13 de maio: da Leia Áurea à essência escravocrata da direita
No ano de 1983, uma foto estampada na primeira página do Jornal do
Brasil renderia ao seu autor, o repórter-fotográfico Luiz Morier, o Prêmio
Esso de fotojornalismo. Nela, um grupo de negros atados pelo pescoço
por uma corda é levado pela polícia, após uma das frequentes batidas em
favelas do Rio de Janeiro.
Por Gilson Caroni Filho*, na Carta Maior
Assemelhando-se àquelas pinturas do século 19, em que aparecia o capataz
com seu chicote ao lado de escravos amarrados, a fotografia de Luiz Morier era
encimada por um sugestivo título: "Todos negros" A pergunta remete a duas
questões que permanecem dolorosamente atuais: por que a data referência da
libertação dos negros continua sendo o 13 de maio e qual é seu exato
significado?
Talvez o questionamento mereça mais desdobramentos. Por que a crença de
que vivemos numa democracia racial permanece tão enraizada no pensamento
da maioria da população brasileira quando, ao nos determos no cotidiano social
deste país, percebemos as profundas desigualdades que ainda envolve
distintas etnias? A constatação de que os negros e não-brancos em geral são
aqueles que possuem empregos menos significativos socialmente não seria
evidência suficiente para demolir de vez um imaginário construído ao longo de
dois séculos?
Apesar do contrapondo estabelecido pela criação do dia da Consciência Negra,
permanece o costume freqüente de nos curvamos diante do ritual do 13 de
maio. A mesma elite que não aceita políticas de cotas, que protela a sanção do
Estatuto da Igualdade Racial, enaltece a libertação dos escravos como início
de uma nova era de liberdade. Sequer se dá conta de que notórios
abolicionistas como Nabuco, Patrocínio, Rebouças e Antônio Bento, entre
outros, afirmaram que a abolição só se cumpriria de fato com a reforma agrária
e a entrada dos trabalhadores num sistema de oportunidade plena e
concorrência.
Mesmo os setores mais progressistas, ao denunciar as condições sócioeconômicas dos negros depois de 122 anos de abolição, justificam a situação
atual como resquício do passado escravo. Isso explicaria a permanência de
mecanismos não institucionais de imobilização que atingem o segmento negro
da população, produzindo distâncias sociais enormes, jamais compensadas?
Ou é cortina de fumaça para preservar a aura de “bondade" da princesa
branca?
Estudos feitos sobre a época da chamada Abolição mostram que 70% da
população dos escravos já estavam livres antes de 1888, ou por crise
econômica de algumas frações da classe dominante ou por pressões dos
próprios negros, através de lutas, fugas e rebeliões.
A Lei Áurea foi, na verdade, uma investida bem sucedida das elites pelo
controle político de uma situação que lhes fugia das próprias mãos. Sua
eficácia ideológica pode ser atestada até hoje com os festejos do 13 de maio.O
que é um indicador preciso da recorrente capacidade de antecipação política
da classe dominante continua sendo percebido como " gesto magnânimo",
exemplo da cordialidade vigente em nossa história política. A teoria dos
resquícios (que de fato existem) tenta ocultar um fato relevante: os mais de um
século de modo de produção capitalista e seus mecanismos de exclusão da
população negra não permitem jogar todo débito na conta do passado.
Como observa Fátima do Carmo Silva Santos, secretária da União Negra
Ituana(Unei), a Lei Áurea foi na verdade um passo importante, mas como veio
desacompanhada de reformas estruturais, resultou em "uma demissão em
massa do povo negro, já que eles não tinham emprego, educação ou qualquer
condição de conseguir um trabalho que não fosse com os seus senhores em
troca de um teto".
Embora o processo de desestruturação do mito da “democracia racial" tenha
avançado muito nos últimos anos, no terreno da luta social e política perdura
um grande atraso a ser superado. Cabe à República completar a Abolição com
políticas públicas eficazes. Enquanto tivermos um Demóstenes Torres (DEMGO) responsabilizando os ex-escravos por sua própria escravidão — e
publishers escravocratas pagando a capatazes magnolis para descer o açoite
em jornalistas que noticiaram o fato —, é fundamental que usemos a data para
destacar a dimensão cultural, a construção social e ideológica de “raça" como
elementos reprodutores de desigualdades sociais perpetuadas.
É a única comemoração possível em Paços Imperiais que, desde 1888,
alforriam as más consciências de uma elite incapaz de elaborar projetos
republicanos. As mesmas que criminalizam o MST para manter inalterada a
estrutura fundiária que vem da Lei de Terras, aprovada em 1850. As mesmas
que acham possível falar em libertação sem nenhuma política de inserção
aplicada. O condimento neoliberal não esconde a essência escravocrata da
direita brasileira. É bom pensar nisso em outubro.
* Gilson Caroni Filho é professor de Sociologia das Faculdades Integradas
Hélio Alonso (Facha), no Rio de Janeiro, colunista da Carta Maior e
colaborador do Jornal do Brasil.
Download

Clique aqui para ler artigo na íntegra.