela mídia, que caracteriza uma
medida reparadora da desvantagem secular a que está
submetida a população negra como um “privilégio”, para
usar a terminologia do “manifesto contra as cotas”5, muito
embora o manifesto seja mais enfático, e caracterize as
“cotas”, como um “privilégio odioso”. Talvez isso explique
a invisibilidade do racismo na universidade, revelado nas
respostas anteriores. Os próprios estudantes não conseguem perceber a relação entre o racismo e o alijamento
dos negros de certos espaços sociais. No entanto, aqueles
estudantes que vêm de uma experiência de participação
Em 30 de maio de 2006, um grupo de intelectuais subscreveu um
documento posicionando-se com relação às propostas de Estatuto da
Igualdade Racial e da Lei de Cotas, que tramitavam no Congresso Nacional, naquele momento. O documento foi publicado na íntegra no
jornal Folha de S. Paulo. Folhaonline <www1.folha.uol.com.br/folha/
educacao/ult305u18773.shtml>. Acesso em 28/03/2008.
5
258
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
no movimento social demonstram uma outra visão sobre
o tema, considerando que a medida é pertinente e que a
dificuldade dos estudantes negros de terem acesso à universidade ocorre:
[...] pelo fato de que já nos é negada muita coisa, eu
acho que não é por falta de vontade, de inteligência;
é por falta de oportunidade.
Ao serem perguntados sobre a capacidade de as cotas de facilitarem o acesso à universidade, apenas uma
entrevistada, autodeclarada branca, afirmou não acreditar
nisso, apontando para a distância entre a quantidade de
estudantes que demanda os cursos superiores e o resumido número de vagas reservadas para os negros, que são
majoritários na população baiana. Disse ela:
Não facilita tanto, porque é uma quantidade muito pouca de vagas. É muita gente que precisa, e quer entrar.
A respeito da relação entre ingresso através de cotas e baixo desempenho acadêmico, foram unânimes em
considerar que, com a instituição das “cotas”, não houve
a propalada diminuição da qualidade do ensino, expectativa demonstrada por muitos dos opositores da política
de cotas, como evidencia o trabalho de Santos e Queiroz
(2008). Ao contrário, argumentaram em favor da medida,
pelos benefícios que podem advir da diversidade proporcionada pela presença de estudantes de diferentes contextos societários, como revela a fala a seguir:
Não, de forma nenhuma. Muito pelo contráario, a turma, ela é muito heterogênea e as contribuições são as
melhores possíveis. Talvez se as pessoas tivessem um
mesmo tipo de experiência de vida, tivessem advindo
da mesma classe da sociedade não seria tão interessante como está sendo.
259
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
Outra entrevistada se mostrou contrária à política
de cotas, mas pareceu sentir-se desconfortável ao revelar
isso, pondo-se a justificar sua posição, como se não quisesse parecer racista aos olhos da entrevistadora negra.
Disse ela:
Eu não sou a favor... Eu não sou contra, porque o governo deve sim fazer algo para mudar esse quadro de
desigualdade. Só que eu acho que é uma maneira...
(pára e respira profundamente). Passa que a pessoa
de cor não tem a mesma capacidade, eles não têm é o
mesmo incentivo, por isso que todos brigam comigo
(essa última fala parecia quase que um lamento).
Sobre a possibilidade de identificação dos cotistas em
sala de aula, a maioria considerou não ser possível estabelecer essa distinção. Porém uma jovem e um jovem, ambos
autodeclarados pretos, consideraram ser possível fazer essa
diferenciação, e não vêem nisso uma exposição dos beneficiários da medida. Ao contrário, a imagem percebida é
bastante positiva como se pode observar por sua fala:
Dá, acho que dá. Não é só pela cor, mais acho que dá
até por atitude. Quem é cotista, a maioria das pessoas
que eu vejo que são cotistas, elas têm uma atitude
diferente, elas sabem o quanto é difícil chegar ali, elas
têm que ter uma atitude. Não é honrar, mais ele sabe
que tem, que se ele lutou pra chegar ali... ele não vai
ter uma atitude displicente de... “Ah! se eu não conseguir alguma coisa agora eu vou conseguir depois.”
Quem é cotista não, ele sabe que a oportunidade é
única, ele é mais responsável.
Respostas lacônicas ou pouco precisas foram apresentadas quando perguntados sobre o entendimento do
que sejam “ações afirmativas”, demonstrando um desconhecimento do termo. Disseram eles:
260
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Nunca ouvi falar.
Pra mim são verdadeiras, né?...
Ações afirmativas são o quê? Eu não sei o que é ação
afirmativa.
Apenas um estudante demonstrou possuir informação
mais ampla, como se pode perceber por sua declaração:
Meu trabalho de Antropologia do primeiro semestre
foi sobre as ações afirmativas, por isso se eu for falar
será um monte. Gostei muito. Achei interessante o que
estão querendo fazer no caso da anemia falciforme. O
Grafita6 tem muito projeto legal; o que eu achei mais
legal foi a Lei que bota a questão da cultura negra na
escola, é o que eu acho que é mais legal.
Percepções da cor
No inicio da entrevista havíamos solicitado que o
entrevistado declarasse sua cor/raça, utilizando para isso
o termo de sua escolha. Ao fim da entrevista, a pergunta
foi refeita solicitando se aos entrevistados que se autoclassificarem com os termos de uso do IBGE, a saber: branco,
pardo, preto amarelo e indígena.
Um dos homens entrevistados que, de início, se havia declarado pardo, no final, se classificou com preto.
Entre as mulheres também se verificou tal fenômeno; uma
estudante que, no início, da entrevista se havia declarado
branca, ao final, disse confusa:
É tão difícil! Pardo. Não sei que cor é essa (risos).
Minha pele, ela é branca, mais na minha família... a
família de minha mãe, ela é negra. Na família de meu
pai é que eles realmente são brancos. Agora eu não
Um grupo organizado de “grafiteiros”, que atua no bairro do Cabula,
onde está localizadada a universidade.
6
261
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
sei o que foi que aconteceu antes disso, que mistura
aconteceu, é uma mistura danada. Eu nasci branca na
cor, né?, mas eu não consigo me definir exatamente.
Eu digo branca só na aparência, mas por dentro acho
que tá bem mesclado.
É interessante ressaltar que essa entrevistada, aos
olhos da entrevistadora é negra/preta.
As impressões da entrevistadora7
Um aspecto, particularmente, chamou atenção durante a realização das entrevistas. A percepção que ficou é de
que as pessoas negras pareciam sentir-se mais à vontade
para falar das questões raciais e desabafar, inclusive. Já entre as pessoas declaradas brancas percebi certo desconforto
ao falarem sobre as questões raciais, sobretudo quando tinham opiniões que iam contra as demandas da população
negra ou à percepção do racismo. Esse fato ocorreu com a
estudante que a principio havia se declarado branca e, no
final da entrevista, se disse “misturada”. O procedimento
adotado na entrevista era perguntar primeiro o nome e,
logo em seguida, indagar sobre a cor da/o entrevistada/o.
Essa entrevistada, ao responder sobre a sua cor, disse, de
modo ríspido, que era branca e, com expressões corporais
e faciais, parecia querer me indagar sobre a razão daquela
pergunta ou se havia, de minha parte, alguma duvida sobre
cor que ela se havia atribuído. No decorrer da entrevista ela
foi ficando mais à vontade, a ponto de, ao final, admitir ter
negros em sua família, e afirmar:
Eu digo branca só na aparência mais por dentro acho
que tá bem mesclado.
As entrevistas foram realizadas por Daniela Silva Santo, que se autoclassifica, racialmente, como negra/preta.
7
262
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
Em geral, as pessoas que se declaravam brancas
mantinham certa distância, como que respondendo apenas burocraticamente às perguntas. Já as negras, de imediato, construíam uma intimidade a ponto de desabafarem. Essa intimidade podia ser percebida, inclusive, pela
postura que era mais relaxada, confortável até, por gestos
corporais de me tocar ao falar, por exemplo, e sempre sorrindo, além do tom de voz, que era mais leve e displicente. Já as pessoas autodeclaradas brancas, freqüentemente,
demonstravam o contrário, inclusive parecendo cautelosas
com o que falavam, utilizando imensas pausas, em meio
às respostas. Quando se mostravam pouco, ou nada, favoráveis à política de cotas, o olhar dessas entrevistadas,
tanto brancas quanto negras, era outro detalhe importante: elas não me encaravam ao falar. Acredito que por me
julgarem a favor da medida.
Considerações finais
A pesquisa indicou que a questão racial é ainda um
assunto delicado para as pessoas, sejam brancas ou negras, por sua complexidade e pela construção social que
desenvolveu o racismo no Brasil. O país carrega as conseqüências da idéia de “democracia racial”, o que faz com
que, mesmo com a denúncia do racismo aqui vivenciado,
muitas das pessoas (entrevistadas) admitem a sua existência, porém poucos conseguem falar, explicitamente, sobre
o assunto.
Tais fatores poderiam também explicar o pouco entendimento demonstrado pelos estudantes do que sejam
“ações afirmativas”. A desinformação parece maior entre
aqueles que não são beneficiados pela medida, mas também está presente entre os que ingressaram na universidade pelo sistema de cotas. Mesmo entre os que se disseram
a favor das “cotas”, o conhecimento sobre o tema é do
entendimento de poucos. Apesar do pouco conhecimento
263
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
sobre as “ações afirmativas” e sobre a questão racial, de
modo amplo, os estudantes arriscam sugerir modificações
no “sistema de cotas”, adotando o discurso mais corriqueiro de que deveria ser ampliado para estudantes pobres, o
que confirma a invisibilidade do racismo, vez que as cotas
são para negros oriundos de escolas públicas, portanto,
visam especificamente àqueles que se encontram nas camadas menos aquinhoadas.
A pesquisa demonstrou ainda que nos cursos de
maior seletividade, embora o patamar de renda dos cotistas não seja tão elevado, outras características evidenciam
que eles fazem parte de um segmento da população negra com melhores condições de vida, inclusive quando
comparados aos alunos de outros cursos da própria Uneb,
que não desfrutam do mesmo prestígio, como o curso de
Pedagogia, por exemplo. O que se nota é que, mesmo no
contexto de uma política de acesso diferenciado para os
negros, os cursos mais valorizados ainda ficam reservados
a uma parcela muito restrita desses estudantes.
Os resultados aqui apresentados não permitem,
evidentemente, grandes generalizações, por se restringirem a um contingente limitado de estudantes. Eles, muito
mais, indicam hipóteses, que conclusões, alertando, desse
modo, para a necessidade de investigações mais amplas
que possam responder às questões aqui sinalizadas e outra tantas sobre o tema, que estão a requerer a atenção dos
pesquisadores. Os resultados também sinalizam para a necessidade de discussões mais amplas sobre o racismo e a
discriminação racial, inclusive como forma de evidenciar
a relevância de uma política tão importante na contemporaneidade, como é o tratamento diferenciado a grupos
excluídos, mas tão pouco compreendida, até mesmo pelos
seus beneficiários.
264
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
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Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
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266
Estudantes de uma universidade estadual com cotas...
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ANEXO
Tabela 5 – Distribuição percentual dos estudantes segundo
o turno cursado no Ensino Médio – Uneb 2005
Turno
Sempre diurno
Diurno, depois noturno
Total
%
88,9
11,1
100
Tabela 6 – Distribuição percentual dos estudantes segundo o
tipo de curso freqüentado no Ensino Fundamental – Uneb 2005
Tipo de curso
Colegial
Técnico
Total
%
85,2
14,8
100
Fonte: Pesquisa direta
267
Sistema de reserva de vagas
na Universidade do Rio de Janeiro
e as ações do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiros da Uerj
Maria Alice Rezende Gonçalves
Introdução
Este artigo tem como objetivos tecer considerações
sobre o campo das políticas públicas visando a identificar
as políticas de ação afirmativa como um tipo de política
social, descrever as fases de implantação e implementação
da política Sistema de Reserva de Vagas para Negros na
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2002/2008) e
destacar as ações do Sempre Negro - Coletivo de Professores Negros da Uerj, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros
da Uerj na etapa de implementação da política de reserva
de vagas da Uerj. Neste texto pretendo me concentrar na
análise da reserva de vagas para estudantes que se autodeclaram negros.
A Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi uma
das primeiras instituições a implantar ações afirmativas
para grupos sub-representados na educação superior. Em
2000, é aprovada a Lei n. 3.524, que dispõe sobre a reserva de 50% de vagas nos vestibulares das universidades
estaduais – Universidade do Estado Rio de Janeiro (Uerj) e
Universidade Estadual do Norte Fluminense (Uenf) – para
alunos egressos do ensino básico das escolas públicas do
269
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
estado. Em 2001, a Assembléia Legislativa do Estado do
Rio de Janeiro (Alerj) aprova a Lei n. 3.708, que determina,
também, para as duas universidades estaduais, a reserva
de 40% de vagas para estudantes autodeclarados negros
e pardos.
Em 2003, acontece o primeiro vestibular para atender à instituição dessas leis. Foram feitos dois vestibulares
distintos visando a atender as duas leis citadas – o Vestibular Estadual e o Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes do Ensino Médio (Sade). O primeiro volta-se para os candidatos que não podiam ou não
se candidataram ao sistema de cotas e o segundo, para
os que desejavam participar do sistema de cotas. Quanto
ao cumprimento das cotas para negros e pardos, a Uerj
optou por aplicar o percentual sobre a cota de 50% para
escolas publicas (Sade) e em seguida sobre as vagas não
reservadas do Vestibular Estadual. Ainda no ano de 2003
é aprovada a Lei n. 4.061 que reserva 10% vagas para deficientes físicos.
No ano seguinte, a Lei n. 4.151 revoga todas as anteriores e institui mudanças nos critérios de seleção e admissão de estudantes nas universidades estaduais, como:
a unificação das duas modalidades de cotas, comprovação
de carência financeira e no percentual das cotas destinadas aos diferentes beneficiários. Para o vestibular de 2004
foram estabelecidos os seguintes percentuais de cotas:
20% para negros, 20% para egressos de escola pública,
5% para pessoas com deficiências e outras minorias étnicas. Os candidatos às cotas só poderiam concorrer a
uma das modalidades e tinham que comprovar a carência
financeira familiar, ou seja, renda máxima de R$300,00 per
capita. Dada a exigência da baixa renda, ao longo dos
últimos seis anos, a universidade tem recebido estudantes que apresentam um novo perfil socioeconômico. Este
fato é um dos obstáculos enfrentados pelos cotistas e pela
universidade, impondo a necessidade de programas de
permanência desses cotistas.
270
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
Em 2007, a Lei n. 5.074, que altera a Lei n. 4.151, introduz no sistema de reserva de vagas novos beneficiários.
São eles, os filhos de policiais civis e militares, bombeiros
militares e inspetores de segurança e administração penitenciária, mortos ou incapacitados em razão do serviço.
Atualmente, acrescidos os beneficiários impostos
pela Lei n. 5.074, são considerados grupos contemplados
no sistema de reserva de vagas: estudantes da rede pública do Estado, negros, pessoas com deficiências, indígenas
e outras minorias, todos comprovadamente carentes financeiramente.
Neste contexto de implantação do sistema de reserva de vagas, em 2003 é criado o Sempre Negro – Coletivo
de Professores Negros da Uerj. Este coletivo reúne docentes de diferentes unidades acadêmicas da universidade e
pesquisadores externos associados interessados na temática da questão racial brasileira. Desde sua fundação, tem
desenvolvido atividades de extensão e pesquisa com a
participação de alunos afro-brasileiros.
As políticas de cotas causaram um grande impacto na
sociedade civil brasileira. Foram e são produzidos artigos
jornalísticos, programas de televisão e de rádio, monografias, dissertações e teses, cartas, manifestações de apoio e
protesto. Enfim o tema tem mobilizado a população de diferentes maneiras. Em 2006 e em 2008, intelectuais manifestaram suas opiniões a favor e contra as políticas raciais
por meio de manifestos. Entre outros assuntos, os quatro
manifestos tratam das políticas de ação afirmativa para negros no Brasil. Esses documentos foram encaminhados ao
Supremo Tribunal Federal e tinham como finalidade servir
de canal de pressão para aprovar ou vetar o Estatuto da
Igualdade Racial e do Projeto de Lei n. 73/1999, que propõe a adoção de cotas nas universidades federais. Nesse
confronto, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro foi
tomada como paradigma das ações afirmativas no país.
Por meio dos argumentos expostos nesse conjunto de documentos é possível discutir o papel dos intelectuais como
271
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
grupo de pressão, dois distintos modelos de políticas de
inclusão na educação superior como também duas interpretações da nação brasileira. Esses acontecimentos vêm
reforçar a importância do acompanhamento e avaliação
da experiência da Uerj e das demais universidades brasileiras que optaram pelo sistema de reserva de vagas para
negros.
1 O campo das políticas públicas
A análise de políticas públicas guarda uma tradição
intelectual anglo-saxã e, mais especificamente, norte-americana. A institucionalização desse campo ou subdisciplina, mesmo entre os anglo-saxões e norte-americanos, é
muito recente. Isso decorre, em parte, do caráter interdisciplinar da produção intelectual compartilhado por várias
disciplinas das ciências sociais – sociologia, ciência política, economia, direito entre outras (MELO, 1999). O caráter
interdisciplinar da área políticas públicas é observado por
Nelson (apud MELO, 1995, p. 63): “a historia do campo de
políticas publicas é mais a história de um discurso do que
de uma disciplina convencional composta de idéias, mais
instituições, revistas e controle de recursos essenciais. Na
realidade, a ausência nessa área de um aparato material
característico de um campo intelectual é um achado notável de pesquisa”. E notória a ausência de um aparato
material característico de um campo intelectual. Deste
modo, dificilmente pode-se falar em disciplina acadêmica
no sentido literal de uma comunidade que exerce controle
(“disciplina”) sobre padrões de qualificação profissional,
qualidade da produção e conduta de seus membros, além
de controle de recursos organizacionais com acesso a carreiras, conclui Melo (1995). Lowi (1994, apud MELO, 1999)
observa que a área de política pública se converteu em
subdisciplina acadêmica hegemônica nos EUA em virtude
de seu potencial para abordagens quantitativas, nas quais
272
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
se importam instrumentos conceituais da ciência econômica – a que denomina “ a nova linguagem do Estado”
em substituição ao direito. Note-se que a recente difusão
e popularização da expressão “política pública” pode ser
vista como concomitante aos processos de democratização e institucionalização liberal.
O campo de estudos das políticas públicas é bastante recente no Brasil. Sua análise esteve associada aos
governos e à avaliação dessas políticas realizadas por instituições governamentais. Os estudos acadêmicos sobre a
área temática análise de políticas públicas se iniciam na
década de 1980, reunindo um conjunto heterogêneo de
contribuições.
A agenda de pesquisa sobre política pública de corte social foi subsumida durante muito tempo no Brasil.
Somente no final do regime autoritário, durante a década
de 1980, foram produzidos os primeiros trabalhos sobre
a reconstrução da política social brasileira sob a égide do
projeto reformista da Nova República. Mais recentemente,
com a adoção das chamadas políticas neoliberais que visavam a reduzir o escopo de intervenção pública, o Estado
brasileiro vem apoiando políticas particularistas, entre elas
as políticas afirmativas, em varias áreas: saúde, educação,
mercado de trabalho, para os grupos minoritários, entre
eles as populações negras. Melo (1999) observa que, não
obstante lacunas significativas – subáreas clássicas da literatura internacional, como os estudos de impacto das políticas sobre as dimensões de gênero e etnicidade, atraíram
um número muito reduzido de pesquisas –, a qualidade e
o volume da produção apontam para a maturidade já alcançada pela produção cientifica da área. Schwarcz (1999)
identifica a emergência de pesquisas mais diretamente engajadas com o debate sobre “ação afirmativa”. Neste contexto destaca o patrocínio oficial a um seminário realizado
em 1996, sobre a validade de se estabelecer uma política
oficial de “affirmative action” no país (1999, p. 303).
273
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
A produção acadêmica na área das ciências humanas e
sociais sobre ação afirmativa no Brasil cresce (HENRIQUES,
2002; MACHADO, 2004; MOEHLECKE, 2002; MUNANGA,
1996; SANSONE, 2004; SILVA JR. 2000; TELLES, 2003; SISS,
2003, entre outros), principalmente após a adoção do sistema de cotas por algumas instituições públicas de educação superior nos primeiros anos do século XXI. Justamente com essa política, acirra-se o debate em torno da
adequação, legalidade e abrangência desse tipo de política para o país. No âmbito do acesso à educação superior,
esse debate polariza-se. Os críticos às ações afirmativas se
colocam em posições opostas e inconciliáveis. As políticas
de ação afirmativa são apontadas ora como responsáveis
pela cisão do Brasil em dois brasis, ora como solução para
a inclusão dos setores sub-representados na educação superior. As políticas universalistas são apresentadas como
incompatíveis com as focalizadas. No entanto, todos defendem um maior investimento na educação básica e a
necessidade de expansão da educação superior.
Na revisão bibliográfica sobre a produção acadêmica do campo das políticas públicas elaborada por Souza
(2006, p. 40), a política pública é tratada como um campo
de conhecimento que busca, ao mesmo tempo, “colocar
o governo em ação” e/ou analisar essa ação (variável independente) e, quando necessário, propor mudanças no
rumo ou curso dessas ações (variável dependente). A autora concorda com o fato de que a política pública é um
campo que reúne varias disciplinas, porém seu caráter holístico não significa que ela careça de coerência teórica ou
metodológica, mas sim que ela comporta vários “olhares”.
Conclui que é “um campo do conhecimento que busca
integrar quatro elementos: a própria política pública, a política (politics), a sociedade política (policy) e as instituições onde as políticas públicas são decididas, desenhadas
e implementadas”. A autora afirma ainda que “o principal
foco analítico da política pública está na identificação do
tipo de problema que a política publica visa corrigir, na
274
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
chegada desse problema ao sistema político (politics), à
sociedade política (policy), e nas instituições/regras que
irão modelar a decisão à implementação da política pública” (SOUZA, 2006).
Frey (2000) alerta para a falta de teorização comumente direcionada à policy analysis. Porém a falta de teoria é explicável, se levarmos em consideração o interesse
de conhecimento próprio da policy analysis, que é, a saber, a empiria e a prática política. No Brasil, estudos sobre
as políticas públicas foram realizados só recentemente.
Nesses estudos, ainda esporádicos, deu-se ênfase à análise das estruturas e instituições ou à caracterização dos
processos de negociação das políticas setoriais especificas
(FREY, 2000, p. 214).
1.1 As políticas sociais
A política social é um tipo de política pública. Conforme Lavinas (2007), a idéia de que cabe ao Estado intervir para proteger os cidadãos remonta ao século XVIII e
foi cunhada por Adam Smith. O termo tem sido utilizado
com vários sentidos, ou seja, não é um termo técnico que
tenha um significado preciso, segundo Marshall (1965). A
política social de um Estado abrange tanto o sistema de
proteção social quanto o gasto social. Em geral diz respeito às políticas de governo que visam ao bem-estar dos cidadãos por meio da oferta de serviços ou da transferência
direta de renda – seguro, assistência pública, serviços de
saúde, proteção social, políticas de habitação e educação.
Titmuss e Marshall (ALCOCK et al., 2001:209 apud LAVINAS, 2007) consideram a política social um instrumento
de intervenção positivo para provocar mudanças. É parte
constitutiva de um conjunto mais vasto de mecanismos
que tem por finalidade alterar situações, sistemas, práticas e comportamentos. Implica escolhas com o intuito de
promover e priorizar mudanças sociais. Para Laffite (1962,
275
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
apud LAVINAS, 2007), a política social é uma tentativa
de conduzir a vida da sociedade numa direção que ela
não tomaria se tal rumo fosse deixado ao acaso. Marshall
(1965) define política social como políticas de governo
cujas ações têm impacto direto no bem-estar do cidadão,
através da provisão de serviços de saúde, proteção social
em geral e da política de moradia.
A dimensão aparente da política social é aquela que
diz respeito à provisão de bens públicos – saúde, educação, saneamento, segurança pública – ou de transferência
direta de renda – aposentadorias, pensões para os inativos, programas de combate à pobreza e outros programas
compensatórios e assistenciais. Há, entretanto, outros tipos de política social menos visível como a política fiscal
e tributária e a política de emprego.
Segundo Briggs (1969, apud LAVINAS, 2007) o sistema de bem-estar tem como objetivo, por meio de políticas
e da administração, modificar as forças de mercado ao
menos em três direções: assegurar renda mínima; reduzir
grau de insegurança – doença, velhice, desemprego –; e
garantir um melhor padrão de atendimento nos serviços
sociais disponíveis aos indivíduos e famílias. Uma política
social será mais ou menos justa dependendo do grau de
desmercantilização de bens e serviços (ESPING-ANDERSEN, 2002), ou seja, quando o bem ou serviço é assegurado na qualidade de direito ao indivíduo garantindo o seu
padrão de vida independentemente do mercado.
2 A análise da política pública
A análise das políticas públicas possibilita a compreensão do problema para o qual a política pública foi desenhada, seus possíveis conflitos, a trajetória seguida e o
papel dos indivíduos, grupos e instituições que estão envolvidos na decisão e que serão afetados por ela (SOUSA,
2006). Uma política pública percorre as seguintes etapas
276
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
de análise: (a) Identificação da política pública (o que é
feito, por quem, onde, quando, proposto por quem, para
mudar o quê e que resultados esperamos) e (b) as fases
para análise do impacto na sociedade civil sobre a formulação e implantação da política; o processo de formulação
e modalidade de decisão; o processo de implementação,
a avaliação (interna e externa e a definição de indicadores
sociais). Das diversas definições e modelos sobre políticas
públicas, Souza (2006, p. 36) extrai e sintetiza seus elementos principais:
• Avaliar as políticas públicas permite distinguir entre
o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz.
• A política pública envolve vários atores e níveis
de decisão, embora seja materializada através dos
governos, e não necessariamente se restringe a participantes formais, já que os informais são também
importantes.
• A política pública é abrangente e não se limita a
leis e regras.
• A política pública é uma ação intencional, com
objetivos a serem alcançados.
• A política pública, embora tenha impactos no
curto prazo, é uma política de longo prazo.
• A política pública envolve processos subseqüentes após sua decisão e proposição, ou seja, implica
também implementação, execução e avaliação.
3 Ação afirmativa: um tipo de política pública
A reserva de vagas é uma política recente na história
das políticas públicas brasileiras. A reivindicação de políticas de ação afirmativa destinadas à inclusão de negros no
ensino superior e em outros campos acontece com a redemocratização do país. Os movimentos sociais começam
a exigir uma postura mais ativa do Estado diante de ques277
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
tões como raça e gênero, por meio da adoção de políticas
de ação afirmativa. Apesar das diferenças, a experiência
brasileira tem sido exaustivamente comparada à experiência norte-americana. As políticas estadunidenses vêem
sendo reformuladas, avaliadas e em alguns casos extintas.
No Brasil essas políticas surgem como uma resposta ao
problema da sub-representação de segmentos minoritários
na educação superior, entre eles os negros. Essas políticas contaram com o apoio e/ou participação do governo,
de organismos internacionais e da sociedade civil (movimento negro, intelectuais, artistas e outros setores) em sua
implantação e difusão e adoção por diversas instituições
de educação superior brasileiras. Esses diferentes grupos
influenciaram na forma como as ações afirmativas estão
sendo implementadas no Brasil.
A política de ação afirmativa para negros no Brasil
tem estimulado a polarização entre universalidade versus
seletividade das políticas e introduzido novas categorias
para identificação de beneficiários como negros e carentes. Há que se acompanhar e avaliar essa experiência
com a intenção de criar mecanismos mais amplos e ágeis
de inclusão dos setores sub-representados na educação
superior brasileira. A relevância do tema se justifica, entre outros motivos, pelo fato de as universidades estaduais do Rio de Janeiro serem as primeiras instituições
de ensino superior a reservar vagas em seu vestibular
para as populações sub-representadas. Ademais, essa
experiência suscitou grande polêmica em torno do reconhecimento da existência de desigualdades raciais no
país. O melhor modelo de política social seria o focal
ou o universal? Ou a conjugação dos dois modelos? Até
hoje, essa temática tem provocado tanto a produção de
conhecimento no campo acadêmico quanto debates na
mídia e nos movimentos negros, enfim envolvendo toda
a sociedade civil.
278
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
3.1 A política de corte racial no Brasil
como resposta a um problema
Uma política pública caracteriza-se por ser uma intervenção deliberada do Estado sobre a sociedade civil.
Apresenta um foco preciso em temas empiricamente contextualizados. Cabe destacar o caráter simbólico das políticas públicas, pois o conceito engloba tanto as decisões
quanto as não-decisões do governo. As políticas focalizadas em grupos minoritários são recentes no Brasil. No
final dos anos 1990, as mulheres foram beneficiadas com
a reserva de 30% das vagas nos partidos políticos para
que estas possam se candidatar às eleições municipais,
estaduais e federais. O negro só será o publico alvo de
políticas de ação afirmativa no início do século XXI, com
a adoção de políticas de inclusão na educação superior e
no funcionalismo público.
A difusão internacional das reformas neoliberais,
que visavam a reduzir o escopo da intervenção pública,
estimulou a proposição de políticas particularistas no Brasil. O tema entra na agenda governamental a partir dos
anos 1990. Durante duas gestões de presidente Fernando
Henrique Cardoso (1995-2002), alguns eventos e medidas
foram determinantes para o processo de formulação de
políticas de ação afirmativa para negros. Entre eles, o seminário internacional Multiculturalismo e Racismo: o papel da ação afirmativa nos Estados democráticos contemporâneos (1996) que, entre outros objetivos, visava a buscar soluções para situações de discriminação e racismo;
a atuação do Grupo de Trabalho Interministerial (1996)
para a valorização e elevação dos padrões de vida dos
afro-brasileiros e a instituição do Programa Nacional de
Direitos Humanos – PNDH (1996). Nesta mesma década
surge o movimento dos pré-vestibulares comunitários, que
visam a preparar alunos de baixa renda e/ou negros para
o ingresso no ensino superior. Em 2000, o então deputado
federal Paulo Paim elabora o Projeto de Lei n. 3.198, por
279
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
meio do qual institui o Estatuto da Igualdade Racial (SISS,
2003; MACHADO, 2004). Durante o ano de 2001, o Brasil se prepara para participar da III Conferência Mundial
contra o racismo, discriminação racial, xenofobia e formas
correlatas de intolerância, convocada pela Organização
das Nações Unidas (ONU), ocorrida em setembro de
2001 na África do Sul. Neste mesmo ano, o Instituto
de Pesquisas Econômicas e Aplicadas (Ipea) reúne em
um texto para discussão dados sobre as desigualdades
raciais no Brasil. Henriques (2001) apresenta as conclusões de várias pesquisas sobre relações raciais que reforçam a tese da desigualdade estrutural entre brancos
e negros na sociedade brasileira. A tese da desigualdade
racial funda-se na comparação do desempenho social de
negros e brancos com base em dados dos censos demográficos brasileiros. Em 2001, a Assembléia Legislativa
do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) aprova a primeira lei
que reserva vagas para negros e pardos nas universidades estaduais do Rio de Janeiro. Em 2003, estimulados
pelos debates em torno da questão racial ocorridos no
interior da universidade e na sociedade civil, um grupo
de professores negros institui o Coletivo de Professores
Negros da Universidade do Estado do Rio de Janeiro,
o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj. No ano
seguinte os núcleos de estudos afro-brasileiros e grupos correlatos reunidos em Brasília assinam um acordo
de cooperação com a Secretaria de Ensino Superior do
Ministério da Educação. Esta secretaria lança o Uniafro
– Programa de Ações Afirmativas para a População Negra nas Instituições Públicas de Educação Superior, que,
por meio de um concurso, oferece recursos financeiros
que possibilitam a consolidação dos núcleos e o desenvolvimento de projetos em três eixos: formação, publicação e
permanência de estudantes.
280
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
3.2 O sistema de reserva de vagas para negros na
Uerj: a formulação.
O que é a política de reserva de vagas? A literatura
sobre política pública considera a política de reserva
de vagas como uma política social que: (1) Barr (2003)
classifica como uma política residual e (2) Lowi (1964)
como uma política redistributiva. De acordo com Barr, a
política social residual visa a atender somente os grupos
que necessitam do apoio do Estado. Já Lowi entende
que a política redistributiva é orientada para o conflito,
ou seja, pelo desvio e o deslocamento consciente de
recursos financeiros, direitos ou outros valores entre camadas sociais e grupos da sociedade. O processo político que visa a uma redistribuição costuma ser polarizado
e repleto de conflitos (FREY, 2000, p. 224).
A primeira iniciativa no estabelecimento de políticas afirmativas para educação superior no Rio de Janeiro somente aconteceu durante o governo Anthony Garotinho, por meio de leis que instituem cotas para grupos sub-representados nas universidades estaduais. A
Lei n. 3.524/00, que institui a reserva de 50% das vagas
para alunos egressos da rede pública. A Lei n. 3.708/01,
que institui a reserva de 40% das vagas para as populações autodeclaradas negra e parda. O critério cor/raça
foi objeto de questionamentos desde a aprovação da
lei. Cabe informar que o sistema de classificação de
cor/raça adotada pelo Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística – IBGE compreende cinco possibilidades:
branco, preto, pardo, amarelo e indígena, portanto, a lei
introduz um novo sistema de classificação de cor/raça
para selecionar seus beneficiários (REZENDE GONÇALVES,
2004).
O projeto de reserva de vagas para negros e
pardos foi proposto pelo deputado José Amorim, do
Partido Progressista Brasileiro - PPB-RJ, apresentado e
aprovado por aclamação em sessão ordinária da Alerj
281
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
e em seguida sancionado pelo governador Garotinho.
Segundo o deputado Amorim (apud MACHADO, 2004,
p. ???):
[...] a decisão do presidente Fernando Henrique Cardoso de criar a cota de 20% para negros no serviço público é, sem dúvida, uma iniciativa que acaba
com o dilema que as populações negra e parda vivem. [...] Precisamos, agora, exigir do governador
Anthony Garotinho que regulamente a lei obrigando as universidades estaduais a aplicar 40% das vagas para as populações parda e negra. Estamos nos
associando às medidas aplicadas pelo presidente da
República, porque aqui no estado do Rio foi uma
iniciativa inovadora, que representa um passo importante para a sociedade enfrentar os problemas
raciais (MACHADO, 2004, p. ???).
O governador Anthony Garotinho propõe a junção das duas leis – a Lei n. 3.524 e a Lei n. 8.708. Para
cumprimento das cotas, foi criado o Sistema de Acompanhamento e Desempenho dos Estudantes do Ensino
Médio – o SADE, de acordo com o artigo primeiro da
Lei n. 3.524, “os órgãos e instituições de ensino médio
oficiais situadas no Estado do Rio de Janeiro, em articulação com as universidades publicas estaduais, instituirão sistemas de acompanhamento de desempenho de
seus estudantes, atendidas as normas gerais da educação nacional”.
As referidas leis foram impostas às universidades estaduais sem que houvesse discussão no interior
das instituições. Depois de aprovadas as leis, a então
reitora, Nilcéa Freire, realiza uma consulta às unidades acadêmicas da Uerj e constata haver uma grande
rejeição à implantação das leis. No ano de 2002, antes do Vestibular 2003, a reitora institui uma comissão
composta de docentes e representantes da sociedade
civil para elaborar um programa de permanência para
282
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
os alunos que ingressariam na universidade pelo sistema de reserva de vagas. Os que são favoráveis à seletividade lançam mão de argumentos que defendem
a política de cotas, como: o principio da eqüidade –
tratar desigualmente os desiguais; a necessidade de se
formar uma elite negra com curso superior; em curto
prazo as políticas afirmativas são eficientes e eficazes
para a promoção da população negra. Em contrapartida os que defendem políticas universalistas combatem
as políticas de cotas usando argumentos como: leis
somente para beneficiar os pretos e pardos naturalizariam construções sociais como raça e cor; o acesso à
universidade por meio de políticas raciais é um privilegio; o investimento governamental deveria ser direcionado para a melhoria da qualidade do ensino básico;
as políticas universais voltadas para as populações de
baixa renda acabariam por atingir os pretos e pardos
já que esses grupos encontram-se super-representados
nos setores de renda mais baixa da sociedade brasileira
e, finalmente, as políticas com corte racial e de renda
criam uma nova categoria classificatória de beneficiários das políticas sociais – os negros e os carentes ou
negros carentes. Os dois grupos reconhecem a necessidade de reforma e melhoria da qualidade do ensino
fundamental e médio. Os grupos a favor de políticas
sociais exclusivamente universais as defendem argumentando que são mais democráticas e mais justas,
porque atendem a todos. Os defensores das políticas
de cotas afirmam ser conciliáveis os dois tipos de política, ou seja, a universal e a seletiva.
Em 2003 as universidades estaduais são surpreendidas com uma nova lei de reserva de vagas – a Lei n.
4.061, que dispõe sobre reserva de vagas para portadores de deficiências.
283
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
3.3 A fase de implantação e implementação
Na época em que as leis foram promulgadas em
cascata, a comunidade acadêmica da Uerj protestou contra a ausência de tempo para uma discussão aprofundada
no interior da universidade em relação à propriedade e
contra as formas de implementação dessas leis. Visando ao cumprimento da lei, a Uerj realizou, em 2003, os
dois processos seletivos distintos que serão descritos a
seguir. Os dois processos seletivos foram – um no formato tradicional (Vestibular Estadual) para atender a todos os inscritos e outro para atender à reserva de vagas
(Sistema de Acompanhamento de Desempenho dos Estudantes no Ensino Médio). Para cumprimento da reserva
de vagas para pardos e negros com base no critério da
autodeclaração, o Departamento de Seleção Acadêmica
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro verificou se
o número de candidatos autodeclarados pardos e negros
classificados no vestibular destinado à reserva de vagas
alcançava os 40% de vagas previstas na lei. Como foi
inferior, o percentual foi completado com os candidatos
autodeclarados pardos e negros classificados no vestibular tradicional. Devido a essas peculiaridades, o Vestibular 2003 diferenciou-se de todos os demais processos
seletivos realizados pela universidade.
O resultado desse processo seletivo inflamou ainda mais o debate. Os candidatos reprovados entraram
com recursos na justiça reivindicando vagas seja por
conta da média superior à de um candidato pardo ou
negro seja por discordarem dos critérios de autoclassificação. A coordenação do vestibular da época avaliou
que o sistema de reserva de vagas para pretos e pardos
teve reduzido impacto na aprovação de alunos somente
pelo critério cor/raça, ou seja, a maior parte deles teria
sido aprovada sem a reserva de vagas. Esse foi um dos
argumentos determinantes para a proposição de novas
mudanças no processo seletivo.
284
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
Em 2003 ocorreram as primeiras alterações nas referidas leis. A Uerj estabelece as modalidades e os percentuais de cotas que vigoram ate hoje. Uma comissão
– constituída de membros da comunidade acadêmica e
externos – elaborou uma proposta embrionária da Lei
n. 4.151/03, que regulou o Vestibular 2004. Por essa
lei, caberia às universidades públicas estaduais reservar 20% de suas vagas para negros; 20% para egressos
da rede pública estadual e 5% para portadores de necessidades especiais e indígenas. Os candidatos às cotas só concorrem por uma das modalidades e precisam
comprovar o atendimento a outro critério – a carência
financeira. Em 2004, o teto admitido para a renda era
de R$300,00 líquidos por pessoa da família. Atualmente,
para o Vestibular 2008, é precondição para a candidatura a qualquer cota a renda per capita de R$630,00.
Desde a formulação da primeira lei até as alterações impostas pela Lei n. 4151/03, o processo seletivo
mudou. Para o Vestibular 2004, foram feitas alterações
no percentual e na classificação de cor/raça dos beneficiários. No caso das populações negras, a primeira lei
estabelecia o percentual de 40% para negros e pardos.
Esse percentual mudou para 20% e o grupo beneficiário passa a ser chamado de negro. No que diz respeito
à população alvo, a primeira lei classifica a cor/raça
dos beneficiários como pardos e negros. A opção por
esse sistema classificatório de cor/raça apresentou problemas por ser híbrido, ou seja, faz uso da categoria
pardo do sistema de classificação de cor/raça do IBGE
e da categoria negro ausente desse sistema. Em geral,
a denominação de cor/raça negro significa a soma dos
brasileiros que se autoclassificam como pretos e pardos. Já a segunda lei classificará os beneficiários como
negros, deste modo torna-se mais objetiva na medida
em que opta por somente um sistema classificatório de
cor/raça. Neste sentido são considerados negros todos
os candidatos que se autoclassificam com tal. Uma ou285
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
tra mudança observada foi a ampliação dos beneficiários do sistema de reserva de vagas. Desde 2007, são
também contemplados os filhos de policiais civis e militares, bombeiros militares e inspetores de segurança
e administração penitenciária mortos ou incapacitados
em razão do serviço, por meio da Lei n. 5.074.
Essas inovações modificaram o perfil do corpo
discente da universidade e reforçam a necessidade de
políticas de permanência seja para alunos que já freqüentavam a universidade e para os novos oriundos do
sistema de reserva de vaga. Cabe lembrar que a regulamentação dessas leis não foi acompanhada de dotação
de recursos para a permanência desse novo alunado.
Atualmente, a universidade conta com recursos da Faperj – Fundação de Amparo à Pesquisa Carlos Chagas,
que destina algumas bolsas para estudantes cotistas no
primeiro ano de ingresso e outras concedidas por uma
empresa.
Visando a receber o novo alunado, a universidade
criou um programa de permanência, intitulado Programa de Iniciação Acadêmica (Proiniciar), que compreende oferecimento de bolsas-auxílio e atividades como
oficinas de arte, cultura, disciplinas instrumentais. Essas
atividades pretendem “contribuir para o enriquecimento
cultural e resolver algumas lacunas deixadas quanto à
formação intelectual no ensino médio” (ARRUDA, 2007,
p. ??). Uma das principais barreiras encontradas para
o desenvolvimento de um programa de permanência
que possa atender a todos os alunos da universidade
é a falta de recursos financeiros. O programa não faz
qualquer distinção entre os alunos, ou seja, não são
identificados segundo o tipo de cota que permitiu seu
ingresso. Todos são considerados cotistas.
Sabe-se que nos últimos governos têm ocorrido
cortes no orçamento da Uerj. A Constituição Estadual
de 1989 determina o repasse nunca inferior a 6% da
receita tributária líquida exclusivamente para a Uerj. O
286
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
parágrafo 1 do artigo 309 diz que: “o poder publico
destinará anualmente à Universidade do Estado do Rio
de Janeiro – UERJ dotação definida de acordo com a lei
orçamentária estadual, nunca inferior a 6% da receita
tributaria liquida, que lhe será transferida em duodécimos, mensalmente”. A ação Direta de Inconstitucionalidade – Adin 780-7, aprovada em 1992, impediu esse
pagamento até dezembro de 2007. O Supremo Tribunal
Federal – STF derrotou a Adin, mas o governo ainda
não cumpriu o que determina a lei. Estima-se que, com
a revogação da Adin, a verba anual da Uerj passe a
girar em torno de um bilhão, o que ainda esta abaixo
de suas necessidades. Em 2007, o orçamento aprovado pela Alerj foi de 697 milhões de reais, porem, após
cortes e contingenciamentos, só foram repassados 468
milhões de reais. Se a lei fosse cumprida, a universidade receberia 923 milhões (receita tributaria liquida),
conforme informações da Secretaria de Fazenda do Estado do Rio de Janeiro (Jornal dos Trabalhadores da
UERJ, julho de 2008, p. 4). Os cortes no orçamento e o
rapasse insuficiente para as demandas da universidade
potencializadas com a adoção do sistema de reserva
de vagas têm dificultado a implantação e implementação de uma política adequada à permanência do corpo
discente, em especial aqueles que carecem de apoio
acadêmico e material para cumprirem as exigências da
vida universitária.
O gasto social é aquela parte do gasto público –
qualquer que seja o nível de governo – que se destina a
atender às demandas sociais (LAVINAS, 2007). No caso
do Rio de Janeiro, o governo ainda não inclui em seus
gastos sociais as despesas com as políticas de reserva de
vagas nas universidades estaduais. A Faperj, ao financiar bolsas para alunos cotistas, desvia os recursos que
originalmente deveriam se destinar à pesquisa propriamente dita. A não inclusão de recursos para as políticas
afirmativas no orçamento social do Estado parece ser
287
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
um dos pontos que tornam a política de reserva de
vagas vulnerável. Desde a sua implantação, o governo
estadual não destinou os recursos necessários para sua
implementação. Agindo de forma precária, contando
com parcos recursos, a instituição, a despeito dos debates em torno das políticas afirmativas, não consegue
suprir as carências dos alunos cotistas. Há que se superar essa barreira, pois não há como fazer política social
sem orçamento permanente.
As mudanças ocorridas em 2004 foram incorporadas aos exames de acesso dos anos seguintes permanecendo até os dias de hoje. Cabe esclarecer que o
valor máximo de renda familiar per capita do candidato
tem sido reajustada anualmente. Em 2006, graduaramse os alunos dos cursos de quatro anos de duração que
ingressaram por meio da cotas no Vestibular 2003; em
2007 foi a vez daqueles que matriculados em cursos
que exigiam cinco anos para integralização e, agora,
em 2008, serão graduados os ingressantes em 2003 para
cursos de seis anos.
Os últimos anos transformaram a Uerj na instituição
que detém o maior número de estudantes cujo ingresso
se deu por meio de vagas reservadas no país. Outro fato
que merece destaque é o surgimento do movimento estudantil negro. Hoje, há pelo menos duas organizações
estudantis compostas por estudantes negros – o Denegir
e o Luís Gama. O debate se estendeu ate os currículos
dos cursos de graduação e pós-graduação. Alguns cursos
incluíram disciplinas sobre a cultura afro-brasileira e, ou
relações raciais e estudos sobre a África.
3.4 A avaliação
Apesar do interesse das organizações da sociedade civil e da mídia, desde a implantação do sistema
de reservas de vagas na Uerj uma avaliação ampla do
288
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
desempenho dos cotistas ainda não foi concluída. Até o
momento a universidade produziu textos que subsidiam
discussões no interior da instituição. Considerando que
ainda não há uma avaliação satisfatória dos primeiros
anos da política de reserva de vagas, o atual reitor, Ricardo Veiralves de Castro (2008–....), pretende, por meio
de uma comissão avaliadora, realizá-la. Os fragmentos
dos documentos que registram os primeiros dados de
uma avaliação interna serão citados a seguir.
O documento - Acesso à universidade por meio
de ações afirmativas: estudo da situação dos estudantes
com matricula em 2003 e 2004 (UERJ, junho de 2004)
foi encaminhado pela então sub-reitora de graduação,
Raquel Vilardi, ao Conselho Superior de Ensino, Pesquisa e Extensão, em junho de 2004. Nas considerações
finais, o documento admite que a adoção de políticas
afirmativas constitui-se num importante fator de enfrentamento das desigualdades sociais, porém faz severas
criticas à implantação dessa política na Uerj:
[...] em nosso entender, políticas de ação afirmativa precisam ser praticadas a partir de um tripé:
políticas de investimento efetivo na qualidade da
educação básica; políticas de acesso; e políticas de
permanência. De nada adianta uma sem a outra;
não é possível mudar parte da engrenagem, sem
investir no sistema (2004, p. 16).
Na coletânea Políticas de ação afirmativa na universidade, divulgada em 2007, as informações sobre os
estudantes negros limitam-se ao número de vagas para
ingresso, e ao número de aprovados. Como ainda não
há dados que possam avaliar o desempenho acadêmico
dos alunos segundo a cor/raça, não há como avaliálos neste aspecto. Os dados disponíveis apontam para
a pobreza dos alunos cotistas da Uerj e para a necessidade de um programa de permanência que forneça
289
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
apoio pedagógico e material a esses alunos. Arruda
(2007) apresenta o relato do trabalho realizado para a
implantação da política de cotas e avalia os resultados
decorrentes da aplicação do sistema de cotas. Os dados
apresentados referem-se a dois grupos cotistas e não
cotistas. Apresenta os índices de acompanhamento acadêmico, como aproveitamento de estudos, evasão de
cotistas e não cotistas. Segundo os dados apresentados,
de 2004 a 2007 ingressaram na Uerj 2.409 alunos negros
pelo sistema de reserva de vagas nos diferentes cursos
de graduação (AMADEI, 2007). No entanto, não há ainda dados disponíveis sobre a cor/raça dos discentes.
A publicação se encerra afirmando que a universidade
não teve o seu padrão de qualidade acadêmica alterado
em função da presença de estudantes cotistas. A política
de cotas surge como instrumento para minimizar a desigualdade estrutural e considera, também, necessário
promover uma educação básica de qualidade para que
não mais sejam necessárias cotas nas universidades. O
importante é torná-las desnecessárias no futuro.
4 O Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Uerj
O Sempre Negro participou de duas edições do
Programa de Ações Afirmativas para a População Negra
nas Instituições Públicas de Educação Superior – Uniafro e, por meio delas, recebeu recursos do Ministério da
Educação para desenvolver o Programa de Formação e
Permanência de Afro-brasileiros da UERJ – o Programa
Neab-Uerj. O Programa Uniafro vem sendo implementado pela Secretaria de Educação Superior – SESu e com
o apoio da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade - Secad, ambas do Ministério da
Educação. Pela primeira vez, o Ministério da Educação,
por meio dos referidos concursos, destinou recursos financeiros para: estruturar os núcleos de estudos afro290
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
brasileiros das universidades públicas e para o apoio
das ações afirmativas para afro-brasileiros nas instituições públicas de ensino superior. Foram contempladas
tanto universidades públicas em que já havia reserva de
vagas quanto outras nas quais a questão da reserva de
vagas para negros ainda estava em processo de discussão ou aprovação.
O Uniafro tem a finalidade de apoiar propostas
desenvolvidas pelos Neabs e grupos correlatos que visem a articular a produção e difusão de conhecimento
sobre a temática étnico-racial e o acesso e permanência da população afro-brasileira no ensino superior, de
modo a: (a) incentivar ações de mobilização e sensibilização de instituições de ensino superior com vistas à
implantação de políticas de ação afirmativas; (b) contribuir para a formação de estudantes afro-brasileiros
nas instituições que adotaram o sistema de cotas; (c)
adequar a formação inicial e continuada de profissionais de educação básica em questões étnico-raciais; e
(d) estimular a integração das ações implantação das
diretrizes curriculares étnico-raciais em todos os níveis
de ensino.
O Programa de Formação e Permanência de Afrobrasileiros na Universidade do Estado do Rio de Janeiro – Programa Neab-Uerj. (2006-2008) contemplou três
eixos de ações: a pesquisa, a formação e a extensão por
meio das seguintes ações: (1) publicação, (2) seminários
e cursos e (3) pesquisa (bolsas de iniciação científica).
Ao longo do ano de 2006, o programa desenvolveu as
seguintes ações: (1) orientou de 12 bolsas de iniciação
científica para alunos afro-brasileiros de graduação e
1 (uma) bolsa de extensão para um aluno de pós-graduação; (2) realizou o curso de atualização Historia e
Cultura Negra, que teve como objetivo a capacitação
para a implementação da Lei n. 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino de história e cultura
afro-brasileira e dos africanos no ensino básico brasileiro;
291
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
(3) realizou de dois seminários sobre a temática étnico-racial brasileira; e (4) realizou atividades extramural (participação em eventos acadêmicos). Em consonância com os interesses do corpo docente e discente
da universidade, do Programa Uniafro do Ministério da
Educação e das entidades representativas da sociedade
civil, as ações do Programa Neab-Uerj atingiram centenas alunos de graduação e pós-graduação, professores
municipais e estaduais, ativistas do movimento negro e
de outros movimentos sociais e demais interessados na
temática. Em 2007, dando continuidade a suas ações, o
Sempre Negro pretende: (1) ofereceu um novo curso de
atualização e (2) lançou dois volumes sobre a literatura
sobre o negro no Brasil.
O Programa tem atingido os objetivos de consolidar o Sempre Negro – Neab-Uerj, por meio da promoção da permanência de alunos afro-brasileiros da
Uerj (bolsas) e da difusão da Lei n. 10.639/03 (curso
de extensão).1 Avaliamos que os reduzidos recursos
financeiros impõem limites e reduzem o alcance dessas ações. Este é uma das fragilidades da atual política
de apoio aos Neabs desenvolvida pelo MEC. Os Neabs
têm defendido a necessidade de as ações afirmativas se
transformarem em ações de Estado e não de governo.
Como já afirmamos, a permanência parece ser o
ponto vulnerável da política de reservas de vagas nas
universidades, pois, sem orçamento, não há política pública. Este fato compromete as futuras avaliações das
políticas de reserva de vagas para negros bem como o
desempenho acadêmico dos cotistas. Em geral, a renda
é usada com uma condição necessária da candidatura
às vagas reservadas. O regime de reserva de vagas, até
então, tem garantido o acesso de negros à educação
A Lei n. 10.639/2003 altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Brasileira, introduzindo a obrigatoriedade do ensino de história e cultura da África e dos afro-brasileiros.
1
292
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
superior, no entanto, a questão da permanência desses beneficiários ainda é um problema. É neste vácuo
de iniciativas e carência de recursos que o Programa
Uniafro promovido pela Secretaria de Ensino Superior
do Ministério da Educação ainda que de uma maneira
tímida, tem atuado.
5 Considerações finais
A política de reserva de vagas é uma experiência
nova na política educacional brasileira. Carece ser implantada, implementada, avaliada com todo o rigor. O
simples enfrentamento de posições, ou seja, o debate
entre modelos diferentes de política social – universalistas ou seletivas – sem o cumprimento rigoroso das
etapas dessas políticas compromete o seu sucesso. A
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, hoje com
mais de sete mil cotistas, entre eles os cotistas negros, enfrenta uma série de problemas nessa fase de
implementação e avaliação. No vestibular de 2007, foram oferecidas 1.048 vagas para negros, mas apenas
673 estudantes se inscreveram. Desses, 439 passaram.
No inicio do sistema de reserva de vagas havia mais
inscritos que vagas, mais, nos últimos dois anos a situação mudou. Tem havido uma redução no numero
de inscritos nas vagas reservadas. A universidade pretende realizar estudos para averiguar as causas de tal
fenômeno. Enquanto isso, ainda existe perguntas sem
respostas: a política de cotas é uma política adequada
para promoção do acesso ao ensino superior para os
negros? Por que tem havido uma redução de inscritos
para as vagas reservadas?
Outro problema que torna a política de ação
afirmativa na UERJ vulnerável é a sua ausência no orçamento social do Estado. Sem orçamento não se faz
política pública. Esse fato compromete o desempenho
293
Diversidade Étnico-Racial e Educação Superior Brasileira
dos beneficiários e o futuro da política, ou seja, não há
como avaliar sua eficiência e eficácia.
As ações do Sempre Negro - Coletivo de Professores Negros, o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da
Uerj, que se desenvolvem na universidade com recursos
do Ministério da Educação, apontam para a necessidade
de sua ampliação, seja no número de beneficiários, seja
na quantidade de recursos financeiros destinados à sua
programação. Cabe concluir enfatizando a necessidade
de políticas de inclusão dos grupos sub-representados
no ensino superior, o caráter temporário das ações afirmativas e a necessidade de se garantir a permanência
dos beneficiários. São fatores que devem ser considerados quando da análise dessa política pública. Assim
será possível a compreensão do problema que deu origem a essa política, seus conflitos e o papel de todos os
envolvidos: indivíduos, grupos e das instituições.
294
O sistema de reserva de vagas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro...
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