INTRODUÇÃO
AO DIREITO CIVIL
AUTOR: CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA
GRADUAÇÃO
2012.2
Sumário
Introdução ao Direito Civil
ROTEIRO DAS AULAS: ........................................................................................................................................... 3
PARTE I: INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL .................................................................................................................. 3
Aula 1 — Apresentação da disciplina — introdução ao Direito Civil ............................................. 3
Aula 2 — o papel da pessoa humana no direito civil moderno ....................................................... 6
PARTE II: DIREITO DAS PESSOAS ........................................................................................................................... 11
Aula 3 — Conceitos Estruturais — A Pessoa Física...................................................................... 11
Aula 4 — Conceitos Estruturais — Direitos da Personalidade ..................................................... 26
Aula 5 — Direitos da Personalidade — Direito à Integridade Física ............................................ 39
Aula 6 — Direitos da Personalidade — Direito ao nome e à honra .............................................. 49
Aula 7 — Direitos da Personalidade — Direito à Privacidade ...................................................... 58
Aula 8 — Direitos da Personalidade — Direito à Privacidade e Tecnologia .................................. 66
Aula 9 — Direitos da Personalidade — Direito à Imagem ........................................................... 78
Aula 10 — Direito à Imagem e privacidade —
análise de casos .............................................................................................................. 106
Aula 11 — Conceitos Estruturais — Pessoas jurídicas ............................................................... 121
Aula 12 — Pessoas jurídicas — sociedade, associações e fundações ............................................ 133
PARTE III: DIREITO DOS BENS............................................................................................................................. 139
Aula 13 — Conceitos Estruturais — Bens ................................................................................. 139
Aula 14 — Benfeitorias — Bem de Família ............................................................................... 148
PARTE IV: NEGÓCIOS JURÍDICOS ......................................................................................................................... 168
Aula 15: — Conceitos Estruturais — Negócio Jurídico ............................................................. 168
Aula 16 — Invalidade do Negócio Jurídico................................................................................ 179
Aula 17 — Interpretação dos Negócios Jurídicos ....................................................................... 183
Aula 18 — Defeitos do Negócio Jurídico: Erro e Dolo .............................................................. 188
Aula 19 — Defeitos do Negócio Jurídico: Coação, Simulação e Fraude contra Credores ........... 197
Aula 20 — Lesão e Estado de Perigo .......................................................................................... 206
Aula 21 — Condição, Termo e Encargo .................................................................................... 212
PARTE V: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA .................................................................................................................. 221
Aula 22 — Fundamentos para Aplicação da Prescrição e da Decadência .................................... 221
Aula 23 — Suspensão, Impedimento e Interrupção dos Prazos Prescricionais ............................ 240
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ROTEIRO DAS AULAS:
PARTE I: INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 1 — APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA — INTRODUÇÃO AO
DIREITO CIVIL
EMENTÁRIO DE TEMAS
Direito Privado — Direito Civil — Direito Civil Constitucional — Apresentação do Código Civil de 2002
LEITURA OBRIGATÓRIA
TEPEDINO, Gustavo. “Premissas Metodológicas para a Constitucionalização do Direito Civil”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2004; pp. 7/22.
LEITURAS COMPLEMENTARES
GIORGIANNI, Michele. “O Direito Privado e suas Atuais Fronteiras”, in
Revista dos Tribunais nº 747; e PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 5/27.
1. ROTEIRO DE AULA
Estudar o Direito Civil hoje significa estudar um campo do Direito que
atravessa uma de suas maiores transformações. Por um lado, diversas teorias
tem sido erigidas sobre a chamada publicização, ou constitucionalização do
Direito Civil, por outro, e mais particularmente no Brasil, a recente publicação de um novo Código ainda acarreta, e acarretará por um longo tempo,
todo um trabalho de adequação e interpretação do novo texto.
A análise dos dispositivos do Código Civil à luz da Constituição Federal
marca os estudos não apenas do Direito Civil, mas de todo o Direito Privado,
nos últimos trinta anos. Uma das premissas desse Direito Civil Constitucional é justamente a aplicação dos princípios constitucionais nas relações
travadas entre particulares.
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3
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Tomando por base o rompimento da summa divisio entre Direito Público e Direito Privado, e a afirmação do texto constitucional como vértice
axiológico e normativo do ordenamento jurídico, essa perspectiva de análise
permite compreender como esses princípios influenciam as atividades dos
particulares e podem ser exigidos na prática.
O Direito Civil Constitucional, ao aplicar os dispositivos constitucionais
nas relações privadas, evidencia o fenômeno da perda do papel centralizador
no ordenamento jurídico desempenhado pelo Código Civil na teoria jurídica
do século XIX.1
Com a intensa produção legislativa que caracterizou o século XX, progressivamente o Código Civil foi cedendo espaço para leis esparsas que inicialmente eram editadas de forma extraordinária, sendo sucessivamente substituído o caráter de excepcionalidade pela prática reiterada de elaboração de leis
especiais, editadas em separado do Código Civil e constituindo verdadeiros
micro-sistemas.
A fragmentação extrema do Direito Civil somente pôde ser evitada com a
compreensão de que todo o ordenamento jurídico está sujeito aos preceitos
constitucionais. A Constituição Federal, com o estabelecimento de princípios que norteiam todo o ordenamento jurídico, reunifica o ordenamento,
submetendo todas as relações jurídicas ao seu poder normativo.
Nesse sentido, explicita Pietro Perlingieri que “o código civil certamente
perdeu a centralidade de outrora. O papel unificador do sistema, tanto nos
seus aspectos mais tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto
constitucional.”2
O reconhecimento, à luz da moderna doutrina constitucional, da normatividade dos princípios, confere à Constituição potencial transformador
jamais possuído. Sua influência se espraia por todo o ordenamento jurídico,
propondo uma releitura dos institutos e consolidando a própria aplicabilidade da Constituição nas situações cotidianas.
Mas a discussão está longe de ser encerrada. A edição de um novo Código
Civil pode fazer você se perguntar sobre a necessidade de se utilizar a Constituição nos estudos de Direito Civil. O recurso à Constituição parecia se fazer
necessário quando o Código Civil em vigor no país era o mesmo desde 1916.
Com a edição do novo Código, em 2002, pergunta-se: precisamos ainda da
Constituição? Os diversos assuntos que serão estudados durante essa disciplina fornecerão a resposta para essa pergunta.
1
O papel centralizador do Código Civil
pode ser notado na seguinte passagem
de José de Alencar, escrita pelo romancista (e jurista) sobre a oportunidade
de criação de um Código Civil para o
Brasil: “Outorga-se aos povos ou eles
conquistam no dia de sua liberdade
uma Constituição, escrita ao estrepito
da batalha ou às aclamações da praça
publica, mas um Código Civil procede
uma longa gestação das idéias; ele é o
marco de um largo período no progresso da jurisprudência, e o depositário
da experiência e estudo não só de um
povo, mas da humanidade culta.” (in
Esboços Jurídicos. Rio:Garnier, 1883;
p. 132).
2
Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil.
Rio: Renovar, 1998; p. 6.
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4
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Como primeira aula da disciplina, deve o professor buscar familiarizar o aluno com o estudo do Direito Civil através de uma curta explanação sobre a transição do papel desempenhado pelo Código Civil no
século XIX, para o atual papel do Código.
A necessidade de se estudar o Direito Civil com base nos preceitos fundamentais é a tônica dominante no texto de leitura obrigatória.
Como os alunos já cursaram Direito Constitucional I, e já tomaram
contato com conceitos como supremacia da Constituição, princípios
constitucionais, ponderação de interesses e etc, eles não deverão ter
dificuldades para compreender a dinâmica do Direito Civil Constitucional.
É importante que o professor dê um panorama amplo dos estudos
em Direito Civil no país, e, ao final da aula, faça uma apresentação do
Código Civil, explicando resumidamente as matérias que serão abordadas no decorrer do curso.
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 2 — O PAPEL DA PESSOA HUMANA NO DIREITO CIVIL
MODERNO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Dignidade da Pessoa Humana — Autonomia Privada
CASO GERADOR
“Lançamento de anão” e Peep-Show
LEITURA OBRIGATÓRIA
MORAES, Maria Celina Bodin de. Danos à Pessoa Humana. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003; pp. 81/117.
LEITURAS COMPLEMENTARES
AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Caracterização Jurídica da Dignidade da
Pessoa Humana”, in Estudos e Pareceres de Direito Privado. São Paulo:
Saraiva, 2004; pp. 03/24.
1. ROTEIRO DE AULA
A proteção da pessoa humana hoje ocupa um papel central nos estudos
jurídicos. Conforme leciona Pietro Perlingieri, a personalidade humana deve
ser tutelada nas múltiplas situações enfrentadas pela pessoa, resultando que o
modelo de direito subjetivo tipificado se mostrará sempre insuficiente.3
Conforme expõe o autor italiano, “[a] esta matéria não se pode aplicar o
direito subjetivo elaborado sobre a categoria do ‘ter’. Na categoria do ‘ser’ não
existe a dualidade entre sujeito e objeto, porque ambos representam o ser, e
a titularidade é institucional, orgânica. Onde o objeto da tutela é a pessoa, a
perspectiva deve mudar; torna-se necessidade lógica reconhecer, pela especial
natureza do interesse protegido, que é justamente a pessoa a constituir ao
mesmo tempo o sujeito titular do direito e o ponto de referência objetivo da
relação.”4
3
Nesse sentido, afirma Gustavo Tepedino que: “com a evolução cada vez mais
dinâmica dos fatos sociais, torna-se
assaz difícil estabelecer disciplina legislativa para todas as possíveis situações
jurídicas de que seja a pessoa humana
titular.” (in Temas, cit.; p. 36.)
4
Pietro Perlingieri. Perfis do Direito Civil.
Rio, Renovar, 1997; p. 155.
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6
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A tutela que demanda a personalidade encontra-se além da summa divisio
entre Direito Privado e Direito Público (direitos fundamentais e direitos da
personalidade, respectivamente), e da discussão sobre a tipicidade ou atipicidade dos direitos da personalidade. Importa ao Direito que a pessoa humana
seja protegida de forma integral.
Assim, perde relevância a discussão sobre o enunciado de um único direito
subjetivo ou a classificação em inúmeros direitos da personalidade, que será
trabalhada mais à frente. Deve-se, isso sim, salvaguardar a pessoa em qualquer momento da atividade social.
As diretrizes elencadas nos artigos 1º, I e III da Constituição Federal, elegendo a cidadania e a dignidade da pessoa humana como fundamentos da
República, somadas à adoção do princípio da igualdade substancial (art.3º,
III), e da isonomia formal do art. 5º, acrescido da garantia residual constante
do artigo 5º, § 2º condicionam todo o ordenamento jurídico. Tais diretrizes
alcançam tanto a relação do indivíduo frente ao poder público como as relações tipicamente privadas. Na mesma direção está o entendimento de Maria
Celina Bodin de Moraes:
“A rigor, portanto, o esforço hermenêutico do jurista moderno volta-se para a
aplicação direta e efetiva dos valores e princípios da Constituição, não apenas na relação Estado-indivíduo, mas também na relação interindividual, situada no âmbito
dos modelos próprios do direito privado.”5
Dessa forma, a tutela da pessoa humana não pode ser restringida por concepções estanques de relações jurídicas públicas, de um lado, e relações jurídicas privadas, de outro. A pessoa humana requer proteção integral, atendendo
à cláusula geral fixada no texto constitucional para a proteção e promoção de
sua dignidade.
Contudo, se é certa a necessidade de proteção integral da pessoa humana,
resta ainda definir o que vem a ser a chamada “dignidade da pessoa humana”.
Para trabalhar com esse conceito, leia o caso gerador abaixo.
5
Maria Celina Bodin de Moraes, “A Caminho de um Direito Civil Constitucional”, in Revista de Direito Civil nº 65, p.
28. Vide, ainda, Gustavo Tepedino. “Código Civil, os chamados micro-sistemas
e a Constituição: premissas para uma
reforma legislativa”, in Gustavo Tepedino (coord). Problemas de Direito CivilConstitucional. Rio, Renovar, 2000; p.
12; Luiz Edson Fachin. Teoria Crítica, cit.;
p. 33; e Tereza Negreiros. “Dicotomia
Público-Privado frente ao Problema da
Colisão de Princípios”, in Ricardo Lobo
Torres (org) Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio, Renovar, 1999; p. 363.
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
2. CASO GERADOR
Leia a notícia abaixo:
Lançamento de Anão
Correio Brasiliense, 14 de março de 2002
A polícia invadiu um concurso de arremesso de anões promovido
no bar Odissey, em Long Island, no Estado de Nova Iorque (EUA). Os
clientes haviam pago US$ 10 para participar da bizarra competição,
que funcionava como uma prova de arremesso de peso. Um agente da
State Liquor Authority, entidade que fiscaliza os bares, informou que
havia uma área de arremesso em que foram colocados dois colchões
de ar e que os anões usavam capacete para se proteger. As 200 pessoas
que haviam no local, inclusive os anões, foram liberados sem qualquer
punição, mas o dono do bar, Tony Alfanom, foi multado em US$ 600.
O arremesso de anões, legalizado em alguns estados norte-americanos,
é proibido em Nova York.
A notícia acima reporta a proibição, nos Estados Unidos, da prática conhecida
por lançamento de anão (“dwarf tossing”). A sua proibição em território francês
gerou, nos anos 90, um dos mais conhecidos acórdãos do Conselho de Estado daquele país, o chamado caso “Morsang-sur-Orge”.
A Prefeitura de Morsang-sur-Orse decidiu acabar com os espetáculos de lançamento de anão naquela cidade. Para tanto, foi movimentada uma força policial
para averiguar se nos bares e boates da região a prática estava sendo desenvolvida.
A Prefeitura, como Administração Pública, tem a faculdade de intervir nas
relações privadas com o chamado “poder de polícia”. Especialmente no direito
francês, existe uma legislação especial para a utilização do poder de polícia em
eventos públicos, visando a garantir a segurança dos espectadores e prevenir eventuais tumultos.
Todavia, o fundamento utilizado pela Prefeitura para comandar as incursões
nos bares e boates foi distinto. Alegou-se, à época, que a proibição da atividade
estava sendo feita em homenagem ao princípio da indisponibilidade da dignidade da pessoa humana.
Um dos anões que foi proibido de ser lançado em boates locais ingressou então
com uma ação contra a Prefeitura. Alegava o anão que a proibição baixada era
ilegal pois violava a sua liberdade de iniciativa. Por conta de sua baixa estatura,
argumentou o anão, estava difícil conseguir um emprego na cidade. Dessa forma,
ser lançado de um lado para outra na boate era o único emprego que ele havia
obtido. E agora o Estado estava lhe retirando o seu próprio sustento.
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Na decisão de 27.10.1995, o Conselho de Estado francês pela primeira vez
reconheceu a dignidade da pessoa humana como elemento integrante da “ordem
pública” e, conseqüentemente, declarou ser a prática do lançamento de anão uma
atividade que atenta contra a dignidade da pessoa, não podendo, mesmo voluntariamente, ser exercida pela mesma.
Se você fosse o juiz de um caso idêntico àquele decidido pelo Conselho de Estado francês, qual seria a sua decisão?
CASO 2:
Na Alemanha discutia-se a possibilidade de se conceder uma licença de funcionamento para um estabelecimento onde se praticava o chamado “peep-show”, no
qual uma mulher dança sensualmente (e geralmente sem roupas) em uma cabine
fechada, mediante remuneração, para um espectador individual.
A licença de funcionamento não fora concedida administrativamente sob o
argumento de que aquela atividade seria degradante para mulher e, portanto,
violava a dignidade da pessoa humana. Em razão disso, os interessados ingressaram com ação judicial questionando o ato administrativo. Eles argumentavam
que a mulher estaria realizando aquele trabalho por livre e espontânea vontade
e por isso não havia que se falar em violação à dignidade da pessoa humana.
Sustentaram ainda que várias boates onde se praticava o strip-tease obtiveram a
devida licença de funcionamento, razão pela qual o “peep-show” também deveria
ser permitido.
O caso chegou até a Corte Constitucional alemã (TCF), que deveria decidir
se merecia prevalecer a autonomia da vontade da mulher, que estava ali voluntariamente, por escolha própria, ou a dignidade da pessoa humana, já que aquela
atividade colocava a dançarina na condição de mero objeto de prazer sexual.
A decisão foi no sentido de que o “peep-show” violaria a dignidade da pessoa
humana e, portanto, deveria ser proibido. Na argumentação, o TCF decidiu que
“a simples exibição do corpo feminino não viola a dignidade humana; assim,
pelo menos em relação à dignidade da pessoa humana, não existe qualquer objeção contra as performances de strip-tease de um modo geral”. Já os Peep-shows
— argumentaram os julgadores — “são bastante diferentes das performances de
strip-tease. No strip-tease, existe uma performance artística. Já em um peep-show
a mulher é colocada em uma posição degradante. Ela é tratada como um objeto
para estímulo do interesse sexual dos expectadores”.
Explicou ainda o TCF que a violação da dignidade não seria afastada ou justificada pelo fato de a mulher que atua em um “peep-show” estar ali voluntariamente. Afinal, “a dignidade da pessoa humana é um objetivo e valor inalienável,
cujo respeito não pode ficar ao arbítrio do indivíduo”
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9
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Você concorda com a decisão acima? Como a autonomia privada e o princípio
da dignidade da pessoa humana podem ser enquadrados nesse caso?
(As citações foram extraídas de ADLER, Libby. Dignity and Degration:
transnacional lessons from constitucional protection of sex. Disponível
On-line: http://papers.ssrn.com/. O texto acima é uma adaptação do texto de George Mamelstein constante do site: http://direitosfundamentais.
net/2007/08/14/jurisprudenciando-casos-curiosos-julgamentos-pitorescos/)
3. QUESTÕES DE CONCURSO
UnB/CESPE — OAB
37º Exame de Ordem 2008.3
QUESTÃO 20
Assinale a opção correta no que se refere à aplicação do princípio da dignidade da pessoa humana.
A. O uso de algemas não requer prévio juízo de ponderação da necessidade, como em casos de resistência e de fundado receio de fuga ou
de perigo à integridade física própria ou alheia, por parte do preso
ou de terceiros, pois, como a fuga é ato extremamente provável no
momento da prisão, as algemas podem ser utilizadas como regra.
B. A referência, na CF, à dignidade da pessoa humana, aos direitos da
pessoa humana, ao livre exercício dos direitos individuais e aosdireitos e garantias individuais está relacionada aos direitos e garantias
do indivíduo dotado de personalidade jurídica ou não. Desse modo,
a aplicação do princípio da dignidade humana exige a proteção dos
embriões humanos obtidos por fertilização in vitro e congelados,
devendo-se evitar sua utilização em pesquisas científicas e terapias.
C. A aplicação do princípio da insignificância, embora seja consequência do princípio da dignidade da pessoa humana, nãoé aplicável
aos crimes militares, haja vista a dignidade do bem jurídico protegido pelos tipos penais que têm por objeto de proteção os interesses
da administração militar.
D. A ausência de indicação da conduta individualizada dos acusados
de crimes societários, além de implicar a inobservância aos princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório,
fere o princípio da dignidade da pessoa humana.
Resposta: D
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
PARTE II: DIREITO DAS PESSOAS
AULA 3 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — A PESSOA FÍSICA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Pessoa física — Início e fim da personalidade — Incapacidade — Identificação e Registro
LEITURA OBRIGATÓRIA
RODRIGUES, Rafael Garcia. “A Pessoa e o Ser Humano no novo Código
Civil”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 1/34
LEITURAS COMPLEMENTARES
NONATO, Orozimbo. “Personalidade”, verb. in Repertório Enciclopédico do
Direito Brasileiro, v. 37; e EBERLE, Simone. “Mais capacidade, menos
autonomia: o estatuto da menoridade no novo Código Civil”, in Revistra Trimestral de Direito Civil nª 17 (2004), pp. 181-191.
1. ROTEIRO DA AULA
Antes de ingressar no estudo da personalidade, é importante remeter aos
conceitos de relação jurídica e de direito subjetivo. A relação jurídica, na conceituação de Pontes de Miranda, nada mais é do que “a relação inter-humana,
a que a regra jurídica, incidindo sobre os fatos, torna jurídica”. Assim, além da
incidência da norma, que torna determinada relação relevante ao direito, temos que, necessariamente, a relação jurídica se desenvolve entre entes capazes
de ter direitos e deveres.
Outra consideração a que devemos nos remeter são os conceitos de direito
subjetivo e direito objetivo. O direito objetivo, norma agendi, é o direito posto,
ou seja, a norma jurídica que vigora em determinado Estado. Já o direito subjetivo, de forma sucinta, é a prerrogativa titularizada por um indivíduo decorrente da regular observância de norma de direito objetivo. É a facultas agendi.
A conexidade desses conceitos com o de personalidade deriva justamente do fato que, em regra, aos entes dotados de personalidade é dado
FGV DIREITO RIO
11
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
integrar algum dos pólos da relação de direito material, seja o pólo ativo
ou o pólo passivo.
Na tentativa de dirimir o caráter abstrato da matéria, pode-se socorrer
com exemplos derivados do Direito das Obrigações. Assim, num contrato de
compra e venda figuram, concomitantemente, o vendedor e o comprador. O
primeiro, sendo titular de um direito de crédito, é o sujeito ativo da relação;
o segundo, comprador do bem, é o sujeito passivo, é aquele em virtude do
qual pode ser exigida uma ação condizente na entrega do bem. O vendedor
é o devedor da relação.
Contudo, a dinâmica da relação obrigacional suscitada não é tão simples.
A relação contratual citada, seguindo a lógica das obrigações, possui um caráter sinalagmático, ou seja, há correspondência na exigência de condutas
recíprocas para ambas as partes.
Dessa forma, ao vendedor corresponde o direito subjetivo de receber a
importância acordada, ao mesmo tempo em que compete ao comprador o
dever-jurídico de pagar-lhe o preço. Analisando sob outra perspectiva, tem-se
que, de forma concomitante, o comprador é titular do direito subjetivo de
receber a mercadoria, ao passo que o vendedor está adstrito ao dever jurídico
de entregá-la nas condições estabelecidas — dia, hora, quantidade, qualidade, etc.
Nos direitos reais, por outro lado, a definição do sujeito passivo não é tão
clara como no exemplo acima apresentado: contra quem se pode exigir uma
prestação quando o direito titularizado é o direito, p.ex, de propriedade sobre
um bem? No direito de propriedade, enquanto o sujeito ativo é o titular do
domínio, são sujeitos passivos da relação jurídica todas os demais terceiros,
exceto o titular do direito real.
Personalidade e pessoa natural
O Código Civil regula a personalidade nos artigos 1º a 12. A personalidade, conforme exposto pela doutrina tradicional, se traduz na capacidade
genérica para ser titular de direitos e deveres, sendo adquirida, a partir do
que se depreende do artigo 2º do Código Civil, do nascimento com vida.
Para uma crítica desse conceito de personalidade, remete-se a leitura à aula
seguinte, sobre os chamados direitos da personalidade.
De forma clara, na configuração da personalidade do indivíduo não há
que tecer considerações acerca de elementos próprios de sua capacidade psíquica, tais como o tirocínio, a maturidade, a livre e consciente capacidade
de manifestar sua vontade e de comportar-se de forma condizente com essa
manifestação. A personalidade, de forma peremptória, pressupõe apenas o
nascimento com vida.
FGV DIREITO RIO
12
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Como destaca Caio Mário, a personalidade não depende de consciência
ou vontade do indivíduo, pois “a criança, mesmo recém-nascida, o louco,
o portador de enfermidade que desliga o indivíduo do ambiente físico ou
moral, não obstante a ausência de conhecimento da realidade, ou a falta de
reação psíquica, é uma pessoa, e por isso mesmo dotado de personalidade,
atributo inseparável do homem dentro da ordem jurídica, qualidade que não
decorre do preenchimento de qualquer requisito psíquico e também dele
inseparável.”6
A personalidade, de acordo com a redação do artigo primeiro do CC2002,
se inicia com a vida. Esse é o único pré-requisito, pois o direito brasileiro não
considera, conforme a legislação estrangeira prevê em alguns casos, elementos como a viabilidade da vida ou mesmo, a “aparência humana”.
Contudo, o feto, enquanto integrante do corpo da mãe, não é uma massa
amorfa desconsiderada em sua importância pelo direito. O próprio dispositivo aqui referido, art. 2º, determina que a lei põe a salvo, desde a concepção,
os direitos do nascituro.
Nascituro, é segundo a definição clássica, o ser já concebido e que se encontra
no útero materno durante o período gestacional. Não é dotado ainda de personalidade, a qual somente surgirá no momento de seu nascimento com vida.
Não obstante essa falta de personalidade, o direito civil pátrio protege esse
ente ainda em formação. Isso decorre da tradição romanística de nosso direito, segundo a qual o feto, antes do nascimento, não é ainda uma pessoa, mas
se vem à luz como um ser dotado de direitos, a sua existência, no tocante aos
seus interesses, retroage ao momento de sua concepção. Os direitos reconhecidos ao nascituro permanecem então em estado de potencialidade até o advento
do nascimento, quando só então efetivamente se aperfeiçoam.
A lógica dessa é muito clara: se o feto não nasce, ou se não nasce vivo, a
relação de direito não chega a se formar. Nesse caso, nenhum direito será
transmitido à mãe por intermédio do natimorto. É como se nunca houvesse
ocorrido a concepção.
Surge logicamente a necessidade de precisar o momento no qual se reputa,
para fins jurídicos, a regular constituição da vida. Quando temos efetivamente esse nascimento com vida tão aludido pelo direito? Segundo a lição de
Caio Mário, “[a] vida do novo ser configura-se no momento em que se opera
a primeira troca oxicarbônica no meio ambiente. Viveu a criança que tiver
inalado ar atmosférico, ainda que pereça em seguida. Desde que tenha respirado, viveu: a entrada de ar nos pulmões denota a vida, mesmo que não tenha
sido cortado o cordão umbilical, e a sua prova far-se-á por todos os meios,
como sejam o choro, os movimentos, e essencialmente os processos técnicos
de que se utiliza a medicina legal para a verificação do ar nos pulmões”.7
Não há que se falar em pré-condicionamentos de natureza temporal para
o regular aperfeiçoamento da personalidade. Tendo nascido vivo, anda que
6
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições
de Direito Civil, v. I. Rio: Forense, 2005,
p. 142.
7
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições
de Direito Civil, v. I. Rio: Forense, 2005;
p. 146.
FGV DIREITO RIO
13
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
depois pereça, constituiu-se enquanto ser e, portanto, os direitos que se encontravam em estado potencial se aperfeiçoaram concomitantemente.
Conforme já abordado, todo ser humano é titular em caráter genérico de
direitos, bastando para isso o seu nascimento com vida. Não obstante, não é
somente ao homem que se confere personalidade, mas o direito igualmente
a confere a outras entidades. É o caso de agrupamentos de indivíduos que se
associam para a consecução de uma atividade econômica ou social (sociedades e associações), ou que se forma com vistas à destinação de um patrimônio
para um fim determinado (fundações). Qualquer que seja a figura de que se
trate, o mais importante é constatar que tais entes são dotados de autonomia
e independência em relação àqueles que lhe compõem.
Essa personalidade, que é conferida ao homem e aos entes por ele criados,
não se estende a outros seres vivos. Hipóteses há em que a lei trata com especial consideração animais ou mesmo determinados objetos, contudo, apenas
o faz em atenção ao homem que delas se serve. A vedação à caça ou aos maus
tratos, por exemplo, não é reflexo de uma eventual personalidade dos animais
ou mesmo de direitos que estes eventualmente titularizem. Corporifica tão
somente a idéia de que, em determinadas situações, o sofrimento e perecimento destes é atentatório ao direito do próprio homem.
Fim da personalidade civil
8
Essa mesma personalidade que é adquirida com o nascimento com vida,
termina com o advento da morte (CC, art. 6º). Estende-se, então, durante
todo o período de vida do indivíduo. Somente com a morte, a aptidão para
adquirir direitos que se iniciou com o nascimento irá se expirar, transferindose seu patrimônio8 aos herdeiros.
O direito atual não prevê hipótese alguma de perda da personalidade em
vida, não constituindo exceção a previsão constitucional de cassação de direitos políticos.9 Também não há que se caracterizar como morte a presunção
inserida no regramento da ausência, na medida em que esta se opera somente
no que toca aos efeitos patrimoniais.
De ordinário, prova-se a morte pela certidão extraída do assento de óbito.
Pode, contudo, ser provada por uma sentença declaratória do falecimento, e
nesse caso, o ônus da prova caberá àquele que possui interesse em provar que
a pessoa esteja morta. 10
Comoriência
Reputam-se comorientes aquelas pessoas que falecem na mesma ocasião, de
maneira a impossibilitar-se decifrar qual delas pré-morreu à outra. É o que
Patrimônio na acepção jurídica deve
ser concebido como o conjunto de
relações jurídicas de que o indivíduo
é titular. Dessa forma, transcende à
simples ótica dos bens materialmente
tangíveis.
9
Art. 15 C.F “É vedada a cassação de
direitos políticos, cuja perda ou suspensão só se dará nos casos de: I- cancelamento da naturalização por sentença
transitada em julgado; II – incapacidade civil absoluta; III – condenação criminal transitada em julgado, enquanto
durarem seus efeitos; IV – recusa de
cumprir obrigação a todos imposta ou
prestação alternativa, nos termos do
art. 5º, VIII.”
10
A necessidade de prova pode ser
exemplificada pelo art. 88 da Lei de
Registros Públicos: “Poderão os Juízes
togados admitir justificação para o
assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação,
incêndio, terremoto ou qualquer outra
catástrofe, quando estiver provada a
sua presença no local do desastre e não
for possível encontrar-se o cadáver para
exame. Parágrafo único. Será também
admitida a justificação no caso de desaparecimento em campanha, provados a
impossibilidade de ter sido feito o registro nos termos do artigo 85 e os fatos
que convençam da ocorrência do óbito.”
FGV DIREITO RIO
14
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
pode ser facilmente visualizado, a título de exemplo, em hipóteses de incêndio, naufrágio ou queda de uma aeronave. Logicamente, existe a necessidade
de valer-se de todos os recursos periciais possíveis no intento de descobrir o
momento das mortes, e nesse particular, o jurista recorre muitas vezes a seara
da medicina legal.
É nessa hipótese de falha na apuração da precedência dos óbitos que se
adotou como regra a simultaneidade das mortes. Segundo determina o art.
8º do CC2002:
Art. 8o Se dois ou mais indivíduos falecerem na mesma ocasião, não se podendo
averiguar se algum dos comorientes precedeu aos outros, presumir-se-ão simultaneamente mortos.
Os efeitos dessa presunção se processam de forma que, entre os comorientes, não há transferência de direitos, ou seja, há uma impossibilidade de
que um suceda ao outro. Não obstante, os outros herdeiros de cada um dos
comorientes devem ser chamados à sucessão.
A questão é relevante, pois dependendo da situação, pode implicar em
uma série de efeitos do ponto de vista sucessório. O exemplo clássico remonta à situação em que pai e filho são vitimados pelo mesmo acidente. A solução jurídica comportará enunciados inteiramente diferentes dependendo da
apuração da ordem das pré-mortes. Na impossibilidade dessa aferição, vale-se
da comoriência.
Registro Civil das Pessoas Naturais
O registro civil de pessoas naturais possui suas origens na prática adotada
pela Igreja Católica na Idade Média segundo a qual os padres registravam o
batismo, casamento e óbito dos fiéis. Justamente por esse motivo, o registro
foi deixado a cargo da Igreja por um longo tempo.
Atualmente, os fatos atinentes ao estado das pessoas são averbados no
registro civil. O Registro Civil de Pessoas Naturais congrega duas funções
essenciais: (i) por um lado, documenta informações de relevante interesse; e
(ii) por outro, confere publicidade a essas informações.
A par das finalidades já destacadas, existem ainda dois princípios que devem pautar a atividade dos registros públicos: o da fé pública e da continuidade. A fé pública constitui-se de uma presunção de veracidade das informações constantes dos atos registrais. O princípio da continuidade, por sua vez,
pressupõe que todas as informações atinentes ao indivíduo devem constar
no registro para que se forme um histórico das situações jurídicas relevantes,
sendo facultada a consulta por eventuais interessados.
FGV DIREITO RIO
15
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Capacidade
A capacidade, em sentido lato, congrega também a idéia de executoriedade de direitos da pessoa, correspondendo assim, não só à possibilidade
do indivíduo adquiri-los, mas também de os exercer de per se ou mediante a
assistência de outrem. Embora sejam conceitos distintos, existe uma complementaridade entre personalidade e capacidade.
A capacidade se subdivide em dois tipos distintos: a capacidade de direito,
oriunda da personalidade e a capacidade de fato, que é a aptidão para utilizar
e exercer direitos por si mesmo. A primeira remete à idéia de capacidade de
aquisição, ao passo que a segunda implica numa capacidade de exercício.11
A capacidade de direito surge concomitantemente com a personalidade,
isto é, tão logo ocorre o nascimento com vida. A vinculação entre capacidade
de direito e personalidade é bem enunciada pela doutrina clássica. Do exposto, pode-se depreender uma conclusão: apenas da capacidade de fato decorre
o pleno exercício de direitos.
No estudo sobre a personalidade jurídica, devemos ter em mente que capacidade é a regra e a incapacidade a exceção. Ou seja, toda pessoa tem a capacidade de direito ou de aquisição, sendo presumida a capacidade de fato
(ou de exercício). Somente através de exceções de natureza legal o indivíduo
pode ser privado da capacidade de fato. Assim, não constitui uma faculdade
do indivíduo abdicar ou dispor de sua capacidade.
A incapacidade não denota forma alguma de restrição à personalidade ou
a capacidade de direito. Os indivíduos por ela atingidos são afetados no exercício pessoal e direto dos direitos, e, portanto, a sua natureza nada mais é do
que uma limitação à autonomia de agir no mundo jurídico. Importante ter
em mente que essa limitação deve ser sempre interpretada de forma restrita
(stricti iuris) e em consonância com a idéia já aqui exposta de que capacidade
é a regra e incapacidade é a exceção.
Qualquer restrição ao exercício de direitos que resulte de ato jurídico, seja
ele inter vivos ou causa mortis, não implica em incapacidade.
Outro preceito de grande importância que deve ser destacado na teoria
acerca da incapacidade é o de que esta deriva exclusivamente da lei. É o legislador que determina as hipóteses em que o indivíduo será privado de sua
capacidade e cabe ao intérprete visualizar essas restrições de taxativamente.
Esses dispositivos têm caráter de ordem pública.
Igualmente importante é evitar confundir incapacidade com a vedação
que a lei impõe a algumas pessoas de pactuarem certos negócios jurídicos. É o
caso, por exemplo, das hipóteses em que a lei taxa como defesa a possibilidade do tutor adquirir bens do pupilo ou ainda, dos ascendentes alienarem bens
a alguns descendentes sem o expresso consentimento dos demais. A lógica
11
Elucidativa também é a nomenclatura oriunda da tradição francesa, onde a
capacidade de direito corresponde à capacidade de gozo e a capacidade de fato
pressupõe a capacidade de exercício.
FGV DIREITO RIO
16
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
dessas vedações é a preservação da moralidade e elas somente visam restringir,
limitadamente, os atos por ela previstos.
A lógica que orienta a incapacidade é a proteção daqueles cujo discernimento é falho. Somente aqueles eivados de deficiências juridicamente relevantes devem ser alvo do instituto. Os incapazes são submetidos a um regime
legal privilegiado cujo principal escopo é a preservação de seus interesses.
Atentando à extensão das deficiências, o direito gradua o nível de incapacidade. Dessa forma, em sendo o déficit psíquico menos ou mais severo, temos a possibilidade de que aquele por ele atingido seja determinado absoluta
ou relativamente incapaz.
Distinção que também deve ser destacada é aquela relativa à graduação
da forma de proteção, no sentido de que aos relativamente incapazes assume
o aspecto da assistência, e em relação aos absolutamente incapazes assume o
aspecto da representação.
Distinção entre incapacidade relativa e absoluta
O elenco dos absolutamente incapazes está previsto no artigo 3º do
CC2002, ao passo que os relativamente incapazes se encontram no artigo
4º do mesmo diploma. Grosso modo, pode-se dizer que a distinção entre
incapacidade absoluta e relativa é de grau apenas. As incapacidades decorrem
ou da idade imatura ou de uma deficiência física e mental determinada. O
citado artigo 3º assim dispõe sobre a matéria:
Art. 3o São absolutamente incapazes de exercer pessoalmente os atos da vida civil:
I — os menores de dezesseis anos;
II — os que, por enfermidade ou deficiência mental, não tiverem o necessário
discernimento para a prática desses atos;
III — os que, mesmo por causa transitória, não puderem exprimir sua vontade.
O artigo 4º do CC2002, por sua vez, considera relativamente incapazes
aqueles que:
Art. 4o São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de os exercer:
I — os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos;
II — os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental,
tenham o discernimento reduzido;
III — os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo;
IV — os pródigos.
Parágrafo único. A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.
FGV DIREITO RIO
17
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Atentando-se à redação da lei, pode-se observar que aos absolutamente
incapazes é defeso a prática, de forma autônoma, de quaisquer atos jurídicos.
A norma desconsidera a sua vontade, não sendo a mesma qualificada como
elemento válido para o aperfeiçoamento de relações jurídicas.
Se ao arrepio da lei, o absolutamente incapaz pratica um ato jurídico,
através de sua própria manifestação de vontade, isto é, não se valendo aqui
de representante legalmente constituído, este ato deve ser reputado nulo. É
o definido pelo art. 166, I, do CC2002, que prescreve ser nulo o negócio
jurídico quando celebrado por pessoa absolutamente incapaz.
Situação distinta é a da capacidade relativa, pois nela a inaptidão físicopsíquica dos beneficiários é menos pronunciada. O julgamento da realidade
nessas pessoas não se opera com perfeição, mas também não deve ser de
todo desprezado. A liberdade para agir no mundo jurídico é restringida, mas
não de todo anulada, sendo ainda condicionada, para sua regular validade, a
intermediação de um assistente. Esse assistente, pessoa plenamente capaz, é
quem aconselhará o relativamente incapaz.
Os atos praticados por relativamente incapaz são passíveis de anulação.
Contudo, uma vez submetido tal ato à anuência do assistente, ele será convalidado e terá força cogente equivalente aos atos que desde o seu início perfeitamente se constituem.
Incapacidade absoluta
Absolutamente incapazes, como visto, são aqueles que detêm direitos, podem
adquiri-los, mas são desabilitados a exercê-los. Sendo apartados de atividades civis, não participam direta e pessoalmente de qualquer negócio jurídico.12 Contrariando-se essa vedação que a lei os imprime, o ato será nulo de pleno direito.
Os indivíduos que se encontram nessa situação se valem de representantes
que os substituem por completo na prática de todos os atos atinentes a vida
civil. A representação pode se dar de duas formas: automaticamente, ou por
nomeação ou designação de autoridade judiciária.
A representação se processa de forma automática quando em virtude de
relações de parentesco ocorrem as hipóteses legais já determinadas. No caso
de nomeação, o representante adquire esse status em virtude de ato judicial.
A incapacidade absoluta ou está relacionada à idade ou à enfermidade mental. Os preceitos legais versam exclusivamente sobre essas duas causas.
Incapacidade absoluta dos menores de dezesseis anos — A lei parte do pressuposto de que indivíduos de pouca idade são naturalmente inaptos ao exercício de atos da vida civil. Essa incapacidade é decorrente da falta de discernimento e maturidade que o legislador crê que somente o transcurso dos anos
é capaz de dotar o indivíduo.
12
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio: Forense,
2005; p. 169.
FGV DIREITO RIO
18
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Nesse particular, chama maior atenção que a fixação da idade de 16 anos
para o fim da incapacidade absoluta é inovação do CC2002. No direito anterior, esse estado se alongava até os 18 anos.
Os que, por enfermidade ou deficiência mental não tiverem o necessário discernimento para a prática desses atos — O inciso II do art. 3º se refere àqueles
nos quais, ao se constatar problemas psíquicos, ficam impossibilitados de se
autogovernar. No entanto, a decretação da incapacidade depende de um processo de interdição, o qual é disciplinado pelos artigos 1.177 e seguintes do
CPC, processo esse em que o interditando se valerá dos meios legais para impedir tal provimento jurisdicional. No processo de interdição, o juiz se valerá
dos meios de prova, em particular de laudo pericial médico. A participação
do Ministério Público também é necessária.
Também é relevante a questão de saber se são válidos os atos praticados
pelo amental anteriormente à sentença que declare a sua interdição. A problemática aqui enunciada remete a dois interesses conflitantes: por um lado,
encontra-se o amental, que tendo seu discernimento maculado, pratica atos
que lhe são desfavoráveis e é por conta disso, alvo de uma especial consideração por parte da lei; por outro lado, encontra-se o interesse do terceiro de
boa-fé que com ele contrata. A possibilidade de anulação do ato jurídico
poderá causar o inconveniente da falta de segurança jurídica.
A questão é controvertida tanto em campo doutrinário como jurisprudencial. Autores e juízes demonstram inclinações diversas e a somente a análise
da situação casuística representa o fator determinante para a invalidação ou
não de atos praticados pelos amentais antes de sua interdição.
A boa-fé do contratante que negocia com o amental se consubstancia
numa série de condutas que devem ser necessariamente observadas. Assim,
p.ex., se o contratante tinha conhecimento do estado de afetação intelectiva
da outra parte, se a alienação era evidente, se a apuração da condição de incapacidade podia ter sido feita, ou ainda, se as próprias condições do negócio já
induziam que o contratante não estaria procedendo de forma coerente, não
há que se falar em boa-fé.
Má-fé e boa-fé, valendo-nos aqui de uma alegoria muito utilizada, não são
campos limítrofes, separados por uma tênue fronteira. Não existe uma delimitação precisa. Existe, em verdade, uma grande “região cinzenta” que separa
a boa-fé da má-fé. Por conseguinte, o fato de um contratante não agir deliberadamente de ma-fé não implica na necessária retidão de conduta do mesmo.
A boa-fé perpassa a idéia de não agir em desfavor da parte contrária com o
intuído de angariar vantagem, consubstanciando-se muitas vezes num atuar
positivo, diligente e que congrega elementos de ordem moral. Não obstante,
como se observa, o entendimento no sentido de tornar nulo o ato executado
por incapaz já foi diversas vezes afirmado nos tribunais:
FGV DIREITO RIO
19
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Nulidade de ato jurídico praticado por incapaz antes da sentença de interdição.
Reconhecimento da incapacidade e da ausência de notoriedade. Proteção do adquirente de boa-fé. Precedentes da Corte.
1. A decretação da nulidade do ato jurídico praticado pelo incapaz não depende
da sentença de interdição. Reconhecida pelas instâncias ordinárias a existência da
incapacidade, impõe-se a decretação da nulidade, protegendo-se o adquirente de boafé com a retenção do imóvel até a devolução do preço pago, devidamente corrigido, e
a indenização das benfeitorias, na forma de precedente da Corte.
2. Recurso especial conhecido e provido13
Essa posição fica mais defensável quando se verifica que na legislação processualista brasileira a sentença proferida no processo de interdição tem efeito
declaratório. Não se trata de provimento constitutivo, não é o decreto de
interdição, que cria a incapacidade, mas sim o pré-constituído estado de alienação mental.
O desfazimento do negócio, quando determinado, não pode implicar em
prejuízo ainda maior para aquele que acreditava dele extrair todos os efeitos
esperados. No caso apresentado, apesar do desfazimento do ato de caráter
negocial, os valores empregados na conservação e aprimoramento do imóvel
alienado pelo incapaz devem ser ressarcidos.
Contudo, a invalidação dos atos não é questão absolutamente pacífica.
Julgados há que, dispondo em sentido oposto, prescrevem que em homenagem ao contratante de boa-fé, é imperioso não desfazer o ato jurídico celebrado antes da sentença que decrete a incapacidade absoluta. Os autores
que defendem a continuidade do negócio, postulando a primazia da boa-fé,
asseveram que essa deve restar clara, facilmente perceptível.
Os que, mesmo por motivo transitório, não puderem exprimir a sua vontade
— Não só a vontade deve ser livre em sua construção, fruto da perfeita elaboração intelectiva do agente. Ela deve se pronunciar igualmente sob forma
desembaraçada, deve ser livre em sua exteriorização. Se essa segunda consideração é ausente na manifestação de vontade o ato simplesmente carecerá de
seu elemento gerador.
Incapacidade relativa
Os relativamente incapazes não são de todo privados da capacidade de
fato. O diferencial aqui não é a incapacidade de se autodeterminar, pois os
relativamente incapazes possuem discernimento que não pode ser desconsiderado pelo direito. É por conta dessa constatação que eles se encontram a
meio caminho entre a incapacidade plena e o livre exercício de prerrogativas
jurídicas.
13
STJ, Resp nº 296895/PR, Min. Carlos
Alberto Direito; j. em 29.06.2004.
FGV DIREITO RIO
20
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Nos atos da vida civil, exige a lei que sejam eles assistidos por quem o direito positivo encarrega desse ofício — em razão do laço de parentesco ou em
virtude de relação de ordem civil, ou ainda por designação judicial.
Como já ressaltado nas considerações gerais que versam sobre a capacidade, os atos praticados por relativamente incapaz não são nulos de pleno
direito, mas apenas anuláveis. Uma vez ratificados pelo assistente do incapaz, nenhum outro vício poderá ser argüido contra eles. São entendimentos que também se encontram expressos na lei, nos artigos 171 e 172 do
Código Civil:
Art. 171. Além dos casos expressamente declarados na lei, é anulável o negócio
jurídico:
I — por incapacidade relativa do agente;
II — por vício resultante de erro, dolo, coação, estado de perigo, lesão ou fraude
contra credores. (grifo nosso);
Art. 172. O negócio anulável pode ser confirmado pelas partes, salvo direito de
terceiro.
O CC2002 considera como relativamente incapazes os maiores de dezesseis
e menores de dezoito anos. Aqui se admite que o indivíduo já tenha alcançado
determinado desenvolvimento intelectual, e que, portanto, não há que se
desprezar a sua vontade. Seguindo a lógica da incapacidade relativa, para que
seus atos sejam reputados válidos, a lei prevê a anuência de seu pai ou tutor.
Contudo, quem atua no negócio jurídico é o próprio menor, sendo a sua
vontade a real a mola propulsora do negócio a ser celebrado.
Ao definir a incapacidade relativa entre dezesseis e dezoito anos, o CC2002
se harmonizou com as regras eleitorais e com a maioridade penal. Se o menor púbere realiza ato jurídico sem a assistência de seu representante esse ato
será passível de anulação, tanto pelo menor como por seu assistente legal.
Contudo, o direito se pauta também pela regra de que a ninguém é dado se
beneficiar de sua própria torpeza, e dessa forma, aquele que dolosamente age,
enganando o outro contratante, não pode encontrar acolhida no direito. É o
que dispõe o art. 180:
Art. 180. O menor, entre dezesseis e dezoito anos, não pode, para eximir-se de
uma obrigação, invocar a sua idade se dolosamente a ocultou quando inquirido pela
outra parte, ou se, no ato de obrigar-se, declarou-se maior.
Além aqueles de idade superior a dezesseis e inferior a 18, o código aloca
entre os relativamente incapazes outras figuras. É o caso dos ébrios habituais,
dos viciados em tóxicos e daqueles eivados de deficiência mental — deficiência
essa que ao contrário da enunciada no art. 3º não obsta a prática de atos civis.
FGV DIREITO RIO
21
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A norma se volta à idéia de que os indivíduos eivados desses impedimentos são alcançados por uma redução do seu discernimento. Contudo, é incumbência da jurisprudência nacional estabelecer o que será, exatamente,
este discernimento reduzido de que trata a norma.
Pródigo é aquele que, desordenadamente, gasta e destrói o seu patrimônio.
A proteção se inspira no relevante interesse social de proteção de sua família e
da própria integridade patrimonial do titular, sendo a incapacidade decretada
judicialmente por requisição do cônjuge ou de outro familiar.
A sua interdição e a conseqüente necessidade de assistência não se operam em relação à prática de todos os atos. Concernem apenas àqueles que
possam implicar em redução de seu patrimônio, e ao interesse de sua família representado no mesmo. Os demais atos da vida civil poderão ser
livremente praticados.
A capacidade dos indígenas, por sua vez, é regulada em legislação especial,
qual seja, o Estatuto do Índio (Lei nº 6001/73), o qual erige normas que
atentam à especial condição das comunidades indígenas aos costumes que
lhes são próprias.
Antecipação de Maioridade
A antecipação de maioridade é tão-somente a aquisição da capacidade
civil antes da idade de 18 anos, legalmente instituída. Em regra, a capacidade
de fato só é conferida ao indivíduo a partir do momento em que este adquire
18 anos, contudo o art. 5º prevê determinadas situações onde há inconveniência de obstar a prática pelos menores de 18 anos de determinadas ações.
Art. 5o A menoridade cessa aos dezoito anos completos, quando a pessoa fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
Parágrafo único. Cessará, para os menores, a incapacidade:
I — pela concessão dos pais, ou de um deles na falta do outro, mediante instrumento público, independentemente de homologação judicial, ou por sentença do juiz,
ouvido o tutor, se o menor tiver dezesseis anos completos;
II — pelo casamento;
III — pelo exercício de emprego público efetivo;
IV — pela colação de grau em curso de ensino superior;
V — pelo estabelecimento civil ou comercial, ou pela existência de relação de
emprego, desde que, em função deles, o menor com dezesseis anos completos tenha
economia própria.
A hipótese do inciso I é a possibilidade de antecipação voluntária de maioridade, que deve contar ou com a anuência das figuras paterna e materna, ou
FGV DIREITO RIO
22
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
com sentença judicial. Vale destacar que a exigência da participação de ambos
os progenitores nesse ato é obrigatória e decorrente da dicção constitucional
que prevê igualdade plena de direitos entre homem e mulher.
Os demais casos de antecipação, inseridos nos incisos II a V, são situações
expressamente consideradas por preceito legal, onde o legislador reputa como
inconveniente que ao menor seja vetada a capacidade de fato. Em qualquer
dos casos previstos nesse artigo, a revogação da capacidade de fato antecipada
é impossível.
Questões de concurso:
XXXVI Concurso para o Ingresso na Magistratura de Carreira do Estado do
Rio de Janeiro.
Prova Preliminar — Direito Civil
1. Agente incapaz demanda, devidamente representado, a anulação de contrato, alegando que, quando de sua celebração, não estava apto a entendê-lo e
querê-lo. A contraparte comprova que o ato não causou prejuízo ao incapaz.
Procede o pedido de anulação?
Concurso para ingresso no cargo de Advogado de Empresa — BNDES (2002)
6. Se o menor tiver idade superior a dezoito anos, os pais podem conceder-lhe a emancipação, dada por escritura pública ou particular, cessam a
incapacidade,
(a) pela declaração de ausência dos pais.
(b) pela habilitação para dirigir veículos automotores.
(c) pela habilitação e conhecimento da língua portuguesa.
(d) pelo estabelecimento, com recursos próprios, de sociedade civil ou comercial.
(e) pelo ingresso em curso superior, através de concurso vestibular.
Exame da Ordem — OAB/SP (concurso nº 126)
29. Compete aos pais, quanto à pessoa dos filhos menores:
(a) representá-los, até os 18 anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa
idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento.
(b) conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casar, sendo impossível
o suprimento judicial nesse caso.
FGV DIREITO RIO
23
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(c) reclamá-los de quem ilegalmente os detenha, fazendo uso da própria força, independente de autorização do poder judiciário.
(d) exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua
idade e condição, sem prejuízo de sua formação.
Ordem dos Advogados do Brasil
42º Exame de Ordem Unificado — 2010.2
39. Com relação ao procedimento da curatela dos interditos, é correto
afirmar que:
A. Na ausência dos pais, do tutor e do cônjuge, um parente próximo
pode requerer a interdição.
B. A sentença proferida pelo juiz faz coisa julgada material.
C. A realização de prova pericial, consistente no exame do interditando, é facultativa, podendo o juiz dispensá-la.
D. O Ministério Público não tem legii midade para requerer a interdição.
Resposta: A
Ordem dos Advogados do Brasil
VI EXAME DE ORDEM UNIFICADO
41. A Lei Civil afirma que, a despeito de a personalidade civil da pessoa
começar com o nascimento com vida, ao nascituro serão assegurados os seus
direitos desde a concepção. Para tanto, é correto afirmar que, na ação de posse em nome de nascituro,
A. a nomeação de médico pelo juiz para que emita laudo que comprove o estado de gravidez da requerente, assim previsto na lei processual civil, não poderá ser dispensado em qualquer hipótese.
B. por se tratar de mera expectativa de nascimento com vida, portanto, não tendo o nascituro personalidade civil, fica dispensada a
intervenção do Ministério Público na causa.
C. reconhecida a gravidez, a sentença declarará que seja a requerente
investida na posse dos direitos que assistam ao nascituro; não cabendo àquela o exercício do pátrio poder, o juiz nomeará curador.
D. são documentos indispensáveis à ação o laudo comprobatório do
estado gestacional emitido pelo médico nomeado pelo juiz e a certidão de óbito da pessoa de quem o nascituro é sucesso.
Resposta: C
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
UnB/CESPE — OAB
39º Exame de Ordem 2009.2
QUESTÃO 33
Assinale a opção correta acerca das pessoas naturais e jurídicas.
A. Na sistemática do Código Civil, não se admite a declaração judicial
de morte presumida sem decretação de ausência.
B. A existência legal das pessoas jurídicas de direito privado começa
com o início de suas atividades jurídicas.
C. A personalidade civil da pessoa natural tem início a partir donascimento com vida, independentemente do preenchimentode qualquer requisito psíquico.
D. O indivíduo de 16 anos de idade, ao contrair casamento,adquire a
plena capacidade civil por meio da emancipação,voltando à condição de incapaz se, um ano após o casamento, sobrevier a separação
judicial.
Resposta: C
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25
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 4 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — DIREITOS DA PERSONALIDADE
EMENTÁRIO DE TEMAS
Direitos da Personalidade — Teorias negativistas do século XIX — Afirmação
no século XX — Características dos direitos da personalidade — Classificação —
O problema da fonte dos direitos da personalidade — Teoria Monista e Pluralista
—(atividade em sala)
ATIVIDADE EM SALA:
Análise do Capítulo de direitos da personalidade do Código Civil (arts. 12/21)
LEITURA OBRIGATÓRIA
DONEDA, Danilo. “Os Direitos da Personalidade no novo Código Civil”,
in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 35/58.
LEITURAS COMPLEMENTARES
CAMPOS, Diogo Leite de. “Lições de Direitos da Personalidade”, In Boletim
da Faculdade de Direito, Coimbra, Universidade de Coimbra, 1991; pp.
129/223; PONTES DE MIRANDA, Francisco. Tratado de Direito Privado, tomo VII. Campinas: Booksellers, 2000; pp. 29/40; TEPEDINO,
Gustavo. “A Tutela da Personalidade no Ordenamento Civil-Constitucional Brasileiro”, in Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2004; pp. 23/54; e ASCENSÃO, José de Oliveira. “Pessoa, direitos fundamentais e direitos da personalidade”, in Revista Trimestral de Direito
Civil nº 26 (2006), pp. 43-66.
1. ROTEIRO DE AULA
Os estudos jurídicos sobre a personalidade e a conseqüente elaboração de
uma teoria dos direitos da personalidade remontam ao final do século XIX.
Os primeiros tratadistas a se debruçar sobre o tema, todavia, assim o fizeram
FGV DIREITO RIO
26
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
para refutar a possibilidade de construção de uma teoria jurídica legítima
sobre um objeto tão abstrato.
Esse panorama foi gradualmente sendo alterado pela necessidade, cada vez
mais evidente — sobretudo na primeira metade do século XX — de dotar o
Direito de mecanismos eficientes para tutelar a dignidade da pessoa humana.
Visando a atingir esse objetivo, percebeu-se que seriam ineficazes apenas
medidas de natureza política, econômica ou social. A coerção do ordenamento jurídico precisava ser utilizada para que a pessoa humana fosse protegida
contra violações à sua dignidade. Sendo assim, os juristas se dedicaram ao
tema, elaborando-se uma teoria jurídica sobre a personalidade, que evoluiu
do inicial repúdio à noção de que a personalidade poderia ser objeto de direito, até a sua mais ampla proteção.
O Direito Civil, em especial, recepcionou a matéria em estudo na “parte
geral” dos Códigos, tratados e manuais. Buscando suprir a mencionada demanda por uma tutela da pessoa pelo Direito, os civilistas reuniram-se em
torno de uma teoria geral dos chamados “direitos da personalidade”, hoje
largamente sistematizada.
Todavia, cumpre se explicar — ainda que detidamente — a evolução do
pensamento jurídico sobre a tutela da personalidade, iniciando-se pelas teorias que negavam a possibilidade de um estudo jurídico sobre o tema.
Teorias negativistas dos direitos da personalidade
Apesar da consagração dos direitos humanos nas Cartas de Direitos do
século XIX, a dogmática do Direito Civil encontrou dificuldades em reconhecer a existência de direitos atinentes à personalidade humana. Surgiram,
assim, questionamentos sobre a natureza e a amplitude desses direitos.
Grande parte das teorias negativistas dos direitos da personalidade sustentava que a personalidade, entendida como a titularidade de direitos, não
poderia atuar em uma relação jurídica como sujeito e objeto desses direitos
concomitantemente. Tratar-se-ia de uma confusão de papéis inadmissível
para a teoria civilística.
Conforme entendimento defendido por Jellinek, a vida e a honra de um
indivíduo, por exemplo, não pertenceriam à categoria do ter, mas sim à categoria do ser. Dessa forma, não poderiam ser compatibilizadas com a noção
de direitos subjetivos, os quais teriam aplicação restrita à seara das relações
jurídicas de cunho patrimonial.14
O cerne da discussão sobre a existência dos direitos da personalidade remonta à concepção de alguns autores de que esse instituto, se adotado, terminaria por conferir ao um indivíduo absoluto sobre a sua própria pessoa. Em
última, instância, estar-se-ia legitimando o suicídio.
14
Apud. Gustavo Tepedino. Temas de
Direito Civil. Rio, Renovar, 2001; p. 25.
FGV DIREITO RIO
27
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Não sendo possível, portanto, conceder aos direitos da personalidade o caráter de direitos subjetivos, pois se estaria conferindo à vontade individual a
faculdade de dispor sobre características fundamentais do ser humano (como
a vida), restava apenas a proteção do ordenamento jurídico contra lesões através do manejo da responsabilidade civil.
A presença preponderante da vontade individual na configuração dos direitos subjetivos pode ser notada na seguinte afirmação de Andreas Von Thur:
“El concepto de derecho subjetivo, tal como lo desarrollamos em el §1, no es más
que una abstracción de los derechos que tienen por sujeto al ser humano; el señorío
de la voluntad, en que esencialmente consiste, es un carácter exclusivo del hombre
— si se prescinde de los entes creados por el orden jurídico —, así como constituyen
fines esencialmente individuales los intereses a cuyo servicio el señorío de la voluntad
se destina, esto es, la conservación de la existencia y el logro de los propósitos que el
individuo elige libremente.”15
Não tardou para que as teorias negativistas começassem a ser contestadas,
reconhecendo-se a relevância do estudo da personalidade para o Direito. A
partir desse momento, é importante notar as obras doutrinárias que abordaram o tema analisaram a personalidade através de um prisma essencialmente
estrutural, isto é, buscando inserir a personalidade ora na figura do sujeito
das relações jurídicas, ora na posição de objeto a ser tutelado.
Segundo o ponto de vista estrutural, a pessoa representa nas relações jurídicas subjetivas o sujeito de tais situações. Identificando-se a pessoa com a
figura do sujeito de direito — o titular das relações jurídicas — a personalidade terminaria por se confundir com a própria capacidade jurídica.
Essa concepção de pessoa pode ser percebida em diversos tratados e manuais de Direito Civil do século XIX e, ainda, em obras clássicas do século XX.
Nessa direção, manifesta-se Pontes de Miranda:
“Rigorosamente, só se devia tratar das pessoas, depois de se tratar dos sujeitos de
direito; porque ser pessoa é apenas ter a possibilidade de ser sujeito de direito. Ser
sujeito de direito é estar na posição de titular de direito. (...) Se alguém não está em
relação de direito não é sujeito de direito: é pessoa; isto é, pode ser sujeito de direito,
além daqueles direitos que o ser pessoa produz.”16
A partir do enunciado acima, conclui o tratadista que:
“A personalidade é a possibilidade de se encaixar em suportes fáticos, que, pela
incidência das regras jurídicas, se tornem fatos jurídicos; portanto, a possibilidade de
ser sujeito de direito.”17
15
Andreas Von Thur. Derecho Civil, vol.
12. Madrid: Marcial Pons, 1999; p. 371.
16
F. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, tomo I. Rio, Borsoi, 1952;
p. 153.
17
Idem. Ibidem; p. 153.
FGV DIREITO RIO
28
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Adotando conceituação diversa, é possível ainda observar a personalidade
como o conjunto de atributos da pessoa humana, sendo assim, objeto de
tutela pelo ordenamento jurídico. Tomando-se a personalidade como valor, deve-se levar em conta a plêiade de características indispensáveis ao ser
humano que emanam da personalidade e demandam, portanto, a devida
proteção jurídica.
Nesse sentido, cumpre transcrever a célebre lição de San Tiago Dantas
sobre a distinção entre personalidade e capacidade jurídica:
“A palavra personalidade está tomada, aí, em dois sentidos diferentes. Quando
falamos em direitos da personalidade não estamos identificando aí a personalidade
como a capacidade de ter direitos e obrigações; estamos então considerando a personalidade como um fato natural, como um conjunto de atributos inerentes à condição
humana; estamos pensando num homem vivo que é a capacidade jurídica em outras
ocasiões identificadas com a personalidade.”18
A capacidade jurídica, entendida como a legitimidade para o exercício de
direitos, encontra-se disciplinada no Código Civil (artigo 1o), e não se confunde com a personalidade19, cujo início se dá com o nascimento com vida.
Sua duração coincide com a da vida humana, extingüindo-se com a morte,
natural ou presumida (i.e., a ausência).
Pode-se reconhecer, portanto, duas correntes: (i) aquela que identifica a
personalidade com o sujeito de direitos e obrigações, compreendendo ser
impossível o reconhecimento de direitos da personalidade pela concomitância nas posições de sujeito e objeto das relações jurídicas; e (ii) aquela que,
buscando legitimar a existência dos direitos da personalidade, considera que
o objeto das relações jurídicas seriam seus atributos essenciais.
O reconhecimento da personalidade como objeto de direito
Há, como visto, quem defina os direitos da personalidade como aqueles
atinentes à utilização e disponibilidade de certos atributos inatos ao indivíduo, como projeções biopsíquicas da pessoa humana, constituindo, assim,
bens jurídicos assegurados e disciplinados pelo ordenamento.20
A doutrina, ao admitir a personalidade como objeto de direito, buscou
superar o dogma da impossibilidade de serem coincidentes a pessoa e o objeto de uma relação jurídica. Os direitos da personalidade seriam, portanto,
direitos cujo objeto são bens jurídicos que se convertem em projeções físicas
ou psíquicas da pessoa humana, por determinação legal, que os individualiza
para lhes dispensar proteção.21 Dessa forma, não se há de confundir o objeto
— as projeções que merecem tutela jurídica — com a personalidade.
18
San Tiago Dantas. Programa de Direito
Civil, v. I. Rio, Ed. Rio; p. 192.
19
Segundo Luiz Edson Fachin: “O que a
capacidade faz, na verdade, é informar
a medida da personalbidade e o grau
da sanção que se volta contra o não
atendimento a esse requisito.” (in Teoria Crítica do Direito Civil. Rio, Renovar,
2000; p. 32). Acrescenta, ainda, o referido autor que “a capacidade é só uma
medida da personalidade” (in Teoria
Crítica, cit.; p. 36).
20
Serpa Lopes. Curso de Direito Civil. Rio,
Freitas Bastos, 1989, p.205.
21
Orlando Gomes. Introdução ao Direito
Civil. Rio, Forense. Rio, Forense, 1997;
p.131.
FGV DIREITO RIO
29
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O reconhecimento das projeções da personalidade como objeto das situações jurídicas se mostrou, como se verá mais à frente, uma importante tentativa de afirmação dos direitos da personalidade. Todavia, a busca doutrinária
por um objeto externo à pessoa para garantir a legitimidade da categoria dos
direitos da personalidade denota ainda um apego à forma de configuração
dos direitos subjetivos patrimoniais.
Inserida em um substrato que privilegia a concepção de direito subjetivo
como um direito essencialmente patrimonial, a teoria dos direitos da personalidade sempre se padeceu da necessidade de se buscar um objeto externo ao
sujeito. Essa ótica remonta à estrutura dogmática dos direitos patrimoniais,
conforme explicita Alexandre Ferreira de Assumpção Alves:
“Os bens externos dão origem a vários direitos de ordem patrimonial, sobre os
quais o homem exerce suas faculdades de apropriação, de domínio. Quanto aos internos, estes compõe uma categoria própria de direitos, que são os direitos da personalidade, cujas características específicas os distinguem dos demais.”22
As teorias criadas sob o manto do reconhecimento dos atributos, características, ou radiações da personalidade como objeto da relação jurídica subjetiva, podem ser identificadas pela prática comum de se buscar um bem
jurídico que não se identificasse com a pessoa, uma vez que as utilidades
sobre as quais recaem os interesses patrimoniais do indivíduo lhe são sempre
exteriores.
Todavia, essa estrutura não se enquadra no que tange às relações jurídicas não-patrimoniais. Não cabe ao civilista do século XXI utilizar estruturas
pertencentes a construções doutrinárias pretéritas se as mesmas, além de não
se adaptarem com perfeição à situação que se busca tutelar, ainda conferem
apenas uma proteção ineficiente.
Ao se buscar um objeto externo ao sujeito para validar a fórmula dos direitos da personalidade, a doutrina terminou por não vislumbrar toda a potencialidade dessa categoria, persistindo em um modelo que apenas contribuiu
para operar como fator de limitação de sua efetiva atuação.23
A partir do preceito constitucional que elege a dignidade da pessoa humana como fundamento da República brasileira (art. 1º, III da CFRB), cabe ao
civilista optar por uma nova dogmática dos chamados direitos da personalidade, definindo a sua situação jurídica de forma consoante com a complexidade da realidade social.
Cumpre, portanto, que se reconheça os direitos da personalidade como
aqueles direitos atinentes à tutela da pessoa humana, considerados essenciais
à sua dignidade e integridade.24
Afirmada essa trajetória teórica de afirmação dos direitos da personalidade, em seguida serão abordados alguns pontos de relevo na dogmática dos
22
Alexandre Ferreira Assumpção Alves.
A Pessoa Jurídica e os Direitos da Personalidade. Rio, Renovar, 1998; pp. 58/59.
23
Danilo Doneda. “Os direitos da personalidade no novo Código Civil”, in
Gustavo Tepedino. A Parte Geral do Novo
Código Civil. Rio, Renovar, 2003; p. 45.
24
Conforme enunciado por Gustavo
Tepedino, no Temas, cit.; p. 24.
FGV DIREITO RIO
30
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
mencionados direitos, com destaque para as suas características e classificações, ambas delineadas pela doutrina, bem como o problema da fonte dos
direitos da personalidade e o embate entre as teorias monistas e pluralistas.
Características dos direitos da personalidade
Os direitos da personalidade possuem algumas características que lhes são
conferidas por grande parte dos estudos doutrinários. Embora exista alguma
discussão sobre a sua correta enumeração, pode-se reduzir as características
dos direitos da personalidade a seis, quais sejam: (i) a generalidade; (ii) a
extra-patrimonialidade; (iii) a indisponibilidade; (iv) o caráter absoluto; (v) a
imprescitibilidade; e (vi) a intransmissibilidade.
Por generalidade se entende que os direitos da personalidade são naturalmente concedidos a todos pelo simples fato de se estar vivo. Essa relação entre
a carcaterísitca da generalidade e a simples existência da pessoa, faz com que
alguns autores utilizem a expressão “direitos inatos”. Todavia, a terminologia
deve ser evitada, uma vez que ela estabelece uma conotação jusnaturalista
para o estudo da tutela da pessoa humana, o que implica em uma tomada de
posição quanto à fonte dos direitos da personalidade.25 Segundo o entendimento jusnaturalista, os mencionados direitos seriam pré-existentes à ordem
jurídica, independendo de qualquer conformação legislativa.
Adicionalmente, deve-se esclarecer que, dentre o rol de direitos da personalidade em espécie, usualmente estabelecido pela doutrina, alguns direitos
não adquiridos pelo simples fato da pessoa existir. Nesse particular, o direito
moral do autor, reconhecidamente um direito da personalidade, requer que
uma obra do espírito seja efetivamente realizada para que sobre o autor recaia
a proteção do direito.
A extra-patrimonialidade dos direitos da personalidade impõe que se faça
uma observação preliminar, segundo advertência de Santos Cifuentes: a referida característica significa apenas que os direitos da personalidade não poderão ser objeto de apreciação pecuniária, mas essa circunstância não implica
que os mesmos sejam incapazes de produzir efeitos econômicos.26 Trata-se de
duas situações distintas.
Vale destacar que essa característica não impede que a lesão a direito da
personalidade resulte em indenização pecuniária, pois a mesma se insere
no campo da responsabilidade civil, buscando apenas garantir o equivalente daqueles bens personalíssimos que constituem o objeto dos direitos
da personalidade.27
Assim, mesmo não sendo possível apreciar o valor pecuniário de um direito da personalidade, a pessoa poderá se valer de sua utilização para obter
um retorno de ordem econômica. Já conectando essa discussão com o pro-
25
Santos Cifuentes se utiliza da expressão “direitos inatos”, mas adverte
que o sentido em que a emprega parte
de uma “depuração prévia de idéias
advindas das ressonâncias históricas
que a palavra produz”. Assim, quando
o autor se refere a “direitos inatos”, ele
está a se referir a direitos que nascem
com o próprio sujeito, a partir do início de sua respiração vital, “estando
indefectivelmente unidos ao homem
enquanto subiectum iuris” (in Derechos
Personalísimos. Buenos Aires, Astrea, 2ª
ed., 1995; pp. 175/176).
26
Santos Cifuentes. Derechos Personalísimos, cit.; pp. 183/184.
27
Conforme dicção de Alexandre Ferreira de Assumpção Alves. A Pessoa
Jurídica, cit.; p. 66.
FGV DIREITO RIO
31
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
blema da indisponibilidade, complementa Gilberto Haddad Jabur que os
direitos da personalidade:
“[P]or dizerem mais ao conteúdo físico, moral ou espiritual do homem, do que
ao seu acervo material, não se imiscuem com o patrimônio, na acepção coloquial deferida ao termo, mas sobre ele exercem influência, porquanto podem, pela limitação
de seu exercício (ou limitação parcial e voluntária de vontade), emprestar utilidade
econômica. É o caso da permissão de uso ou venda da imagem e da divulgação de
dados íntimos, através ou não de contraprestação pecuniária. Não se trata de consagrar a disposição desses bens, posto intransmissíveis e por isso indisponíveis, mas
de temporária autorização, o que amiúde ocorre para a sua utilização e exploração
econômica.”28
A indisponibilidade trata da impossibilidade do titular dos direitos da personalidade para dispor desses direitos conforme o seu livre alvitre, tornandoos igualmente irrenunciáveis e impenhoráveis. Dessa forma, existe uma relação de complementaridade entre a extra-patrimonialidade — que, como
visto, permite que a pessoa autorize a utilização de direito da personalidade
em troca de compensação financeira — e a indisponibilidade desses direitos.
De fato, a indisponibilidade de que trata a doutrina deve ser relativizada, na medida em que algumas faculdades emanadas dos direitos da personalidade permitem a contraprestação pecuniária. O direito à imagem é o
exemplo sempre mencionado nesse sentido.29 Nessas circunstâncias, o direito
permanece intacto, apenas sendo cedidas temporariamente algumas de suas
potencialidades.30
Seguindo-se a enumeração de suas características, os direitos da personalidade são absolutos na medida em que os mesmos são oponíveis erga-omnes,
impondo-se a todos os terceiros o dever de respeitá-los. Essa característica
pode ser então enunciada como verdadeira decorrência da obrigação geral de
abstenção inscrita no princípio neminen laedere.
A utilização do termo “absolutos”, todavia, parece imprecisa na medida em
que não se procura defender, com essa característica, o entendimento de que
os direitos da personalidade sempre prevalecerão e serão aplicados, mesmo
quando em conflito com direitos de outra natureza.31 Como se sabe, diversas
são as hipóteses de colisão entre os direitos da personalidade, demandandose uma análise no caso concreto com o escopo de se averiguar qual direito
prevalecerá e qual terá o seu campo de atuação reduzido nessa específica situação. Por isso, deve-se evitar a utilização do termo “absolutos”, renomeandose essa característica para uma expressão centrada apenas na possibilidade de
oponibilidade dos direitos da personalidade de modo erga omnes.
A imprescritibilidade faz perdurar no decurso do tempo a pretensão relativa à reparação de dano causado a direito da personalidade e a intrans-
28
Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de
Pensamento e Direito à Vida Privada.
São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000;
pp. 48/49.
29
Vide, p.ex, Francesco Galgano. Diritto
Civile e Commerciale, vol.I. Padova, CEDAM, 1990; p. 151.
30
Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de
Pensamento, cit.; p. 55.
31
Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de
Pensamento, cit.; p. 74.
FGV DIREITO RIO
32
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
missibilidade, por sua vez, impede que os direitos da personalidade venham
a ser transferidos com a morte de seu titular. Há de se observar, inclusive,
que alguns direitos da personalidade, mais notadamente o direito à imagem,
permanecem tutelados mesmo após a morte de seu titular, discutindo a doutrina se essa proteção deriva de um direito próprio das pessoas que defendem
a imagem do de cujus, ou de um prolongamento dos efeitos do direito da
pessoa falecida.
Classificação dos direitos da personalidade
À parte das características apontadas dos direitos da personalidade, a doutrina usualmente os classifica para fins didáticos, ainda que essas classificações
não encontrem uma utilidade prática mais evidente do que propiciar a organização temática dos referidos direitos.
Assim, as classificações geralmente expõem a existência de dois grupos distintos de direitos da personalidade: (i) os direitos à integridade física; e (ii) os
direitos à integridade moral. Dentre os direitos à integridade física se encontrariam o direito à vida, ao corpo, às partes separadas do corpo, e ao cadáver.
Na classificação dos direitos à integridade moral estariam subsumidos os direitos à honra, à imagem, à privacidade, ao nome e o direito moral do autor.
Limonge França, por seu turno, critica essa classificação, propondo que
se opera a divisão dos direitos da personalidade de acordo com aspectos específicos da personalidade, que, em seu entender seriam o aspecto físico, o
intelectual, e o moral. Dessa forma, a classificação dos direitos à integridade
física incluiria o direito sobre o corpo (vivo ou morto, próprio ou alheio), e
sobre as partes separadas do corpo (vivo ou morto); os direitos à integridade
intelectual abrangeriam o direito à liberdade de pensamento, o direito pessoal do autor artístico e científico, bem como o direito do inventor; por fim,
os direitos à integridade moral seriam o direito à liberdade política, civil e
religiosa, o direito à honra, ao recato, ao segredo, à imagem e à identidade.32
Como pode-se perceber, a questão da classificação dependerá das escolhas
de cada autor sobre os critérios para efetuar a classificação, bem como sobre
os direitos da personalidade em espécie que constaram como seus elementos.
A controvérsia sobre a fonte dos direitos da personalidade
O conceito jurídico de pessoa e os direitos que lhe são atinentes correspondem a tema largamente explorado pela filosofia do Direito. Para que se
compreenda corretamente a controvérsia sobre a fonte dos direitos da personalidade, cumprirá tecer breves comentários sobre a localização da questão
32
Limonge França. Manual de Direito
Civil. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1972; p. 411.
FGV DIREITO RIO
33
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
da tutela da pessoa frente à discussão jusfilosófica que contrapõe o direito
natural ao direito positivo.
A partir dessas considerações será possível perceber as virtudes e as vicissitudes das teorias que procuram determinar a origem dos direitos da personalidade, seja na natureza humana, seja na instituição da ordem jurídica.
A grande maioria dos autores brasileiros ao abordar a questão da fonte
dos direitos da personalidade compartilham da tese de que tais direitos são
pré-existentes ao ordenamento jurídico, podendo a sua fonte primeira ser
encontrada na própria condição humana do indivíduo.
Os direitos da personalidade, assim, deveriam ser protegidos independentemente de qualquer positivação normativa. A tutela da pessoa prescindiria
e antecederia a atividade legislativa.33 Afirma neste ponto a visão jusnaturalista que os referidos direitos seriam atinentes à própria natureza humana,
ocupando posição supra-estatal,34 sendo que a positivação viria apenas para
garanti-los, dotando-os de coercitividade.35
Todavia, as teorias jusnaturalistas não se justificam mais na atualidade,
frente à larga positivação dos direitos da personalidade ocorrida a partir do
século XIX e da constatação de que o conceito de natureza humana e direitos inerentes à pessoa variam de acordo com aspectos de natureza histórica
e étnica.
A concepção dos direitos da personalidade como inatos tem a sua formação derivada da necessidade de se proteger o cidadão contra os arbítrios do poder público, sendo, nesse ponto, de grande relevância as
teorias jusnaturalistas.
Assim, conforme sustenta De Cupis, a suscetibilidade de ser titular de
direitos da personalidade não pode estar menos vinculada ao ordenamento
jurídico do que estão os demais direitos e obrigações. Em adição, Pietro Perlingieri afirma que o direito natural (o que deve ser) é sempre condicionado
pela experiência do direito positivo (o que é).36
Compreende-se, assim, que o direito positivo é o único fundamento juridicamente legítimo dos chamados direitos da personalidade, sendo a própria
norma uma variável histórica. Segundo Gustavo Tepedino:
“A rigor, poder-se-ia mesmo dizer que, fora de um determinado contexto histórico, não existe possibilidade de se estabelecer um bem jurídico superior, já que a sua
própria concepção depende de condicionantes multifacetados e complexos atinentes
aos valores sociais historicamente consagrados.”37
As Constituições de grande parte dos países que hoje compreendem
a urgência de se proteger a pessoa tutelam os direitos da pessoa humana
e criam mecanismos para que os mesmos sejam observados. No Estado
de Direito, as aspirações jusnaturalistas são inscritas nas Constituições
33
Contrário a tal entendimento afirma
Kelsen que: “a pessoa física (natural)
como sujeito de deveres e direitos não
é o ser humano cuja conduta é o conteúdo desses deveres ou desses direitos,
mas que a pessoa física (natural) é
apenas a personificação desses deveres
e direitos. (...) a pessoa física é a personificação de um conjunto de normas
jurídicas que, por constituir deveres
e direitos contendo a conduta de um
mesmo ser humano, regula a conduta
deste ser” (in Teoria Geral do Direito e
do Estado. São Paulo, Martins Fontes,
1995; p. 98).
34
Afirma Caio Mário: “O princípio constitucional da igualdade perante a lei é a
definição do conceito geral da personalidade como atributo natural da pessoa
humana (...)” (in Instituições de Direito
Civil, vol.1. Rio de Janeiro, Forense,
1997; p. 153).
35
Carlos Alberto Bittar. Os Direitos da
Personalidade. Rio, Forense, 2000; p.09.
No mesmo sentido, vide Fábio Maria
de Mattia. “Direitos da Personalidade:
aspectos gerais”, in Revista Forense nº
262 (abr-jun/1978); p. 83.
36
Pietro Perlingieri. La personalità umana nell´ordinamento giuridico. Nápoles,
Jovene, 1972; p. 131.
37
Gustavo Tepedino. Temas, cit.; p. 40.
FGV DIREITO RIO
34
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
justamente para evitar abusos por quem possa a violar as garantias estabelecidas.
Além do argumento contrário à tese jusnaturalista presente no simples
fato de que a positivação dos direitos da personalidade atua de forma a assegurar a sua real eficácia, operando, no Estado de Direito, como a maior
garantia que um indivíduo pode encontrar de que a sua personalidade não
será violada sem a devida reação jurídica, cumpre acrescentar a dificuldade
em se definir o que seja a natureza humana, ou os direitos inatos do homem.
Assim, não parece prudente que se tome qualquer posição sobre os direitos inerentes à pessoa sem que se analisem as condições históricas, étnicas e
culturais nas quais se insere o estudioso do Direito.
Teorias monista e pluralista dos direitos da personalidade
Ainda no século XIX, quando eram dados os primeiros passos no estudo
dos direitos da personalidade, surgiu a controvérsia acerca de como definir
esses direitos. Formaram-se então duas correntes antagônicas, cujo debate
ainda hoje possui reflexos nas obras sobre o tema: de um lado os que acreditam tratar-se a personalidade de um todo indivisível e que, portanto, defendem a existência de um único direito geral da personalidade (teoria monista),
enquanto de outro, posicionam-se aqueles que acreditam ter a personalidade
humana variadas projeções, e que é preciso proteger cada uma delas separadamente (teoria atomista ou pluralista).38
A teoria pluralista defende que diversos são os direitos da personalidade,
cuja proteção requer uma diversidade de situações juridicamente relevantes.
Dá-se, assim, a individuação dos bens de acordo com a individuação das
necessidades.
A teoria monista considera a pessoa humana como um valor unitário,
sendo que seus interesses de caráter existencial encontram-se intimamente
relacionados. Não existiriam, assim, direitos da personalidade, mas apenas
um direito geral da personalidade, o qual não se identifica com a soma de
suas expressões individuais.
Defendendo a teoria monista, Elimar Szaniawski argumenta que a pessoa
humana é una, apesar de inexistente no direito brasileiro uma cláusula geral, no seu entendimento, que propicie a tutela desse direito subjetivo nãopatrimonial único.39
A tese pluralista, contudo, pareceu congregar um maior número de adeptos, principalmente porque permite uma tutela concreta desses direitos, aos
enunciá-los separadamente. Assim é que aos poucos foram surgindo artigos
nos códigos pertinentes em diversos países, fazendo-se referência expressa aos
direitos da personalidade em espécie, bem como diversas legislações esparsas
38
Assim como na questão do objeto
dos direitos da personalidade, ambas
as correntes demonstram ainda estar
muito vinculadas à estrutura dos direitos subjetivos de caráter patrimonial.
39
Elimar Szaniawski. Direitos da Personalidade, cit.; p. 57.
FGV DIREITO RIO
35
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
visando a suprimir a lacuna daqueles códigos, que não contemplavam qualquer tratamento aos direitos da personalidade.
É crescente a importância dada à necessidade de se tutelar o maior número de projeções da pessoa humana, em seus aspectos físicos, psíquicos e
intelectuais. Entretanto, tais projeções não devem ser vistas como taxativas;
ao contrário, é imprescindível que o direito proteja também os direitos da
personalidade não especificamente positivados, em atenção ao §2º, do art.
5º, da Constituição Federal.
A personalidade, conforme expõe Pietro Perlingieri, deve ser entendida
como um valor que está na “base de uma série aberta de situações existenciais”, ou seja “não existe um número fechado de hipóteses tuteladas: tutelado é o valor da pessoa sem limites, salvo aqueles colocados em seu interesse e
naqueles de outras pessoas.”40
Essa questão ganhou relevo com a entrada em vigor do novo Código Civil, que dedica capítulo específico para os direitos da personalidade. Em que
pese a positivação por vezes equivocada desses direitos, deve-se ter em mente
que o rol de direitos constantes do Código Civil não deverá ser interpretado
como sendo um catálogo hermético de possibilidades de proteção da personalidade humana no direito brasileiro.
Direitos da personalidade e direitos fundamentais
A tutela dos direitos do homem, surgida nas declarações de direitos da
Idade Moderna, refletiu uma tendência protetiva do cidadão frente ao Estado, através da outorga de direitos individuais. Tratava-se de uma tutela de
caráter nitidamente público, restando às relações privadas as disposições do
ordenamento jurídico de caráter meramente repressivo.
Característica inconteste do liberalismo capitalista, as relações jurídicas
privadas sempre estiveram adstritas ao trânsito jurídico de bens e capital,
devendo o Direito Privado apenas tutelar as relações de cunho patrimonial
através da disciplina das obrigações e contratos, além do instituto da propriedade. Assim, a lesão à integridade das pessoas seria matéria concernente ao
Direito Público, que tutelaria tais situações através do Direito Penal.
A partir do momento em que se reconhece a existência de direitos subjetivos da personalidade, a dogmática civilística busca apoio nos direitos subjetivos patrimoniais, estrutura modelar dos direitos subjetivos, para definir
os contornos e a aplicação da tutela da pessoa humana nas relações travadas
entre particulares.
Considera-se, portanto, que para reger as relações entre particulares, os direitos da personalidade operariam de forma a garantir a tutela dos caracteres
essenciais da pessoa humana, enquanto, por seu turno, os direitos civis, ou seja,
40
Pietro Perlingieri. Perfis do Direito
Civil, cit.; pp. 155/156.
FGV DIREITO RIO
36
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
aqueles prescritos nas declarações de direito, e pertencentes ao Direito Público,
operariam de forma a tutelar a pessoa frente aos desmandos do Estado.41
Em artigo sobre os direitos da personalidade, Orlando Gomes explicita
a diferença existente entre esses e os direitos “do homem e do cidadão”, da
seguinte forma:
“Não há confundi-los [os direitos da personalidade] com os direitos do homem e
do cidadão, que são realmente direitos subjetivos públicos, cuja proteção se organiza
constitucionalmente para preservar o indivíduo do arbítrio do Estado. Os direitos de
personalidade se reconhecem e se protegem para resguardá-lo de atentados por parte
de outros indivíduos, como salientam os Mazeaud e também, para impedir que os
auto-sacrifiquem.”42
A distinção entre direitos fundamentais previstos na Constituição, e os
direitos da personalidade, adstritos à esfera privada é também referida por
Gilberto Haddad Jabur, ao mencionar que:
“[O]s bens personalíssimos neles [direitos fundamentais] são encontrados, mas
não são os únicos que estão ali compreendidos. Muitos são fundamentais frente ao Estado, por conveniência política ou legislativa. Mas nem todos os direitos individuais
ou fundamentais são, pelas mesmas razões, da personalidade. Porque se é o sujeito,
e não o conteúdo ou substância que são similares, a pedra de toque da distinção,
compreensível é que algumas prerrogativas asseguradas como fundamentais (frente
ao Estado) não careçam de igual tutela diante do particular. A irredutibilidade dos
salários, por exemplo, é direito fundamental, mas não personalíssimo.”43
Dessa forma, poderá haver, até mesmo, concomitância no conteúdo dos
direitos fundamentais e dos direitos da personalidade, sendo variável apenas
a perspectiva de quem analisa determinada relação, se pelo viés do Direito
Público, ou do Direito Privado. Capelo de Souza, nesse particular, ressalta
que os direitos fundamentais possuem sempre um viés mais juspublicístico,
enfocando relações de poder que são oponíveis ao Estado.44
Por fim, essa distinção entre direitos fundamentais e direitos da personalidade esvai-se, restando apenas como figura metodológica quando se depara
com a diluição das fronteiras entre o Direito Público e o Direito Privado, e o
estudo da proteção unificada da pessoa humana.
41
José de Oliveira Ascensão. “Os Direitos da Personalidade no Código Civil
Brasileiro”, in Revista Forense, vol. 342;
p. 125.
42
Orlando Gomes. “Direitos da Personalidade”, in Revista Forense nº 216 (outdez/1966); p. 06.
43
Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de
Pensamento, cit.; p. 80.
44
Rabindranath Capelo de Souza. O
Direito Geral de Personalidade. Coimbra,
Coimbra Editora, 1995; p. 584.
FGV DIREITO RIO
37
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
2. ATIVIDADE EM SALA:
Análise do Capítulo de direitos da personalidade do Código Civil (arts. 12/21)
Com base nas características doas direitos da personalidade, leia o capítulo
dedicado aos mesmos no CC2002. No seu entendimento, os direitos ali positivados correspondem à totalidade dos direitos da personalidade? Caso contrário,
qual direito da personalidade você inseriria nesse capítulo? Qual é a sua opinião
sobre a redação desses artigos? Existe algum artigo que lhe chame a atenção em
especial? Por que?
O objetivo mais evidente dessa dinâmica é desenvolver o raciocínio
crítico do aluno com relação aos direitos da personalidade e sua positivação no Código Civil.
Adicionalmente, através da leitura e do debate em sala sobre os
pontos que serão destacados pelos próprios alunos, deverá o professor
mencionar que o segundo objetivo dessa atividade é fazer com que
os alunos percebam como esses artigos dizem respeito à vida de cada
um presente na sala de aula. É importante demonstrar ao aluno que
vida, corpo, imagem, privacidade, honra e outros direitos são comuns
a todos e, por isso mesmo, os assuntos que serão discutidos nas aulas
seguintes importam a todos.
É interessante mencionar que, nas aulas seguintes, os alunos estudarão questões que estão muito próximas do seu dia-a-dia, desde a liberdade de escolher submeter-se a um exame médico até a coleta de seus
dados pessoais durante a navegação na Internet.
3. QUESTÕES DE CONCURSO:
32º Exame de Ordem — 1ª fase — 2007
17. Os direitos da personalidade são
A.
B.
C.
D.
disponíveis e prescritíveis.
disponíveis e transmissíveis por morte de seu titular.
prescritíveis, mas transmissíveis por ato inter vivos.
intransmissíveis e irrenunciáveis
Resposta: D
FGV DIREITO RIO
38
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 5 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À INTEGRIDADE FÍSICA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Integridade física — Recusa ao tratamento — Recusa à perícia médica —
Disposição de partes do corpo.
CASOS GERADORES
Caso “GoldenPalace.com” e “Transfusão de sangue para testemunha de
Jeová”
LEITURA OBRIGATÓRIA
RODOTÀ, Stefano. “Transformações do Corpo”, in Revista Trimestral de
Direito Civil nº 19 (2004), pp. 91-107.
LEITURAS COMPLEMENTARES
MORAES, Maria Celina Bodin de. “Recusa à realização do exame de DNA
na investigação de paternidade e direitos da personalidade”, in Revista
Forense, nº 343, pp. 157/168; CHAVES, Antonio. Direito à vida e ao
próprio corpo: intersexualidade, transexualidade, transplante. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 1986; pp. 170/212; e FREIRE DE SÁ, Maria de
Fátima e TEIXEIRA, Ana Carolina Brochado. “Responsabilidade médica e objeção de consciência religiosa”, in Revista Trimestral de Direito
Civil nº 21 (2005), pp. 121-139.
1. ROTEIRO DE AULA
O viés mais comum de abordagem do direito à integridade física é sem
dúvida alguma próprio dos ramos do direito penal e constitucional. No entanto, é com o CC2002 que temas ligados à bioética e à integridade corporal
da pessoa ganham nova projeção, constatando-se isso, entre outros exemplos,
pela proteção conferida ao nascituro (art. 2º CC) e pelo regramento da possibilidade de disposição do próprio corpo (art. 13 CC).
FGV DIREITO RIO
39
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Outro exemplo desse especial interesse de resguardar a integridade dos
indivíduos, o qual se espraia por todo o ordenamento, é o caso do art. 5º III,
que protege o indivíduo contra toda forma de tortura.45
O conceito de proteção à integridade física engloba não só o direito de garantir a idoneidade e imaculabilidade corporal, mas também a possibilidade do
indivíduo dispor de partes de seu próprio corpo, o que pode se dar tanto em
vida como post mortem. Contudo, como se depreende da redação do art. 13 do
CC, essa possibilidade de disposição está sujeita a certos condicionamentos:
Art. 13. Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo,
quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os
bons costumes.
Parágrafo Único. O ato previsto neste artigo será admitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial.
No contexto do direito ao corpo, surgem várias problematizacões sobre
as quais o direito vem se debruçando. Uma delas é a doação de sangue. Preliminarmente, é importante frisar que os regramentos aos quais essa matéria
encontra-se sujeita pressupõem certas valorações de ordem moral. Isso é verificável, p.ex, na impossibilidade de cessão onerosa de sangue (bem como de
seus subprodutos) e das demais partes do corpo. São condutas que o legislador taxa como moralmente reprováveis e por conta disso, determina a sua
proibição.
Não só a reprovabilidade do intento de buscar remuneração com a negociação de partes do corpo inspira o legislador. De grande importância é
também o entendimento no sentido de que não se pode causar prejuízo ao
indivíduo cedente. Conforme expõe Caio Mário: “embora este se reconstitua na medida das necessidades orgânicas, a transfusão está subordinada às
condições do doador e de seu estado de higidez, como ainda a indagação de
ordem técnico-científicas.”46
A preocupação do ordenamento com o “comércio de sangue” se constata
claramente, em sede constitucional, no art 199, IV, da Constituição Federal.
É o próprio constituinte quem reputa a negociação de partes do corpo como
atividade moralmente reprovável, taxando-a de conduta ilegal.
Integridade física versus Respeito a crenças religiosas
Um tema muito controvertido e que suscita interpretações das mais variadas é a da possibilidade de recusa de um determinado indivíduo em receber
sangue alheio, fato esse que pode se processar tanto por motivo de convicção
filosófica como religiosa.
45
Correlatos a esse podem ser igualmente citados, ainda dentro do rol de
direitos do art. 5º da CF, os incisos XXXIX, LIV, LII e LVII.
46
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2005; p. 251.
FGV DIREITO RIO
40
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Conforme demonstram os casos julgados sobre o assunto, compete muitas
vezes ao médico manifestar seu entendimento no sentido da dispensabilidade
ou não da transfusão sanguínea. No entanto, esse juízo de necessidade em
relação ao tratamento deve se pautar unicamente pelos critérios atinentes à
ciência médica, despindo-se o profissional de convicções de outra natureza.
O Superior Tribunal de Justiça já julgou precedente onde se levantou essa
possibilidade de confusão entre as percepções pessoais do médico e o ordinário exercício de seu ofício:
“Declinam-se as razões falta de justa causa para o prosseguimento da ação penal,
pois o paciente, médico e seguidor da religião ‘Testemunhas de Jeová’, não foi o causador da morte da vítima, eis que a transfusão de sangue não era a única meida capaz
de evitá-la. A menor poderia ter sido transferida para a UTI pelos médicos responsáveis, realizando-se a transfusão, independente da vontade dos pais e do paciente” 47
O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, na ponderação entre razão de
ordem religiosa e razão de saúde pública (preservação da vida), se manifestou
sobre o tema por meio do seguinte acórdão:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA ANTECIPADA. Testemunha de
Jeová. Recusa à transfusão de sangue. Risco de vida. Prevalência da proteção a esta sobre a saúde e a convicção religiosa, mormente porque não foi a agravante, senão seus
familiares, que manifestaram a recusa ao tratamento. Asseveração dos responsáveis
pelo tratamento da agravante, de inexistir terapia alternativa e haver risco de vida
em caso de sua não realização. Recurso desprovido.48
No caso decidido pelo TJRJ, na decisão de primeiro grau sobre a qual ele
versava “deferiu-se tutela antecipada, a requerimento do Ministério Público,
a fim de que a agravante fosse submetida à transfusão de sangue, eis que corria risco de vida e seus familiares recusavam tal terapia, sob o argumento de
convicção religiosa e ser referido tratamento também arriscado.” No acórdão
acima transcrito, objetivava-se que novas transfusões, necessárias à perpetuação da vida da paciente, não fossem obstadas.
Essa decisão ilustra com muita propriedade as divergências suscitadas em
torno do tema em destaque. Essa divergência fica clara na discrepância de
convicções manifestadas nos votos dos julgadores.
O relator do acórdão, em seu voto, assevera que: “Por fim, não obstante o
respeito à convicção religiosa de cada um, entre dois bens jurídicos tutelados,
prevalece a vida sobre a liberdade, até porque não foi a agravante que manifestou a recusa ao tratamento, mas seus familiares”
O voto vencido, da lavra do Des. Marco Antonio Ibrahim, ao discordar
do entendimento vencedor, assim expõe a sua linha de argumentação:
47
STJ, RHC nº 7785/SP, Min. Fernando
Gonçalves, j. em 30.11.1998.
48
TJRJ, Agravo de Instrumento nº
2004.002.13229, Des. Carlos Eduardo
Passos, j. em 05.10.2004.
FGV DIREITO RIO
41
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“Constitucional. Civil. Transfusão de sangue não autorizada. Direito à privacidade e intimidade. Manifestação expressa de recusa à terapia transfusional. Seja,
ou não, por motivo religioso a vontade do paciente deve ser respeitada porque não
há conflito real entre o direito à autodeterminação a tratamento médico e o direito
à vida. Todos os especialistas brasileiros e estrangeiros concordam com a afirmativa
de que a transfusão sanguínea não é procedimento isento de risco de contaminação
mortal do paciente, seja por vírus, seja por infecção bacteriana. Viola a dignidade da
pessoa humana obrigar o paciente a receber transfusão sanguínea contra sua vontade,
especialmente se existe tratamento alternativo e não há prova cabal de risco à vida
do mesmo. Exegese do art. 15 do novo Código Civil que determina que ninguém
pode ser constrangido a submeter-se com risco de vida, a tratamento médico ou à
intervenção cirúrgica.” 49
As passagens acima transcritas demonstram como o tema é controvertido,
demandando um estudo aprofundado para o seu enquadramento pela doutrina e pelos julgados que posteriormente venham a enfrentá-lo.
Recusa ao tratamento médico
Seguindo a mesma lógica descrita nas hipóteses de não aceitabilidade de
transfusão de sangue, o resguardo à integridade física abrange também o direito de recusar tratamento médico ou intervenção cirúrgica. No entanto,
essa recusa não pode ser caprichosa, imotivada, mas em regra, deve assentarse em motivo de relevância manifesta.
Para Caio Mário, a justificativa para intervenções sobre a integridade física
de alguém “reside na existência de risco de vida. Não cabe opor-se a certa
terapêutica por capricho, ou propósito de auto-extermínio, ou motivos ideológicos. É, contudo, muito relativo o conceito de risco de vida, o que pode
levar a que se desrespeite a vontade do paciente, quando a negativa não tem
base científica. Reversamente, ainda que o médico entenda inócuo o tratamento, é de se acatar a recusa do paciente, fundada em razões plausíveis. No
caso de não ter o doente condições de deliberar validamente, transfere-se para
os seus familiares o poder de decisão”50
O CC2002 trata do assunto em seu artigo 15, ao dispor que “ninguém
pode ser constrangido a submeter-se, com risco de vida, a tratamento médico
ou intervenção cirúrgica.” Esse artigo, todavia, não aborda a questão da recusa à realização de perícia médica para fins de prova em juízo.
Dessa forma, por meio do art. 232 do CC, o legislador civilista se manifesta no sentido de tornar a recusa à perícia um elemento processualmente
desfavorável, pois “a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir
a prova que se pretendia obter com o exame.”
49
O vogal acrescenta ainda ao final de
seu voto: “O Direito à vida não se resume ao viver (...) O direito à vida diz
respeito ao modo de viver, à dignidade
do viver. Só mesmo a prepotência dos
médicos e a insensibilidade dos juristas
pode desprezar a vontade de um ser
humano dirigida a seu próprio corpo.”
50
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2005; p. 254.
FGV DIREITO RIO
42
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O direito à integridade física, aqui expresso na inadmissibilidade de coação à perícia médica, constitui um dos aspectos dos direitos da personalidade.
Essa recusa não pode significar, no entanto, a possibilidade de que se obstrua
o andamento da justiça e, adicionalmente, pode gerar diversas situações conflituosas com demais direitos da personalidade.
Em caso julgado pelo TJRJ, pode-se perceber como a recusa à perícia médica traz efeitos nocivos ao recusante no curso de uma ação judicial:
Ação de procedimento comum ordinário. Pó branco da Petrobrás que atingiu
localidade da Baixada. Alegação de danos à saúde. Sentença julgando improcedente
o pedido. Recurso de Apelação Cível. MANUTENÇÃO, pois o Autor não demonstrou o aludido dano respiratório sofrido, não compareceu à perícia médica, desistiu
expressamente da prova, restando não demonstrado, portanto, o prejuízo e o nexo de
causalidade. À míngua de provas, outra não poderia deixar de ser a decisão do Juízo
Monocrático. DESPROVIMENTO RECURSO.51
A doutrina afirma que, no entanto, esse o mencionado art. 232 é de natureza supérflua na dinâmica processual. Ele confere ao julgador somente a possibilidade de valer-se de um expediente de ordem ficcional (uma presunção)
de forma a não implicar prejuízo àquele interessado na realização do procedimento pericial. Para os que assim entendem, esse dispositivo se tornou inútil
no sentido de que a legislação processualista já encampou há muito a idéia
de que o juiz é livre e soberano na análise das provas produzidas, conforme
inserto no art. 131 do CPC, (princípio processual do livre convencimento
motivado do juiz).
O exemplo mais citado de recusa à perícia médica é a não submissão ao
exame de DNA, que visa à comprovação de paternidade. Nesse sentido, a
jurisprudência caminha no sentido de se tornar pacífica, conforme expõe o
seguinte julgado do TJRJ:
”INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE CUMULADA COM ALIMENTOS. AGRAVO RETIDO.IMPROVIMENTO.MÉRITO. NEGATIVA DO RÉU
EM SUBMETER-SE AO EXAME DE D.N.A. PRESUNÇÃO DE VERACIDADE DOS FATOS ALEGADOS NA EXORDIAL.PENSIONAMENTO IMPOSTO DESDE A CITAÇÃO. 1. Quanto ao agravo retido. O juiz pode “ouvir testemunhas, mesmo arroladas fora do prazo, quando se litigar sobre direito indisponível,
como ocorre, p. ex., na investigação de paternidade” (RT 613/162). Conhecimento e
improvimento. 2. Quanto ao mérito. O STJ tem se posicionado no sentido de que a
parte que se recusa imotivadamente a se submeter a perícia médica, deve ter contra si o
peso da presunção daquilo que o exame pericial poderia provar. No caso presente, deve
ser reconhecida, ainda, a dificuldade do Autor-Apelante, em comprovar o relacionamento de sua genitora com o Apelado, pois se tratava de uma relação extraconjugal.
51
TJRJ, Apelação Cível nº
2005.001.06797, Des. Otávio Rodrigues; j. em 18/05/2005. Em seu voto,
explicita ainda o relator: “No mais,
o Autor não demonstrou o alegado
dano respiratório sofrido, deixou de
comparecer à perícia médica, apesar
de intimado, como se vê de fls. 273 e
seguintes e também desistiu expressamente da prova (fls. 291/292). Com
isso, o prejuízo à saúde restou sem demonstração. À mingua de provas, outra
não poderia deixar de ser a decisão do
Juízo Monocrático.”
FGV DIREITO RIO
43
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O Apelado, além de cientificado pessoalmente uma vez para a data do exame, foi,
após a baixa dos autos, 22 vezes procurado pelos oficiais da justiça, não sendo encontrado, alegando-se que se encontrava viajando, muito embora pessoas da sua esfera de
conhecimento estivessem ciente. Atitudes deste tipo merecem o total repúdio do Poder
Judiciário e deveriam merecer, também, dos respectivos advogados, que se calam ante
as condutas impertinentes e desrespeitosas dos seus clientes, como se de nada soubessem,
certamente, achando que os Juízes e Desembargadores vivem num mundo encantado,
de inocência e ingenuidade e que acreditariam, piamente, na ausência de má-fé no
proceder do Apelado. 3 —Reconhecida a paternidade, o dever de alimentar se impõe
e desde a estabilização da relação processual, ou seja, desde a citação válida, em virtude da natureza declaratória do decisum que reconhece a paternidade. 4— Recurso
conhecido e provido, nos termos do voto do Desembargador Relator.”52
Não objetivando gerar prejuízo à parte que carece da perícia para provar o
seu direito, o legislador autoriza o julgador, na solução do litígio, a valer-se da
presunção de que os fatos alegados por aquela são verdadeiros.
Disposição de partes do corpo
Com relação à disposição de partes do corpo, faz-se necessária novamente
remeter a leitura ao art. 13 do CC2002 e do art. 9º da Lei nº 9.434 /97, a qual
dispõe sobre a retirada de órgão e partes do corpo humano, da seguinte forma:
Art. 9o. É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes
em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o
deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada
esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei nº 10.211, de 23.3.2001)
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos
duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o
organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não
represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause
mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica
comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.
§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a
qualquer momento antes de sua concretização.
§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica
comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que
haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial
e o ato não oferecer risco para a sua saúde.
52
TJRJ, Apelação Cível nº
1997.001.02081, Des. Ricardo Rodriguez Cardozo; j. em 14/09/2004. Vale
destacar ainda a seguinte passagem
do voto do julgador: “Este processo
tramita há uma década e, lastimavelmente, o apelado tudo fez para evitar o
exame de DNA, utilizando-se da Justiça
para procrastinar o feito, com falta de
seriedade e respeito. Pena que a jurisprudência não consagre a condução
‘debaixo de vara’ para a hipótese.”
FGV DIREITO RIO
44
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo,
exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de
medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.
§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo,
registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de
seus pais ou responsáveis legais.
Assim sendo, uma pessoa somente pode dispor de partes do seu corpo
quando tal ato não implicar em prejuízo para sua saúde. Adicionalmente,
determina de plano o legislador que o transplante não pode ser objeto de
negócio oneroso.
O Código Civil atual, em seu artigo 14, também inova em relação à lei
pretérita, ao definir a possibilidade de disposição do próprio corpo. Disposição essa que, quando em vida, não pode representar prejuízo à saúde do
doador e quando post mortem, deve atentar à consecução de fins científicos e
altruísticos.53 Nesse segundo caso, a gratuidade também é elemento essencial.
Essa disposição a respeito o destino do corpo ou de parte dele pode revestir a
forma testamentária ou de ato entre vivos.
Transexualidade
A principal problemática hoje suscitada pela transexualidade repousa na
questão da alteração do registro civil do indivíduo quanto ao seu nome e
ao seu sexo. Principal porque, ainda que tenha se submetido à cirurgia de
transgenitalismo, procedimento recentemente incluído no rol daqueles oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS)54, a pessoa transexual não tem
assegurada a troca de seus documentos. A omissão do legislador em tratar a
matéria empurra a questão para os braços do Judiciário, fazendo emergir uma
situação de incerteza provocada pela reminiscência de posições ainda apegadas a princípios jurídicos tradicionais, tais como imutabilidade do nome,
indisponibilidade do estado e segurança jurídica.
Segundo a Resolução 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina
(CFM), transexual é o portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência à automutilação e/ou ao
auto-extermínio. Essa normativa assume a prevalência do sexo psíquico sobre
o sexo morfológico, afirmando o propósito terapêutico da cirurgia de redesignação sexual. A adoção do princípio terapêutico pretende encerrar velha
discussão sobre a natureza mutiladora da cirurgia, caso em que perderia seu
caráter lícito para constituir crime de lesão corporal a ser imputado ao médico por ela responsável.
A despeito da ausência de arcabouço legal que expressamente disponha
sobre a realização da intervenção cirúrgica, o seu caráter reparador e, por-
53
Nesse sentido resta clara também a
impossibilidade de agir em desconformidade com os artigos 1º, III, e 199, §
4º, da Constituição Federal.
54
Brasil. Ministério da Saúde. Portaria
n° 1.707, de 18 de agosto de 2008
[Online]. Institui, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), o Processo
Transexualizador, a ser implantado
nas unidades federadas, respeitadas as
competências das três esferas de gestão [Acessado em 1 de agosto de 2009].
Disponível em: URL: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2008/
prt1707_18_08_2008.html.
FGV DIREITO RIO
45
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
tanto, terapêutico, assim considerado pelo órgão responsável por fiscalizar e
normatizar a prática médica no país, torna a prática lícita, conforme exceção
prevista no caput do artigo 13 do CC (“Salvo por exigência médica...”). Além
disso, a cirurgia encontra sustentação na própria Constituição, que dispõe
em seu artigo 199, §4º, sobre a remoção de órgãos, tecidos e substâncias
humanas para fins de transplante, pesquisa e tratamento.
É importante compreender que o fenômeno da transexualidade não se
restringe ao desejo de realização da cirurgia de modificação da genitália, popularmente conhecida como “mudança de sexo”, havendo, inclusive, pessoas
que não o manifestam ou mesmo não o têm. Na verdade, o transexual, na
manifestação de sua identidade sexual, passa por uma série de modificações,
não apenas corporais, como tratamento hormonal e intervenções cirúrgicas,
mas também sociais. Nesse sentido, busca o transexual ver reconhecida a sua
condição de pessoa pertencente ao gênero com o qual se identifica. Tal pretensão, apoiada em princípios constitucionais e bioéticos, apenas se efetivaria
com a adequação do assento de nascimento à nova realidade dessas pessoas, o
que permitiria, inclusive, a sua plena integração à sociedade.
2. CASO GERADOR
2.1. “Caso GoldenPalace.com”
Leia a notícia abaixo:
01/07/2005 — 14h08
Por US$ 10 mil, americana tatua na testa anúncio de cassino virtual
Fonte: Folha Online
Reprodução
Karolyne Smith ofereceu sua testa
no site de leilões eBay.
O cassino virtual GoldenPalace.com ficou famoso por comprar alguns
itens bizarros vendidos no site de leilões eBay — uma torrada com a imagem da Virgem Maria (US$ 28 mil), por exemplo. Desta vez, o site “comFGV DIREITO RIO
46
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
prou” a testa de uma norte-americana. Por US$ 10 mil, a internauta tatuou as palavras “Golden Palace.com” no inusitado espaço publicitário.
“Ganhamos o privilégio de ter um anúncio permanente tatuado nas
testa de Karolyne Smith. Com isso, ela se torna a primeira mulher a ter a
marca do cassino para sempre”, diz um anúncio da companhia.
Smith afirma que adora ser o centro das atenções e não se arrepende
do que fez. “Para muitos, pode parecer estúpido. Para mim, no entanto,
esses US$ 10 mil representam US$ 1 milhão. Faço isso pelo meu filho,
para poder construir um futuro melhor para ele”, disse.
Segundo a nova garota propaganda, esse dinheiro será usado para que
seu filho possa estudar em uma escola particular.
(in http://www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u18624.shtml,
em 01.08.2005)
No direito brasileiro, seria legítimo o ato de disposição do próprio corpo no
sentido de leiloar um espaço publicitário em sua própria testa? Esse ato de disposição sobre o próprio corpo está amparado pela tutela da autonomia da vontade?
Justifique.
2.2. Caso “Transfusão de sangue para testemunha de Jeová”
Após sofrer um grave acidente, Maria é levada às pressas para o setor de
emergência do Hospital Souza Aguiar. Ao dar entrada no hospital, o médio
plantonista de imediato diagnostica a necessidade de se realizar uma transfusão de sangue sob pena da paciente perder a vida.
Ao dar início aos procedimentos para a transfusão, o médico é subitamente interrompido por um tio de Maria, que acabava de chegar no hospital.
Segundo o tio, Maria é uma pessoa muito religiosa e integra o grupo de Testemunhas de Jeová. A transfusão de sangue, para os integrantes dessa crença,
seria um ato impuro, motivo pelo qual o tio de Maria implorou ao médico
para a transfusão não fosse efetuada.
Após ouvir brevemente as explicações do tio de Maria, o médico plantonista resolveu realizar a transfusão de qualquer modo, uma vez que, segundo expôs o mesmo, o seu ofício era salvar vidas, e não zelar pela religiosidade alheia.
Dois meses depois, e já estando em casa se recuperando do acidente, Maria é instruída por seus amigos a ingressar com uma ação de danos morais
contra o médico do hospital. Maria alegaria em seu pleito que a sua religiosidade foi afrontada pelo ato do médico e que esse ato violou a sua autonomia
privada, sendo lícito a pessoa recusar-se a se submeter a procedimento médico, salvo em caso de ordem pública. Como no caso em tela apenas a vida de
FGV DIREITO RIO
47
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Maria estava em jogo, ela poderia muito bem ter optado por manter os seus
preceitos religiosos até o fim.
Se você fosse o juiz da ação por danos morais ingressada por Maria, você julgaria procedente o seu pleito? E se o médico optasse por atender aos clamores do tio e
Maria viesse a falecer. Você julgaria procedente uma eventual ação indenizatória
contra o médico ou o hospital movida pela mãe de Maria?
FGV DIREITO RIO
48
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 6 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO AO NOME
E À HONRA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Natureza e elementos que compõem o nome — Registro e alteração do
nome — Conceito de honra — Honra subjetiva e honra objetiva — Crimes
contra a honra e responsabilidade civil — Honra da Pessoa Jurídica — Análise das decisões do STJ.
CASO GERADOR
Honra subjetiva e objetiva — Limites da honra da pessoa jurídica
LEITURA OBRIGATÓRIA
MORAES, Maria Celina Bodin. “Sobre o nome da pessoa humana”, in Revista da EMERJ nº 12; pp. 48/74.
LEITURAS COMPLEMENTARES
DE CUPIS, Adriano. Os Direitos da Personalidade. Campinas: Romana,
2004; pp. 121/139; PEREIRA DE SOUZA, Carlos Affonso e SAMPAIO, Patrícia Regina Pinheiro. “Atualidades sobre Dano Moral da Pessoa Jurídica”, in Doutrina ADCOAS nº 06 (jul/2000); pp. 42/49.
1. ROTEIRO DE AULA
Nome civil
O nome civil é o principal elemento que designa um indivíduo e o particulariza nas relações sociais, individualizando a pessoa e indicando, de certa
forma, a sua procedência familiar. A relevância do nome reside no fato de
que as relações jurídicas se estabelecem entre pessoas, naturais e jurídicas,
cujo exercício dos respectivos direitos exige o conhecimento prévio dos
respectivos titulares.55
55
Francisco Amaral. Direito Civil – Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2004;
p. 270.
FGV DIREITO RIO
49
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
No direito romano, a disciplina do nome civil se justificava por se tratar
de sinal diferenciador entre os indivíduos e subgrupos sociais por eles integrados. Havia o prenomen, que designava a pessoa; o nomen, indicativo da gens;
o cognomen que apontava a família e; o agnomen, decorrente de um acontecimento pertinente e qualificativo do indivíduo.
Modernamente adotamos o nome composto, onde se destaca o prenome
como designação do indivíduo, e o sobrenome, ou nome patronímico, característico de sua família.
No Código Civil, o tratamento da matéria se dá através do reconhecimento de um direito da personalidade voltado para a proteção do nome. Conforme expõe o art. 16: “toda pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o
prenome e o sobrenome.”
Natureza jurídica do nome
No estudo da natureza jurídica do nome, corrente que merece destaque é
a da concepção dominial. De tradição francesa, ela postula que o nome nada
mais é do que um direito de propriedade. O titular do nome é quem o detém
de forma absoluta.
A principal crítica que pode ensejar decorre da observação que de que a
propriedade, ao contrário do nome, é em regra alienável, prescritível, possui conteúdo econômico e exclusividade. O nome, a contrario sensu, abarca
características completamente díspares. Não é alienável, é imprescritível, é
usado por pessoas diferentes, não tendo conteúdo econômico.
Enfocando a crítica acima descrita, surge a corrente que nega esse caráter
patrimonial do nome. Seus defensores, dentre os quais se destaca Clóvis Beviláqua, afirmam que não se pode alegar a natureza de bem jurídico para o nome.
A tradição civilista pátria tradicionalmente confere ao nome a natureza
de direito, sendo o mesmo designativo do indivíduo e fator de identificação.
Não se consolidou no direito brasileiro a idéia de patrimonialidade do nome.
O estudo do nome civil possui uma abordagem dúplice: uma dedicada ao
viés público e outra ao viés privado. A partir deles, se observa que o nome envolve, concomitantemente, um direito subjetivo e um interesse de relevante
valor social.
O interesse público se revela, sobretudo, na necessidade de registro e na
imutabilidade do nome. O direito subjetivo liga-se, por sua vez, a necessidade
de que cada indivíduo seja designado por seu próprio nome. Transcende-se ao
interesse público de individualização de cada pessoa e enfoca-se a idéia de que
o nome representa o traço distintivo na sociedade. Isso ocorre apesar de não
dotado de conteúdo econômico direto.
FGV DIREITO RIO
50
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O interesse social aqui expresso implica necessariamente na configuração
de que as normas que tratam do nome revestem-se de natureza de ordem pública. Não pode o titular do nome, pelo seu livre arbítrio, contra elas atentar.
A autonomia de sua vontade não prevalece para esses fins.
O art. 17 do CC2002 prevê formas de repressão à divulgação do nome de
pessoa que a exponha ao desprezo público. O art. 18, por seu turno, proclama o princípio da necessidade de autorização para a utilização do nome em
propaganda comercial. Assenta-se na mesma idéia de proteger o indivíduo
contra o uso irregular do seu nome.
Esse é o entendimento que prosperou na decisão abaixo do TJRJ:
FUNDAÇÃO EDUCACIONAL. USO NÃO AUTORIZADO DE NOME.
INTERNET. DANO MORAL. VALOR DA INDENIZAÇÃO. SENTENÇA
CONFIRMADA
Constitucional. Civil. Dano moral. Uso indevido de nome de profissional ligado
à área odontológica. O nome integra um dos direitos da personalidade e sua utilização indevida, para fins comerciais, causa dano moral que se comprova in re ipsa. A
instituição de ensino não podia, sem autorização do autor, divulgar seu nome como
um dos professores da Faculdade de Odontologia, quando o autor jamais teve qualquer vínculo com referida instituição. Recurso desprovido.56
Destaque-se ainda que a interpretação do referido diploma não pode ser
estrita, limitando-se à publicidade comercial, mas também deve abarcar a de
natureza industrial, artística, eleitoral, entre outras.
A tutela do direito ao nome não engloba só aquele registrado, ou seja, o
nome do indivíduo, ela abrange também o pseudônimo, muito comum no
meio artístico, conforme prescreve o artigo 19 do CC2002. Nessa direção,
vide o seguinte acórdão do STJ:
Direito civil. Uso de pseudônimo. “Tiririca”. Exclusividade. Inadmissibilidade.
I. — O pseudônimo goza da proteção dispensada ao nome, mas, por não estar
configurado como obra, inexistem direitos materiais e morais sobre ele.
II. — O uso contínuo de um nome não dá ao portador o direito ao seu uso
exclusivo. Incabível a pretensão do autor de impedir que o réu use o pseudônimo
“Tiririca”, até porque já registrado, em seu nome, no INPI.
IV. — Recurso especial não conhecido.57
No âmbito do direito de família se destacam ainda os artigos 1565 e 1578,
que tratam respectivamente do nome no tocante ao casamento e dissolução
da sociedade conjugal.
56
TJRJ, Apelação Cível nº
2004.001.31672, rel. Dês. Marco Antônio Ibrahim; j. em 05.04.2005.
57
STJ, REsp nº 555483/SP, Min. Antonio
de Pádua Ribeiro; j. em 14/10/2003.
FGV DIREITO RIO
51
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Escolha e alteração do prenome
A escolha do prenome compete aos pais. O art. 52 da Lei de Registros
Públicos não se coaduna com o determinado pelo novo Código Civil e pela
Constituição Federal, qual seja, a equiparação entre homem e mulher na
direção da sociedade conjugal. O referido art. 52 determina que somente no
caso de impossibilidade do registro ser procedido pelo pai, tomará parte a
mãe. O CC2002, no entanto, em seu art. 1630 e ss., atribui a ambos os pais
a autoridade parental.58
A lei brasileira veda a possibilidade de atribuição de prenomes que possam
vir a expor seus portadores ao ridículo. Possibilita ainda que, na ocorrência
de constrangimento, eles sejam alterados. Nesse sentido, manifesta-se o legislador por meio do art. 55 e 56 da Lei de Registros Públicos.
Art. 55. Quando o declarante não indicar o nome completo, o oficial lançará
adiante do prenome escolhido o nome do pai, e na falta, o da mãe, se forem conhecidos e não o impedir a condição de ilegitimidade, salvo reconhecimento no ato.
Parágrafo único. Os oficiais do registro civil não registrarão prenomes suscetíveis
de expor ao ridículo os seus portadores. Quando os pais não se conformarem com
a recusa do oficial, este submeterá por escrito o caso, independente da cobrança de
quaisquer emolumentos, à decisão do Juiz competente.
Art. 56. O interessado, no primeiro ano após ter atingido a maioridade civil,
poderá, pessoalmente ou por procurador bastante, alterar o nome, desde que não
prejudique os apelidos de família, averbando-se a alteração que será publicada pela
imprensa.
Observe-se que quando levado esse pleito ao Poder Judiciário, deverá o
julgador realizar um exercício ponderativo, pois apesar de num dos lados
encontrar-se junto ao requerente uma grande gama de valores referentes à
tutela da sua dignidade, de outro reside o interesse social na preservação do
prenome, que como vimos, distingue um indivíduo perante os demais.
Direito à Honra
A Constituição Federal prevê em seu artigo 5º, inciso X, a inviolabilidade
da honra, da intimidade, da vida privada e da imagem das pessoas, sendo
garantido a reparação por qualquer dano, seja ele moral ou material.
Ao dissertar sobre a vinculação do direito à honra com a dignidade da
pessoa humana, Pontes de Miranda afirma a sua inserção no rol dos direitos
da personalidade, conforme a definição acima destacada. Segundo o mencionado autor:
58
Nesse sentido também os art. 226
§5º da C.F e 21 e 47 §5º do ECA.
FGV DIREITO RIO
52
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
”A dignidade pessoal, o sentimento e consciência de ser digno, mais a estima
e consideração moral dos outros, dão o conteúdo do que se chama honra. Há
direito de personalidade à honra, o que faz as lesões à honra serem atos ilícitos
absolutos. O direito à honra é direito absoluto, público, subjetivo.”59
Com a sua constitucionalização, a honra, assim como os outros bens protegidos pelos direitos da personalidade, expande a sua força normativa, assegurando maior proteção infraconstitucional. Todavia, no que tange especificamente ao direito à honra, o ordenamento brasileiro já o protegia muito
antes da promulgação da Constituição de 1988.
O direito à honra já possuía ampla proteção no direito infraconstitucional, tanto no Código Penal (arts. 138 a 145), através dos crimes de injúria,
difamação e calúnia, quanto em outros diplomas como o Código Eleitoral
(arts. 324 a 326) e a própria Lei de Imprensa.
Pode-se ainda destacar a proteção internacional que se concede ao direito à
honra, segundo o regramento dos seguintes dispositivos: Declaração Universal
dos Direitos Humanos (art. 12); Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (art.17); e Convenção Americana sobre os Direitos Humanos (art. 11).
Usualmente o direito à honra é divido em duas espécies: honra subjetiva
e honra objetiva. Essa classificação doutrinária decorre do aspecto duplo do
direito à honra, ou seja, o aspecto subjetivo, que se apresenta na consideração
íntima da pessoa e o aspecto objetivo, que se apresenta perante a sociedade.
Mônica Neves Aguiar da Silva Castro estabelece essa diferenciação, se referindo primeiro à honra subjetiva, depois à honra objetiva:
”Do ponto de vista subjetivo, é a estima que toda pessoa possui de suas qualidades
e atributos, que se refletem na consciência do indivíduo e na certeza em seu próprio
prestígio.
No aspecto objetivo, a honra é a soma daquelas qualidades que os terceiros atribuem a uma pessoa e que são necessárias ao cumprimento dos papéis específicos que
ela exerce na sociedade.”60
Dessa forma, o direito à honra engloba não só o sentimento pessoal de
auto-estima (honra subjetiva) como também o de reputação, isto é, o conceito que a pessoa goza perante a sociedade (honra objetiva).
Importante destacar que o direito à honra é intransmissível, incomunicável e extrapatrimonial, uma vez que trata da defesa da própria integridade
da pessoa. Entretanto, não é possível afirmar que esse direito é ilimitado. A
legislação prevê limites à honra, como a chamada exceptio veritatis, ou seja, a
exceção da verdade, segundo a qual o agente pode provar a veracidade do fato
que imputou, em certas hipóteses de crimes contra a honra.61
59
Pontes de Miranda. Tratado de Direito
Privado, vol. VII. Rio: Borsoi, 1955; p.44.
60
Mônica Neves Aguiar da Silva Castro.
Honra, Imagem, Vida Privada e Intimidade em Colisão com outros Direitos.
Rio: Renovar, 2002; p.6.
61
No crime de calúnia é permitido, excetuados os casos do §3 do artigo 138.
No crime de difamação não é aceito, exceto para os casos em que o ofendido é
funcionário público e a ofensa é relativa
ao exercício de suas funções. No crime
de injúria a exceção da verdade não é
permitida.
FGV DIREITO RIO
53
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Muito se discute sobre a questão das pessoas jurídicas possuírem ou não
direito à honra legitimando-as, assim, a ingressarem com ações indenizatórias
para buscar reparação pelo prejuízo causado.
A honra subjetiva é um direito específico de cada pessoa física e, portanto, não deve ser estendido às pessoas jurídicas, pois está relacionada com
o sentimento de auto-estima individual. Como a possibilidade de expressar
sentimentos (dor, vergonha e angústia) inexiste nas pessoas jurídicas, não há
o que se falar em honra subjetiva nesse caso.
Já o direito à honra objetiva, na medida em que espelha o conceito detido
pela pessoa na sociedade, pode ser mais facilmente incorporado ao patrimônio das pessoas jurídicas. Nesse sentido, afirma Ponte de Miranda:
”As pessoas jurídicas também podem ser ofendidas em sua honra, porque é comum às pessoas físicas e às jurídicas o bem da reputação, da boa fama. Ao adquirir
personalidade, o ser não físico adquire tal direito, que não depende de substrato
pessoal físico.”62
O Superior Tribunal de Justiça já se pronunciou diversas vezes sobre o
assunto, terminando por editar a súmula nº 227, que consolida o entendimento favoravelmente ao dano moral da pessoa jurídica. Conforme expressa
a referida súmula: “A pessoa jurídica pode sofrer dano moral.”
Todavia, é importante destacar que a questão está longe de ser assentada
na doutrina, uma vez que diversos autores contestam a série de decisões do
STJ, sob o fundamento de que todo e qualquer dano sofrido pela pessoa jurídica será de natureza exclusivamente material.63
2. CASO GERADOR
A sociedade Refrescos Cariocas Distribuidora Ltda. atua há mais de
vinte anos no ramo de distribuição de refrigerantes no Estado do Rio de Janeiro. Há dez anos, a referida sociedade celebrou um contrato de distribuição
exclusiva para os produtos da marca de refrigerantes Milenium, produzidos
pela Milenium Alimentos e Bebidas do Brasil Ltda.
Passados os dez anos, e sendo o contrato por prazo indeterminado, a Milenium envia para a Refrescos Cariocas uma notificação, informando que,
no prazo de dois meses a contar da data constante da notificação, a relação
contratual entre as empresas seria dada por encerrada. Essa decisão, embora prejudicial economicamente à distribuidora, encontra-se em consonância
com a dinâmica dos contratos por prazo indeterminado.
A decisão de encerrar o contrato nasceu da apresentação de um relatório
realizado pela auditoria da Milenium, onde constava a Refrescos Cariocas
62
Pontes de Miranda. Tratado, cit.; p.45.
63
Vide, nesse sentido, Gustavo Tepedino. Temas de Direito Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2001; p. 499.
FGV DIREITO RIO
54
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
como sendo a pior distribuidora da rede de refrigerantes Milenium. Segundo
apontava o relatório, os armazéns da empresa estavam em péssimas condições, os refrigerantes eram estocados de forma rudimentar e havia nas instalações sérios problemas de higiene.
Ao tomar conhecimento desse fato, o Sr. Klaus Smith, um dos diretores
da Milenium, em entrevista concedida ao repórter Juca Gonçalves, da revista
“Liderança”, voltada para diretores e gerentes de empresas, assim se pronunciou:
“Essa questão da gestão de competências é um assunto complicado. Veja o
meu caso: tendo que coordenar distribuidores em todo o Brasil, preciso me valer
de mecanismos que agreguem valor tanto aos meus clientes como aos membros
integrantes da minha rede. Recentemente, em auditoria realizada pelos meus
profissionais, descobrimos, por exemplo, que uma de nossas distribuidoras, a
Refrescos Cariocas, mantinha os nossos produtos em instalações imundas.
Isso é coisa própria de empresa que não sabe trabalhar, de quem é incompetente
para sobreviver na selva do mercado. Imediatamente mandei cancelar o contrato. É assim que tem que ser! Li sobre isso na ‘Arte da Guerra’.”
Na semana seguinte à publicação da entrevista, a Refrescos Cariocas
ingressou com ação de indenização por danos morais contra o diretor da
Milenium. Em sua petição inicial, alegava o advogado que a honra de sua
cliente havia sido abalada pelo pronunciamento desdenhoso do diretor.
Em uma outra ação judicial, proposta contra o diretor da Milenium no
mesmo dia, Antônio Carioca, diretor da Refrescos Cariocas, argumentou
que, por conta das declarações, ele, pessoa física, teve a sua honra abalada,
pois há mais de dez anos ele trabalha para a Milenium e jamais poderia esperar de seu parceiro comercial de longa data uma postura como essa. Na petição inicial, Antônio juntou aos autos o recibo dos medicamentos que teve
que comprar por orientação médica, uma vez que entrou em crise nervosa ao
ler a referida entrevista.
Com base no caso acima, responda:
(1) Na ação de danos morais proposta pela REFRESCOS CARIOCAS, a contestação apresentada pela MILENIUM defende a tese de que a ação deveria ser
julgada extinta pois pessoas jurídicas não poderiam ser vítimas de lesões
à personalidade. Argumenta a empresa ré que pessoas jurídicas teriam
apenas capacidade, mas não personalidade jurídica, o que as impediria
de ser partes legítimas no pólo ativo de ações indenizatórias por dano
moral. Você concorda com esse argumento? Desenvolva a sua resposta
de modo a fundamentar o entendimento acima ou a rebatê-lo. Utilize
jurisprudência em reforço à linha de argumentação desenvolvida.
FGV DIREITO RIO
55
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(2) A ação de danos morais proposta por Antônio Carioca deve ser julgada
procedente? Justifique com argumentos jurídicos.
(3) Suponha agora que, ao invés de uma entrevista com o diretor da MILENIUM,
a revista “Liderança” tivesse divulgado um ranking das piores distribuidoras
de alimentos e bebidas no Estado do Rio de Janeiro. No gráfico que ilustra a
reportagem, a REFRESCOS CARIOCAS figura dentre as últimas colocadas. Já no
texto da mesma reportagem, o repórter Juca Gonçalves afirma “(...) dentre
as últimas colocadas se destaca a empresa Refrescos Cariocas. Por sinal, não
sabemos como essas empresas ainda conseguem clientes.”
Ao tomar conhecimento da reportagem, a REFRESCOS CARIOCAS indaga a você, na qualidade de advogado especialista em contencioso cível, o
que poderia ser feito para buscar indenização pelo prejuízo sofrido: ingressar com uma ação indenizatória contra o jornalista Juca Gonçalves, contra a Editora Letra Morta, empresa responsável pela publicação da revista
“Liderança”, ou contra Alfredo Dourado, diretor-presidente da Editora
Letra Morta? Responda com base na legislação aplicável e mencione o entendimento atual do STJ sobre a questão jurídica envolvida na consulta.
3. QUESTÕES DE CONCURSO
OAB — 41º Exame de Ordem 2010.1
35. Considere que o filho de Mário Lins de Souza e de Luna Ferreira de
Melo tenha sido registrado com o nome de Paulo de Souza. Nessa situação
hipotética,
A. é obrigatória, em razão da abolição do traço patriarcal da legislação
civil brasileira, a adoção do sobrenome materno, de modo que o
registro de nascimento de Paulo poderá ser alterado a qualquer momento e, até mesmo, de ofício.
B. apenas por meio do casamento será possível a Paulo alterar seu
nome, o que será feito com a inclusão de sobrenome da esposa.
C. Paulo poderá, se assim o desejar, incluir em seu nome apelido que
seja notório, o que deverá ocorrer por meio de pedido devidamente
instruído e dirigido ao oficial do cartório de registro civil.
D. Paulo, se assim o desejar, poderá, no prazo de até um ano após
atingir a maioridade, introduzir em seu nome um patronímico materno, sem que precise justificar sua vontade
Resposta: D
FGV DIREITO RIO
56
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
UnB/CESPE — OAB
36º Exame de Ordem 2008.2
QUESTÃO 95
Acerca dos crimes contra a honra, assinale a opção correta.
A. O agente que preconceituosamente se refere a alguém como velho
surdo, ciente da idade e deficiência da pessoa, comete uma das modalidades do crime de racismo.
B. O agente que atribui a alguém a autoria de um estupro, ciente da
falsidade da imputação, comete o crime de calúnia.
C. O agente que imputa a alguém a conduta de mulherengo, no intuito de ofender sua reputação, comete o crime de injúria.
D. O agente que designa alguém como ladrão, no intuito de ofender
sua dignidade, comete o crime de difamação.
Resposta: B
FGV DIREITO RIO
57
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 7 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À PRIVACIDADE
EMENTÁRIO DE TEMAS
Conceito de Privacidade — Privacidade na Constituição Federal e leis
ordinárias — Alcance do art. 21 do Código Civil — Questões controvertidas
CASO GERADOR
“O desespero do cartola”
LEITURA OBRIGATÓRIA
RODOTÁ, Stefano. A Vida na Sociedade da Vigilância. Rio de Janeiro: Renovar, pp. 23-41.
LEITURAS COMPLEMENTARES
DONEDA, Danilo. Da Privacidade à Proteção dos Dados Pessoais. Rio de Janeiro: Renovar, pp. 7-31; e SAMPAIO, José Adércio Leite. Direito à Intimidade e à Vida Privada. Belo Horizonte, Del Rey, 1998; pp. 209/225.
1. ROTEIRO DE AULA
A privacidade é uma construção cultural moderna.64 Ainda que se possa
identificar no decorrer da história um desejo inato e perene do ser humano
por um eventual isolamento, a primeira concepção de privacidade, atrelada
ao “direito de estar só”, de afastar o conhecimento público dos assuntos privados, apenas surgiu com as revoluções burguesas e a afirmação do estilo de
vida oitocentista.
Adicionalmente, a privacidade apenas se fez reconhecer como um direito
a ser tutelado a partir de estudo doutrinário que remonta a 1890, tendo sido
acolhida por parte da jurisprudência apenas nos idos do século XX.
A distinção entre vida privada e vida pública possui um sentido de equilíbrio e complementaridade, exercendo grande influência na história da vida
do homem. Essa distinção, todavia, deve ser tomada como um elemento his-
64
Stefano Rodotà. “Privacy: valore e diritto”, palestra proferida no Liceo Isacco
Newton, em 6 de outubro de 1998. Disponível no site http://www.emsf.rai.it,
acessado em 30.08.2003.
FGV DIREITO RIO
58
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
tórico, herdeira dos momentos mais representativos da história do homem,
desde a sua concepção rudimentar na Antiguidade Clássica até o seu necessário reconhecimento em meio ao ritmo acelerado dos últimos séculos.65
O desenvolvimento da privacidade esteve sempre, durante o século XIX,
atrelado a uma crescente valorização da figura do indivíduo perante a vida
pública e ao Estado. Será justamente o individualismo, detectado como uma
das matizes mais fortes na sociedade norte-americana por Tocqueville, que
propiciará a criação de uma tutela jurídica para a privacidade naquele país ao
final do século. Trata-se do “direito a estar só” (right to let alone).
A defesa do “direito a estar só” nos Estados Unidos
Nos Estados Unidos, a discussão em torno do direito à privacidade tem
origem na publicação em 1890 do artigo da autoria de Samuel Warren e
Louis D. Brandeis, intitulado “The Right to Privacy”, o qual buscou alcançar
a conceituação de um direito geral de privacidade, sob o ponto de vista do
direito a estar só.
Embora o artigo de Brandeis e Warren tenha recebido ampla aprovação
pela comunidade acadêmica, em um primeiro momento os tribunais norteamericanos não reconheceram o direito à privacidade como possível de ser
protegido por si só. Nesse sentido, a Corte de Apelação de Nova Iorque decidiu, em 1902, no caso Roberson vs. Rochester Folding Box Company que
o direito à privacidade não possuía proteção no sistema de Common Law.
Entendeu a referida Corte que a teoria era por demais ampla para permitir
qualquer aplicação prática, sugerindo que leis fossem editadas com o objetivo
de delimitar o conteúdo desse novo direito individual.
Já em 1905, todavia, a Corte de Apelações da Georgia reconheceu pela
primeira vez a existência do direito à privacidade independentemente de se
ter expedido uma lei que o contemplasse expressamente. Esse fato ocorreu
na decisão do caso Pavesich vs. New England Life Insurance Co., seguindose, então, diversas decisões judiciais que terminaram por tutelar o direito do
indivíduo a estar só, de ter deixada a sua vida íntima em sossego e à parte de
suas atividades públicas.
A Suprema Corte dos Estados Unidos, por sua vez, já teve oportunidade
de decidir vários casos de forma a preservar o direito a estar só.
Em 1960, William L. Prosser, em consonância com a teoria traçada no artigo de Brandeis e Warren relativamente à tutela do direito individual de estar
só, publicou um artigo no qual elencou diversos casos nos quais o direito à
privacidade já havia sido reconhecido judicialmente.66
Deve-se destacar que a proteção inicialmente conferida pelos Estados Unidos à privacidade estava, por força da ideologia vigente à época, excessiva-
65
Nelson Saldanha. O Jardim e a Praça.
Porto Alegre, Sérgio Fabris, 1986, p. 26.
66
Willian Prosser. “Privacy”, in California
Law Review no. 48 (1960); p. 383-423.
FGV DIREITO RIO
59
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
mente atrelada aos preceitos de um individualismo que procurava opor o
particular às invasões descabidas por parte do Poder Público.
Nessa direção, em A Democracia na América, obra que retrata de forma
lapidar o espírito de um povo, e de uma determinada época, Aléxis de Tocqueville descreveu o individualismo que lhe pareceu presente na sociedade
norte-americana como “um sentimento tranqüilo e meditado que torna cada
cidadão disposto a isolar-se da massa de seus iguais e retira-se para o círculo
da família ou dos amigos; havendo formado essa pequena sociedade a seu
gosto, deixa que a sociedade mais ampla cuide de si própria.”67
Essa concepção de vida encontra-se em sintonia com a primeira configuração do direito à privacidade: o direito de estar só, longe da vigilância e da
intromissão públicas. Assim desejava o burguês do século XIX, e que encontrou solo fértil para a transformação de um anseio em instituto jurídico na
sociedade norte-americana.
Ao menos em teoria, privacidade e individualismo compuseram uma receita que possibilitou ao homem apurar o seu ideal de liberdade, pois “o espaço privado significava espaço para escolhas genuínas, o que é outra maneira
de dizer liberdade.”68
A discussão em torno do direito à privacidade terminou por proporcionar
a elaboração de diversas leis nos Estados Unidos, podendo-se citar, por exemplo, o Privacy Protection Act, de 1980, o Electronic Communications Privacy
Act, de 1986, o Telephone Consumer Privacy Act, de 1991 e o Children’s Online
Privacy Protection Act, de 1998.
Ao mesmo tempo, diversas organizações foram criadas com o intuito precípuo de zelar pela privacidade, sobretudo considerando-se o crescimento
na utilização dos meios informáticos de tratamento da informação na Internet, podendo-se destacar a Online Privace Alliance, a Electronic Privacy
Information Center e outras bastante atuantes no setor de defesa dos direitos
individuais como a Electronic Frontier Foundation e o Center for Democracy
and Technology.
A privacidade entre o individual e o coletivo
O dinamismo e a facilidade com que atualmente podem ser angariadas
informações de caráter pessoal suscitam diversas questões envolvendo a proteção jurídica da privacidade. Todavia, frente aos novos desafios impostos pelos
meios de comunicação digitais, sobretudo pela Internet, nota-se que o sentido
da proteção ao direito da privacidade não pode mais estar adstrito ao simples
resguardo do isolamento. A doutrina defendida, com pionerismo, por Brandeis e Warren no sistema da Common Law necessita ser revisitada para que a
privacidade seja tutelada da forma devida na Sociedade da Informação.
67
Alexis de Tocqueville. Democarcy
in America. Nova Iorque, Max Lerner,
1966, v.2; p. 477.
68
Peter Gay. O Século de Schnitzler. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002; p.
291.
FGV DIREITO RIO
60
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Nesse sentido, o enquadramento da privacidade como direito da personalidade ganha destaque. O direito à privacidade, se apresentado como proteção ao isolamento, pode ser concebido como o mais individualista dos direitos da personalidade, pois justamente tutelaria a alienação de um indivíduo
perante a sociedade.
Adicionalmente, deve-se aqui compreender os direitos da personalidade
não apenas como instrumentos de poder individual. Essa concepção, não
alcança o caráter ético dos direitos da personalidade, pois os considera como
os alicerces da primazia do indivíduo sobre uma sociedade opressora composta por terceiros que potencialmente poderão invadir a sua esfera privada,
apropriar-se do seu nome, lesionar sua honra, seu corpo, etc.
Muito ao reverso, essa ótica dos direitos da personalidade de cunho estritamente individualista encontra hoje forte repúdio pela melhor doutrina
nacional e estrangeira, a qual busca aclimatar a defesa da personalidade como
forma de proteção de interesses partilhados por todas as pessoas, visualizando
o homem em sociedade e protegendo minorias. Assim se pronuncia sobre o
tema José Oliveira Ascensão:
“A entender assim, o direito da personalidade transforma-se no direito dos egoísmos privados. Contradiz o que deveria ser a sua base fundamental, que é a consideração da pessoa. A pessoa é convivência e sociedade. Nenhuma consideração de
intimidade pode ser mais forte que esse traço essencial da personalidade.”69
Partindo-se dessa nova feição dos direitos da personalidade, e conseqüentemente do direito à privacidade, percebe-se como o mesmo deixa de representar a salvaguarda do isolamento individual para tornar-se instrumento
de combate contra políticas de discriminação religiosa, política ou sexual,
conferindo à pessoa o controle sobre as suas informações de caráter privado.
Identificando a defesa do direito à privacidade com o reconhecimento de
verdadeiros sujeitos coletivos, manifesta-se Stefano Rodotà:
“Tende-se a mudar o sujeito do qual emana a demanda da defesa da privacidade
e muda mesmo a qualidade desta demanda: vindo em primeiro plano a modalidade
do exercício de poder da parte dos detentores públicos e privados das informações,
a evolução do direito à privacidade supera o tradicional quadro individualista e
dilata-se em um dimensão coletiva, no momento em que se considera não o interesse
do indivíduo como tal, mas como integrante de determinado grupo social.”70
Pode-se asseverar que a lógica de defesa da privacidade migra, portanto, da
esfera do isolamento individual para abranger uma concepção mais ampla do
controle da circulação de informações pessoais. Supera-se a definição do direito
à privacidade como o direito a estar só em prol de uma concepção do mesmo
como o direito de controlar a utilização das informações pessoais.
69
José Oliveira Ascensão. Teoria Geral do
Direito Civil. Lisboa, Faculdade de Direito, 1996, p. 121.
70
Stefano Rodotà. Tecnologie e Diritti.
Milão, Il Mulino, 1995; p. 119.
FGV DIREITO RIO
61
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Trata-se, como lembra José Adércio Leite Sampaio, de um incremento na
tutela tradicional do direito à privacidade, essencialmente arraigada ao viés
negativo, ou seja, de proibição de condutas que atentem contra o “direito de
estar só”, para que seja acrescentada uma proteção positiva, consubstanciada
no direito de controle das informações pessoais. Uma vez posta tal configuração do direito de privacidade pode-se abrir espaço para o reconhecimento
da chamada “liberdade informática”71, ou, em sentido mais abrangente, a
autodeterminação informativa.72
O direito geral à autodeterminação informativa tem por postulado a faculdade de o particular determinar e controlar a utilização dos seus dados pessoais73, sendo o mesmo concretizado, por exemplo, através de medidas judiciais
como o habeas data, previsto constitucionalmente no Direito brasileiro.
Ao se entrever essa função do direito à privacidade, pode-se perceber como
a proteção dos dados pessoais opera de forma a impedir que a sua apropriação
venha a se dar para fins discriminatórios. Ao se controlar a coleta, o armazenamento e a utilização de dados não se busca apenas resguardar o indivíduo
cujos dados estão relacionados, mas também o grupo social no qual o mesmo
está inserido, notoriamente caso tais dados demonstrem aspectos sensíveis de
sua personalidade.
A constitucionalização da privacidade dos dados pessoais
Frente ao célere processo do desenvolvimento das técnicas informáticas de
tratamento de dados, a partir dos anos setenta, do século passado, é possível
delinear-se uma preocupação por parte de diversos países no sentido de atualizar o texto de suas Constituições de forma a prever, genérica, ou especificamente, a tutela da privacidade relativamente aos dados de caráter pessoal.
Neste sentido, a Constituição portuguesa de 1976 prevê em seu artigo 26
o reconhecimento de todos ao direito à identidade pessoal, à capacidade civil,
à cidadania, ao bom nome e reputação, à imagem e à reserva da intimidade e
da vida privada e familiar.
O artigo 35, por seu turno, regulamentou a utilização da informática,
contendo dispositivos bastante específicos como o direito de se conhecer toda
a informação pessoal constante de registros mecanográficos, sendo reconhecido o direito de tê-los retificados; a proibição do manejo de meios informáticos para que se efetue o tratamento de dados concernentes a convicções filosóficas ou políticas, com a exceção do processamento de dados pelo Estado
de forma não identificáveis individualmente; além da proibição de se atribuir
um número de identificação único aos cidadãos.
71
Sobre o tema a tutela da liberdade
informática no Brasil e no direito comparado, veja-se o artigo de Renato de
Castro Moreira, “O Direito à Liberdade
Informática”, in Revista dos Tribunais n°
778, agosto/2000.
72
José Adércio Leite Sampaio. Direito à
Intimidade e à Vida Privada. Belo Horizonte, Del Rey, 1998; p. 497.
73
Cf. J.J. Gomes Canotilho. Direito
Constitucional e Teoria da Constituição.
Coimbra, Almedina, 1999; p. 480/481.
FGV DIREITO RIO
62
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Em 1978, a Espanha igualmente tutelou a proteção da privacidade, dispondo a Constituição, em seu artigo 105.b, que o acesso dos cidadãos aos
arquivos administrativos deveria ser regulamentado por lei.
Segundo reporta José Adércio Leite Sampaio74, diversas Constituições de
países europeus seguiram pelo mesmo caminho, podendo-se mencionar a
Constituição dos Países Baixos, de 1983, em seu art. 10; a Constituição da
Hungria, de 1989, em seu art. 59.1; e a Constituição da Suécia, de 1990, em
seu artigo 3º.
O Brasil, por sua vez, possui no texto constitucional não apenas a proteção da privacidade através de enunciados genéricos de atribuição de direitos,
como também a previsão de sua concretização através de ação própria (o habeas data). Assim, cumpre analisar-se mais detidamente a configuração do direito à privacidade na Constituição Federal e demais diplomas legais pátrios.
A tutela do direito à privacidade no Brasil
O direito à privacidade é garantido constitucionalmente no Brasil. A
Constituição Federal brasileira contempla não apenas o direito à privacidade
com respeito à preservação da vida privada e da intimidade da pessoa, como
também garante a inviolabilidade da correspondência, do domicílio e das
comunicações, em consonância com o previsto no artigo 5º, X e XII:
Artigo 5º, X: “São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem
das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.”
Artigo 5º, XII: “ É inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações
telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por
ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.”
A Constituição brasileira não esgota na declaração de direitos dos incisos
X e XII a proteção concedida ao direito à privacidade, municiando ainda o
indivíduo, através seu artigo 5º, LXXII, com a possibilidade de recorrer ao
Poder Judiciário para que lhe seja garantido o acesso aos seus dados pessoais
armazenados por entidades públicas.
À luz dos dispositivos constitucionais acima referidos, cumpre destacar
o entendimento de Tercio Sampaio Ferraz Junior, segundo o qual o sistema
instituído pela Constituição para a proteção da privacidade de dados pessoais
não visa proteger exatamente um direito de propriedade de certo indivíduo
sobre as suas informações, tal qual um direito de propriedade clássico. O
viés da tutela constitucional encontrar-se-ia, portanto, no processo de co-
74
José Adércio Leite Sampaio. Direito à
Intimidade, cit.;p. 480.
FGV DIREITO RIO
63
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
municação de tais dados, fornecendo aos interessados meios de impedir a
manipulação estratégica de dados (grampeamento e violação de circuitos informáticos), a divulgação de informação inexatas (tutela do direto à imagem)
ou ainda que firam a privacidade pessoal (coleta e armazenamento de dados
pessoais em bancos de dados).75
Existem ainda outras leis que regulamentam a privacidade em áreas específicas, como, por exemplo, a Lei nº 5.250/67, a chamada Lei de Imprensa,
que estabelece penalidades para pessoas que, no exercício da atividade jornalística, revelarem fatos que violem a privacidade e a intimidade alheias; e a
Lei nº 9296/96, que estabelece as condições necessárias para a interceptação
telefônica.
O Código Civil, por seu turno, contempla o direito à privacidade no art.
21, da seguinte forma:
“Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento
do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato
contrário a esta norma.”
Pela leitura da redação do art. 21, percebe-se de imediato que o legislador
optou por restringir a titularidade do direito à privacidade no Brasil apenas
para as pessoas físicas, estando implicitamente excluída a possibilidade de se
tutelar a privacidade de pessoas jurídicas.
Adicionalmente, o art. 21 refere-se ao fato de que, em atendimento à solicitação da parte prejudicada, caberá ao Poder Judiciário adotar “as providências
necessárias” para garantir a tutela da privacidade. A redação abrangente do
dispositivo, que não se limita apenas à hipóteses de responsabilização civil pelo
dano causado, poderá gerar efeitos salutares para o desenvolvimento da proteção à privacidade. Conforme expõe Danilo Doneda, em comentário ao artigo:
“Ao clamar pela criatividade do magistrado para que tome as providências adequadas, o Código Civil dá mostras da necessidade de um atuação específica de todo
o ordenamento na proteção da privacidade da pessoa humana, que seja uma resposta
eficaz aos riscos que hoje corre.”76
Deve-se lembrar, ainda, da pouco mencionada Lei nº 9454, de 07.04.1997,
que institui o número único de Registro de Identidade Civil pelo qual cada
cidadão brasileiro, nato ou naturalizado, será identificado em todas as suas
relações com a sociedade e com os organismos governamentais e privados. Tal
lei, ainda não regulamentada, poderá acarretar sérios entraves para a defesa da
privacidade, uma vez que o estabelecimento de um cadastro único facilita o
controle social e, unificando as informações de diversos bancos de dados então dispersos, poderá simplificar a construção indevida de perfis individuais.
75
Tercio Sampaio Ferraz Junior. “A Liberdade como Autonomia Recíproca no
Acesso à Informação” In, Marco Aurélio
Greco e Ives Gandra de Silva Martins,
Direito e Internet. São Paulo, Revista dos
Tribunais, 2001, p. 247.
76
Danilo Doneda. “Os direitos da personalidade no novo Código Civil”, in
Gustavo Tepedino (coord). A Parte Geral
do Código Civil. Rio, Renovar, 2003; pp.
52/53.
FGV DIREITO RIO
64
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O direito à privacidade entra em colisão constante com o exercício da
liberdade de manifestação do pensamento e da informação, principalmente
no que se refere às publicações que visam à exploração da vida particular de
pessoas notórias. Esse tema será abordado em outra aula.
Por ora, tente visualizar quais outros direitos podem entrar em conflito
com a proteção da privacidade. Como você resolveria esses conflitos?
Caso gerador:
“O desespero do cartola”
Recém-chegado de uma conturbada reunião com o atual Ministro dos Esportes, um famoso cartola de um clube de futebol do Estado do Rio de Janeiro o
procurou em seu escritório para formular a seguinte consulta:
O artigo 18 da Lei 10.671, de 15 de maio de 2003, estabelece que “[o]s estádios com capacidade superior a vinte mil pessoas deverão manter central técnica
de informações, com infra-estrutura suficiente para viabilizar o monitoramento
por imagem do público presente”.
Alega o cartola que a segurança dos seus torcedores está em primeiro lugar em
suas prioridades, mas que o mesmo estava receoso de instalar o referido sistema de
monitoramento, pois algum torcedor (adversário) poderia ingressar com medida
judicial contra o clube sob o fundamento de que a sua privacidade havia sido
invadida.
Ponderando o relevo da segurança coletiva nos estádios de futebol e o direito
à privacidade do torcedor, elabore resposta à consulta formulada pelo seu cliente.
FGV DIREITO RIO
65
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 8 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À PRIVACIDADE E TECNOLOGIA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Privacidade na Internet — Coleta de dados pessoais e bancos de dados informatizados — Cookies — Envio de mensagens eletrônicas não solicitadas (spam)
— Correio eletrônico e ambiente de trabalho
CASOS GERADORES
Casos “Analisando o e-mail” e “Spyware e Privacidade”
LEITURA OBRIGATÓRIA
DONEDA, Danilo. “O Direito à Privacidade nos Bancos de Dados Informatizados” In Gustavo Tepedino (org). Problemas de Direito CivilConstitucional. Rio, Renovar, 2000; pp 111/136.
LEITURAS COMPLEMENTARES:
SANTOS, Antonio Jeová. Dano Moral na Internet. São Paulo, Método,
2001; pp. 184/236; e DRUMMOND, Victor. Internet, Privacidade e
Dados Pessoais. Rio, Lumen Juris, 2003; pp. 96/129.
1. ROTEIRO DE AULA
As ameaças ao direito à privacidade foram severamente incrementadas
na medida em que o progresso tecnológico permitiu que novas formas de
violação à privacidade alheia fossem desenvolvidas. A rede mundial de computadores, por sua vez, constitui um ambiente favorável para incursões em
afronta à privacidade, pois parcela significativa de seus usuários desconhece
os meios pelos quais informações pessoais são coletadas através do hábito de
navegação por páginas eletrônicas.
Nesse sentido, é importante notar que o tratamento da informação por
computadores permite não apenas seu célere processamento para fins idôneos, mas também para o cruzamento indevido de dados pessoais e a interFGV DIREITO RIO
66
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ceptação de comunicações. Diversas são as formas de invasão à privacidade
atualmente discutidas, podendo-se destacar algumas considerações sobre: (i)
a utilização de cookies para o monitoramento e personalização da navegação;
(ii) o envio reiterado de mensagens eletrônicas não solicitadas (spams); e (iii)
a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho.
Os cookies e os bancos de dados informatizados
O debate sobre a legalidade da coleta de informações pessoais pelos cookies
tem-se mostrado como uma das questões mais controvertidas no que tange
à tutela dos direitos da personalidade na Sociedade da Informação. Para que
se compreenda corretamente a ameaça representada pela sua utilização indiscriminada na rede mundial de computadores, faz-se necessário conjugar
conhecimentos tecnológicos e jurídicos. A análise da questão exclusivamente
através de um desses aspectos conduzirá a um entendimento equivocado, não
raramente radical, que falha em perceber a complexidade do debate.
Os cookies são pequenos arquivos de texto, que são enviados pelo servidor
de um site acessado na Internet diretamente para o disco rígido do computador do usuário. O arquivo, uma vez inserido no computador, servirá então
como repositório de informações que dizem respeito à pessoa do usuário,
bem como aos seus hábitos de navegação na Internet (quais páginas foram
visitadas e com que freqüência; quais compras foram efetuadas; anúncios
visualizados, etc).77
Segundo definição de Antonio Jeová Santos, os cookies “[s]ão arquivos de
dados gerados toda vez que a empresa que cuida da manipulação de dados,
recebe instruções que os servidores web enviam aos programas navegadores
e que são guardadas em diretório específico do computador do usuário.”78
A tecnologia dos cookies desempenhou uma função de grande relevo para
o sucesso da Internet, na medida em que é o cookie que permite ao usuário
obter uma navegação mais personalizada pelas páginas eletrônicas da rede.
O desenvolvimento dessa tecnologia foi impulsionado pelo desejo de tornar
mais agradável, e prática, a utilização da Internet.
Dessa forma, não necessariamente o cookie representa uma tecnologia projetada com fins exclusivos de invadir ilicitamente a privacidade dos usuários
da rede mundial de computadores, como mencionam, equivocadamente, alguns autores.79 O que deverá ser observado é como essa tecnologia será utilizada, não se condenando previamente um programa de computador, em si, por
permitir que o seu uso seja realizado de forma a violar direitos de terceiros.80
Diversas práticas ilícitas, que representam séria ameaça à privacidade, têm
sido praticadas na Internet por intermédio da utilização dos cookies, mas é
preciso analisar sempre o interesse por trás da manipulação da tecnologia.
77
Para maiores explicações sobre o
funcionamento dos cookies, vide as seguintes páginas eletrônicas: dicas sobre
informática, disponíveis no site da Unicamp, in http://www.dicas-l.unicamp.
br/dicas-l/19970711.shtml (acessada
em 30.07.2005); e http://www.geocities.com/CollegePark/9145/cookies.
html (acessado em 30.07.2005).
78
Antonio Jeová Santos. Dano Moral
na Internet. São Paulo, Método, 2001;
p. 196.
79
Sonia Aguiar do Amaral Vieira.
Inviolabilidade da Vida Privada e da
Intimidade pelos Meios Eletrônicos. São
Paulo, Juarez de Oliveria, 2002; p. 95;
e Antonio Jeová Santos. Dano Moral na
Internet, cit.; pp. 196/197.
80
Conforme tese exposta por Lawrence
Lessig, em seu parecer apresentado
no processo judicial movido por A&M
Records Inc. contra Napster Inc., por
conta de infração a direitos autorais
decorrentes da utilização do programa
de computador de troca de arquivos
na Internet, desenvolvido pela Ré (in
http://www.lessig.org/content/testimony/nap/napd3.doc.html - acessada
em 30.07.2005).
FGV DIREITO RIO
67
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Assim será possível perceber se o programa de computador é capaz de promover algum bem-estar de forma lícita, ou se apenas foi desenvolvido para a
realização de condutas ilegais.
Uma vez inserido no disco rígido do usuário, o cookie permite que, em
retornando a uma página previamente visitada, o usuário possa ter acesso a
informações que são do seu interesse, uma vez que o arquivo pode armazenar
as preferências de navegação da pessoa, definindo um perfil que será utilizado
pela empresa que explora o site, tanto para direcionar notícias que possam ser
do seu interesse, como para oferecer produtos que se enquadram no seu perfil de consumo. A questão é: como essa empresa teve acesso às informações
pessoais do usuário?
O cookie pode coletar tanto as informações que a pessoa voluntariamente
fornece quando preenche um cadastro, por exemplo, como organizar um
perfil do usuário com base no tipo de páginas eletrônicas visitadas.
Pode o usuário optar por não fornecer os seus dados, ou mesmo impedir
que cookies sejam instalados em seu computador, através de medidas técnicas usualmente simples, pois basta configurar o seu programa de navegação
(browser) para que o recebimento de cookies seja proibido. Todavia, essas providências geralmente resultam em problemas para se acessar as páginas eletrônicas na rede mundial de computadores.81
O debate sobre a violação da privacidade do usuário deve então ser analisado em três momentos distintos da utilização dos cookies: (i) a coleta; (ii) o
armazenamento; e (iii) a utilização dos dados pessoais.
Com relação à coleta dos dados, é importante notar que deve o usuário
da Internet estar ciente de que algumas informações pessoais podem ser coletadas quando do acesso a um site na rede mundial de computadores. No
Direito brasileiro, a questão está regulada, no âmbito das relações de consumo. Dentre outras medidas protetoras, o Código de Defesa do Consumidor
contempla, em seu capítulo V, seção VI, uma regulamentação especial em
relação aos bancos de dados e cadastros formados a partir de informações dos
consumidores. Como previsto no artigo 43, muitas obrigações são impostas
aos administradores dos bancos de dados, como, por exemplo, revelar a cada
consumidor a informação coletada a seu respeito É a redação do artigo 43,
do CDC:
Art. 43. “O consumidor, sem prejuízo de disposto no art. 86, terá acesso às informações existentes em cadastros, fichas, registros e dados pessoais e de consumo arquivados sobre ele, bem como sobre as suas respectivas fontes.
§1.º Os cadastros e dados de consumidores devem ser objetivos, claros, verdadeiros
e em linguagem de fácil compreensão, não podendo conter informações negativas
referentes a período superior a cinco anos.
81
Reporta Christiano German uma dificuldade encontrada pelo usuário da
rede mundial de computadores quando
configura o seu browser para que não
seja permitida a colocação de cookies
em seu disco rígido: “O provedor de
acesso brasileiro UOL (www.uol.com.
br) reage com insistência especialmente desagradável se o usuário não
aceita nenhum dos seus cookies em
seu computador. Nesse tocante, ele
praticamente não se distingue dos seus
pendants nos Estados Unidos e na Europa. Inicialmente, o acesso a homepage
sofre um retardamento. Depois disso,
o usuário precisa rejeitar 14 (quatorze) tentativas de se colocar um cookie.
Se ele quiser em seguida chamar uma
das janelas na oferta do UOL, o procedimento inicia uma vez mais da estaca
zero.” (in O Caminho do Brasil rumo à Era
da Informação. São Paulo, Fundação
Konrad Adenauer, 2000, p. 87).
FGV DIREITO RIO
68
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
§2.º A abertura de cadastro, ficha, registro e dados pessoais e de consumo deverá
ser comunicada por escrito ao consumidor, quando não solicitada por ele.
§3.º O consumidor, sempre que encontrar inexatidão nos seus dados e cadastros,
poderá exigir sua imediata correção, devendo o arquivista, no prazo de cinco dias
úteis, comunicar a alteração aos eventuais destinatários das informações incorretas.”
Dessa forma, não é possível, no Direito brasileiro, que informações pessoais sejam coletadas sem o consentimento do consumidor. Todavia, essa prática tem sido descumprida reiteradamente, em ostensiva violação ao comando
do CDC.
Victor Drummond, por seu turno, entende que não haveria qualquer infração à privacidade na simples coleta de dados dos usuários pelos cookies.
Esse entendimento se baseia na hipótese de que a lesão à privacidade decorre
apenas da utilização indevida das informações coletadas:
“Reputamos como correta a interpretação de que o grande problema dos cookies
decorre das utilizações que se faz após a coleta dos dados, sendo que, em geral, a coleta
em si, acaba por não representar violação de privacidade.”82
A legislação consumerista apresenta algumas ponderações a essa linha de
argumentação, pois demanda que a pessoa cujos dados são ingressados em
banco de dados seja cientificada não apenas do fato, mas também de quais
informações foram objeto dessa conduta. Assim, caso a cientificação tenha
sido realizada de forma clara, a coleta de dados pessoais torna-se legítima.
Com relação ao armazenamento, é importante notar que o consumidor,
por força do art. 43 do CDC, deverá ter acesso aos seus dados constantes do
banco de dados da empresa que explora o site, sendo-lhe ainda permitido
exigir a sua correção, caso encontre alguma inexatidão. O não cumprimento
da requisição encaminhada pelo usuário submete o infrator às disposições do
art. 84 do Código de Defesa do Consumidor, podendo o mesmo ser condenado a cumprir a sua obrigação de fazer sob pena de multa, ou mesmo pagar
indenização por perdas e danos causados.
Finalmente a utilização das informações armazenadas tem por escopo proteger a pessoa cujas informações foram coletadas contra o manuseio indevido
de seus dados pessoais. É especialmente relevante nesse contexto a prática
disseminada na Internet de venda de cadastros, sem que seja feita qualquer
notificação do fato ao usuário que forneceu os dados.
Embora os tribunais venham aplicando largamente o CDC no que se
refere a diversos assuntos, as exigências específicas do art. 43 não têm sido,
ainda, totalmente observadas, especialmente no que diz respeito à revelação
ao consumidor dos dados coletados sobre ele.
82
Victor Drummond. Internet, Privacidade e Dados Pessoais. Rio, Lumen Juris,
2003; p. 103.
FGV DIREITO RIO
69
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Novas formas de marketing — o spam
Através das informações colhidas de diversas formas, seja através de cookies,
conforme visto acima, ou mediante a compra de listas contendo até mesmo
milhares de endereços de correios eletrônicos, desenvolveu-se uma forma de
marketing direto bastante eficaz para o fornecedor de produtos e serviços, no
que tange ao alcance de sua divulgação. Trata-se dos chamados spams, termo
que designa o envio de mensagens eletrônicas não solicitadas.83
Facilitado pelo dinamismo das comunicações realizadas através da Internet, o fluxo de tais mensagens aumenta constantemente em todo o mundo,
tornando-se um verdadeiro transtorno para os usuários da Internet. Os spams
podem versar sobre qualquer assunto, ainda que mais usualmente essa prática
seja utilizada para fins comerciais.
Na ausência de uma legislação específica que coíba a prática de envio reiterado de mensagens não solicitadas, busca a doutrina nacional responsabilizar
o spammer, civil e criminalmente, pela sua atitude. Assim, os mais diversos
dispositivos legais são invocados, sem que se alcance um entendimento coerente sobre o assunto.
Um dos dispositivos mais referidos pela doutrina para buscar-se enquadrar
a prática de spam é o artigo 39, III, do CDC, que assim está redigido:
“Art. 39. É vedado ao fornecedor de produtos ou serviços, dentre outras práticas
abusivas:
(...) III — enviar ou entregar ao consumidor, sem solicitação prévia, qualquer
produto, ou fornecer qualquer serviço.”84
Vale destacar que o art. 84, do CDC, que prevê a possibilidade de se obter
em juízo uma ordem que obrigue a parte contrária à observância de uma
obrigação de fazer ou não fazer, também poderá ser acionado para que se
impeça o spammer de prosseguir com o envio de mensagens não solicitadas.
No aspecto penal, Amaro Moraes e Silva Neto chega a propor que, em
sendo a Internet um serviço de utilidade pública, a prática do envio de spam
poderia ser enquadrada no artigo 265 do Código Penal, segundo o qual será
aplicada pena de reclusão de 1 (um) a 5 (cinco) anos, além de multa, a quem
atentar contra o funcionamento e segurança de serviços de utilidade pública.85
De toda sorte, para que se logre êxito em responsabilizar o envio reiterado de mensagens eletrônicas, deverá ser comprovado dano causado. Nesse
ponto, interessa pouco o debate travado na doutrina sobre o melhor artigo
de lei a ser utilizado para a condenação do spammer. O próprio artigo 186,
do Código Civil, ofereceria base para que se buscasse indenização contra o
remetente das mensagens, ao dispor que:
83
O termo spam foi originalmente
cunhado pelo grupo cômico inglês
Monthy Phyton, que o utilizava em
quadro humorístico no qual para todos
os pratos servidos em um restaurante,
o garçom mencionava que o prato
viria acompanhado com spam. Embora nunca se tenha esclarecido o que
exatamente seria spam, ele era sempre mencionado em todo e qualquer
pedido feito pelos clientes. Vide http://
www.pythonline.com/ (acessado em
30.08.2003).
84
Nessa direção, vide Sonia Aguiar do
Amaral Vieira. Inviolabilidade, cit.; p.
121; e Amaro Moraes e Silva Neto. Emails Indesejados à luz do Direito. São
Paulo, Quartier Latin, 2002; p. 156.
85
Amaro Moraes e Silva Neto. Privacidade na Internet, cit.; p. 97. Neste sentido,
vale ressaltar, com base nas informações de Robert B. Gelman e Stanton
McCandlish, que o grande fluxo de
mensagens não solicitadas não está, de
forma alguma, congestionando o tráfego de informações na Internet, uma vez
que a maior parte de tais mensagens
são apenas arquivos de texto. Todavia,
lembram os referidos autores, os spams
podem congestionar o servidor de emails de uma pessoa, ou mesmo fazer
com que o espaço máximo reservado
para suas mensagens seja ultrapassado
(In Protecting Yourself Online, cit.; p.
123/125).
FGV DIREITO RIO
70
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral,
comete ato ilícito.”
Em se entendendo que o envio de spam representa violação à privacidade,
poder-se-ia, inclusive, acionar o dispositivo do art. 12, do Código Civil, que,
de forma genérica, garante a tutela dos direitos da personalidade.
Todavia, no que concerne à prova do dano, é importante notar que a sua
apresentação poderá ser dificultada pelas circunstâncias do encaminhamento
de spam. É comum, nesse sentido, alegar-se que o dano causado pelo spam
adiviria da perda de tempo resultante da constante exigência de se apagar
mensagens não solicitadas da caixa postal eletrônica.
No Brasil, a primeira decisão proferida sobre a matéria esposou o entendimento de que com relação ao envio de propaganda não solicitada na Internet
“não há o que se falar em violação à intimidade, à vida privada, à honra e à
imagem de alguém ou prejuízos de ordem material.”86
Sendo assim, é preciso que se dedique maior atenção sobre a questão da
prova do prejuízo causado pelo spam, prática reprovável que se institucionalizou na Internet, e que demanda a reação do ordenamento jurídico para que
essa conduta seja coibida.
A privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho
Uma terceira situação que demanda a tutela da privacidade em decorrência dos avanços da Sociedade da Informação é a possibilidade de monitoramento da correspondência eletrônica do empregado, pelo empregador, no
ambiente de trabalho.
A questão já foi enfrentada em algumas decisões dos tribunais brasileiros,
mas ainda não se logrou obter um consenso sobre os limites que separaram a
privacidade do empregado e o poder de direção do empregador.
Sendo assim, pode-se notar que a questão apresenta duas perspectivas de
análise, diametralmente opostas: (i) uma delas defende a possibilidade de se
realizar o monitoramento do correio eletrônico dos empregados, baseando-se
para tanto no direito de propriedade do empregador sobre a infra-estrutura
utilizada pelo empregado, na possibilidade de responsabilização do empregador por atos de seus prepostos, bem como no poder de direção, previsto no
art. 2º da CLT; e, de outro lado, (ii) uma segunda perspectiva sobre a matéria
apoia-se no direito à privacidade do trabalhador para obstar toda e qualquer
ingerência do empregador sobre a correspondência eletrônica do empregado.
Cabe de início colocar-se uma ressalva: a maioria dos questionamentos surgidos nesse debate estão relacionados com a utilização do endereço de correio
eletrônico que é fornecido pelo empregador ao empregado quando de sua con-
86
Trecho da sentença da juíza Rosângela Leiko Kato, da 6.ª Vara do Juizado
Especial Cível de Micro Empresas, de
Campo Grande, Mato Grosso do Sul
(processo nº 2001.166.0812-9). Segundo informa Victor Drummond, a decisão
foi confirmada em segunda instância
(in Internet, Privacidade e Dados Pessoais, cit.; p. 115).
FGV DIREITO RIO
71
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
tratação (algo como [email protected]). A utilização do endereço
de correio eletrônico particular no ambiente de trabalho, usualmente através de
webmail, é questão menos controvertida, levando-se sempre em conta que essa
utilização não pode prejudicar o rendimento do empregado em seu ofício, nem
comprometer a segurança do sistema de informática do empregador.
A maior celeuma reside justamente no caso do endereço de correio eletrônico fornecido pelo empregador justamente porque qualquer mensagem
enviada através desse endereço leva consigo o nome da empresa que o contratou, além de apenas poder ser utilizado pelo mesmo enquanto contratado for.
Essas circunstâncias levam à reflexão sobre o direito de propriedade da
infra-estrutura colocada à disposição do empregado. Nesse sentido, questiona-se Victor Drummond sobre a propriedade não apenas dos computadores,
mas também dos correios eletrônicos disponibilizados aos funcionários:
“[P]ergunta-se: o que pressupõe o envio de mensagens via correio eletrônico? E
afirmamos: pressupõe a utilização de um computador, um contrato de acesso a rede
de computadores Internet através de um provedor de acesso e todo o aparato técnico,
ainda que atualmente de razoável simplicidade, necessário para o funcionamento do
sistema de recepção e envio de mensagens. Claro que tudo isso tem um custo para
manter-se. E todo esse aparato tem um proprietário. No caso das empresas, fazem
parte do seu patrimônio ativo e são colocados à disposição dos funcionários. E também
aqui se insere o endereço de correio eletrônico. O endereço de correio eletrônico é, portanto, bem intangível. No presente caso, bem intangível de propriedade da empresa.”87
Sendo assim, pela ótica do direito de propriedade, não haveria como se
defender a privacidade do correio eletrônico no ambiente de trabalho, uma
vez que o próprio correio eletrônico não pertenceria ao empregado.
Adicionalmente, essa perspectiva vale-se ainda do argumento de que o
empregador estaria legitimado a monitorar o conteúdo das mensagens eletrônicas de seus funcionários por força da responsabilidade civil que sobre o
mesmo recai em decorrência de atos de seus funcionários (art. 932, III, do
Código Civil). Dessa forma, o empregador não apenas poderia, como até
mesmo deveria monitorar o correio eletrônico de seus empregados, como
uma medida de prevenção de danos.
Por fim, o empregador também poderia se valer do seu poder de direção,
previsto no art. 2º da CLT, para justificar a intervenção sobre a correspondência eletrônica enviada por seus empregados, uma vez que cabe ao mesmo
dirigir o negócio, sendo-lhe, por isso, concedida superioridade hierárquica
sobre os empregados.
O monitoramento do correio eletrônico no ambiente de trabalho já foi
reconhecido pela jurisprudência dos tribunais nacionais, ressaltando-se os argumentos supramencionados para se legitimar o controle sobre as mensagens
87
Victor Drummond. Internet, Privacidade e Dados Pessoais, cit.; pp. 85/86.
FGV DIREITO RIO
72
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
dos empregados. Nessa direção, assim decidiu o Tribunal Regional do Trabalho da 10ª Região:
“Quando o empregado comete um ato de improbidade ou mesmo um delito
utilizando-se do e-mail da empresa, esta em regra, responde solidariamente pelo ato
praticado por aquele. Sob esse prisma, podemos então constatar o quão grave e delicada é esta questão, que demanda a apreciação jurídica dos profissionais do Direito.
Enquadrando tal situação à Consolidação das Leis do Trabalho, verifica-se que tal
conduta é absolutamente imprópria, podendo configurar justa causa para a rescisão
contratual, dependendo do caso e da gravidade do ato praticado. Considerando que
os equipamentos de informática são disponibilizados pela empresas aos seus funcionários com a finalidade única de atender às suas atividades laborativas, o controle
do e-mail, apresenta-se como a forma mais eficaz, não somente de proteção ao sigilo
profissional, como de evitar o mau uso do sistema internet que atenta contra a moral
e os bons costumes, podendo causar à empresa prejuízos de larga monta.”88
Os argumentos levantados em prol do empregador foram explorados de
forma sintética pelo voto do revisor do presente acórdão, do qual se extrai a
seguinte passagem:
“Se o e-mail é concedido pelo empregador para o exercício das atividades laborais,
não há como equipará-lo às correspondências postais e telefônicas, objetos da tutela
constitucional inscrita no art. 5º, inciso XII, da CF. Tratando-se de ferramenta de
trabalho, e não de benefício contratual indireto, o acesso ao correio eletrônico não
se qualifica como espaço eminentemente privado, insuscetível de controle por parte
do empregador, titular do poder diretivo e proprietário dos equipamentos e sistemas
operados. Por isso, o rastreamento do sistema de provisão de acesso à Internet, como
forma de identificar o responsável pelo envio de fotos pornográficas a partir dos equipamentos da empresa, não denota quebra de sigilo de correspondência (art. 5º, inciso
XII, da CF), igualmente não desqualificando a prova assim obtida (art. 5º, inciso
LVI, da CF), nulificando a justa causa aplicada (CLT, art. 482).89
O direito à privacidade, por seu turno, figura como fundamento das decisões que se pronunciam favoravelmente ao empregado, protegendo a inviolabilidade de sua correspondência eletrônica em detrimento da discricionariedade absoluta do empregador no monitoramento das mensagens enviadas a
partir do correio eletrônico da empresa.
Em decisão bastante controvertida, o Tribunal Regional do Trabalho da
9ª Região decidiu que a despedida por justa causa de empregado que enviou
mensagens de teor pornográfico não poderia prosperar, uma vez que não
estaria configurada a alegada quebra de fidúcia no relacionamento laboral. É
importante notar que a referida decisão ainda se manifesta no sentido de que
88
Recurso Ordinário nº 054/200208-06, rel. Márcia Cúrcio, publ. em
19.07.2002.
89
Extraído do voto do revisor Douglas
Alencar Rodrigues, in Recurso Ordinário
nº 054/2002-08-06, rel. Márcia Cúrcio,
publ. em 19.07.2002.
FGV DIREITO RIO
73
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
a realização de auditagem na estação de trabalho do empregado violaria direitos da personalidade. A ementa da decisão está redigida da seguinte forma:
“CORREIO ELETRÔNICO — JUSTA CAUSA. É comum as empresas disponibilizarem internet-correio eletrônico aos empregados, que os usam também com
fins particulares. Releva aferir se tal uso (não importa o conteúdo) atrapalha o rendimento profissional do empregado ou constrange outras pessoas. O empregador deve
propiciar ao trabalhador corrigir seu comportamento, aplicando advertências e, no
caso de reincidência, suspensão e, finalmente, dispensa por justa causa, de forma
gradual. A realização de auditagem na estação de trabalho do autor fere o direito
ao sigilo de comunicação (CF-88, art. 5º, XII). O parágrafo único do art. 1º da
Lei 9.296-96 equipara as comunicações em sistema de informática e telemática,
via e-mail, às comunicações telefônicas, em relação às quais cabe a quebra do sigilo
somente por determinação judicial. Ilegal, pois, a imposição de cláusula autorizadora de realização de auditagem nas estações de trabalho dos usuários. Ainda, se o
autor não era o único empregado a enviar e-mails particulares, todavia, os demais
não sofrem qualquer penalidade, há nítido ato discriminatório. A inobservação da
norma empresarial não caracterizou dano ao empregador, pois não comprovado efetivo prejuízo à ré ou constrangimento a terceiros. O uso, pelo autor, do computador
da empresa, para envio de mensagens particulares, mesmo que pornográficas e sem
permissão, não é suficiente a demonstrar ausência de boa-fé na execução do contrato
e acarretar quebra de fidúcia.” 90
O Tribunal Regional do Trabalho da 2º Região também teve oportunidade de se manifestar sobre o assunto, decidindo favoravelmente ao empregado, também com apoio no direito à privacidade. Todavia, deve-se destacar
que, no caso concreto, a demissão do empregado por justa causa foi motivada
pelo envio de uma mensagem apenas, e cuja remessa se deu na hora do café,
o que torna a caracterização da abusividade da demissão por justa causa mais
evidente e dificulta a formação de um precedente judicial abrangente sobre o
assunto. É a decisão:
“Justa Causa. “E-mail” caracteriza-se como correspondência pessoal. O fato de ter
sido enviado por computador da empresa não lhe retira essa qualidade. Mesmo que
o objetivo da empresa seja a fiscalização dos serviços, o poder diretivo cede ao direito
do obreiro à intimidade (CF, art. 5°, inciso VIII). Um único “e-mail”, enviado para
fins particulares, em horário de café, não tipifica justa causa. Recurso provido.91
Cumpre destacar um trecho do voto do relator do acórdão, no qual se
rebate, expressamente, o argumento baseado na supremacia do direito de
propriedade do empregador sobre o correio eletrônico disponibilizado
ao empregado:
90
Tribunal Regional do Trabalho da 9ª
Região, Recurso Ordinário nº 055682002.
91
Processo n° 2000034734-0, rel. Fernando Antônio Sampaio da Silva, j. em
03.08.2000.
FGV DIREITO RIO
74
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“De outra parte entendo que houve violação ao direito à intimidade do obreiro.
Com efeito, “e-mail” nada mais é que correio eletrônico. Ou seja, correspondência
enviada pelo computador. Ainda que se utilize o computador da empresa, o endereço
(eletrônico) pertence ao reclamante. Manifesta a violação de correspondência, ainda
que eletrônica, fere a garantia à intimidade (Constituição Federal, art. 5°, inc.
VIII). Por analogia, o caso equivale à escuta de conversa telefônica, conduta essa que
é sabidamente reprimida pela jurisprudência.”92
O Tribunal Superior do Trabalho, por sua vez, também já se manifestou
sobre a possibilidade de monitoramento do e-mail do empregado pelo empregador, confirmando a decisão anteriormente proferida pelo TRT da 10ª
Região, citada acima. A ementa do acórdão está assim redigida:
“PROVA ILÍCITA. “E-MAIL” CORPORATIVO. JUSTA CAUSA. DIVULGAÇÃO DE MATERIALPORNOGRÁFICO.
1. Os sacrossantos direitos do cidadão à privacidade e ao sigilo de correspondência, constitucionalmente assegurados, concernem à comunicação estritamente pessoal, ainda que virtual (“e-mail” particular). Assim, apenas o e-mail
pessoal ou particular do empregado, socorrendo-se de provedor próprio, desfruta da proteção constitucional e legal de inviolabilidade.
2. Solução diversa impõe-se em se tratando do chamado “e-mail”corporativo,
instrumento de comunicação virtual mediante o qual o empregado louva-se de
terminal de computador e de provedor da empresa, bem assim do próprio endereço eletrônico que lhe é disponibilizado igualmente pela empresa. Destina-se
este a que nele trafeguem mensagens de cunho estritamente profissional. Em
princípio, é de uso corporativo, salvo consentimento do empregador. Ostenta,
pois, natureza jurídica equivalente à de uma ferramenta de trabalho proporcionada pelo empregador ao empregado para a consecução do serviço.
3. A estreita e cada vez mais intensa vinculação que passou a existir, de uns
tempos a esta parte, entre Internet e/ou correspondência eletrônica e justa causa
e/ou crime exige muita parcimônia dos órgãos jurisdicionais na qualificação da
ilicitude da prova referente ao desvio de finalidade na utilização dessa tecnologia,
tomando-se em conta, inclusive, o princípio da proporcionalidade e, pois, os diversos valores jurídicos tutelados pela lei e pela Constituição Federal. A experiência subministrada ao magistrado pela observação do que ordinariamente acontece revela que, notadamente o “e-mail” corporativo, não raro sofre acentuado
desvio de finalidade, mediante a utilização abusiva ou ilegal, de que é exemplo
o envio de fotos pornográficas. Constitui, assim, em última análise, expediente
pelo qual o empregado pode provocar expressivo prejuízo ao empregador.
4. Se se cuida de “e-mail” corporativo, declaradamente destinado somente
para assuntos e matérias afetas ao serviço, o que está em jogo, antes de tudo, é o
92
Idem. Ibidem.
FGV DIREITO RIO
75
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
exercício do direito de propriedade do empregador sobre o computador capaz de
acessar à INTERNET e sobre o próprio provedor. Insta ter presente também a
responsabilidade do empregador, perante terceiros, pelos atos de seus empregados em serviço (Código Civil, art. 932, inc.III), bem como que está em xeque o
direito à imagem do empregador,igualmente merecedor de tutela constitucional.
Sobretudo, imperativo considerar que o empregado, ao receber uma caixa de
“e-mail” de seu empregador para uso corporativo, mediante ciência prévia de
que nele somente podem transitar mensagens profissionais, não tem razoável
expectativa de privacidade quanto a esta, como se vem entendendo no Direito
Comparado (EUA e Reino Unido).
5. Pode o empregador monitorar e rastrear a atividade do empregado no ambiente de trabalho, em “e-mail” corporativo, isto é, checar suas mensagens, tanto
do ponto de vista formal quanto sob o ângulo material ou de conteúdo. Não é
ilícita a prova assim obtida, visando a demonstrar justa causa para a despedida
decorrente do envio de material pornográfico a colega de trabalho. Inexistência
de afronta ao art. 5º, incisos X, XII e LVI, da Constituição Federal.
6. Agravo de Instrumento do Reclamante a que se nega provimento.”93
Como visto, o TST levou em consideração a maior parte dos argumentos
desenvolvidos em prol do controle do e-mail do empregado pelo empregador, com destaque para a possibilidade de responsabilização do mesmo com
base no art. 932, III, do Código Civil.
2. CASOS GERADORES:
2.1. “Analisando o e-mail”
----— Original Message —---— From: Consult&Consult Consultoria e Treinamento To: você@seuprovedor.com.br Sent: Saturday,
September 20, 2003 7:45 AM
Prezado Cliente,
Sentimos um enorme prazer em informar que recentemente seu
e-mail passou a fazer parte do nosso banco de dados.
Pensando sempre na melhoria da sua empresa e no seu desenvolvimento pessoal, a Consult&Consult oferece os melhores programas de aperfeiçoamento profissional do mercado, elaborados a
partir de vasta experiência no ramo de consultoria.
93
TST, RR - 613/2000-013-10-00,
rel. Min. João Oreste Dalazen, j. em
18.05.2005.
FGV DIREITO RIO
76
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(OBS.: Seu e-mail foi retirado de sua Própria Home Page, já
constava em nosso banco de dados ou foi digitado aleatoriamente,
isto é um e-mail normal como tantos outros que você recebe, não
estamos invadindo sua privacidade e enviar um e-mail não é crime,
desde que não afete a caixa do usuário, caso não tenha mais interesse em receber nossas mensagens, envie um email para remover@
outroprovedor.com.br com o assunto “ REMOVER“).
Atenciosamente,
Fulano de Tal
Analista de Relacionamento
Considerando que a mensagem acima foi recebida em seu e-mail sem solicitação prévia, após ler o seu conteúdo, indique as eventuais irregularidades do referido e-mail. Ele pode ser considerado como spam? Em caso afirmativo, é possível
responsabilizar a empresa que enviou a mensagem. Qual seria o fundamento da
pretensa responsabilização?
2.2. “Spywares e Privacidade”
A MK Informática Ltda. desenvolveu um software, denominado Spy Music
BR, para o compartilhamento e troca de arquivos MP3 na Internet. Além de
operar as funções tradicionais de um software de compartilhamento de arquivos,
o programa possui uma função oculta (spyware), através da qual todos os dados
envolvendo as músicas que cada usuário baixar são enviados para os servidores da
MK. A empresa, de posse desses dados, está montando um grande banco de dados
com o gosto musical de seus usuários e já iniciou negociação com uma grande
empresa de publicidade na Internet para a venda de seus cadastros.
Ao saber que diversos softwares de limpeza de spywares, que podem ser adquiridos gratuitamente na Internet, têm operado de forma a remover a função oculta
do seu software, a MK — como de praxe — formulou consulta ao seu escritório
questionando a legalidade desses softwares que desabilitam uma função de programa de sua titularidade.
Mais especificamente, a empresa lhe consulta sobre a conveniência de ingressar
com ação judicial contra os fabricantes desses softwares que limpam spywares sob
o argumento de que os mesmos estariam violando o seu direito autoral sobre o software Spy Music BR, alterando-lhe as funções originais sem prévio consentimento.
Como você elaboraria a resposta a ser encaminhada ao seu cliente?
FGV DIREITO RIO
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 9 — DIREITOS DA PERSONALIDADE — DIREITO À IMAGEM
EMENTÁRIO DE TEMAS
Conceito e abrangência do direito à imagem — Imagem-Retrato e Imagem-Atributo — Responsabilidade Civil por dano à imagem — Análise da
jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça sobre o dano à imagem.
CASO GERADOR
Caso Sylmara Rocha — Liberdade de Imprensa e Direito à Imagem
LEITURA OBRIGATÓRIA
SOUZA, Carlos Affonso Pereira de. “Contornos Atuais do Direito à Imagem”, in Revista Forense nº 367; pp. 45/68 (uma versão reduzida do
artigo encontra-se abaixo, no “roteiro de aula”)
LEITURAS COMPLEMENTARES
SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São Paulo, Atlas, 2002; pp. 157/194; e MORAES, Walter. “Direito à Própria
Imagem”. In Revista dos Tribunais nº 443 (set/1972); pp. 64/81 e nº 434
(out/1972); pp. 11/28.
1. ROTEIRO DE AULA
Um dos aspectos mais intrigantes do progresso tecnológico, sobretudo
no que tange ao desenvolvimento dos modernos meios de comunicação, é a
predominância da visão em face dos demais sentidos do homem. A imagem
— seja através de um quadro em exposição, de um retrato no jornal, ou de
uma foto para publicidade — nunca esteve em tão incontrolável evidência e
banalização.
O poder instantâneo de comunicação da imagem caracteriza de forma
irrepreensível esse instante na história da civilização, em que o tempo avança sobre as distâncias espaciais, suprimindo-as em compasso acelerado. Se o
passado não pode mais ser alterado, pois se solidificou em história, o presente
FGV DIREITO RIO
78
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
deve sempre ser sempre “leve”, “fluido”, para que o homem, em estado de
constante pressa, possa organizar a sua agenda de atrasos em uma modernidade “líquida”, conforme alcunhada por Zygmunt Bauman.94
A imagem, portanto, cumpre a sua função nesse cenário. Com efeito, a
partir do desenvolvimento de novos veículos de comunicação, como a televisão, grande parte das informações que chegam aos indivíduos está consubstanciada em imagens. A própria Internet, ao flexibilizar as formas de
expressão lingüística, criando abreviações para conversação em tempo real e
símbolos para a representação de sentimentos do interlocutor, por exemplo,
também constitui uma mídia que lança mão do poder de transmissão imediata de conteúdo proporcionado pela utilização da imagem.95
Há, portanto, uma relação intrínseca entre o progresso tecnológico e a
crescente veiculação de imagens nos meios de comunicação que permitem
tal recurso, podendo-se localizar no âmago dessa simbiose entre tecnologia e
imagem a necessidade de proteção da imagem pessoal.
A fisionomia da pessoa, compreendida como sua identidade física, é freqüentemente explorada por meio do referido fenômeno de massificação da
imagem. Nesse sentido, um semblante notório, ou determinadas qualidades
físicas, são difundidas à exaustão pela mídia em uma amplitude e velocidade inéditas. Cumpre lembrar que se as novas tecnologias digitais facilitam a
captação da imagem, da mesma forma a sua divulgação é mais facilmente
implementada.96 Tenha-se em mente, por exemplo, o alcance transnacional
da Internet, seja através da difusão de imagens em páginas eletrônicas, seja
através do envio de e-mails.
Contudo, deve-se atentar para o fato de que a exposição potencializada da
imagem não abrange apenas o aspecto fisionômico e sua correspondente reprodução, expandindo-se o conceito de imagem no sentido de atingir ainda
a referência a determinados atributos de uma pessoa em suas relações sociais.
De fato, paralelamente à ostensiva exploração da fisionomia, surge no senso comum a significação de imagem como atributo peculiar de uma pessoa.
Assim, através do comportamento reiterado do indivíduo em suas relações,
adere ao mesmo um amálgama de características que vêm a compor a exteriorização de sua personalidade no âmbito social. Convencionou-se denominar
“imagem” tais atributos da pessoa percebidos em sua conduta particular ou
em sua atividade profissional.
Dessa forma, pode-se asseverar que, em meio à sociedade edipiana dos
excessos visuais, cumpre ao Direito tutelar a exposição da imagem, coibindo
os seus abusos. Todavia, para que se atinja uma proteção eficaz, deve-se analisar a imagem como manifestação da personalidade humana, traçando-se um
conceito jurídico que contemple as suas diversas espécies de manifestação em
face dos atuais meios de transmissão de dados.
94
In A Modernidade Líquida. Rio, Jorge
Zahar, 2001; p. 09.
95
Para uma crítica dos vícios que a linguagem produzida pela Internet imprime aos hábitos de escrita e leitura, vide
entrevista concedida por Harold Bloom
à Revista Veja, publicada na edição de
31 de janeiro de 2001; p. 14.
96
Cf. Luiz Alberto David Araújo. A Proteção Constitucional da Própria Imagem.
Belo Horizonte: Del Rey, 1996; p. 52.
FGV DIREITO RIO
79
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A imagem como exteriorização da personalidade
Como visto acima, a proteção acentuada do direito à imagem constitui
demanda proveniente do desenvolvimento tecnológico. Desde a elaboração
de retratos através da pintura até a utilização desmesurada de personalidades
notórias em comerciais de televisão e a divulgação de fotos pela rede mundial
de computadores, cumpre ao Direito proteger o aspecto existencial contido
na imagem da pessoa.
A definição de um conceito relativo à imagem para fins de sua tutela jurídica, por seu turno, sempre motivou polêmica e discordâncias doutrinárias. Assim, há entendimentos que se fundam no sentido vulgar do vocábulo
“imagem”, outros que procuram restringir o campo de proteção da imagem
à seara das reproduções gráficas, e ainda os que buscam ampliar o espectro
conceitual da imagem, abordando-a como exteriorização da personalidade
humana.
Partindo-se, portanto, do sentido vulgar da expressão, considera-se imagem como sendo a representação através da pintura, escultura, fotografia,
filme e outras formas intelectuais de um tema qualquer, inclusive, da pessoa
humana.97
Nessa direção, interessaria ao Direito a imagem apenas como representação gráfica da figura humana, por meio mecânico de reprodução. A imagem
protegida juridicamente diria respeito àquela representação gráfica em que a
própria pessoa se reconhece e é reconhecida por terceiros.98
Todavia, o entendimento de que a imagem tutelada pelo Direito apenas
compreende a representação gráfica particulariza em excesso o escopo da proteção, deixando a descoberto uma série de hipóteses em que a imagem da
pessoa é violada sem que se elabore uma reprodução gráfica da mesma.
Em igual sentido, conforme relata Antonio Chaves, não se pode definir o
direito à imagem como sendo aquele direito de impedir que terceiros venham
a conhecer a imagem de outrem. Argumenta o tratadista que não se pode
evitar que terceiros conheçam a imagem de alguém, mas sim, e justamente
nesse ponto incide a tutela jurídica, que utilizem a mesma contra a vontade
do seu titular, em casos não autorizados por lei.99
Com efeito, o conceito de imagem para o Direito não pode abandonar o
substrato semântico do próprio vocábulo. Assim, recorda Walter Moraes que
a imagem pode ser tida como toda sorte de representações de uma pessoa.100
A imagem é, então, compreendida pelo autor como sendo toda exteriorização da personalidade humana. Esse entendimento contempla a vinculação
necessária entre tutela conferida à imagem e a disciplina relativa aos chamados direitos da personalidade, dentre os quais o direito à imagem se insere.
Atento a esse aspecto atinente à imagem como irradiação da pessoa humana,
complementa Walter Moraes que a:
97
Antonio Chaves. Tratado de Direito Civil, t. I. São Paulo, Revista dos Tribunais,
1982; p. 536.
98
Antonio Jeová Santos. Dano Moral
Indenizável. São Paulo, Lejus, 1999, 2ª
ed.; p. 382.
99
Antonio Chaves. Tratado de Direito
Civil, t. I., cit.; p. 538.
100
Walter Moraes. Verbete “Direito à
própria imagem”, in Enciclopédia Saraiva de Direito. São Paulo: Saraiva, 1977;
p. 340.
FGV DIREITO RIO
80
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“[i]magem é forma da pessoa, expressão sensível da individualidade como foi
dito, assentada fundamentalmente no corpo físico do homem, segue que é um bem
inerente à natureza do homem, naturalmente integrante da personalidade, o que,
vale dizer, é um bem essencial da personalidade. Por essencial, a imagem é obviamente inalienável, intransferível, inexpropriável, irrenunciável, porque tudo isso significaria privação de um bem essencial.”101
O núcleo do conceito proposto para a imagem, portanto, reside no seu
atrelamento inevitável com a personalidade, operando aquela a necessária
mediação entre a pessoa e a sociedade, entre a intimidade e a exterioridade. A
imagem estabelece a individuação física e moral da pessoa, sem a qual não se
pode sequer considerar o estudo da personalidade.
Cumpre somente explicitar, em adição ao conceito acima proposto, que
ao se considerar a imagem como exteriorização da personalidade humana,
a mesma é entendida tanto em seu aspecto físico, como moral. Ainda que
a imagem esteja “assentada fundamentalmente no corpo físico do homem”,
ela não reflete apenas características físicas do sujeito, abrangendo também
os atributos sociais da pessoa. Em atenção a esses dois perfis de proteção da
imagem, leciona Hermano Duval que:
“Direito à imagem é a projeção da personalidade física (traços fisionômicos, corpo, atitudes, gestos, sorrisos, indumentárias, etc.) ou moral (aura, fama, reputação,
etc.) do indivíduo (homens, mulheres, crianças ou bebê) no mundo exterior.”102
Uma vez assentado o conceito de imagem na exteriorização da personalidade, cumpre aprofundar a análise sobre as formas pelas quais referida exteriorização ocorre, abrangendo-se tanto a reprodução da fisionomia e as sensações
que a mesma implica em terceiros, bem como o conjunto de características
comportamentais que particularizam a pessoa em suas relações sociais.
Fisionomia e atributo como perfis da imagem
Não há como se compreender a exteriorização da personalidade consubstanciada na imagem sem que se faça menção aos dois perfis através dos quais
a mesma se manifesta, demandando o manejo de tutelas jurídicas específicas.
Assim, a fisionomia e a sua reprodução, bem como os atributos comportamentais da pessoa, devem ser entendidos como objeto de proteção pelo
Direito. Considerando-se, portanto, que a imagem integra a personalidade
humana, pode-se concluir pela sua inserção no rol dos chamados direitos da
personalidade.
101
Walter Moraes. “Direito à Própria
Imagem I”, in Revista dos Tribunais nº
443 (set/1972); pp. 80/81.
102
Hermano Duval. Direito à Imagem.
São Paulo, Saraiva, 1988; p. 105. À parte da evidente virtude da definição proposta por Hermano Duval, consubstanciada na percepção dos dois perfis da
imagem a serem tutelados, vale reparar
que a atitude pessoal, geradora de uma
determinada “imagem” no meio social,
deve ser protegida juridicamente não
como projeção da personalidade física,
mas como real exteriorização de aspectos morais da pessoa, perceptíveis
através do comportamento. Trata-se
de atributos sociais, não relacionados a
características físicas, cujo surgimento
é estimulado pela conduta individual.
FGV DIREITO RIO
81
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A referida análise dos dois perfis da imagem para fins de sua tutela jurídica
possui como fundamento o próprio texto da Constituição Federal de 1988,
uma vez que o direito à imagem é contemplado de forma pródiga no capítulo
relativo aos “Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos”.
Dessa forma, tomado pela perspectiva constitucional como um direito
fundamental, o direito à imagem é referido no artigo 5º da Carta Magna,
mais especificamente, nos incisos V, X e XXVIII, da seguinte forma:
“Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade
do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
(...) V — É assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da
indenização por dano material, moral ou à imagem;
(...) X — São invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra, e a imagem das
pessoas, assegurado o direito de indenização pelo dano material ou moral decorrente
de sua violação;
(...) XXVIII — são assegurados, nos termos da lei:
(a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da
imagem e voz humanas, inclusive nas atividades desportivas.”
Segundo o entendimento pioneiro de Luiz Alberto David Araújo, os incisos
acima citados contemplam três hipóteses distintas de tutela do direito à imagem. O inciso V refere-se à chamada “imagem-atributo”, o inciso X à “imagem-retrato”, e o inciso XXVIII à proteção da imagem como direito autoral.103
A denominada imagem-retrato refere-se à proteção jurídica dispensada
à fisionomia da pessoa, bem como à sua reprodução. Trata-se, portanto, da
vertente original do direito à imagem, a qual objetiva promover o resguardo
da identidade física da pessoa e suas características, sendo também tutelada a
correta captação e veiculação da fisionomia.
Segundo Luiz Alberto David Araújo, convencionou-se denominar a fisionomia da pessoa como “imagem estática” e a sua reprodução como “imagem dinâmica”. Ambas cuidam tão somente de dois momentos distintos da proteção
jurídica manejada à imagem-retrato, enfocando-se ora o fato da pessoa possuir
determinada fisionomia, ora a divulgação correta de seus aspectos fisionômicos.104
Cabe ressaltar, ainda, que mesmo certas partes do corpo de uma pessoa
podem ser objeto de proteção do direito à imagem, na medida em que as
mesmas possam gerar o imediato reconhecimento do indivíduo. Em tais casos, os quais envolvem pessoas que alcançaram notoriedade pela exposição de
partes específicas de seus corpos, deve-se atentar para o fato de que apenas
será possível invocar-se a defesa do direito à imagem quando a identificação
pessoal se fizer exclusivamente pela análise da parte do corpo em destaque.
103
Luiz Alberto David Araújo. A Proteção
Constitucional, cit.; p. 81 e ss. Vide, ainda, Sidney César Silva Guerra. A Liberdade de Imprensa e o Direito à Imagem.
Rio, Renovar, 1999; p. 63.
104
Luiz Alberto David Araújo. A Proteção
Constitucional, cit.; p. 30.
FGV DIREITO RIO
82
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Relacionada com a proteção da imagem-retrato, note-se que não se resguarda apenas a fisionomia da própria pessoa, mas também a forma de sua
utilização por terceiros. Mesmo quando autorizada a veiculação da imagemretrato, deve-se cuidar para que a mesma não seja inserida em circunstâncias
diversas daquelas previamente avençadas.
Adicionalmente, no que tange à reprodução da fisionomia, cumpre lembrar que mesmo a utilização de referências à imagem-retrato de terceiros deve
ser analisada com cautela, principalmente quando se lança mão de sósias,
ou figuras assemelhadas105, para parodiar, ou simplesmente se valer para fins
lucrativos de aspectos físicos alheios.
Nesse sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro que a exploração não autorizada de referências à fisionomia de terceiros,
mediante a utilização de sósias, é passível de indenização, conforme a ementa
assim transcrita:
Responsabilidade Civil — Direitos de Personalidade — Violação — Danos Moral e Patrimonial.
Responsabilidade Civil. Violação de direitos da personalidade. Exploração do
nome e por via reflexa, da imagem, de modelo fotográfico renomado, com uso de
sósia em revista com fins lucrativos. Artifícios de imitação para tirar proveito do
poder atrativo da própria imagem de modelo de fama. Ausência de autorização e da
devida remuneração. Quando a violação de direitos de personalidade deixar também
conseqüências econômicas é devido o ressarcimento de ordem patrimonial cumulativo
com a reparação do dano moral.”106
A proteção da imagem como direito autoral, por seu turno, conforme
prevista no artigo 5º, XXVIII, (a), da Constituição Federal, visa à tutela da
pessoa enquanto criadora de uma determinada obra intelectual, especialmente no que tange à sua participação em obras coletivas, englobando, portanto,
o chamado “direito de arena”107 nas atividades desportivas.
Já o segundo perfil do direito à imagem não se atém às características físicas da pessoa, mas sim aos seus atributos identificáveis através das relações
sociais. A denominada imagem-atributo possui por objeto o conjunto de particularidades comportamentais que distinguem uma pessoa perante terceiros.
Tais particularidades podem tanto abonar como desprestigiar a pessoa em
referência, não possuindo, assim, qualquer identidade com a honra objetiva
do sujeito.
É importante notar que a imagem-atributo nasce do próprio uso vulgar
do termo “imagem”, o qual passa a significar não apenas a fisionomia e a
sua reprodução, mas também o conjunto de características comportamentais
que identificam o sujeito. Nesse sentido, uma pessoa pode ser diligente ou
preguiçosa, obediente ou indulgente, altruísta ou egoísta, progressista ou re-
105
Conforme reporta Stephen R. Barnett, já se decidiu nos Estados Unidos
que a simples menção à fisionomia
alheia, quando não autorizada, pode
gerar o dever de indenização. Assim
pronunciou-se a Corte Federal de Apelações do Nono Circuito no polêmico
caso Vanna White vs. Samsung Eletronics America, Inc. A autora da ação,
modelo que obteve notoriedade como
assistente em um programa de televisão denominado “Wheel of Fortune”,
processou a empresa de equipamentos
eletrônicos por fazer referência à sua
imagem em um comercial de vídeocassete. O referido comercial apresentava uma previsão de como seria o
vídeo-cassete no futuro, através de um
programa em formato similar àquele
em que a autora atuava, valendo-se
para tanto de um robô caracterizado
como a modelo (“The Right of One’s
Own Image: Publicity and Privacy Rights in the United States and Spain”,
in The American Journal of Comparative
Law, vol. 47, 1999; p. 562).
106
Embargos Infringentes nº 136/91,
rel. Des. Elmo Arueira, julgado em
18.12.91 e publicado no DJ/RJ de
22.10.92; p. 180.
107
Por direito de arena entende-se o
direito de autorizar, ou proibir, a fixação, transmissão ou retransmissão de
imagem de espetáculo desportivo, por
qualquer meio ou processo. Sobre o
tema, vide as relevantes considerações
de José de Oliveira Ascensão, ainda que
sob a égide a antiga Lei de Direito Autorais (Lei nº 5988/73), no seu Direito
Autoral. Rio, Renovar, 1997; pp. 502 e
ss. Recomenda-se, ainda, a leitura dos
comentários de Álvaro Melo Filho ao
artigo 42 da Lei nº 9615/98 (“Lei Pelé”),
que dispõe sobre a matéria (in Lei Pelé –
Comentários à Lei nº 9615/98, Brasília,
Brasília Jurídica, 1998; pp. 128 e ss).
FGV DIREITO RIO
83
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
acionária: todas essas características aderem à pessoa tal qual um signo que a
particulariza no trato com outrem e no desenvolvimento de suas atividades
particulares ou profissionais.
Assim, cumpre ressaltar que as particularidades que compõem a imagematributo de uma pessoa serão colhidas através da reiterada observação de seu
comportamento nas relações sociais. Faz-se necessário, portanto, um mínimo
conhecimento da conduta de uma pessoa frente a determinadas situações
para que se possa estabelecer particularidades que venham a integrar a sua
imagem-atributo.
A jurisprudência já tem se utilizado desse conceito, ainda que sem se valer reiteradamente do termo “imagem-atributo”. Tome-se, por exemplo, o
afamado caso em que a apresentadora de programas infantis Xuxa ingressou
com medida cautelar intentando a proibição da comercialização de fitas de
vídeo do filme “Amor, Estranho Amor”, no qual a mesma protagoniza cenas
de caráter erótico. À parte das considerações relativas ao direito autoral, em
que discutiu se a autorização para a veiculação da obra no cinema também
abrangeria a sua utilização em vídeo-cassete, pretendia a autora fazer cessar a
comercialização das referidas fitas porque as cenas do filme atentavam contra
a imagem social construída posteriormente pela apresentadora como “rainha
dos baixinhos”.
Tratando nitidamente de uma hipótese de lesão à imagem-atributo, assim
descreve a situação dos autos o Desembargador Thiago Ribas Filho em seu voto:
“Após o lançamento da fita [no cinema], ocorrido em 1982, a 2ª Autora [Xuxa]
se projetou, nacional e internacionalmente, com programas infantis na televisão,
criando uma imagem que muito justamente não quer ver atingida, cuja vulgarização atingiria não só ela própria como a das crianças que são o seu público, ao qual
se apresenta como símbolo da liberdade infantil, de bons hábitos e costumes, e da
responsabilidade das pessoas.”108
Da mesma forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul já se
manifestou favoravelmente à tutela da imagem-atributo quando do julgamento
de ação indenizatória movida por empregado que, ao ser despedido, foi objeto de
aviso público expedido pelo ex-empregador. Assim está redigida a ementa:
“Civil. Responsabilidade civil. Despedida de relações públicas. Comunicação à
praça. Ato sem motivo plausível e lesivo à imagem. Fixação do dano moral.
(...) 2. O comunicado à praça de que certo empregado foi demitido e que a empresa não se responsabiliza por seus atos, quando a despedida foi ato rotineiro e sem
motivo extraordinário ou especial constitui ato ilícito porque causa dano à imagem
profissional da relações públicas. O dano moral deve ser fixado considerando a necessidade de punir o ofensor e evitar que repita o seu comportamento.”109
108
Apelação Cível nº 3819/91, rel.
Des. Thiago Ribas Filho, julgada em
27.02.92; fls. 802.
109
Apelação Cível n.º 596100586,
rel. Des. Araken de Assis, julgada em
14.11.1996.
FGV DIREITO RIO
84
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Com efeito, a positivação da imagem-atributo no texto constitucional
aponta para a sua intrínseca relação com o direito de resposta.110 Pode-se
concluir, portanto que o campo principal de aplicação da tutela relativa à
imagem-atributo reside na veiculação de informações pelos meios de comunicação, sendo assegurado quando de sua violação o respectivo direito de
resposta da pessoa ofendida.
Cumpre destacar, ainda, que o reconhecimento da imagem-atributo encontra-se em sintonia com a ampliação das hipóteses de proteção à pessoa no
Direito Civil, fenômeno representativo de uma mudança do paradigma patrimonialista, predominante no Código Civil 1916, para a adoção de uma dogmática civilista que prioriza o aspecto existencial da pessoa humana. O estudo
dos direitos da personalidade ilustra como nenhuma outra seara do Direito
Civil essa alteração na perspectiva do referido ramo jurídico, podendo-se elencar a defesa da imagem-atributo como um dos vetores dessa personalização.
A utilização da imagem na obra publicitária
Para que se ilustre uma hipótese de aplicação prática da teoria relativa ao
direito à imagem e seus dois perfis, acima desenvolvida, deve ser feita uma
breve análise sobre a utilização da imagem nas obras publicitárias, uma vez
que essas obras lançam mão constantemente da fisionomia de pessoas notórias, ou mesmo de atributos de pessoas em particular que facilitam a identificação do consumidor com o produto ou serviço objeto da publicidade.
O termo “publicidade” encontra na literatura especializada as mais diversas definições, dado que a mesma pode ser analisada através de aspectos
artísticos, científicos, ou, ainda, como meio de comunicação.111 Para os fins
do presente estudo, cumpre considerar a elucidativa prescrição da Diretiva
nº 84/450, do Conselho da Comunidade Econômica Européia, a qual define
publicidade como sendo:
“(...) toda forma de comunicação realizada no sentido de uma atividade comercial, industrial, artesanal ou liberal com o fim de promover o fornecimento de bens e
a prestação de serviços, incluindo os bens imóveis, os direitos e as obrigações.”
Nesse sentido, deve-se perceber que a publicidade insere-se, necessariamente, na atividade empresarial, atuando como forma de promoção de um
produto ou serviço.112 Em um cenário de economia globalizada, então, fazse natural a tendência à formação de grandes multinacionais voltadas à exploração de publicidade. As campanhas publicitárias desenvolvidas por essas
companhias muitas vezes se expandem por diversos países, mais notadamente
quando tanto a empresa anunciante, que demanda a criação de uma deter-
110
Conforme ressaltam Oduvaldo Donnini e Rogério Ferraz Donnini. Imprensa
Livre, Dano Moral, Dano à Imagem, e sua
Quantificação à Luz do Novo Código Civil.
São Paulo, Método, 2002; p. 71.
111
Carlos Alberto Bittar. Direito de Autor
na Obra Publicitária. São Paulo, Revista
dos Tribunais, 1981; pp. 72 e ss.
112
Segundo lição de Luis Gustavo Grandinetti de Carvalho, há que se distinguir
o vocábulo “publicidade” de “propaganda”. Assevera o referido autor que o
fenômeno da publicidade tem por fim
o negócio, a compra e venda de produto
ou serviço, enquanto a propaganda é a
simples divulgação de idéias políticas,
religiosas, filosóficas, ou seja, sem caráter comercial. A diferença, portanto,
residiria no intuito de lucro presente
na obra publicitária e ausente na propaganda. (in Direito de Informação e
Liberdade de Expressão. Rio, Renovar,
1999; p. 66/67).
FGV DIREITO RIO
85
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
minada publicidade, como aquela que a desenvolverá (a agência), constituem
grupos multinacionais.
Assim, diversas práticas têm sido desenvolvidas, objetivando sempre a ampliação do alcance promocional do objeto publicitário, de forma a atingir um
público cada vez mais influenciável e suscetível ao aperfeiçoamento contínuo
de técnicas de convencimento e persuasão.
Tome-se como exemplo a reiterada prática de associar as qualidades de um
determinado produto ou serviço à imagem-retrato ou à imagem-atributo de
artistas ou demais pessoas de renome em campanhas publicitárias. Esse fenômeno faz-se sentir não apenas nos países ocidentais, sendo costume também
na sociedade japonesa, fortemente influenciada pelo culto aos ídolos televisivos, divulgar-se um produto com a constante ligação à imagem de uma
celebridade reconhecida pelo público em geral.113
O mesmo fenômeno também pode ser notado na publicidade que explora
a imagem de pessoas notórias no Brasil. Segundo constatação de Carlos Alberto Bittar Filho:
“O fenômeno ganha vulto em nossos tempos, em que a vinculação publicitária de
pessoas bem-sucedidas em suas atividades representa estímulo ao consumo mediante
a atração que exercem junto ao público; assim acontece com grandes estadistas, políticos, artistas, escritores, esportistas. Explora-se, nesse passo, a ânsia do espectador de
se identificar com os seus ídolos, com os seus hábitos, os seus gostos, as suas preferências, levando-o, pois, ao consumo do produto anunciado, direta ou indiretamente,
conforme o caso.”114
Note-se que ambos os perfis do direito à imagem podem ser envolvidos
em uma campanha publicitária, uma vez que se poderá explorar: (i) a fisionomia de determinada pessoa, com acento em particularidades físicas especiais
que atraiam a atenção do consumidor; e/ou (ii) atributos de uma pessoa notória que estejam em consonância com as características do produto ou com
o público-alvo da publicidade.
A exemplificação do uso da imagem-retrato no âmbito da publicidade não
apresenta maiores dificuldades, uma vez que basta apontar as obras publicitárias que exploram, como visto acima, celebridades para a divulgação de produtos pelo simples fato de as mesmas gozarem de notoriedade. Outras hipóteses
poderiam ser indicadas, como a extensiva utilização de mulheres esculturais
(ou, mais notadamente, de partes específicas de seus corpos) para a promoção
de produtos cujo público-consumidor seja majoritariamente masculino.
A imagem-atributo, por sua vez, encontra grande utilidade na produção
de obras publicitárias, dado que a publicidade visa a persuasão do consumidor através de uma operação de reconhecimento, gerando, por fim, a necessidade de consumo. Com efeito, a publicidade busca proporcionar esse resulta-
113
Como reporta Etienne Barral, jornalista do semanário japonês Aera: “O alto
nível de competição entre as empresas
concorrentes nivelou, em um primeiro
momento o grau de qualidade e perfeição dos produtos japoneses. Incapazes
de investir a longo prazo nas características ‘revolucionárias’ de seu último
modelo, pois logo eram alcançadas
pelas concorrentes, as empresas japonesas baseiam-se, cada vez mais, na
imagem artificial da publicidade como
argumento de venda. Utilizar um ídolo
é, muitas vezes, a única característica
particular de um produto.” (in Otaku –
Os filhos do virtual. São Paulo, Senac,
2000; pp. 89/90).
114
Carlos Alberto Bittar e Carlos Alberto
Bittar Filho. Tutela dos Direitos da Personalidade e dos Direitos Autorais nas
Atividades Empresariais. São Paulo, Revista dos Tribunais, 2ª ed., 2002; p. 58.
FGV DIREITO RIO
86
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
do através da identificação do consumidor com determinadas qualidades do
produto ou atributos da pessoa utilizada na obra publicitária.
Assim, introduzir em um comercial de curso de línguas estrangeiras para
jovens, um ator que possua expressividade junto ao público juvenil cumpre
a função de identificação do consumidor com o produto. Da mesma forma,
a utilização de um jogador de futebol conhecido pelo seu temperamento
explosivo, e por vezes agressivo, em um anúncio de inseticida, ressalta a sua
ação eficaz e mortífera no combate aos insetos. Trata-se de uma exploração de
características da pessoa, não necessariamente físicas, que podem ser notadas
através de seu comportamento nas relações sociais.
A conseqüência imediata dessa utilização da imagem de uma pessoa para a
promoção de um produto repousa na consideração de que a imagem pode ser
utilizada com fins econômicos, produzindo um valor pecuniariamente apreciável. Sendo assim, à parte de todas as considerações sobre a sua proteção
como direito da personalidade, há que se analisar os interesses patrimoniais
envolvidos em questionamentos relacionados com o direito à imagem.
A utilização da imagem de terceiro para o desenvolvimento de uma obra
publicitária, sem a correspondente autorização de seu titular, pode acarretar
prejuízos de natureza patrimonial, devendo a pessoa ser indenizada não apenas pelos danos emergentes, como também pelos lucros cessantes, conforme
as particularidades da situação.
Veja-se, por exemplo, o caso amplamente narrado por Antonio Chaves,115
em que uma modelo contratou com determinada empresa a divulgação de
sua imagem em um anúncio a ser publicado em certa revista especificada
no contrato. Ao perceber que as fotos produzidas para o referido anúncio
passaram a ilustrar toda sorte de obras publicitárias da empresa, incluindo
cartazes, posters, luminárias, etc, reconheceu o Tribunal de Justiça do Estado
de São Paulo que a modelo deveria ser indenizada pela utilização indevida da
sua imagem.
A configuração do prejuízo efetivo na hipótese acima abrange considerações sobre as conseqüências econômicas da violação à imagem, dado que a
ampla divulgação das fotos contratadas gerou um vínculo no imaginário dos
consumidores entre a imagem da modelo e o produto anunciado. Nessa direção, cumpre notar que outras propostas para a realização de obras publicitárias
poderiam ter sido obstadas pelo natural inconveniente de se utilizar a mesma
modelo para a promoção concomitante de dois produtos de empresas distintas.
Todavia, as conseqüências derivadas da violação do direito à imagem não
se esgotam na perspectiva patrimonial, devendo-se ressaltar a lesão de natureza moral decorrente da simples utilização não consentida do referido bem da
personalidade, conforme se analisará no item 4.2. Conforme entendimento
predominante no Superior Tribunal de Justiça, para a configuração do ato
ilícito não se demanda a averiguação das conseqüências derivadas do mesmo
115
Antonio Chaves. “Responsabilidade
Civil em Matéria de Fotografias”, in
Revista de Direito Mercantil nº 75 (julset/1989); pp. 17/18.
FGV DIREITO RIO
87
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(danum in re ipsa), mas vale destacar que tal diligência será imprescindível
para o estabelecimento da quantificação do dano a ser indenizado.
A publicidade, dessa forma, constitui campo profícuo para o estudo não
apenas dos dois perfis do direito à imagem (retrato e atributo), como também
das duas formas de reparação cabíveis (patrimonial e moral).
Relações do direito à imagem com direitos da personalidade correlatos
Superada a questão relativa à conceituação da imagem e seus dois perfis,
cumpre tecer algumas considerações sobre as relações existentes entre o direito à imagem e demais direitos da personalidade correlatos, como a honra
e a privacidade.
Se a querela em torno da autonomia do direito à imagem ocupou grande
parte dos debates que se travaram na doutrina nacional e estrangeira, atualmente entende-se como prevalecente a tese que propugna a autonomia desse
direito da personalidade. No Brasil, com a promulgação da Constituição Federal de 1988, fez-se constar no ordenamento jurídico positivo entendimento que há muito já se fazia presente na doutrina e na jurisprudência pátria
pela autonomia do direito à imagem. Todavia, existem pontos de contato
relevantes com outros direitos da personalidade que podem ser destacados
como forma de elucidar as fronteiras do direito à imagem, definindo-se, assim, de forma nítida o seu campo de aplicação.
Adicionalmente, deve-se notar que, ao se introduzir o conceito de imagem-atributo, ao lado da tradicional definição de direito à imagem como
resguardo da fisionomia e de sua reprodução gráfica, a afirmação da autonomia desse direito bipartido em dois perfis torna-se oportuna para que se
diferencie a imagem-atributo da chamada honra objetiva.
Direito à imagem e honra objetiva
Primeiramente, deve-se analisar as relações existentes entre o direito à imagem e o direito à honra, considerando-se esse último sob os prismas subjetivo
e objetivo, conforme lição clássica de Adriano de Cupis, assim redigida:
“A honra significa tanto o valor moral íntimo do homem, como a estima dos outros, ou a consideração social, o bom nome ou a boa fama, como, enfim, o sentimento
ou a consciência da própria dignidade pessoal.”116
Há, portanto, dois prismas para a análise do direito à honra: (i) o subjetivo, que enfoca o conceito que a pessoa constrói sobre si própria, ou seja, a sua
auto-estima; e (ii) o objetivo, relacionado com a consideração que terceiros
116
Adriano de Cupis. Os Direitos da
Personalidade. Lisboa, Livraria Morais
Editora, 1961; p. 111.
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88
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
possuem para com determinada pessoa, resultando, assim, no que se convencionou denominar “bom nome”, ou “boa fama”.
Muitos foram os autores pontificaram, como Ennecerus, na Alemanha, e
Coviello, na Itália, o entendimento de que o direito à imagem estaria subsumido no espectro do direito à honra. Essa tese logrou congregar inúmeras
adesões, uma vez que a honra constitui um aspecto moral freqüentemente
ofendido quando da violação do direito à imagem.117
O mesmo entendimento é partilhado, no Brasil, por Orlando Gomes.
O autor, quando da elaboração de seu projeto de Código Civil (Projeto nº
3771/66), fez inserir, no capítulo dedicado aos direitos da personalidade,
mais especificamente no artigo 36, §1º, a vinculação entre a reparação por
dano à imagem e a ocorrência de lesão à honra da vítima. Assim está redigido
o dispositivo em questão:
“Art. 36. Reprodução da imagem — A publicação, exposição ou utilização não
autorizada da imagem de uma pessoa podem ser proibidas a seu requerimento, sem
prejuízo da indenização a que fizer jus pelos danos sofridos.
§1º A proibição só se justifica se da reprodução resultar atentado à honra, à boafama ou à respeitabilidade da pessoa.”
Comentando o citado dispositivo em estudo sobre o Projeto de sua autoria, Orlando Gomes defende a tese de que, a princípio, não seria necessária
autorização para a divulgação de imagem alheia, sendo a mesma apenas protegida em seu momento patológico, e tão somente quando da lesão à imagem
derivar ofensa à honra da vítima, por exemplo. Conforme expõe o autor:
“Todo homem tem direito à própria imagem. Mas seria impraticável exigir a sua
autorização prévia para a publicação. Além de constituir um estorvo, nenhum cabimento teria a exigência, uma vez que, a mais das vezes a reprodução é inofensiva.
Inconveniente, portanto, estatuir que a publicação de sua imagem dependeria de sue
consentimento. A tutela desse direito há de orientar-se no sentido de reprimir o abuso
no seu exercício, permitindo-lhe que impeça a publicação, mas tão somente se, da
reprodução, resultar atentado à sua honra, boa fama e respeitabilidade.”118
Deve-se atentar para o fato de que podem ocorrer situações em que a
imagem da pessoa é violada, seja a imagem-retrato, ou a própria imagematributo, sem que se produza qualquer lesão à honra ou reputação gozada
pelo indivíduo. Honra e imagem são bens jurídicos correlatos, dado que se
referem ao aspecto moral da pessoa, contudo, os dois não se confundem.
Com relação à imagem-retrato, imagine-se que um determinado modelo fotográfico conceda autorização para que fotos suas sejam publicadas em
determinada revista. Ao se deparar com a publicação das mesmas em outro
117
Para alguns autores, como Edílson
Pereira de Farias, a defesa do direito à
honra foi o berço do direito à imagem,
que posteriormente ganhou autonomia
por suas particularidades (in Colisão de
Direitos. A honra, a intimidade, a vida
privada e a imagem versus a liberdade
de expressão e informação. Porto Alegre: Sérgio Fabris, 2ª ed., 2000; p. 121).
118
Orlando Gomes, Código Civil – Projeto Orlando Gomes. Rio: Forense, 1985;
p. 21. Note-se que o autor reviu o seu
posicionamento no que tange à necessidade de autorização para a divulgação de imagem, uma vez que, em breve
comentário sobre o tema, constante de
edições posteriores do seu Introdução
ao Direito Civil, o mesmo já preconizava
que a imagem de uma pessoa não pode
ser exposta ou reproduzida sem o seu
consentimento, salvo nos casos excepcionais, como notoriedade, interesse ou
evento público. Entretanto, com relação
à possibilidade de indenização pela reprodução indevida da imagem somente quando decorrer dano à honra da
pessoa, o entendimento constante de
seu Projeto permanece reproduzido (in
Introdução ao Direito Civil. Rio, Forense,
1996, 12ª ed.; p. 156).
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89
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
veículo de comunicação, distinto daquele com o qual se avençou a divulgação das fotos, está caracterizada à violação do direito à imagem. Note-se
que a utilização das fotografias para fins distintos daqueles contratados pode,
inclusive abonar a honra do sujeito lesado em seu direito à imagem. Para
que isso ocorra basta apenas que, na utilização não consentida das fotos, seja
ressaltada a reputação ilibada daquela pessoa.119
Assim, pode ocorrer violação da imagem pessoal sem que a honra sofra
qualquer prejuízo, gozando ainda o sujeito, muito pelo contrário, até mesmo
de lisonjeiros elogios por parte do terceiro que lhe lesiona o direito da personalidade em comento.
Relativamente à imagem-atributo, tome-se o exemplo de uma pessoa que
adota ostensivamente uma conduta contrária ao tabagismo, trabalhando, inclusive, em programas de conscientização sobre os males causados pelo fumo.
Caso a mesma seja surpreendida com a publicação de matéria jornalística que
a retrate, equivocadamente, como um fumante compulsivo, está caracterizada a lesão à imagem-atributo.
Nessa hipótese não há, novamente, qualquer ofensa à honra objetiva da
pessoa, pois o ato de fumar, ainda que cresça atualmente a divulgação de suas
conseqüências perniciosas, não implica em desonra para a pessoa. Todavia,
há no caso em tela uma ofensa à imagem-atributo, pois a matéria jornalística
contraria a conduta adotada pelo sujeito, retratando-o de forma ofensiva ao
seu comportamento.
Ainda que não analisada sobre esse prisma conceitual quando do seu efetivo julgamento pela Corte de Apelações do Primeiro Circuito norte-americana, o caso George Noonan e Marie Noonan vs. The Winston Company e
outros constitui um exemplo bastante semelhante à hipótese acima aventada,
envolvendo, ainda, a violação da imagem-retrato conjuntamente com a lesão
à imagem-atributo.
No caso em tela, George Noonan, um policial da cidade de Boston, que
há anos dedicava a sua vida à divulgação dos males causados pelo fumo, teve a
sua imagem captada, de forma não autorizada, por um determinado fotógrafo
que, posteriormente, cedeu a fotografia para uma agência de publicidade francesa. Essa agência utilizou a fotografia, que retrata o policial montado a cavalo,
em um comercial de cigarros que foi divulgado em diversas revistas francesas.
Ao tomar ciência do ocorrido, o policial moveu uma ação de indenização em
face da empresa para a qual trabalhava o fotógrafo à época, da agência publicitária francesa, e da empresa cujo cigarro foi objeto da publicidade.120
Têm-se, na hipótese acima, tanto a violação da imagem-retrato pela utilização não consentida de fotografia que retrata pessoa captada de forma igualmente desautorizada, como a lesão à imagem-atributo pela associação que
de imediato se operou entre a postura do policial, que sempre se posicionou
contra o tabagismo, e a marca de cigarros anunciada.
119
No mesmo sentido, vide Cláudio
Luiz Bueno de Godoy. A Liberdade de
Imprensa e os Direitos da Personalidade.
São Paulo, Atlas, 2001; p. 45.
120
Apelação nº 97-1132, julgada em
02.02.1998 (inteiro teor disponível no
site www.tobacco.org/Documents/
documents.html, consultado em
03.05.2002).
FGV DIREITO RIO
90
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Em síntese, percebe-se que tanto a imagem-retrato como a imagem-atributo se distanciam do conceito de honra, constituindo o dano à imagem uma
violação a um bem da personalidade autônomo. Não há, portanto, que se
atrelar necessariamente a responsabilização por dano à imagem com a ofensa à honra. A simples violação da imagem já impõe a devida indenização,
sendo a lesão concomitante à honra apenas mais um fator a ser levado em
consideração para a análise da extensão e gravidade do dano, bem como para
quantificação da indenização cabível.
Infelizmente, o novo Código Civil brasileiro, ao se apoiar no Projeto de
Orlando Gomes, produziu um retrocesso na disciplina do direito à imagem,
uma vez que, segundo consta da redação do artigo 20:
“Salvo se autorizadas ou necessárias à administração da justiça ou à manutenção
da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição, ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a
seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber se lhe atingirem a honra,
a boa-fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.”
O artigo acima reproduzido vincula a tutela do direito à imagem à necessidade de lesão à honra ou à utilização comercial da imagem obtida de forma
desautorizada. Nesse particular, a doutrina já se manifestou pela total inconveniência da redação do art. 20 do Código Civil, que não contempla todo
o trabalho doutrinário e jurisprudencial desenvolvido por décadas, no País,
em prol da afirmação — hoje reconhecida de forma unânime — do direito
à imagem.121
Adicionalmente, a redação do artigo parece conferir maior importância
para as situações excepcionais em que a imagem poderá ser utilizada por
terceiros (autorização, administração da justiça e ordem pública), do que afirmar uma tutela positiva do direito à imagem.
A desventura do artigo em que se cuida do direito à imagem no novo Código Civil não obsta, todavia, o entendimento pela autonomia do direito à
imagem e a sua reparação sem que seja necessária a violação de outro direito
da personalidade.
Dessa forma, outra não pode ser a conclusão do intérprete senão a de que
o dispositivo supracitado não possui força para restringir a ampla proteção
constitucionalmente consagrada. Ainda que ausente a ofensa à honra, permanece o direito de exigir a indenização devida pelo dano oriundo da utilização
não autorizada da imagem. Caso contrário, estar-se-ia sepultando a autonomia desse direito da personalidade, o que, certamente, não foi o desiderato
do legislador quando cuidou de inserir no texto do novo Código Civil um
capítulo inteiro dedicado aos direitos da personalidade, e dedicar um de seus
artigos ao tratamento do direito à imagem.
121
Criticando a redação do mencionado art. 20, por não contemplar a
autonomia do direito à imagem, vide
Gilberto Haddad Jabur. Liberdade de
Pensamento, cit.; pp. 126/127; Regina
Sahm. Direito à Imagem no Direito Civil
Contemporâneo. São Paulo, Atlas, 2002;
p. 236; e Zulmar Antonio Fachin. A Proteção Jurídica da Imagem. São Paulo,
Celso Bastos, 1999; p. 127.
FGV DIREITO RIO
91
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Não obstante, urge que se afirme a prevalência do tratamento concedido
ao direito à imagem pelo texto constitucional — que o positivou a sua autonomia — frente à redação equívoca do art. 20 do Código Civil, para que
se evite que um retrocesso de pelo menos trinta anos no desenvolvimento
doutrinário e jurisprudencial do assunto no País.
Direito à privacidade
O direito à privacidade também possui relações estreitas com o direito à
imagem, pois ambos partem do pressuposto de que um bem da personalidade individual deve ser resguardado com relação à intromissão de terceiros,
contudo, também nesse caso, os objetos de proteção são distintos.
Ao tratar do direito à privacidade, denominado em sua obra de “direito
ao resguardo”122, Adriano de Cupis define “resguardo” como o modo de ser
da pessoa que consiste na exclusão do conhecimento pelos outros daquilo
que se refere a ela somente. Dessa forma, o direito à imagem figuraria como
manifestação do direito ao resguardo, pois a utilização indevida da imagem
de outrem seria uma invasão na perspectiva da discrição pessoal.123
Existe, efetivamente um ponto de contato entre os dois direitos, principalmente no que tange à proteção do direito à imagem nos Estados Unidos,
dado que a apropriação de imagem alheia (appropriation) encontra-se, no entendimento da doutrina norte-americana, incluída como forma de violação
do chamado “right to privacy” ou “right to be let alone”.
Todavia, a proteção conferida à imagem se afasta da atinente à privacidade, pois o direito à imagem possui por escopo preservar especificamente a
fisionomia da pessoa e a sua reprodução, bem como os atributos que a caracterizam no trato social. Quando se autoriza a divulgação da imagem pessoal
para uma finalidade e a mesma é utilizada para fim diverso não há lesão à
privacidade, pois a divulgação do espectro pessoal já havia sido consentida.
Em tais hipóteses o bem da personalidade lesionado é a imagem da pessoa.
A usurpação da imagem também representaria, por sua vez, uma forma de
violar a imagem alheia sem lhe ferir a privacidade, pois ao se valer da imagem
de terceiro como sendo sua, o bem jurídico atacado pelo usurpador é apenas
a imagem.124
Aspectos da responsabilidade civil por dano à imagem
Superadas as questões de cunho conceitual atinentes ao direito à imagem,
e afirmada a sua plena autonomia frente aos demais direitos da personalidade, cumpre analisar alguns aspectos controvertidos sobre a responsabilidade
civil decorrente de dano à imagem.
122
A tradução portuguesa da obra de
De Cupis optou por traduzir o original,
em italiano, “riservatezza” por “resguardo”, pelo que a Seção II do livro citado
denomina-se “Direito ao Resguardo”.
123
Adriano de Cupis. Os Direitos da Personalidade, cit.; pp. 129/130.
124
Luiz Alberto David Araújo. A Proteção
Constitucional, cit.; p. 39.
FGV DIREITO RIO
92
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Ressalta Antonio Jeová Santos que o direito à imagem possui um duplo
aspecto, podendo ser enfocado em sua natureza positiva ou negativa. O aspecto positivo está consubstanciado na faculdade do indivíduo reproduzir ou
autorizar a reprodução de sua própria imagem. O aspecto negativo, por sua
vez, corporifica a possibilidade de o indivíduo obstar a reprodução indevida
de sua imagem.125
Entretanto, é válido lembrar que nem sempre será possível à pessoa cuja
imagem é captada ou divulgada impedir a realização de tais atividades. O
aspecto negativo do direito à imagem deve ser analisado à luz de determinadas circunstâncias que retiram o caráter de ilicitude do ato de captação e
divulgação da imagem alheia, sendo vedado ao titular do direito à imagem
impedir a sua projeção.
Outrossim, salvo nas hipóteses em que são permitidas a captação e a divulgação da imagem sem o prévio consentimento de seu titular, haverá ofensa ao
direito da personalidade em tela, sendo devida a reparação por danos morais
e patrimoniais, conforme o caso.
Da violação do direito à imagem podem surgir danos materiais e morais
A violação do direito à imagem ocorre quando os aspectos fisionômicos
ou os atributos sociais de uma pessoa são utilizados por terceiros sem que seja
concedida a devida autorização. Em tais hipóteses, caso não estejam presentes as causas excludentes da ilicitude da utilização inconsentida da imagem,
configura-se de plano a lesão a um direito da personalidade, gerando, assim, a
responsabilidade civil por dano moral do agente, podendo ainda advir prejuízos de natureza patrimonial para a vítima, o que demandará, adicionalmente,
a indenização por danos materiais.
É importante frisar que da mesma lesão pode advir o dever de reparação
pelas duas categorias de dano, sendo ambas autônomas e consideradas de
modo separado para fins de quantificação do prejuízo a ser indenizado.
Quando uma pessoa contrata com terceiros a utilização de sua imagem,
ela está dispondo de um direito da personalidade, fazendo valer a peculiaridade do direito à imagem consistente na faculdade de se permitir a sua exposição, mediante remuneração. Assim, o direito à imagem, diferentemente da
maior parte dos direitos da personalidade, pode ser manejado pelo seu titular
como forma de auferir vantagens patrimoniais.
Dada a sua singularidade, não é permitido que a imagem de terceiro seja
explorada sem o respectivo consentimento do mesmo por dois motivos: (i)
porque a imagem é um bem integrante da personalidade, possuindo assim um
caráter existencial, ao operar a projeção da fisionomia e dos atributos comportamentais da pessoa no meio social; e (ii) porque, ao lado seu caráter extrapa-
125
Antonio Jeová Santos, Dano Moral
Indenizável, cit.; p. 388.
FGV DIREITO RIO
93
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
trimonial, a pessoa pode dispor de sua imagem, autorizando a sua exposição
em casos particulares, recebendo, em contrapartida, a devida remuneração.
A partir dos dois motivos acima elencados para a vedação da projeção
desautorizada da imagem, percebe-se a sua correlação imediata com as duas
modalidades de responsabilidade civil. Dessa forma, deve o titular da imagem indevidamente captada ou veiculada ser indenizado por danos morais,
uma vez que a imagem é um bem da personalidade, podendo ainda a sua
lesão implicar em ofensa a outros direitos da personalidade, como a honra
e a privacidade; e por danos patrimoniais, quando a violação proporcionar
prejuízos de ordem pecuniária.
O dano moral por ofensa ao direito à imagem (danun in re ipsa)
A configuração do dano patrimonial originado de lesão do direito à imagem não comporta maiores perplexidades de natureza teórica, uma vez que
se compreende que a veiculação desautorizada da imagem pessoal pode gerar prejuízos de ordem pecuniária, cabendo a indenização tanto pelos danos
emergentes como pelos lucros cessantes.
Sendo o direito à imagem um direito da personalidade peculiar, por permitir ao seu titular dispor, em certa medida, do mesmo, pode-se facilmente
entrever que quando se capta ou se projeta a imagem pessoal sem que se proceda à requerida autorização, a pessoa, em regra, sofre uma perda de natureza
patrimonial, pois está deixando de auferir os ganhos pecuniários que a exposição de sua imagem lhe renderiam, caso a sua autorização fosse solicitada.
Outros danos de natureza patrimonial podem surgir da utilização desautorizada da imagem, como a exposição da imagem pessoal que venha a obstar
futuras autorizações para a projeção da fisionomia ou a utilização comercial de
determinados atributos da pessoa. Trata-se da hipótese, já mencionada, em que
a fisionomia de uma modelo resta vinculada ao produto anunciado, sem que se
busque o seu consentimento quanto à divulgação em tais circunstâncias.
Já o dano moral decorrente de violação do direito à imagem tem motivado
reiteradas discussões em sede doutrinária e jurisprudencial. A principal controvérsia diz respeito ao entendimento de que o dano moral decorreria diretamente da lesão ao direito à imagem, gerando o dever de indenizar apenas
pela utilização desautorizada da imagem de terceiro.
O entendimento de que o dano moral emergente da infração ao direito
à imagem resulta da própria captação ou divulgação não consentida da imagem está lastreado na compreensão de que o direito à imagem é um direito da
personalidade autônomo, independendo para a sua violação que seja igualmente perpetrada ofensa a qualquer outro direito da personalidade.
FGV DIREITO RIO
94
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Com efeito, o reconhecimento de que a simples utilização desautorizada
da imagem gera o dever de indenizar ratifica o entendimento de que o direito
à imagem constitui um direito da personalidade autônomo, não se fazendo
necessário a análise sobre a possível lesão a outros direitos da personalidade,
como a honra ou a privacidade. Conforme assevera Ricardo Luiz Lorenzetti,
a divulgação de imagem não consentida:
“(...) pode configurar-se um fato antijurídico, ainda que não exista atentado à
honra, ou à identidade dinâmica, ou à privacidade, mas em forma autônoma pela
utilização não autorizada da imagem.”126
Dessa forma, a mera utilização inconsentida da imagem gera o dever de
indenizar por danos morais, pouco importando que a projeção da imagem
tenha se dado de forma não injuriosa, não atentatória à reputação da pessoa.
Conforme ressaltado anteriormente, o próprio ato ilícito pode até mesmo
abonar a conduta do titular da imagem utilizada, tecendo elogios e louvando
o seu bom caráter. Nada disso afasta o dever de indenizar.
Nessa direção já decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“Direito à imagem — Indenização — Ato ilícito — Publicação não autorizada
de fotos de renomado ator de televisão em catálogo promocional de empresa de vestuário — Reparação devida, mormente se houve a intenção de explorar e usufruir
vantagem — Irrelevância de que tal divulgação não tenha sido desprestigiosa.”127
Uma vez caracterizado o dano moral pela utilização indevida da imagem,
a ofensa aos demais direitos da personalidade apenas influi na quantificação
do dano a ser indenizado. A averiguação da ofensa à honra, por exemplo,
quando da violação do direito à imagem, cumpre o papel de influir em prol
da vítima na quantificação da indenização de natureza moral que lhe será
devida, onerando a carga indenizatória que recai sobre o agente do evento
ilícito previamente configurado.
Sobre a inclusão da ofensa a outros direitos da personalidade na quantificação do dano moral por utilização desautorizada da imagem alheia, assevera
Antonio Jeová Santos que: “[s]e, de par à violação do direito à imagem, autonomamente considerado, advier lesão à intimidade, à honra ou à identidade
pessoal, todas essas circunstâncias deverão ser sopesadas pelo juiz no momento
de estimar o quantum indenizatório, devendo aumentá-lo, porque outros bens
personalíssimos foram atingidos, além da indevida captação da imagem.”128
Têm-se assim que o dano causado à imagem constitui uma hipótese de
dano in re ipsa, ou seja, o dano moral ocorre sem que se faça necessária uma
incursão pelos prejuízos efetivamente causados pela atividade lesiva.129 A ave-
126
Ricardo Luiz Lorenzetti, Fundamentos do Direito Privado, cit.; p. 486.
127
Apelação Cível nº 91.030.4/2,
rel. Des. Testa Marchi, julgado em
11.05.2000; in RT nº 782 (dez/2000);
pp. 236/238. O mesmo Tribunal já
adotou entendimento diametralmente
contrário, decidindo que a divulgação
desautorizada de imagem, que não
cause humilhação ou exponha a pessoa
de modo ridículo ou ofensivo, não gera
o dever de indenizar por danos morais.
Da prática pura e simples de ato ilícito
não poderia ser presumida a existência
de dano moral. (in Apelação Cível nº
244316-1/6-00, rel. Des. Aldo Magalhães, julgado em 01.04.1996; in RT
730 (ago/96); pp. 220/221).
128
Antonio Jeová Santos, Dano Moral
Indenizável, cit.; pp. 387/388.
129
Nesse sentido, vide Carlos Alberto
Bittar. Reparação Civil por Danos Morais.
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1994,
2ª ed.; pp. 202/205
FGV DIREITO RIO
95
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
riguação relativa ao resultado da violação do direito à imagem apenas será
necessária para a quantificação da verba indenizatória.
Ao comentar a teoria do dano moral in re ipsa, vale transcrever o entendimento de Sergio Cavalieri Filho, segundo o qual:
“Nesse ponto a razão se coloca ao lado daqueles que entendem que o dano moral
está ínsito na própria ofensa, decorre da gravidade do ilícito em si. (...) Em outras
palavras, o dano moral existe in re ipsa; deriva inexoravelmente do próprio fato ofensivo, de tal modo que, provada a ofensa, ipso facto está demonstrado o dano moral à
guisa de uma presunção natural, uma presunção hominis ou facti, que decorre das
regras de experiência comum; provado que a vítima teve o seu nome aviltado, ou a
sua imagem vilipendiada, nada mais ser-lhe-á exigido provar, por isso que o dano
moral está in re ipsa; decorre inexoravelmente da gravidade do próprio fato ofensivo,
de sorte que, provado o fato, provado está o dano moral.”130
A jurisprudência pátria vem, paulatinamente, adotando esse entendimento, ainda que de forma não uniforme. Isto se dá na medida em que diversas
decisões tem sido proferidas no sentido de que o dano, na hipótese de lesão
à imagem, surge com a sua simples utilização desautorizada. Todavia, nem
sempre se explicita a que título será realizada a indenização: se por danos
materiais, ou morais.
O Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do Recurso Especial nº
138.883/PE, esposou a tese do dano in re ipsa para indenização de violações
à imagem. Segundo consta da redação do acórdão:
“Cuidando-se de direito à imagem, o ressarcimento se impõe pela só constatação
de ter havido a utilização sem a devida autorização. O dano está na utilização
indevida para fins lucrativos, não cabendo a demonstração do prejuízo material ou
moral. O dano, neste caso, é a própria utilização para que a parte aufira lucro com
a imagem não autorizada de outra pessoa. Já o colendo Supremo Tribunal Federal
indicou que a ‘divulgação da imagem da pessoa, sem o seu consentimento, para fins
de publicidade comercial, implica em locupletamento ilícito à custa de outrem, que
impõe a reparação do dano.’”131
No julgamento do Recurso Especial nº 23.575/DF, no qual se pleiteava
danos materiais e morais em decorrência de acidente de trânsito, o entendimento de que o dano moral se origina da própria lesão terminou por prevalecer, conforme consta do voto do relator:
130
Sergio Cavalieri Filho. Programa de
Responsabilidade Civil, cit.; p. 80.
“A concepção atual da doutrina orienta-se no sentido de que a responsabilização
do agente causador do dano moral opera-se por força do simples fato da violação
(danum in re ipsa). Verificado o evento danoso, surge a necessidade da reparação, não
131
Recurso Especial nº 138.883/PE, rel.
Min. Carlos Alberto Menezes Direito,
julgado em 04.08.1998, in Revista
do Superior Tribunal de Justiça nº 116
(abr/99); pp. 215/220.
FGV DIREITO RIO
96
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
havendo que se cogitar da prova do prejuízo, se presentes os pressupostos legais para
que haja a responsabilidade civil (nexo de causalidade e culpa).”132
Mais recentemente, o Superior Tribunal de Justiça manifestou-se pela
ocorrência de dano moral a ser indenizado pelo simples ato de utilização inconsentida da imagem. Do julgamento proferido pela Quarta Turma, colhese a seguinte ementa:
“Direito à imagem — Violação — Ação de reparação de danos morais.
“Evidenciada a violação do direito à imagem, resulta daí o dever de indenizar os
danos morais sofridos, não havendo que se cogitar da prova do prejuízo.
“A pretensão de exame de cláusula contratual e de aspectos fáticos-probatórios é
inviável em sede de recurso especial (súmulas 05 e 07 do STJ)”133
Expressando de forma contundente esse entendimento, o Ministro Ruy
Rosado de Aguiar, em voto proferido no Recurso Especial nº 46.420-0/SP,
explicita que naqueles autos:
“[a]legou-se a inexistência de prejuízo, indispensável para o reconhecimento
da responsabilidade civil das demandadas. Ocorre que o prejuízo está na própria
violação, na utilização do bem que integra o patrimônio jurídico personalíssimo
do titular. Só aí já está o dano moral. Além disso, também poderia ocorrer o
dano patrimonial, pela perda dos lucros que tal utilização poderia acarretar, seja
pela utilização feita pelas demandadas, seja por inviabilizar ou dificultar a participação em outras atividades do gênero.”134
Dessa forma, o dever de indenizar por danos morais surge com a simples
utilização desautorizada da imagem alheia. Os danos patrimoniais decorrentes serão analisados em um segundo momento, sendo a ofensa a demais direitos da personalidade igualmente perquirida para que se determine o valor
a ser indenizado, também a título de danos morais.
Oportunamente, cumpre destacar que, segundo aponta Maria Celina
Bodin de Moraes, a teoria do dano moral in re ipsa, apesar de sua expressiva adoção no Superior Tribunal de Justiça, deve ser aplicada com a
cautela. Isso porque a sua adoção irrestrita pode incentivar a propagação
de um entendimento subjacente “de que o dano moral sofrido pela vítima
seria idêntico a qualquer evento danoso semelhante sofrido por qualquer
vítima.”135
Sendo assim, a teoria do dano in re ipsa pode gerar repercussões prejudiciais para a tutela integral da pessoa humana, e particularmente para o direito
à imagem, caso se entenda que, se o dano moral deriva da lesão a direito da
personalidade, toda lesão semelhante poderá ser reparada de acordo com a
132
Recurso Especial nº 23.575/DF, rel.
Min. César Asfor Rocha, julgado em
09.06.1997; in RSTJ nº 98 (out/97); pp.
270/276.
133
Agravo Regimental no Agravo nº
162.918/DF, rel. Ministro Barros Monteiro, julgado em 06.06.2000; in Revista
de Direito Privado nº 06 (abr-jun/2001);
pp. 257/258.
134
Recurso Especial nº 46420-0/SP, rel.
Ministro Ruy Rosado Aguiar, julgado
em 12.09.1994; in RSTJ nº 68 (abr/95);
pp. 358/366.
135
Maria Celina Bodin de Moraes, Danos
à Pessoa Humana, cit.; p. 161.
FGV DIREITO RIO
97
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
mesma quantificação, perdendo-se o lastro com as circunstâncias dos casos
concretos e com a individualidade de cada vítima.
A responsabilidade independe do resultado financeiro decorrente da violação
O resultado financeiro obtido pelo agente causador da lesão ao direito à
imagem não é relevante para determinar a procedência ou a improcedência
da respectiva indenização. Auferindo um lucro retumbante, ou amargando
um prejuízo lastimável, caberá ao titular da imagem indevidamente utilizada
pleitear a indenização pelos danos sofridos.
Não se requer, assim, que o ofendido demonstre que o agente lucrou efetivamente com a divulgação não consentida da sua imagem, podendo o mesmo sofrer até mesmo prejuízo quando da exploração almejada.
Explicita o Ministro Rui Rosado de Aguiar que não se pode confundir
o dano experimentado pelo indivíduo lesado com o resultado da lesão em
termos econômicos para o infrator. Em julgamento de caso envolvendo a publicação da imagem de jogadores de futebol em álbum de figurinhas sem os
respectivos consentimentos, cuja relatoria coube ao referido Ministro, assim
decidiu o Superior Tribunal de Justiça:
“Direito à Imagem — Ação indenizatória — Imagem indevidamente incluída
em publicação — Limitação do valor do dano sofrido pelo titular do direito ao lucro
que uma das infratoras possa ter sofrido — Inadmissibilidade.”
“O valor do dano sofrido pelo titular do direito, cuja imagem foi indevidamente
incluída em publicação, não está limitado ao lucro que uma das infratoras possa ter
auferido, pois o dano do lesado não se confunde com o lucro do infrator, que inclusive
pode ter sofrido prejuízo com o negócio.”136
Adicionalmente, cumpre lembrar que, se o resultado econômico da projeção desautorizada da imagem não determina o dever de indenizar, em nada
altera a conformação da responsabilidade civil o fato de não possuir a divulgação intuito de lucro. Nesse sentido, assim decidiu o Tribunal de Justiça do
Estado de São Paulo:
“Direito de Personalidade — Direito à própria imagem — Violação — Utilização de fotografia em editorial de revista dirigido a determinada classe de consumidores sem autorização do fotografado — Inadmissibilidade — Irrelevância de não
haver lucro direto nessa divulgação — Indenização devida — Verba a ser arbitrada
por perito ligado ao ramo publicitário”137
136
Recurso Especial nº 100.764/RJ, rel.
Min. Ruy Rosado de Aguiar, julgado em
24.11.1997, in RT nº 752 (jul/98); pp.
192/196.
137
Apelação Cível nº 91.688-1, rel. Des.
Jorge Tannus, julgada em 18.02.88; in
RT 629 (mar/88); pp. 106/107.
FGV DIREITO RIO
98
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Da mesma forma, pronunciou-se o Tribunal de Justiça do Estado do Rio
de Janeiro em processo no qual a defesa apresentada pela ré, acusada de divulgar foto da autora sem o seu consentimento, postulava que a revista em que
se deu o ato ilícito não possuía finalidade lucrativa:
“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Reprodução desautorizada de fotografia em revista — Indenização devida.”
“A pessoa fotografada tem direito autônomo à indenização, pelo uso inconsentido
da sua imagem, ainda quando a publicação da fotografia tenha sido feita sem finalidade lucrativa.”138
Conclui-se, portanto, que o resultado econômico obtido pelo agente do
ato ilícito não determina o dever de indenizar o titular a imagem utilizada de
forma inconsentida, podendo até mesmo o infrator não visar a obtenção de
lucro com a violação do direito da personalidade em tela.
Autorização para a veiculação da imagem
A veiculação da imagem pode ser autorizada pelo seu titular de forma
expressa ou tácita. Em ambas as hipóteses, o consentimento relativo à disposição do direito da personalidade deve restar extreme de dúvidas quanto a sua
existência, validade e amplitude.
A oportunidade em que o consentimento poderá ser proferido tanto pode
ocorrer previamente como posteriormente à utilização da imagem em si.
Apesar de ser mais usual a obtenção da autorização anteriormente à efetiva
captação/divulgação da imagem — o que é recomendável, por um dever de
cautela, já que se está dispondo de um direito da personalidade — a ratificação do ato por parte do titular da imagem é possível, se as circunstâncias
assim o permitirem.
O consentimento presumido é, sem dúvida, a questão mais controvertida
no que tange à autorização para a utilização da imagem por terceiro. Essa forma
de consentimento poderá ser obtida através do silêncio do titular do direito
à imagem quando lhe for apresentada a oportunidade para manifestar a sua
discordância. A análise das circunstâncias pertinentes à hipótese sempre se fará
necessária para que se possa evitar que atos ilícitos sejam chancelados pelo Direito, admitindo-se a existência de uma autorização que, na verdade, inexistiu.
Nesse particular, bem decidiu o Tribunal de Justiça do Estado de Minas
Gerais, no seguinte julgado:
138
Embargos Infringentes nº 177/95,
rel. Des. Wilson Marques, julgado em
28.02.1996, in RT nº 732 (out/96); pp.
361/364.
FGV DIREITO RIO
99
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Violação”
“Não constitui ofensa ao direito à própria imagem a reprodução de fotografia,
para fins publicitários, havida com o consentimento do interessado, ainda que tácito,
podendo ser assim considerado ante o silêncio deste, corroborado por indícios e circunstâncias que autorizem presumir a sua aquiescência.”139
Da mesma forma, a pessoa que aparece em público acompanhada de um
indivíduo de notoriedade no meio social concede autorização tácita no que
concerne à exposição de sua imagem. Conforme ressaltado por Antonio Chaves, a notoriedade do acompanhante resulta de imediato na aquiescência das
conseqüências que advêm de seu amplo reconhecimento popular, tais como
a exceção relativa à utilização de sua imagem com finalidade informativa.140
No que concerne à interpretação do consentimento, cumpre destacar que
a doutrina e a jurisprudência, em uníssono, proclamam que o consentimento
para veiculação da imagem deve sempre ser interpretado de forma restritiva, sendo vedado ampliar o escopo da disposição de um bem pertencente à
esfera da personalidade. Conseqüentemente, o consentimento dado para a
veiculação da imagem no cinema não pode ser estendido para a sua utilização
através de outros meios, como a televisão, por exemplo.141
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou sobre a questão, em caso
no qual uma modelo posou para a elaboração de peças publicitárias de uma
empresa de tecidos, tendo sido as fotos utilizadas, anos depois, em revista
especializada em tricot.142
Deve-se atentar ainda para as hipóteses de disposição gratuita do direito
à imagem. Nesses casos a jurisprudência deve apreciar as autorizações com
rigor para impedir que o produto do trabalho consentido sem repercussão
financeira não fique para todo o sempre disponível ao uso de terceiros, podendo o titular da imagem retroceder em sua concessão.
Enfrentando um caso símile à hipótese acima, o Tribunal de Justiça de São
Paulo decidiu que:
“O direito à imagem é um direito personalíssimo, que permite utilização patrimonial pelo próprio titular ou por terceiro, mediante cessão gratuita ou onerosa
do direito à utilização (não do próprio direito à imagem). Mas a cessão gratuita
fica sempre sob suspeita, pois, como se sabe, o Direito tem cautela especial em regrar
os atos de liberalidade, como se vê, por exemplo, das hipóteses que toleram o arrependimento; que proíbem os contratos preliminares; que admitem a revogação; que
impõem a interpretação restritiva, etc. E tal cautela mais se justifica quando está em
jogo um direito personalíssimo.”143
Afora a hipótese de autorização para a divulgação da imagem, existem
casos em que a utilização da imagem da pessoa por terceiros será permitida,
139
Tribunal de Justiça de Minas Gerais,
3ª Câmara Cível, rel. Des. Tenisson Fernandes, j. em 04.05.94. Vide Revista
dos Tribunais nº 715 (mai/1995); pp.
248/253.
140
Antonio Chaves, Tratado de Direito
Civil, t.I, cit.; p. 541.
141
Vide, dentre outros: Caio Mário da
Silva Pereira, Direito Civil – Alguns Aspectos da sua Evolução. Rio, Forense,
2001; p. 30 e Antonio Chaves, Tratado
de Direito Civil, t.I, cit.; p. 542.
142
Recurso Extraordinário nº 115.838/
SP; rel. Min. Carlos Madeira, j. em
10.95.1988. Vide Revista Trimestral de
Jurisprudência nº 125; pp. 1338/1343.
143
In JTJ-Lex nº 147/120.
FGV DIREITO RIO
100
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
mesmo sem o seu consentimento. Em tais circunstâncias, a própria conduta
prévia do indivíduo cria uma exceção à ilicitude do ato de captação/utilização
da imagem. Trata-se dos casos de pessoas que, por ocuparem cargos públicos, possuem a sua esfera de proteção do direito à imagem reduzida, quando
atrelada a finalidades informativas, ocorrendo o mesmo com pessoas notórias
de toda a sorte. A decisão sobre a ocorrência ou não de violação de imagem
nesses casos dependerá de uma análise mais cuidadosa sobre a colisão entre
os direitos de imagem e liberdade de expressão, tratada no capítulo seguinte.
O direito à imagem do de cujus
A legislação brasileira, assim como a internacional, dispõe sobre a legitimidade de parentes e cônjuges para reclamar indenização por ofensa à imagem
de pessoa falecida. No centro dessa questão encontra-se a problemática de se
reconhecer a possibilidade de extensão dos efeitos dos direitos da personalidade para além da própria existência de seu titular.
O debate ganha relevância quando contextualizado em situações nas quais
a imagem de pessoa falecida é explorada, por vezes, com abuso ou exagero.
Diversos são os casos em que tais desmedidas chegam a ocorrer no próprio
velório, como se passou nas cerimônias fúnebres do general alemão Bismarck
e do pintor brasileiro Di Cavalcanti.144
O Código Civil trata dessa legitimação em dois momentos distintos: (i) a
primeira vez no parágrafo único do art. 12, cujo caput dispõe sobre a tutela
dos direitos da personalidade; e (ii) a segunda no parágrafo único do art. 20,
que trata do direito à imagem, conforme já comentado.
O parágrafo único do art. 12 apresenta enunciado mais abrangente, não
apenas por dispor sobre a legitimidade para reclamar por lesões aos direitos da
personalidade de modo geral (e não apenas ao direito à imagem), mas também
por constar do rol de legitimados qualquer parente em linha reta, ou colaterais
até o quarto grau. Assim está redigido o mencionado dispositivo legal:
“Art. 12. Pode-se exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade,
e reclamar perdas e danos, sem prejuízo de outras sanções previstas em lei.
Parágrafo único. Em se tratando de morto, terá legitimação para requerer a medida prevista neste artigo o cônjuge sobrevivente, ou qualquer parente em linha reta,
ou colateral até o quarto grau.”
Já o parágrafo único do art. 20 está exclusivamente relacionado com a tutela do direito à imagem, sendo apenas legitimados o cônjuge, os ascendentes
ou os descendentes:
144
Sobre a celeuma instaurada no velório do pintor Di Cavalcanti pelo cineasta
Glauber Rocha, que pretendia filmar
a cerimônia para a inclusão em documentário que produzia à época sobre a
vida do pintor, vide o relato de Antonio
Chaves (in Tratado de Direito Civil, t.I.,
cit.; p. 550/552).
FGV DIREITO RIO
101
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à
manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou
a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem
a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas
para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”
Em decorrência dessa duplicidade, quase total, entre os dois parágrafos,
Maria Helena Diniz propôs, em seus comentários ao texto do Código Civil,
que o parágrafo único do art. 20 fosse retirado.145 Todavia, enquanto nenhuma alteração legislativa for efetuada, vigoram no País dois regimes distintos
no que concerne à legitimação para defesa de direitos da personalidade do de
cujus, sendo o rol mais restrito com relação ao direito à imagem.
No campo teórico, diverge a doutrina sobre a natureza do direito pleiteado pelos herdeiros do falecido. Sustenta Walter Moraes que o direito à imagem, enquanto direito da personalidade, extingue-se com a morte da pessoa.
Aos herdeiros caberia um direito sobre as reproduções, de natureza imaterial.
Assim, os parentes e demais pessoas designadas defenderiam não um direito
cuja titularidade pertencesse ao de cujus, mas sim um direito próprio.146
Entendimento semelhante é partilhado por Luiz Alberto David Araújo,
segundo o qual o direito à imagem surge com o nascimento da pessoa e se
extingue com o seu falecimento. Os herdeiros do de cujus apenas se valeriam
da imagem da pessoa falecida como suporte para o pleito indenizatório decorrente de lesão a seus próprios direitos da personalidade.147
Para outra parcela da doutrina, seria possível aos herdeiros gozar de legitimidade para preservar a imagem do de cujus, defendendo não um direito
próprio, mas sim o próprio direito da pessoa falecida. Há, para esses autores,
uma exceção ao princípio mors omnia solvit, estendendo a efetividade do direito à imagem para além do término da vida de seu titular.
Dessa forma, ressalta Jacqueline Sarmento Dias que existe a possibilidade
de transmissão aos herdeiros do direito à imagem da pessoa falecida.148 Diogo
Leite de Campos, por seu turno, defende a hipótese de transmissão do direito
à imagem aos herdeiros, não atuando os mesmos em interesse próprio, mas
sim em nome da pessoa falecida. A aquisição do direito post-mortem seria caracterizada, portanto, como uma manifestação da personalidade jurídica do
de cujus e dos interesses que lhe estão subjacentes.149
Ao largo dessa discussão teórica, é importante notar que na positivação
da legitimidade dos herdeiros para a defesa da imagem de pessoa falecida,
ambos os parágrafos referidos não mencionam a inserção do companheiro,
ou companheira, do de cujus no rol dos legitimados para esse fim. A omissão
legislativa, nesse particular, deverá ser suprida pela interpretação favorável à
145
In Ricardo Fiúza (coord). Novo Código
Civil Comentado. São Paulo, Saraiva,
2003; p. 33.
146
In “Direito à Própria Imagem - II”,
Revista dos Tribunais nº 444 (out/72);
pp. 26/27. No mesmo sentido, e já
analisando a questão à luz do texto do
novo Código Civil, vide os comentários
de Maria Helena Diniz, in Ricardo Fiúza
(coord.) Novo Código Civil Comentado,
cit.; p. 25; e Renan Lotufo, Código Civil
Comentado, vol. I, cit.; p. 81.
147
In A Proteção Constitucional, cit.; pp.
87/88.
148
In O Direito à Imagem, cit.; p. 122.
149
In “Lições de Direitos da Personalidade”, Boletim da Faculdade de Direito,
Coimbra: Universidade de Coimbra,
1991; p. 191.
FGV DIREITO RIO
102
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
inclusão dessas figuras como pessoas legitimadas para requerer a tutela do
direito à imagem do companheiro, ou companheira, já falecido.150
A violação da imagem na Internet
Uma última consideração deve ser feita sobre a tutela do direito à imagem na Sociedade da Informação, mais especificamente na rede mundial de
computadores. A Internet possibilita uma ampliação inédita no alcance da
comunicação entre pessoas, acelerando o tempo de resposta a mensagens e
propiciando que a informação constante de uma página eletrônica seja acessada por pessoas em qualquer lugar do mundo.
Essa peculiaridade da dinâmica de comunicação entre pessoas na Sociedade da Informação apresenta um impasse relevante — e ainda por solucionar
— no que toca à proteção da imagem: a insuficiência de meios técnicos para
obstar a propagação do dano e prover a vítima com a reparação integral da
violação sofrida em seu direito da personalidade.
Cumpre então explicitar em que consiste o impasse acima referido. A melhor forma de se compreender o tema parece ser através da análise de alguns
casos concretos que chegaram à imprensa envolvendo a utilização não consentida da imagem alheia na rede mundial de computadores.151
Nessas situações, uma ou mais fotos de uma pessoa foram divulgadas na
Internet sem o seu consentimento, estando geralmente associadas a sites de
conteúdo adulto.
Abstraindo-se as particularidades de cada caso, é importante que se indague qual a solução é disponibilizada pelo Direito para que o dano à imagem,
se existente em tais circunstâncias, seja reparado.
O manejo da responsabilidade civil no caso em tela não atende ao princípio da ampla reparação da vítima, pois apenas lhes proporcionaria uma
indenização pecuniária em face de quem efetivamente divulgou as fotos na
rede mundial de computadores. E ainda que a decisão judicial que condene
os eventuais responsáveis pelo dano os obrigue a cessar a prática lesiva, seja
com a interrupção do envio de mensagens eletrônicas, ou com a retirada do
ar dos sites que divulgam as fotos, o dano à imagem persiste.
Note-se que uma vez enviado uma mensagem eletrônica, o remetente não
possui meios de impedir o seu encaminhamento posterior por parte do destinatário inicial para novos destinatários. Assim, o impasse mencionado anteriormente mostra-se evidente quando, ainda que a vítima obtenha reparação
em face do responsável original pela divulgação do material ilícito, o dano à
sua imagem continua a ser agravado em cada encaminhamento da mensagem
eletrônica lesiva.
150
Vide Silvio de Salvo Venosa. Direito
Civil, vol. I. São Paulo, Atlas, 3ª ed.,
2003; p. 154.
151
Vejam-se alguns exemplos de notícias publicadas em jornais ou revistas
nos últimos anos: “Foto de jovem em
busca de namorado vira anúncio pornô na Web” (Folha de São Paulo - in
http://www1.folha.uol.com.br/folha/
informatica/ult124u11571.shtml
acessada em 30.07.2005); “Pesadelo
na Internet: Jovem posa nua para namorado e vê sua imagem ser explorada
pela mídia mundial” (Revista Isto É - in
http://www.zaz.com.br/istoe/comport/1999/12/16/009.htm - acessada
em 30.07.2005); “Big Brother baixa na
festa da FGV: fotos de casais em cenas
de namoro e sexo são divulgadas pela
Internet (Jornal Último Segundo,
veiculado pelo provedor IG - in http://
ultimosegundo.ig.com.br/useg/brasil/
artigo/0,,920373,00.html - acessada
em 30.07.2005); “Ex-ministra da economia aparece num site à procura de
um companheiro, nega ter sido ela,
mas não retira o anúncio da Internet”
(Revista Isto É Gente - in http://www.
terra.com.br/istoegente/93/reportagem/zelia_cardoso.htm - acessada em
30.07.2005); e “Modelos brasileiras
são vítimas de sites de garotas de programa” (Folha de São Paulo - in http://
www1.folha.uol.com.br/folha/informatica/ult124u11779.shtml - acessada
em 30.07.2005).
FGV DIREITO RIO
103
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Acrescente-se que, em se tratando da rede mundial de computadores, o
material ilícito pode transitar em questão de segundos por diversos países,
alcançando o dano proporções cujo tratamento ainda carece de maior discussão de natureza jurídica.
Com essa breve reflexão encerra-se o capítulo sobre a tutela de direito
à imagem na Sociedade da Informação, expondo-se como a mudança nas
práticas de comunicação entre pessoas e na transmissão de dados demandam
uma revisão em conceitos já consolidados para a mais ampla proteção da
imagem, em ambos os perfis previamente trabalhados.
2. CASO GERADOR
Sylmara Rocha é a nova namoradinha do Brasil. Em apenas dois anos ela
largou a vida de modelo-manequim e tornou-se uma das maiores estrelas da
televisão brasileira. Novelas, mini-séries, entrevistas em talk-shows, propaganda
de cremes hidratantes: ela está em todas. Para coroar o seu apogeu no firmamento
estrelado da mídia brasileira, Sylmara resolveu, finalmente, aceitar o convite daquela famosa revista masculina para realizar um ensaio de nu artístico.
O Brasil parou no dia em que as revistas que traziam o ensaio de Sylmara
chegaram às bancas. O afluxo de pessoas às bancas de jornal foi estarrecedor. Especialmente se levarmos em conta que a edição da revista tinha até pôster duplo
encartado e custava vinte e cinco reais, ou seja, um preço bastante salgado para
boa parte da multidão interessada.
No dia seguinte à publicação da revista masculina, qual não foi a surpresa de
Sylmara ao saber — para a felicidade de muitos — que o jornal “Vingador Popular”, conhecido por sua ampla cobertura de crimes atrozes e fofocas envolvendo
celebridades, havia publicado uma das fotos constantes do ensaio fotográfico veiculado pela revista masculina. E lá estava ela, vestindo apenas uma gargantilha
de cristais multicoloridos, tendo ao fundo o cenário paradisíaco de uma praia
particular em Pernambuco. Não havia sequer uma menção sobre o motivo da
fotografia constar naquele tão ilustre periódico popular. Ao lado da foto, a notícia
de um crime bárbaro. Logo abaixo, a programação de filmes para o dia na televisão aberta.
Durante a semana não se falou de outra coisa. O apresentador de um programa vespertino dedicado às senhoras donas de casa chegou até mesmo a comentar
que não haveria problema algum com a publicação das fotos de Sylmara no
“Vingador Popular”. Segundo o apresentador, Sylmara é uma atriz, e, conseqüentemente, figura pública.
Com base no caso acima, e após ter lido as reportagens e os dispositivos legais
indicados, dê a sua opinião sobre as seguintes questões:
FGV DIREITO RIO
104
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
1) Poderia o jornal “Vingador Popular” publicar a foto da atriz em suas
páginas? Em caso afirmativo, qual seria o fundamento que legitima
essa publicação? Em caso negativo, qual seria o direito da atriz que
estaria sendo violado nesse caso?
2) Imagine agora que a foto do ensaio fotográfico de Sylmara tenha sido
publicada não no “Vingador Popular”, mas sim no famoso jornal francês “Le Monde Diplomatique”. Essa circunstância altera a resposta que
você deu na pergunta acima?
3) E se a fotografia de Sylmara fosse usada por uma empresa que elabora
calendários para ilustrar as folhinhas do ano de 2006 que serão distribuídas gratuitamente para borracharias espalhadas por todo o Brasil?
4) E se Tonico, estudante do terceiro ano do ensino médio de um renomado
colégio da Zona Sul carioca, digitalizar as fotos que compõem o ensaio
de Sylmara e colocá-las em seu website na Internet? Ele poderia fazer
isso? Em caso contrário, quem seria responsabilizado pela conduta do
menor?
5) Imagine, agora, que Sylmara é uma das principais ativistas do movimento internacional “Salvem as baleias!”. No Brasil, a atriz é a garotapropaganda da campanha, tendo a sua imagem vinculada ao esforço de
ecologistas do mundo inteiro em proteger essa espécie animal.
Todavia, uma empresa que industrializa óleo de baleia veio a
utilizar uma foto antiga de Sylmara para anunciar os seus produtos.
A foto foi licenciada para a empresa pela agência de modelos que lançou Sylmara no mercado há anos atrás. Na fotografia, a atriz está em
roupas de banho e contempla, da ponta de um pier, a imensidão do
mar. Acrescentou-se à foto os dizeres: “Óleo de Baleia Shammu: aproveite o melhor do terror dos mares!”
E agora? Considerando que a agência de modelos efetivamente
detinha os direitos de exploração da fotografia, o que pode fazer Sylmara para evitar que prejuízos lhe sejam causados pela veiculação da
referida propaganda?
3. QUESTÃO DE CONCURSO:
X Concurso para Juiz Federal Substituto do TRF 2ª Região (2005)
49. De acordo com o Código Civil, é admissível a tutela inibitória contra
ameaça de lesão a direito da personalidade por divulgação de relato inverídico
relacionado à biografia de pessoa já falecida? Em caso positivo, quem tem
legitimação para postular a medida? Em caso negativo, comente a omissão
legislativa.
FGV DIREITO RIO
105
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 10 — DIREITO À IMAGEM E PRIVACIDADE —
ANÁLISE DE CASOS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Colisão entre privacidade, imagem e liberdade de expressão — Privacidade de pessoas notórias — Interesse público sobre fatos criminosos e seus
autores — Imagem do retratado em locais públicos — Sátiras e caricaturas
LEITURA OBRIGATÓRIA
LEWICKI, Bruno. “Realidade refletida: privacidade e imagem na sociedade
vigiada”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 27 (2006), pp. 211-219.
LEITURAS COMPLEMENTARES
SAHM, Regina. Direito à Imagem no Direito Civil Contemporâneo. São
Paulo, Atlas, 2002; pp. 157/194 e MORAES, Walter. “Direito à Própria
Imagem”. In Revista dos Tribunais nº 443 (set/1972); pp. 64/81 e nº 434
(out/1972); pp. 11/28.
1. ROTEIRO DE AULA
Tendo passado em revista as características gerais dos direitos à privacidade e à imagem, além do impacto trazido pelo desenvolvimento tecnológico,
essa aula visa a discutir diversos casos em que os dois direitos acima referidos
entram em rota de colisão com demais direitos, mais especificamente com a
liberdade de expressão.
A positivação constitucional do direito à privacidade e à imagem no art.
5º, X, em termos peremptórios, poderia gerar o entendimento de que a sua
tutela seria absoluta. Todavia, tanto a privacidade como a imagem não são
direitos absolutos, podendo ceder no caso concreto frente a outros princípios
constitucionais que se provem de maior relevo. A liberdade de expressão e de
informação, derivadas da liberdade de pensamento, são os direitos que mais
freqüentemente entram em conflito com a privacidade e a imagem individuais, motivo pelo qual o estudo desse conflito específico faz-se pertinente.
FGV DIREITO RIO
106
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A privacidade e a imagem de pessoas notórias
Uma das principais áreas de conflito existente entre a liberdade de expressão/informação e os direitos à imagem e à privacidade reside na publicação de
escritos, produção de filmes ou divulgação de fotografias envolvendo pessoas
notórias, sobre as quais exista um interesse público, ou sobre aquelas que
ocupam determinados cargos públicos.
A restrição à imagem, e/ou à privacidade, fundamenta-se aqui na análise
da conduta pretérita da pessoa enfocada, na medida em que a mesma veio a
ocupar uma posição no meio social em que notícias e informações sobre ela
passam a constituir matéria de relevo para a comunidade.
Sobre a possibilidade de se retratar uma pessoa notória sem que seja necessária a obtenção de seu consentimento, explicita Antonio Jeová Santos que:
“Isso não significa que a pessoa notória não deva ter a sua imagem preservada.
Apenas existe uma diminuição em seu direito de tutelar a imagem, dada a notoriedade. Desde que o notável esteja em ambiente onde desenvolve sua atividade e sem
nenhum resquício de constrangimento, já que está retratando a pessoa como ela é e na
forma como desenvolve sua normal atividade, não há nem necessidade de colher-se
autorização, muito menos possibilidade de indenização.”152
Todavia, o limite entre a expressão jornalística apoiada no interesse público e a violação do direito à privacidade e imagem é bastante tênue, conforme
retrata o seguinte acórdão do Superior Tribunal de Justiça:
“Civil. Direito de imagem. Reprodução indevida. Lei n° 5.988/73 (art. 49, I,
f ). Dever de indenizar. Código Civil (art. 159).
A imagem é a projeção dos elementos visíveis que integram a personalidade humana, é a emanação da própria pessoa, é o eflúvio dos caracteres físicos que a individualizam.
A sua reprodução, conseqüentemente, somente pode ser autorizada pela pessoa a
que pertence, por se tratar de direito personalíssimo, sob pena de acarretar o dever de
indenizar que, no caso, surge com a sua própria utilização indevida.153
É certo que não se pode cometer o delírio de, em nome de direito de privacidade,
estabelecer-se uma redoma protetora em torno de uma pessoa para torná-la imune de
qualquer veiculação atinente à sua imagem; todavia, não se deve exaltar a liberdade
de informação a ponto de se consentir que o direito à própria imagem seja postergado,
pois a sua exposição deve condicionar-se à existência de evidente interesse jornalístico
que, por sua vez, tem como referencial o interesse público, a ser satisfeito, de receber
informações, isso quando a imagem divulgada não tiver sido captada em cenário
público ou espontaneamente.”154
152
Antonio Jeová Santos. Dano Moral
Indenizável; p. 393.
153
Observa-se como, novamente, o
Superior Tribunal de Justiça adota o entendimento de que o direito à imagem
é violado com a simples utilização desautorizada desse bem da personalidade, conforme explorado no Capítulo 4.
154
Recurso Especial n° 58101/SP,
rel. César Asfor Rocha, julgado em
16.09.1997; in Revista do Superior Tribunal de Justiça n° 104 (abr/98); pp.
326/332.
FGV DIREITO RIO
107
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Um caso que ganhou considerável repercussão na mídia foi a ação judicial
movida pelas filhas do falecido jogador de futebol Garrincha, por conta do
lançamento do livro “Estrela Solitária — um brasileiro chamado Garrincha”,
de autoria do escritor Rui Castro.
A colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem ficaram bem
descritas nos debates travados nos autos, em que se discutiu até que ponto
a biografia, ao retratar com riqueza detalhes o alcoolismo, as desavenças e a
vida sexual do jogador, indiscutivelmente uma figura notória, teria violado a
sua privacidade e lesionado a sua imagem.
O Tribunal do Estado do Rio de Janeiro, ao decidir o caso em grau de
recurso, apenas reconheceu o dano patrimonial causado às autoras, pela publicação não consentida do livro, mas negou a existência de dano moral. Nas
palavras do relator:
“Quanto ao mérito, da leitura do livro não surge nenhuma ofensa à honra ou à
imagem de Garrincha. O que ali se descreve é do conhecimento público. Garrincha
era doente, sofrendo de alcoolismo, e a sua luta contra a enfermidade é narrada em
detalhes, não só por meio da pesquisa que o autor despendeu, como, ainda, através
de testemunhos.
(...) Os fatos são públicos e notórios e estão estampados no tempo em todos os
jornais e revistas de então.
Há um ou outro ponto mais picante sobre a vida sexual do biografado, mas nada
que conduza a uma ofensa à sua dignidade ou honra.
E por isso mesmo não há que se falar em dano moral.”155
O que se deve ter em mente é que, se é certo que as pessoas públicas possuem uma esfera de proteção à privacidade e à imagem reduzida por conta do
interesse geral sobre a sua vida, essa diminuição não implica em aniquilamento da esfera privada. Existem acontecimentos e detalhes sobre a vida de uma
pessoa pública que permanecem resguardados pelo direito à privacidade, assim como a sua imagem permanece tutelada contra captações e utilizações
ilícitas.
O debate sobre os limites da liberdade de expressão e informação quando
se trata de analisar a vida privada de pessoas notórias também encontra grande repercussão no direito comparado, podendo-se apontar, por exemplo, o
sempre referido caso Mephisto, decidido pela Corte Constitucional Alemã.
No mencionado caso, o filho adotivo do diretor de teatro Gustav Grunder, na época já falecido, buscava obstar a publicação do livro Mephisto, de
Klaus Mann, sob a alegação de que o seu pai, representado no romance pelo
personagem Hendrik Hofgen, teria sido retratado de forma depreciativa à
sua imagem.
155
Apelação Cível n° 2270/01, rel. Gustavo Adolpho Kuhl Leite, julgado em
17.07.2001.
FGV DIREITO RIO
108
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Inicialmente, o Tribunal estadual de Hamburgo considerou improcedente
a ação, tendo sido o romance publicado em 1965 com a seguinte advertência
aos leitores: “Todas as pessoas deste livro são tipos, não retratos de personalidade”. Posteriormente, por ordem do Tribunal Superior de Hamburgo,
acrescentou-se a advertência no sentido de que, embora constassem do livro
referências a pessoas, os personagens que as representavam haviam sido transformados por conta da “fantasia poética do autor”.156
O mesmo Tribunal reformou depois o seu entendimento, concedendo o
pedido do autor da ação no sentido de se obstar a publicação do romance. Declarando ser evidente a associação entre o personagem degradado e
o falecido diretor teatral, afirmou o Tribunal que o direito de liberdade de
expressão artística não goza de prevalência sobre os demais direitos, cabendo
ao juiz no caso concreto ponderar entre a liberdade artística e os direitos fundamentais pretensamente violados.
A Corte Constitucional, por fim, quando lhe foi dado julgar o caso, decidiu pela manutenção da proibição sobre o romance, apoiando-se a decisão
na dignidade da pessoa humana, que deveria prevalecer frente à liberdade de
expressão artística.
O direito de liberdade de expressão artística não é — conforme decisão da
Corte Constitucional — um direito absoluto, estando o mesmo condicionado à observância da tutela da pessoa humana que balizou a elaboração da Lei
Fundamental. Conforme consta da redação do acórdão:
“5. Um conflito entre a liberdade artística e o âmbito do direito da personalidade garantido constitucionalmente deve ser resolvido com fulcro na ordem de valores
estabelecida pela Lei Fundamental; nesse sentido, há de ser considerada, particularmente, a garantia da inviolabilidade do princípio da dignidade da pessoa humana
consagrada no art. 1, I”157
Traçadas as linhas gerais do tema, cumpre abordar ainda um tópico que
vem ganhando relevo na discussão sobre a colisão entre liberdade de imprensa, privacidade e imagem de pessoas notórias. Trata-se da divulgação de matérias jornalísticas que violam a privacidade ou a imagem de pessoas envolvidas
com a prática de atos criminosos.
O interesse público sobre fatos criminosos e seus autores
O crime é uma questão de interesse público. Ao violar a norma penal, o
criminoso também rompe com as regras de convivência na sociedade, fazendo incidir sobre a sua conduta a sanção estatal.
156
Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos
Fundamentais, cit.; p. 88.
157
Cf. Gilmar Ferreira Mendes. Direitos
Fundamentais, cit.; p. 89.
FGV DIREITO RIO
109
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Em decorrência desse interesse público na persecução e punição do criminoso, especializou-se na imprensa o ramo da crônica policial, onde se busca
acompanhar a dinâmica entre a prática do ato criminoso, sua investigação e
sancionamento da conduta transgressora da norma penal.
Conforme aponta René Ariel Dotti, a crônica policial, divulgada através
de jornais, rádio e televisão, principalmente, colhe o seu fundamento no direito geral à informação, mantendo estreita relação com o caráter publicista
do processo penal.158
Todavia, o interesse público quanto ao conhecimento dos crimes não isenta a crônica policial de colisões com demais direitos fundamentais. No que
tange aos direitos à privacidade e à imagem, a crônica policial apresenta, caso
desenvolvida em inobservância aos parâmetros da ética jornalística, diversas
possibilidades de conflitos, ocasionados pela eventual deturpação dos fatos,
condenando-se o investigado através da imprensa antes mesmo do julgamento, pelo sensacionalismo, que explora comercialmente os detalhes sórdidos
dos crimes e transforma tragédia em espetáculo.
As matérias que ilustram as crônicas policiais devem sempre atender aos
imperativos constitucionais referentes à tutela da pessoa humana, sendo contrário ao Direito — além de imoral — divulgar fatos que imputem a uma
pessoa determinada conduta criminosa sem o cuidado de se apurar a veracidade do que se diz159, ou aproveitar o evento criminoso para explorar a pessoa
humana como simples instrumento para obter — às custas da sordidez de
muitos — uma maior vendagem do jornal, ou audiência para os programas
de rádio e televisivos.
Diversos são os julgados que ilustram a colisão entre liberdade de expressão, privacidade e imagem na crônica policial. A deturpação dos fatos, imputando à pessoa conduta criminosa sem proceder ao devido exame da veracidade do que se publica, geralmente decide a contenda favoravelmente ao
indivíduo lesionado em sua privacidade ou imagem. Nesse sentido, veja-se a
decisão do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro:
158
“Responsabilidade Civil. Dano Moral. Reportagens jornalísticas que imputam
ao autor a acusação de ‘mutreteiro’ e ‘cabeça’ de fraude em concurso público, que
derivaria do investigado pelo Ministério Público e por CPI da Câmara Municipal.
Acusação não corroborada pelos documentos dos autos, que apenas retratam ser a vítima um dos beneficiários de adulteração de notas no concurso, sem, porém imputarlhe a condição de responsável pela fraude e muito menos ‘cabeça’ dela.
Abuso do direito de informar e deturpação da notícia que ensejam a reparação,
com base nos art. 5º, X da CF, por ofenderem a honra e dignidade do demandante.”160
Adicionalmente, a liberdade de informação manifestada pelo jornalista
que trabalha na cobertura dos eventos criminosos deve ainda atender ao cha-
René Ariel Dotti. Proteção da Vida
Privada e Liberdade de Informação.
São Paulo, Revista dos Tribunais, 1980;
p. 213.
159
O emblemático caso da Escola Base,
no qual os diretores de uma escola em
São Paulo foram acusados de abusar
sexualmente de seus alunos, sofrendo
um verdadeiro “linchamento” na imprensa, apurando-se posteriormente
serem as denúncias inverídicas, constitui o melhor exemplo para um estudo
da ética jornalística no Brasil recente.
Sobre o caso, vide Estela Cristina Bonjardim. O Acusado, sua Imagem e a
Mídia. São Paulo, Max Limonad, 2002;
pp. 103/110.
160
Apelação Cível n° 25960/01, rel. Binato de Castro, julgado em 18.12.2001.
FGV DIREITO RIO
110
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
mado “direito ao esquecimento” que favorece o condenado, visando a sua
melhor ressocialização depois de cumprida a pena que lhe foi imposta. A
própria Lei de Imprensa veda, segundo dispõe seu artigo 21, §2º, a divulgação ou transmissão de fato delituoso cujo autor já tenha sido condenado e
cumprido a respectiva pena, salvo por motivo de interesse público.
Talvez o caso mais estudado sobre a colisão entre a liberdade de informação e o direito à privacidade e à imagem seja o caso Lebach, decidido pela
Corte Constitucional Alemã, no qual foi discutido o direito de uma emissora
de televisão de exibir um documentário que retratava o assassinato dos soldados de Lebach, em circunstâncias que haviam chocado todo o país.
Em circunstâncias normais, não haveria questionamento à liberdade de
expressão jornalística da emissora de televisão, tendo em vista que o assassinato dos soldados havia sido amplamente coberto pela imprensa, acompanhando o público alemão com interesse o julgamento dos criminosos. Sendo
assim, os fatos a serem narrados no documentário eram públicos.
Todavia, um dos condenados pelo crime, que estava cumprindo o final de
sua pena, ingressou com uma medida liminar buscando suspender a veiculação do documentário, no qual ele era nominalmente citado, alegando que
o mesmo lesionava não apenas a sua privacidade e imagem, como também
dificultaria a sua ressocialização.
O Tribunal estadual de Mainz e, em seguida, o Tribunal Superior de Koblenz não acolheram o pedido do autor sob o fundamento de que o mesmo,
ao se envolver no crime, havia se tornado um personagem da história recente,
e que o documentário havia reproduzido com fidelidade os fatos que vieram
à tona no decorrer do processo, sem relevantes alterações.161
Sendo assim, o entendimento até então prevalecente indicava que, no
conflito entre a liberdade de imprensa (art. 5, I, da Lei Fundamental alemã)
e os direitos fundamentais do criminoso, deveria o primeiro prosperar em
nome do interesse público sobre as circunstâncias históricas do crime.
O recurso à Corte Constitucional foi interposto sob o fundamento de
ofensa à proteção constitucional da dignidade da pessoa humana, dando início a intenso trabalho da Corte que, para decidir o caso, promoveu consultas
a diversas instituições e a profissionais especializados em psicologia social,
comunicação e execução penal.162
Por fim, ao decidir o caso favoravelmente ao autor, a Corte Constitucional
considerou que a divulgação do documentário no caso concreto violava direitos legítimos do preso. A redação do acórdão é bastante elucidativa:
“Para a atual divulgação de notícias sobre crimes graves tem o interesse de informação da opinião pública, em geral, precedência sobre a proteção da personalidade
do agente delituoso. Todavia, além de considerar a intangibilidade da esfera íntima,
tem-se que levar em conta sempre o princípio da proporcionalidade. Por isso, nem
161
Gilmar Ferreira Mendes. Direitos Fundamentais, cit.; p. 90.
162
Daniel Sarmento. A Ponderação, cit.,
p. 167.
FGV DIREITO RIO
111
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
sempre se afigura legítima a designação do autor do crime ou a divulgação de fotos
ou imagens ou outros elementos que permitam a sua identificação.
A proteção da personalidade não autoriza que a Televisão se ocupe, fora do âmbito do noticiário sobre a atualidade, com a pessoa e a esfera íntima do autor de um
crime, ainda que sob a forma de documentário.
A divulgação posterior de notícias sobre o fato é, em todo caso, ilegítima, se se
mostrar apta a provocar danos graves ou adicionais ao autor, especialmente se dificultar a sua reintegração na sociedade. É de se presumir que um programa, que identificas o autor de fato delituoso pouco antes da concessão de sue livramento condicional
ou mesmo após a soltura, ameaça seriamente o seu processo de reintegração social.”163
Note-se que o caso Lebach é um exemplo contundente da necessidade de se
promover a ponderação entre liberdade de informação, privacidade e imagem,
pois, em regra, a veiculação do documentário sobre o assassinato seria uma
legítima manifestação do direito de liberdade de imprensa. Contudo, tendo
em vista as peculiaridades do caso concreto, sobretudo o fato de que o preso
estava no final do cumprimento de sua pena, o documentário — que reproduzia o crime de forma fiel e sem alterações que por si só lesionasse a imagem
dos condenados — teve a sua divulgação proibida por ordem judicial.
Em síntese, pode-se afirmar que a operação desenvolvida pela Corte alemã
para solucionar o caso Lebach representa com clareza indiscutível os efeitos
da técnica da ponderação, pois a liberdade de imprensa foi apenas afastada
no caso concreto, para que o direito à privacidade e imagem do preso fosse
preservada.
A imagem do retratado em eventos públicos
A colisão entre liberdade de expressão/informação e os direitos à privacidade e imagem também pode ser observada na captação e utilização de imagem de pessoas em eventos de natureza pública. Em tais hipóteses, entendese que os direitos à privacidade e imagem cedem espaço para a liberdade do
fotógrafo ou cinegrafista, liberando-o do ônus de requerer autorização para
a utilização da imagem de cada pessoa captada por sua lente em locais ou
eventos públicos, cumprindo-se certos requisitos, mais notadamente quando
da realização de eventos que congregam um número elevado de pessoas.
Indubitavelmente, a liberdade de expressão artística seria sensivelmente
cerceada se em tais circunstâncias o fotógrafo ou cinegrafista tivesse que obter
o consentimento na divulgação da foto ou filmagem de cada pessoa captada
pela objetiva da máquina fotográfica ou pela lente da câmera.
Para que não se configure lesão à privacidade e/ou imagem da pessoa, o
propósito da retratação em eventos públicos deve sempre demonstrar que a
intenção da captação daquela imagem remonta ao evento e não a qualquer
163
Apud. Gilmar Ferreira Mendes, Direitos Fundamentais; pp. 91/92.
FGV DIREITO RIO
112
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
pessoa em particular.164 O interesse do autor da obra que se vale da imagem
alheia deve ser caracterizar o evento público e não quaisquer atributos das
pessoas retratadas.
O caso mais comum refere-se a fotos tiradas em grandes manifestações
populares, nas quais possa se distinguir as feições das pessoas que delas participam. Nesses casos, não caberá indenização por dano à imagem ou alegações de invasão de privacidade (baseada no direito ao anonimato), restando
caracterizado que a finalidade da foto não era retratar aquelas pessoas em
particular. Deve-se averiguar sempre se as pessoas retratadas são elementos
acessórios da fotografia.
Em acórdão que versa sobre caso semelhante, pronunciou-se o Tribunal
do Estado do Rio de Janeiro no seguinte sentido:
“Direito de personalidade — Direito à própria imagem — Violação — Descaracterização — Reprodução desautorizada de fotografia para fins publicitários
— Hipótese em que a imagem não concorre direta e claramente para o êxito da
propaganda na qual utilizada por identificável a pessoa do retratado, desconhecida,
ademais, no meio publicitário — Conjunto fotográfico em que sobressai outro elemento — Indenização não devida.”165
A mesma lógica aplica-se às fotografias que são tiradas de jogadores de
futebol no momento em que os marcam um gol ou protagonizam episódios
singulares no decorrer de suas exibições públicas. Abstraindo-se as considerações em torno do direito de arena, por estarem participando de um evento
público, assistido por diversas pessoas, seja in loco ou através da transmissão
das imagens da partida, não cabe ao jogador reclamar indenização pelo uso
inconsentido de sua imagem. O que se busca retratar no caso é o gol, por
exemplo, e não o jogador.
Hipótese distinta ocorre quando a retratação lícita de pessoa em evento
público é utilizada para finalidades comerciais, e não meramente informativas. Assim, a mesma foto que ilustra um gol pode ser incluída em jornal esportivo, porém jamais utilizada por uma empresa para fins publicitários, sem
que seja requerida a autorização da pessoa retratada. Nessas circunstâncias, a
liberdade de expressão deverá ceder em favor do direito à imagem da pessoa
retratada.
Em decisão paradigmática, o antigo Tribunal de Alçada do Estado da
Guanabara reconheceu o direito à indenização por dano à imagem devido ao
jogador Jairzinho, uma vez que a empresa Siemens do Brasil S.A. utilizou, em
publicidade de serviços de iluminação, fotografia do jogador ao marcar um
gol no estádio do Maracanã, com os seguintes dizeres: “Siemens iluminou o
gol da vitória”.166
164
Nesse sentido, dentre outros, vide
Carlos Alberto Bittar, Os Direitos da
Personalidade. Rio: Forense, 2000, 4ª
ed.; p. 95.
165
Apelação Cível n° 776/86, rel. Des.
Alberto Garcia, julgada em 15.09.87; in
Revista dos Tribunais nº 637 (nov/88);
pp. 158/ 161.
166
Apelação Cível nº 26.108; rel.
Des. Rui Domingues, julgada em
27.06.1974; in Revista Forense nº 250
(abr-jun/75); pp. 269/273. À parte de
toda a brilhante fundamentação jurídica do acórdão, cumpre trazer à colação
passagem do voto do relator que, em
tons líricos, narra, da seguinte forma,
o papel desempenhado pelo futebol
na sociedade brasileira: “A escola de
futebol criada pelo Brasil tem raízes
humildes, vem do povo humilde, assim
como a coreografia e cânticos carnavelescos, modelos de organização,
de disciplina, de espírito de equipe.
Os heróis do futebol são admirados e
contemplados pelas massas e pelos
seus representantes, inclusive pelas
mais altas autoridades federais. Não há
assunto mais sério no Brasil”. Por fim,
em uma espiral de grandiloqüência, arremata o desembargador: “Um grande
jogador de futebol como Jairzinho é tão
importante para o povo brasileiro como
Kant ou Heidegger para um estudante
de filosofia na Alemanha. Tais nomes,
tais imagens, não podem ser tomadas
em vão, nem a troco de nada.”
FGV DIREITO RIO
113
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O problema das sátiras e caricaturas
O humor certamente não figura como um tema corriqueiro em obras
jurídicas. Todavia, para que se analise a questão da colisão entre liberdade de
expressão, privacidade e imagem, uma breve incursão sobre a problemática
das sátiras e caricaturas se faz necessária, pois, buscando gerar o riso, ou por
vezes a reflexão, essas formas de expressão artística, podem violar direitos
legítimos de terceiros.
O espírito que impulsiona a criação artística é um dos atributos mais fascinantes do homem, mas nem por isso é ilimitada a sua manifestação. Ainda
que o fim último da produção seja criar uma situação divertida, gerar na
pessoa uma sensação de bom-humor, existem restrições de natureza moral e
jurídica às sátiras e caricaturas.
Apesar de semelhantes no que tange à finalidade humorística, a sátira e
a caricatura são expressões artísticas distintas. A caricatura é o desenho que,
pelo traçado diferenciado, acentua ou revela, de forma geralmente exagerada,
certos aspectos típicos da pessoa ou do fato retratado, ao passo que a sátira é
a obra artística que visa a ridicularizar outra obra, pessoa ou fato.
O animus jocandi, em sua expressão mais pura, sempre foi reconhecido
como causa de exclusão da responsabilidade derivada de lesões a direitos da
personalidade, em consonância com o brocardo si quis per jocum percutiat,
injuriarum non tenetur.167 Todavia, essa regra deve sempre ser excepcionada
quando da lesão a direitos da personalidade.
Para se aferir quando a caricatura e a sátira são ilícitas, deve-se procurar
entrever o intuito do artista na criação da obra. Para tanto, é imperioso que se
distinga o simples gracejo, o animus jocandi, da ironia injuriosa, que de má-fé
denigre a imagem alheia ou invade de forma ilícita a privacidade do ofendido.
Cumpre observar que o exagero é um elemento ínsito a esse tipo de manifestação artística, que integra a essência mesma da obra, pois muitas das
vezes é a retratação exagerada de um atributo que constitui confere o atributo
humorístico à obra. O exagero na retratação apenas será indenizável quando exceder o limite do razoável, quando a piada for de extremo mau gosto,
causando mais constrangimento e revolta do que risadas. O que não se pode
admitir é que o humor venha a servir de máscara ou álibi para condutas que
sejam deliberadamente ofensivas a outrem.168
Nesse particular, o Projeto de Lei de Imprensa (PL nº 3232/92) trata da
matéria de forma pertinente, em seu art. 10, §3º, o qual assim dispõe:
“não será considerada ofensiva à imagem das pessoas sua reprodução gráfica, parcial ou de corpo inteiro, em desenho convencional, artístico ou caricatural, desde que
não expresse nem sugira condição ou situação que caracterize calúnia, difamação ou
injúria, nos termos do art. 5º.”
167
Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Liberdade de Imprensa, cit.; p. 102.
168
Cláudio Luiz Bueno de Godoy. Liberdade de Imprensa, cit.; p. 103.
FGV DIREITO RIO
114
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Denota-se, portanto, que a resolução de um conflito entre a liberdade de
expressão artística e a privacidade ou imagem de uma pessoa retratada, direta
ou indiretamente, pela sátira ou caricatura, será resolvido através da ponderação no caso concreto, analisando-se a motivação que ilustra a obra artística.
Ou seja, se a motivação da obra é meramente humorística, mesmo que
contenha certos exageros naturais dessa forma de expressão, não há que se
falar em dano à privacidade ou imagem. O que não pode passar in albis para
o Direito é a caricatura ou charge ofensiva, que, para além do humor, ofende
o retratado.
Por oportuno, vale destacar que o senso de indignação, de revolta perante
uma ofensa, que transforma a sátira ou caricatura em objeto de afronta à
privacidade e imagem alheia não deve estar suscetível às variações emocionais
de cada um, mas sim sujeito ao crivo da razoabilidade média. Com efeito, se
existe alguém que poderá confundir humor com zombaria infamante, além
do artista, é o próprio retratado.
Logo, para se imputar como ofensiva determinada expressão artística, deve
o intérprete recorrer ao senso crítico geral, não aderindo a partidarismos, ou
adotando tendências que não espelham o geralmente aceito na sociedade.
2. CASOS GERADORES:
Leia as reportagens abaixo:
“IMPRENSA ACUADA”
Dobra número de processos contra imprensa e jornalistas
por Laura Diniz e Márcio Chaer
Ou a imprensa brasileira piorou brutalmente nos últimos anos, ou então
virou a chamada bola da vez. O fato é que já há mais processos contra os
grandes grupos jornalísticos do que jornalistas nas redações. Ou seja: para
uma amostragem de 2.783 jornalistas há 3.342 ações judiciais, segundo apurou a revista Consultor Jurídico.
A maior parcela dos processos é ajuizada por juízes, promotores, advogados e políticos. Juízes e advogados são também os profissionais que mais
ações vencem contra jornais e jornalistas. Os veículos pesquisados são o grupo Globo (emissoras, jornais e revistas), editoras Abril e Três e os jornais Folha de S.Paulo e O Estado de S.Paulo.
As empresas jornalísticas são mais acionadas que os seus profissionais. O
levantamento, feito pela revista mostra que há predominância absoluta de
ações cíveis de natureza indenizatória —— uma mudança radical em relação
FGV DIREITO RIO
115
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ao período anterior à Constituição de 1988. Apenas 150 ações (4%) são de
cunho criminal.
Caso a imprensa fosse condenada em todas as 3.192 ações indenizatórias
as empresas e jornalistas teriam que arcar com um prejuízo da ordem de quase R$ 65 milhões, considerado o valor médio de R$ 20 mil por indenização
arbitrado pelo Superior Tribunal de Justiça. Por outro lado, embora os jornalistas e as empresas sejam condenados em apenas 20% dos casos, a Justiça
já chegou a arbitrar indenizações superiores a R$ 1 milhão em processos em
que não cabem mais recursos.
Pelo levantamento anterior, feito pouco mais de dois anos atrás, o volume
de processos contra empresas jornalísticas e profissionais mais que dobrou.
Cresceu também o percentual de condenações. E ganha terreno no meio
forense a tese de que é cabível impedir a publicação de notícias, em contraste
com o que diz a Constituição —— que veda a censura prévia.
Segundo o ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, o quadro é preocupante e caracteriza uma “verdadeira loteria esportiva”. De acordo
com ele, sem a imprensa livre não se pode cogitar a palavra democracia. Marco Aurélio disse que o Superior Tribunal de Justiça tem usado o “bom senso”
e fixado valores de cerca de R$ 20 mil.
Marco Aurélio disse ainda, no Seminário Internacional sobre Direito de
Acesso a Informações Públicas, promovido pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que “seria interessante se nós discutíssemos
para o País uma nova Lei de Imprensa”. A lei que vigora até hoje foi criada
em 1969, durante o regime militar.
A ministra Ellen Gracie, do STF, afirmou que o Judiciário não restringe o
livre exercício do bom jornalismo. “Apenas manifestações dolosamente aberrantes do dever de bem informar tem merecido o repúdio dos tribunais”, disse.
Para o ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, os números não refletem uma tentativa de intimidação da imprensa. “Exatamente porque se
estabeleceu um controle de responsabilidade a posteriori, as pessoas têm direito de ir ao Judiciário. E as ações do Poder Judiciário não são uma ameaça.
Procurar a Justiça é o exercício de um direito de cidadania, um direito constitucional. O que não pode haver é censura prévia.”
De acordo com o criminalista Luis Guilherme Vieira, a explicação para o
predomínio de ações por dano moral em relação às penais é “matemática”:
processos por crime de imprensa prescrevem em dois anos; ações por dano
moral tem um prazo de prescrição bem maior.
Segundo o advogado, “hoje não tem mais efeito constrangedor processar
um jornalista na via criminal. Dificilmente um processo, por mais singelo
que seja, conseguirá chegar ao final — com sentença transitada em julgado
— antes de dois anos.”
FGV DIREITO RIO
116
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Vieira disse que os reparos por dano moral e material foram banalizados.
“Todo mundo tem o direito de se achar ofendido e ir à Justiça. Mas a Justiça
não tem o direito de ficar reconhecendo bagatelas de pequena importância”,
declarou.
Segundo ele, um levantamento mais detalhado provavelmente mostraria
que os autores da maioria das ações são os mesmos, ou fazem parte dos mesmos grupos políticos.
Para o advogado, a imprensa tem extrapolado os limites éticos, mas sua
atuação deve ser controlada por órgãos de classe e não por leis ou pela Justiça.
“O Judiciário só deve ser procurado em casos excepcionais”, concluiu.
(Reportagem veiculada no website Consultor Jurídico, em 30.09.2003)
****
“STJ definirá se Maitê Proença será indenizada por danos morais”
Está empatado o julgamento na Terceira Turma do STJ (Superior Tribunal
de Justiça) que definirá se a atriz Maitê Proença terá direito a receber de um
jornal carioca indenização por dano moral, em razão de o periódico ter publicado uma foto sua, extraída de ensaio fotográfico feito para a revista Playboy.
Maitê Proença fez o ensaio fotográfico para a revista em 1996, estipulando
em contrato escrito, as condições em que se daria a cessão de sua imagem,
fixando, não só a remuneração, como o tipo de fotos que seriam produzidas,
preocupada com a sua imagem e a qualidade do trabalho.
As fotos foram tiradas em julho daquele ano no sul da Itália e publicadas
na edição comemorativa do 21º aniversário da revista, em agosto. Apesar das
precauções da atriz para restringir e controlar a forma de divulgação de sua
imagem, o jornal estampou uma das fotos, extraída do ensaio para a Playboy,
em página inteira, sem qualquer autorização.
A atriz considerou que o fato “feriu, de forma odiosa, a sua imagem”, tanto patrimonial quanto moralmente.
A Justiça carioca condenou a empresa jornalística a indenizar a atriz por
danos materiais, mas não por danos morais. O desembargador que relatou o
caso no Tribunal de Justiça disse, em seu voto, que apenas as mulheres feias
teriam porque reclamar de se ver em todas as bancas, mas não a mulher bonita.
No STJ, o relator, ministro Carlos Alberto Menezes Direito, entendeu
que não cabe ao caso a indenização por dano moral, pois a publicação violenta o direito à imagem, mas não à imagem que possa advir do ato em si
(a imagem futura). Para ele, por mais infelizes que tenham sido os termos
usados durante o julgamento no tribunal de origem, a questão não se põe no
campo da estética, esse aspecto não está em discussão.
FGV DIREITO RIO
117
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A ministra Nancy Andrighi, no entanto, concluiu que cabe indenização
por dano moral nesse caso e lamentou que, às vésperas de um novo milênio,
as mulheres tenham de se deparar com argumentos do tipo usado pelo desembargador. Para ela, a atriz foi violentada em seu crédito como pessoa, pois deu
o seu direito de imagem a um determinado nível de publicação e poderia querer que apenas determinado grupo da população tivesse acesso a essa imagem.
O entendimento do relator foi acompanhado pelo ministro Pádua Ribeiro, para quem a publicação não atingiu a artista em sua vida privada. O ministro Waldemar Zveiter, por sua vez, votou com a ministra Nancy Andrighi,
demonstrando preocupação que o Estado pretenda tutelar o que pode ser
aceitável ou não pelo indivíduo em relação à sua imagem.
Diante do empate, o presidente da Turma, ministro Ari Pargendler, último a votar, pediu vista do processo para melhor examinar a questão e, assim,
concluir o julgamento.
(Notícia publicada no Jornal Folha de São Paulo, em 11.12.2000)
*****
“SBT RECORRE DE CONDENAÇÃO POR PEGADINHA NO PROGRAMA DO GUGU”
O SBT foi condenado, por sentença de primeiro grau, a pagar indenização
por danos morais a Abrão Couri e Silvia Cristina Parisi Couri, por expor os
dois a situação “vexatória e humilhante”, numa pegadinha levada ao ar durante 30 segundos no programa Domingo Legal, do apresentador Gugu Liberato
em 16 de novembro de 1997.
(...) O valor da indenização — segundo disposição da sentença — será o
equivalente ao preço de um minuto de veiculação publicitária, em rede nacional, no programa na época da exibição, com juros e correção. A emissora
deverá pagar ainda as custas do processo e os honorários do advogado dos
dois, fixado em 20% do valor da condenação.
A pegadinha envolvia um teste visando a demonstrar a honestidade dos pobres
em contraposição da desonestidade dos ricos. Uma carteira foi deixada na rua com
dinheiro e um papel com o nome, endereço e telefone do suposto proprietário.
Abrão e Silva apanharam a carteira e ligaram de um telefone público, tentando contato com o suposto dono. Eles foram abordados por membros da
produção e entregaram a carteira a eles, explicaram a situação e autorizaram
o uso das imagens. Entretanto, nas imagens exibidas o casal apenas aparece
guardando a carteira, dando ao ato a aparência de desonestidade.
O juiz da 31ª Vara Cível Luiz Fernando Cirillo, prolator da sentença,
afirmou que o SBT “promoveu um julgamento dos autores e pronunciou um
veredicto de desonestidade, transmitido em rede nacional “.
(Notícia veiculada no website Espaço Vital, em 21.06.2004)
FGV DIREITO RIO
118
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
*****
“Publicar foto de mulher anônima em topless voluntário não obriga jornal
a indenizar”
Não cabe indenização por danos morais para mulher anônima e que pratica topless (sem a parte de cima do biquini) voluntariamente em praia pública, num dia feriado e tem a foto, publicada em jornal. A conclusão é da
Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que negou provimento
ao recurso de M.A.A.P., de Santa Catarina, contra a Zero Hora Editora Jornalística S/A.
M.A.A.P. entrou na Justiça após a publicação da foto pelo jornal da Editora, alegando que houve danos morais em virtude da publicação em jornal
de circulação estadual de sua foto em topless, em momento de lazer, na Praia
Mole. Segundo o jornal, o fotógrafo usou do direito de liberdade de imprensa
para fazer seu trabalho e registrou a cena publicada, sem fazer chamada sensacionalista, nem fazer uso irregular da foto. “Não houve nenhum destaque e
o nome da autora sequer foi referido na reportagem que a fotografia ilustra”,
argumentou.
A ação contra a Zero Hora foi julgada improcedente em primeira instância. “A ré exerceu sua liberdade de imprensa que tem amparo constitucional,
sem ferir as garantias da autora, que, por sua vez, exerceu sua liberdade pessoal, consciente ou inconscientemente, produzindo notícia, pela prática de
topless, em público”, afirmou o juiz.
A apelação, no entanto, foi provida, por maioria, pelo Tribunal de Justiça
estadual. “A publicação de imagem de alguém fotografado imprescinde, sempre, de autorização do fotografado. Inexistente essa autorização, a veiculação
da imagem materializa violação ao direito do respectivo titular, ainda que
inexistente qualquer ultraje à moral e aos bons costumes”, afirmou o acórdão.
“A ocorrência do dano, em tal hipótese, é presumida, resultando tão somente
da vulneração do direito à imagem”, acrescentou o tribunal, ao determinar
indenização de 100 salários mínimos para a autora da ação.
A empresa protestou com embargos infringentes para o próprio TJ/SC.
Foram acolhidos. “Se a embargada resolveu mostrar sua intimidade às pessoas deve ter maturidade suficiente para suportar as conseqüências de seus
atos e não atribuir à imprensa a responsabilidade pelo ocorrido”, observou o
desembargador.
Segundo ele, seria diferente, por exemplo, se uma moça fosse fotografada
com a peça superior da roupa de banho fora do lugar, após recuperar-se de
uma onda. “Nesse caso, sim, absolutamente inidônea e oportunista a atitude
do jornal”, ressaltou. “Mas, a partir do momento em que a embargada não
FGV DIREITO RIO
119
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
teve objeção alguma de que pessoas pudessem observar sua intimidade, não
pode ela vir à Justiça alegar que sua honra foi violada pelo fato de o Diário
Catarinense ter publicado uma foto obtida naquele momento numa praia
lotada e em pleno feriado”, asseverou.
O recurso para o STJ não foi conhecido, mantendo-se a decisão do TJ/
SC. “A própria recorrente optou por revelar sua intimidade, ao expor o peito desnudo em local público de grande movimento, inexistindo qualquer
conteúdo pernicioso na veiculação, que se limitou a registrar sobriamente o
evento sem sequer citar o nome da autora”, afirmou o ministro Cesar Asfor
Rocha, relator do recurso. “Assim, se a demandante expõe sua imagem em
cenário público, não é ilícita ou indevida sua reprodução sem conteúdo sensacionalista pela imprensa, uma vez que a proteção à privacidade encontra
limite na própria exposição realizada”, ressaltou. “Portanto, in casu, não há
qualquer ofensa moral”, concluiu Cesar Rocha.
(Notícia veiculada no website do Superior Tribunal de Justiça, em
23.03.2004).
Com base na tutela da imagem e da privacidade, e os critérios para solução
de conflito entre esses direitos e a liberdade de expressão, analise cada uma das
reportagens acima e prepare-se para responder sobre os casos por elas enfocados em
sala de aula.
FGV DIREITO RIO
120
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 11 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — PESSOAS JURÍDICAS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Conceito de pessoa jurídica — Capacidade e Representação — Autonomia
patrimonial — Domicílio — Responsabilidade Civil das pessoas jurídicas —
Desconsideração da personalidade jurídica
CASO GERADOR
“Desconsideração da Personalidade Jurídica”
LEITURA OBRIGATÓRIA
TEPEDINO, Gustavo. “Notas sobre a desconsideração da personalidade jurídica”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 30 (2007), pp. 53-77.
LEITURAS COMPLEMENTARES
PANTOJA, Teresa Cristina. “Anotações sobre Pessoas Jurídicas”, in TEPEDINO, Gustavo. Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 83/122; REQUIÃO, Rubens. “Abuso de direito e fraude através da personalidade jurídica — Disregard Doctrine”, in Aspectos
Modernos de Direito Comercial. São Paulo: Saraiva, 1988; pp. 67/85.
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial, vol. 2. São Paulo:
Saraiva, 2004; pp. 03/31.
1. ROTEIRO DE AULA
As relações jurídicas não se processam exclusivamente entre indivíduos, ou
seja, entre pessoas físicas. Pelo contrário, temos que grande parte das relações
jurídicas que vivenciamos cotidianamente têm no pólo oposto uma determina pessoa jurídica. Reconhecendo a sua importância, o direito cria todo um
instrumental que habilita essa entidade a praticar atos jurídicos.
Assim, a disciplina das pessoas Jurídicas regula, no âmbito do direito
privado, as sociedades, as associações, as fundações, os partidos políticos
e as organizações religiosas. Destaque-se que esses dois últimos elementos
FGV DIREITO RIO
121
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
representam inovação proporcionada pela publicação da Lei nº 10.825, de
22.12.2003.
A doutrina geralmente divide as pessoas jurídicas em dois grupos: (i) de
um lado, têm-se aquelas que representam a conjugação de esforços de vários
indivíduos para a consecução de objetivos comuns. Trata-se de uma comunhão de vontades de várias pessoas, que buscando transcender as impossibilidades que a mera individualidade lhes implica, reúnem-se e formam um
ente que lhes é maior, superior em força e portanto, mais apto a atingir os
objetivos intentados; (ii) de outro lado, têm-se a destinação de determinado
patrimônio com vistas à consecução de um fim de relevante interesse social.
O elemento nuclear aqui não reside mais numa reunião de vontades, mas
sim na destinação de um determinado acervo de bens a um certo propósito.
Pessoa jurídica pode ser conceituada como a reunião de pessoas com o
escopo de alcançar um objetivo comum e reconhecido pelo ordenamento
jurídico como sujeito de direito. Essas entidades, qualquer que seja a forma
que adotem, desde que observadas as prescrições legais, são para certos efeitos
civis equiparadas à própria pessoa humana, sendo também dotadas de personalidade, capacidade processual e responsabilidade.
É importante notar que mesmo quando a pessoa jurídica é formada pela
comunhão de vontades de alguns indivíduos, a personalidade do ente e a de
seus integrantes não pode ser confundida. A personalidade da pessoa jurídica
transcende a daqueles que lhe formam e, salvo em hipóteses restritas — ligadas à prática de alguma abusividade —, não pode ser desconsiderada de
forma a atingir pessoalmente algum dos integrantes.
Nas palavras de Silvio Rodrigues, as “pessoas jurídicas são entidades a que
a lei empresta personalidade, isto é, são seres que atuam na vida jurídica, com
personalidade diversa da dos indivíduos que os compõem, capazes de serem
sujeitos de direitos e obrigações na ordem civil”169 Uma vez personificado
esse ente, sua vontade será dispare da manifestação volitiva de cada um dos
membros que o integram. É o que pressupõe o brocardo latino societas distat
a singulis.
Como já afirmado, atente-se também que é justamente por resguardar os
interesses humanos que a lei confere personalidade a essas reuniões de indivíduos. Esse vínculo associativo representa a certeza dos indivíduos perpassarem suas limitações através da criação de uma instituição que com eles não se
confunde, mas da qual são partícipes.
Reflexos na dinâmica macro-econômica também não podem deixar de ser
percebidos. Hoje, a potência econômica de determinada nação é intimamente conexa com a expressão das pessoas jurídicas que nela atuam. As pessoas
jurídicas, e nesse particular as sociedades transnacionais — como o próprio
nome sugere — transcendem o próprio Estado e têm por objeto social uma
infinidade de atividades.
169
Silvio Rodrigues. Direito Civil, v.I. São
Paulo: Saraiva, 2004; p. 86.
FGV DIREITO RIO
122
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
De acordo com a disposição legal, para regularmente constituir uma pessoa jurídica é preciso a conjunção simultânea de três elementos: a vontade
criadora; a regular observância das condições legais; a liceidade de propósitos
do ente que se intenta formar.
Não basta a simples reunião de indivíduos para a formação da personalidade jurídica. Além da intenção associativa, é preciso que se estabeleça uma
vinculação jurídica específica e em consonância com os ditames legais. É
justamente ela que possibilita que esse conglomerado de indivíduos adquira
organicidade.
Natureza jurídica
Várias são as teorias jurídicas que visam a delinear a natureza das pessoas jurídicas. Dentre essas, as que merecem maior destaque são: i) as teorias
negativistas; ii) a teoria da ficção legal; iii) a teoria da pessoa jurídica como
realidade objetiva; iv) a teoria da pessoa jurídica como realidade técnica; e v)
a teoria institucionalista de Hauriou.
i) Teorias Negativistas — Nesse grupo estão incluídas as teorias que “[d]
esacreditam a existência real da pessoa jurídica, dentre as quais as mais importantes e difundidas foram as lições de Brinz, Von Ihering e Hans Kelsen,
para quem o que havia eram apenas centros de competência contidas nas
normas.”170
ii) Teoria da ficção legal — O principal expoente dessa corrente foi Savigny, tendo encontrado grande respaldo no séc. XIX. A personalidade jurídica
decorreria de uma ficção da lei, contrapondo-se a personalidade natural, uma
vez que essa é uma criação da natureza. A existência de pessoa jurídica não
seria real, mas tão somente uma construção intelectual.
Deve-se ter em mente que na verdade não existe uma única teoria da
ficção, mas sim uma pluralidade de construções que convergem no mesmo
sentido. Pode-se criticar essas teorias na medida em que, ao afirmar que somente o homem é sujeito de direito, elas resultam na própria inexistência
da pessoa jurídica, e, por conseguinte, dos direitos e deveres que ela em tese
titularizaria. O raciocínio se torna ainda mais perigoso quando se concebe
o Estado como pessoa jurídica. A partir dessa concepção ficcional da pessoa
jurídica, os atos estatais também seriam frutos de uma mera ficção jurídica.
iii) Teoria da pessoa jurídica como realidade objetiva — Essa teoria tem
origem na Alemanha, podendo destacar-se como elaboradores Gierke e Zitelmann. Ao contrário da teoria antecedente, afirma que a vontade que enseja
a constituição do ente caracteriza-o como sujeito de direito real e verdadeiro.
Dessa forma, as pessoas jurídicas são uma realidade sociológica, como seres
vivos, que surgem por imposição de fatores sociais.
170
Gustavo Tepedino, Heloisa Helena
Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes (org). Código Civil Interpretado
conforme a Constituição da República.
Rio de Janeiro: Renovar, 2004; p. 106.
FGV DIREITO RIO
123
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
iv) Teoria da pessoa jurídica como realidade técnica — Segundo expõe essa
teoria, não se pode afastar a idéia de que as pessoas jurídicas são instituições
que de fato existem e que sendo titulares de direitos e obrigações, integram
relações transitando como verdadeiros atores jurídicos. Não se pode, portanto, conceber sua existência como fictícia, mas sim como um expediente que
embora real, resulta de elucubração da técnica jurídica.
v) Teoria institucionalista de Hauriou — A pessoa jurídica seria uma estrutura orgânica. Quando a instituição alcança certo grau de concentração e de
organização torna-se automaticamente pessoa jurídica.
No direito brasileiro as pessoas jurídicas têm realidade objetiva, pois assim
é determinado pelo artigo 45 do CC2002:
Art. 45. Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com
a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário,
de autorização ou aprovação do Poder Executivo, averbando-se no registro todas as
alterações por que passar o ato constitutivo.
Parágrafo único. Decai em três anos o direito de anular a constituição das pessoas
jurídicas de direito privado, por defeito do ato respectivo, contado o prazo da publicação de sua inscrição no registro.
Pessoas Jurídicas de Direito Privado
O Art. 44 do CC2002 elenca as pessoas jurídicas de direito privado. São
elas: (i) as associações; (ii) as sociedades; (iii) as fundações; (iv) as organizações religiosas; e (v) os partidos políticos.
Essa foi matéria sofreu grande reformulação com a edição do novo Código
Civil. A parte geral desse diploma só trata das associações e fundações, reservando a disciplina das sociedades à parte especial.
As sociedades, como se observará na disciplina do direito empresarial,
podem ser simples ou empresárias. A sua distinção pode ser depreendida no
art. 966:
Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.
Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual,
de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou
colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.
Por fim, evitando enveredar por minúcias, o art. 982 do CC2002 alude
às sociedades empresárias como aquelas que, salvo exceções expressas, têm
por objeto o exercício de atividade própria de empresário sujeito a registro.
FGV DIREITO RIO
124
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Considera o Código Civil todas as demais, incluindo as cooperativas, como
sendo sociedades simples.
Sobre a distinção entre sociedades e associações, explana Sérgio Campinho que “[d]istinguem as sociedades das associações, a finalidade econômica
que inspira essa comunhão de esforços pessoais que mantém seus integrantes
associados. Nas associações os integrantes não visam à partilha de lucro (...).
Nas sociedades, o ponto central da união de seus integrantes é a exploração
de atividade com finalidade econômica, buscando a obtenção e divisão dos
ganhos havidos nessa exploração”171
As fundações, por sua vez, caracterizam-se mediante a afetação de patrimônio para determinado fim pré-estabelecido por um instituidor. Não há
uma conjugação de esforços que represente animus associativo e lhes é defeso
qualquer outro objeto que não seja a persecução de fins religiosos, morais,
culturais ou de assistência (art. 62 CC2002).
A Lei nº 10.825/2003 acrescentou os incisos IV e V ao rol de pessoas jurídicas de direito privado. O primeiro reflexo da alteração é que as igrejas deixaram de figurar como entidades de classe para se tornarem pessoas jurídicas
de direito privado. A teleologia dessa alteração foi a proteção a autonomia das
organizações religiosas. Garante-se a liberdade de criação, organização, estruturação interna e funcionamento, vedando-se a ingerência do poder público.
A outra alteração foi relativa aos partidos políticos, que embora já considerados como pessoas jurídicas de direito privado por conta da edição da lei
nº 9.096/95, e pela disposição constitucional constante no §2º do art. 17 da
CF, não havia sido encampada pela redação original do CC2002. Com a edição da lei nº 10.825, supre-se essa omissão legislativa. O seu funcionamento,
contudo, reger-se-á por lei específica.
Requisitos para constituição da pessoa jurídica
Para a Constituição de uma pessoa jurídica exigem-se três requisitos básicos:
(i) Vontade humana criadora;
(ii) Observância das condições legais para sua formação;
(iii) Liceidade de sua finalidade.
A pessoa jurídica é criada por uma pluralidade inicial de membros que
se transformam, mediante assentimento de todos, numa unidade autônoma.
Esse vínculo de unidade é elemento que caracteriza precisamente o momento
de constituição da pessoa jurídica. Após esse período inicial de manifestação
de vontade, a pessoa jurídica passa a existir, mas ainda num estado de latência.
Todavia, não só do agrupamento de indivíduos pode defluir a formação de
uma pessoa jurídica. A vontade, sempre a mola-mestra formadora, se apresen-
171
Sergio Campinho. O Direito da Empresa à luz do novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002; p. 32.
FGV DIREITO RIO
125
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ta em certas ocasiões como a destinação de bens de uma pessoa como vistas
à consecução de um a determinada finalidade. Esse é o caso das fundações.
A observância das determinações legais é outro dos requisitos. Somente
com o regular adimplemento dos requisitos estipulados por lei pode a pessoa
jurídica operar os efeitos pretendidos. Em certos casos, inclusive, a constituição de algumas pessoas jurídicas só pode se processar com autorização estatal.
É a lei que regulamenta a inscrição no Registro Público como condição de
existência legal da pessoa jurídica.
O fim intentado pelo ente que se quer formar deve ser obrigatoriamente
lícito. Não se pode conferir capacidade a instituição cujo fim atente contra a
ordem jurídica.
Nacionalidade das pessoas jurídicas
A nacionalidade interessa sobretudo ao regime das pessoas jurídicas de
direito privado, sobretudo por conta da grande dinâmica das relações empresariais e da distribuição espacial das atividades produtivas desempenhadas
pelas empresas.
Para os que adotam a teoria da ficção, a pessoa jurídica não tem nacionalidade. Sendo mera ficção, ela não é nem nacional nem estrangeira. Contudo,
para os autores que de fato admitem a sua existência, como aqueles que adotam a teoria da realidade técnica, faz-se necessário analisar a nacionalidade
da pessoa jurídica, e nesse contexto, o eixo de análise está focado no local de
constituição da pessoa.
O critério correntemente adotado é o do local da constituição, não se
atentando, como prescrevem alguns autores, para a nacionalidade dos membros ou para o lugar central da sede de negócios da pessoa. Esse inclusive é o
entendimento expressamente manifesto no art. 11 da Lei de Introdução ao
Código Civil:
Art. 11° — As organizações destinadas a fins de interesse coletivo, como as sociedades e as fundações, obedecem à lei do Estado em que se constituírem.
Capacidade e representação da pessoa jurídica
A personalidade das pessoas jurídicas é adquirida no momento em que
é feito o registro de seu ato constitutivo. Logicamente, essa titularidade só
abarca aqueles direitos compatíveis com a condição de ente fictício, ou seja,
os patrimoniais. Tradicionalmente concebia-se que às pessoas jurídicas, em
regra, não seria dado conferir direitos personalíssimos, mas o art. 52 do
CC2002 traz um entendimento distinto. Segundo o referido artigo:
FGV DIREITO RIO
126
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 52. Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da
personalidade.
No exercício desses direitos a pessoa jurídica recorre a pessoas físicas que a
representam. Esse entendimento, que era manifesto no artigo 17 do código
de 1916, não foi expressamente repetido pelo CC2002. Limita-se o Código,
contudo, a aludir em seu art. 46, III, que cuida dos requisitos para o registro
das pessoas jurídicas, que o mesmo declare o modo por que se administra e
representa, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente.
As pessoas jurídicas, em especial no âmbito do direito societário, possuem
uma ampla gama de regras pautando a responsabilidade dos seus administradores. De forma sucinta pode-se afirmar que tendo a pessoa jurídica existência distinta daquela relativa aos membros que a integram, o ato exarado
por seu representante a vincula, bastando somente que ele atue dentro dos
poderes que o ato constitutivo da sociedade lhe confira.
Pessoas jurídicas de direito público
As pessoas de direito público são aquelas especificadas pelo art. 41 do
CC2002. O seu estudo será melhor detalhado na disciplina do direito administrativo. As entidades citadas nesse artigo são tanto as que compõem a administração direta (União, Estados e Municípios) como algumas das que integram a administração indireta (autarquias, fundações públicas, entre outras):
Art. 41. São pessoas jurídicas de direito público interno:
I — a União;
II — os Estados, o Distrito Federal e os Territórios;
III — os Municípios; (...)
IV — as autarquias, inclusive as associações públicas; (Redação dada pela Lei nº
11.107, de 2005)
V — as demais entidades de caráter público criadas por lei.
Parágrafo único. Salvo disposição em contrário, as pessoas jurídicas de direito
público, a que se tenha dado estrutura de direito privado, regem-se, no que couber,
quanto ao seu funcionamento, pelas normas deste Código.
A principal distinção existente, pelo menos no âmbito do direito civil,
remete à responsabilidade dessas entidades. A disciplina jurídica, como será
estudado mais à frente, volta-se no sentido de resguardar a pretensão indenizatória do indivíduo lesado por atos dessas pessoas jurídicas por intermédio
da doutrina da responsabilidade objetiva.
FGV DIREITO RIO
127
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito privado
Da mesma forma que as pessoas físicas, a responsabilidade civil das pessoas
jurídicas deve ser concebida nos planos contratual e extracontratual. Se a pessoa jurídica age de forma a causar prejuízo, sendo esse resultante de infração
a um determinado contrato pactuado, estar-se-á diante da responsabilidade
contratual. Por outro lado, se não há vínculo contratual entre o causador do
dano e o prejudicado, a responsabilidade é extracontratual.
Os elementos clássicos da responsabilidade civil são a conduta culposa do
agente, o dano e o nexo de causalidade ligando o dano à prática daquela conduta. Na responsabilidade subjetiva, só haverá reparação provando-se a culpa
do agente. É a tese encampada no CC2002 no art. 186.
A responsabilidade objetiva, por sua vez, independe da culpa. Seus elementos configuradores são o dano e o nexo causal. É uma concepção mais sofisticada e que reside paralelamente à teoria da responsabilidade subjetiva. O
legislador define as hipóteses de cabimento de responsabilidade, aplicando-se
ora a teoria subjetiva, ora a objetiva. A lei brasileira, sobretudo no que toca
ao Código de Defesa do Consumidor já havia perfilhado uma concepção objetiva da culpa, e agora, ela encontra respaldo também no Código Civil que
a prevê nos arts. 927 e 931, dentre outros.
Quanto à responsabilidade contratual, na hipótese de inadimplemento,
dispõe o artigo 389 que:
Art. 389. Não cumprida a obrigação, responde o devedor por perdas e danos,
mais juros e atualização monetária segundo índices oficiais regularmente estabelecidos, e honorários de advogado.
Já com relação à responsabilidade extra-contratual, Silvio Rodrigues proclama que “até a vigência do Código de 2002, quando pessoa jurídica de finalidade lucrativa causasse dano a outrem por ato de seu representante, surgia
uma presunção juris tantum de culpa in eligendo e in vigilando, que precisava
ser destruída pela própria pessoa jurídica, sob pena de ser condenada solidariamente à reparação do prejuízo”172 O código de 2002 não repete essa regra,
a qual era inscrita no art. 1522 do diploma anterior, de maneira que essa
presunção de culpa tornou-se expediente obsoleto.
Para o tratamento da responsabilidade das pessoas jurídicas, faz-se necessário consultar os artigos 927 (responsabilidade objetiva por risco) e 932, III,
(responsabilidade do empregador pelos atos do empregado):
172
Sílvio Rodrigues. Direito Civil, v. I. São
Paulo: Saraiva, 2004; p. 95.
FGV DIREITO RIO
128
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 927. Aquele que, por ato ilícito (arts. 186 e 187), causar dano a outrem,
fica obrigado a repará-lo.
Parágrafo único. Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de
culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem.
Art. 932. São também responsáveis pela reparação civil:
(...) III — o empregador ou comitente, por seus empregados, serviçais e prepostos,
no exercício do trabalho que lhes competir, ou em razão dele;
Art. 933. As pessoas indicadas nos incisos I a V do artigo antecedente, ainda
que não haja culpa de sua parte, responderão pelos atos praticados pelos terceiros ali
referidos.
No campo das relações de consumo, a lei nº 8078/90 (Código de Defesa
do Consumir), atentando para a desproporção de forças que se opera nessa
seara, já previa uma forma de responsabilização por parte dos fornecedores,
fundada na teoria da responsabilidade objetiva, isto é, que independe da prova de culpa a ser realizada pelo consumidor lesado.173
Desconsideração da personalidade jurídica
A pessoa jurídica surge com o principal escopo de fazer com que o homem
tenha o instrumental necessário a superação de suas limitações, sobretudo as
de natureza física. Contudo, vezes há em que os indivíduos se valem desses
entes cuja personalidade não se confunde com a das pessoas que lhe administram, para praticar ilegalidades. Em muitos casos, o tamanho da estrutura
montada para o desenvolvimento das atividades da pessoa jurídica oculta
com facilidade o verdadeiro proprietário dos bens. É justamente essa idéia
que vem a inspirar a idéia de desconsideração da personalidade jurídica.
Não se pode consentir que se recorra à personalidade da pessoa jurídica para encobrir a prática de ilícitos. Dessa forma, deve o julgador abstrair
a idéia de personalidade jurídica para considerar os seus integrantes como
pessoas físicas, responsabilizando-as diretamente, com os seus patrimônios,
pelos prejuízos causados.
A desconsideração da personalidade jurídica está prevista no CC2002 em
seu art. 50, da seguinte forma:
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio
de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da
parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos
de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares
dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.
173
Sérgio Cavalieri Filho, no seu Programa de Responsabilidade Civil, explicita
no tocante à responsabilidade nas relações de consumo que: “Veremos que a
responsabilidade estabelecida no Código de Defesa do Consumidor é objetiva,
fundada no dever e segurança do fornecedor em relação aos produtos e serviços lançados no mercado de consumo,
razão pela qual não seria também
demasiado afirmar que, a partir dele,a
responsabilidade objetiva, que era exceção em nosso direito, passou a ter um
campo de incidência mais vasto do que
a própria responsabilidade subjetiva”
(São Paulo: Malheiros, 2004; p. 40).
FGV DIREITO RIO
129
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O Código de Defesa do Consumidor, em seu art. 28, já mencionava a
possibilidade de desconsideração. Ressalte-se que a técnica legislativa nele
empregada é distinta daquela presente no CC2002, ao dispor no seguinte
sentido:
Art. 28 CDC. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade
quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder,
infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência,
encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
Resta claro que o aplicador do direito, no uso desses dispositivos, deve
ser parcimonioso, afinal, o princípio que orienta a teoria da personalidade
jurídica é justamente a distinção entre a pessoa da sociedade, associação ou
fundação daqueles que a gerem ou a compõem. Ou seja, considerarem-se
distintos os patrimônios das pessoas jurídicas e os de cada um dos sócios que
a compõem, não respondendo pelas obrigações da sociedade o patrimônio do
sócio, senão em caráter excepcional. Na lógica da desconsideração, deve-se
atentar que a finalidade buscada pela lei é justamente a salvaguarda do credores lesados, e não o benefício da própria pessoa jurídica.
Extinção da pessoa jurídica
O artigo 21 do CC1916 mencionava as hipóteses de extinção das pessoas
jurídicas:
“Art. 21. Termina a existência da pessoa judicial:
I — pela sua dissolução, deliberada entre os seus membros, salvo o direito da
minoria e de terceiros;
II — pela sua dissolução, quando a lei determine;
III — pela sua dissolução em virtude de ato do Governo, que lhe casse a autorização para funcionar, quando a pessoa jurídica incorra em atos opostos aos seus fins
ou nocivos ao bem público”
De acordo com a ordem dos incisos, têm-se respectivamente as hipóteses
de dissolução: autêntica, quando decorrente de expressa manifestação dos
membros; legal, quando a lei assim determina; e administrativa, quando o
fim da personalidade deriva de ato administrativo.
Sendo pessoa jurídica com fins lucrativos, no caso de dissolução, o seu patrimônio é distribuído entre os seus integrantes. Por outro lado, tratando-se
FGV DIREITO RIO
130
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
de uma associação, que visa à fins pios, religiosos ou culturais, a questão da
distribuição do capital remanescente engloba alguns outros fatores.
Primeiramente, deve-se buscar auxílio no que dispõem os estatutos. Caso
esses sejam silentes, deve-se inquirir se os sócios realizaram alguma deliberação discutindo a destinação do capital. Se ainda assim não se apresentar
solução, deve-se recorrer ao art. 61 do Código Civil, que afirma a necessidade
de devolver o patrimônio a um estabelecimento público congênere ou de fins
semelhantes. Inexistindo instituições com esse caráter, deve o patrimônio ser
revertido à fazenda pública.
2. CASO GERADOR
No dia 11 de junho de 1996 houve uma explosão no Osasco Plaza Shopping, centro comercial localizado na cidade de mesmo nome, no Estado
de São Paulo. O movimento de consumidores no shopping no momento da
explosão era intenso, uma vez que se tratava da véspera do dia dos namorados. A explosão ocorreu no horário de almoço, nas proximidades da praça de
alimentação. Segundo laudo técnico, a explosão ocorreu em decorrência de
acúmulo de gás em espaço livre entre o piso e o solo. Como conseqüência do
acidente, 40 pessoas foram mortas e mais de 300 ficaram feridas.
Foram propostas diversas ações indenizatórias contra a empresa que administra o shopping. Ao ser constatado que a mesma não mais possuía capital
para ressarcir as vítimas do acidente, questionou-se a possibilidade de ser
aplicada a desconsideração da personalidade jurídica, atingindo diretamente
o patrimônio dos sócios da referida sociedade.
É possível a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica da empresa que explora a administração do shopping center em ações indenizatórias propostas por pessoas que sofreram danos por conta do acidente narrado?
Justifique com base na legislação.
3. QUESTÃO DE CONCURSO:
Prova para ingresso no cargo de Procurador do Estado do Rio de Janeiro (13º
concurso)
1ª Questão: (25 pontos)
Compare a disciplina da desconsideração da personalidade jurídica no
Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil.
FGV DIREITO RIO
131
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
UnB/CESPE — OAB
39º Exame de Ordem 2009.2
QUESTÃO 23
Os sócios da Frente e Verso Tecidos Ltda. Praticaram atos desvirtuados da
função da pessoa jurídica, constatando-sefraude relativa à sua autonomia patrimonial. Os credores propuseram a ação judicial competente e o juízo a quo
decretoua desconsideração da personalidade jurídica da referida sociedade.
Considerando a situação hipotética apresentada e a disciplina normativa da
desconsideração da personalidade jurídica, assinale a opção correta.
A. O juízo a quo não tem competência para decretar a desconsideração da personalidade jurídica da Frente e Verso Tecidos Ltda., mas
apenas para decidir por sua dissolução, total ou parcial, nos casos de
fraude relativa à autonomia patrimonial.
B. A decretação da desconsideração da personalidade jurídica da Frente e Verso Tecidos Ltda. acarreta sua liquidação.
C. A decisão judicial importará na extinção da Frente e Verso Tecidos
Ltda., com a posterior liquidação de seus bens materiais e imateriais.
D. A desconsideração da personalidade jurídica importará na retirada
momentânea da autonomia patrimonial da Frente e Verso Tecidos
Ltda., para estender os efeitos de suas obrigações aos bens particulares de seus sócios.
Resposta: D
FGV DIREITO RIO
132
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 12 — PESSOAS JURÍDICAS — SOCIEDADE, ASSOCIAÇÕES E
FUNDAÇÕES
EMENTÁRIO DE TEMAS
Sociedades — Associações — Fundações
LEITURA OBRIGATÓRIA
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, vol. I. Rio de
Janeiro: Forense, 2005; pp. 343/365.
LEITURAS COMPLEMENTARES
CAMPINHO, Sérgio. O Direito de Empresa à Luz do Código Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003; pp. 33/58.
1. ROTEIRO DE AULA
O artigo 53 do código civil afirma que associações são entidades criadas visando à consecução de fins não lucrativos. As sociedades, por sua vez, diferemse das associações na medida em que objetivam o lucro.
Um aspecto inicial de que não se pode abstrair é a idéia de que as associações e as sociedades civis possuem seu campo de ação limitado exclusivamente à órbita civil, distinguindo-se assim das modalidades delineadas pelo direito empresarial (cuja previsão encontra-se a partir do art. 966 do CC2002).
Destaque-se que o parágrafo único do art. 53 corrobora a idéia de que a
pessoa jurídica difere, em sua personalidade, da de seus componentes, pois
expressa que entre eles não defluem obrigações.
Sob a égide do CC1916, havia dúvida acerca do que caracterizaria o termo
“associação sem fins econômicos”. Dessa forma, é necessário destacar que a
não existência de fins econômicos refere-se a não persecução de lucro. Lucro
esse que sendo auferido pelo exercício do objeto social é revertido em prol
daqueles que a compõem.
Todavia, nem sempre o fato da associação lidar ordinariamente com valores pecuniários implica na idéia de que ela visa a obter lucro. Esse é o caso
por exemplo de um clube recreativo que cobra uma mensalidade de seus
membros. Os valores visam somente à conservação e ao aumento de capital
FGV DIREITO RIO
133
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
da própria entidade. Aqueles que a integram, beneficiar-se-ão apenas de forma indireta, como na fruição de melhores dependências, mas não há que se
falar quantias que lhes sejam devidas.
Preenchidos certos requisitos, as pessoas jurídicas de direito privado podem ser declaradas de utilidade pública. Essa declaração deverá ocorrer por
decreto do Poder Executivo, quando o seu escopo se prestar à perpetuação de
bens públicos para a coletividade e não sendo remunerados os cargos de diretoria. Em que pese a maior proteção do Estado, essas entidades continuam
sendo pessoas jurídicas de direito privado.
Associações
O CC2002 regula as associações nos artigos 53 a 61. O tratamento das
associações passa ainda pelo preceito constitucional relativo à liberdade de
associação, constante do art. 5º, XVII.
Todas as atividades lícitas podem ser buscadas pelas associações, como as
pias, religiosas, esportivas, literárias. Verifica-se assim que desempenham relevante papel social. Constitui portanto ilicitude quando a entidade se forma
sob a modalidade de associação e opera com desvio de finalidade em suas
ações.
O art. 54 do CC2002 trata dos requisitos obrigatórios para a regular constituição de uma associação. São requisitos mínimos que devem constar no
estatuto da associação: (i) a denominação, os fins e a sede da associação; (ii) os
requisitos para a admissão, demissão e exclusão dos associados; (iii) os direitos e deveres dos associados; (iv) as fontes de recursos para sua manutenção;
(v) o modo de constituição e de funcionamento dos órgãos deliberativos; (vi)
as condições para a alteração das disposições estatutárias e para a dissolução;
e (vii) a forma de gestão administrativa e de aprovação das respectivas contas.
Nesse particular, explicita Venosa que “[é] importante que o estatuto estabeleça a proveniência dos fundos, que podem derivar de contribuições iniciais
e periódicas dos próprios associados ou de doações de terceiros. Nada impede
que a associação exerça alguma atividade que lhe forneça meios financeiros, sem
que com isso se descaracterizem suas finalidades. O exame será muito mais do
caso concreto. Assim, por exemplo, uma agremiação esportiva ou social pode
cobrar por serviços de locação de suas dependências para eventos; pode vender
lembranças e uniformes; pode cobrar pelos serviços de fisioterapia; exames médicos, etc. O que importa verificar é se não existe desvio de finalidade.”174
Os estatutos constituem a lei orgânica das associações, contendo normas
de caráter cogente para os seus fundadores e todos aqueles que futuramente
decidam participar dela. Justamente, a affectio societatis se manifesta pela adesão à associação e aos regulamentos que a compõem.
174
Silvio Venosa. Direito Civil, v. I. São
Paulo: Atlas, 2004; p. 292.
FGV DIREITO RIO
134
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O Art. 55 do CC2002 estipula que não há necessidade de tratamento
igual a todos os associados. Existe assim a possibilidade de instituir categorias
com vantagens especiais.175 Ainda sobre distinção entre associados, o art. 56
alude a duas categorias distintas de associados: os com ou sem participação
em quota ou fração ideal do patrimônio da entidade (sócios patrimoniais e
sócios meramente contributivos).
Mesmo na primeira hipótese de vínculo associativo, a transferência a outrem dessa parcela patrimonial, por negócio inter vivos ou mortis causa, não
tem de per si o poder de converter o sucessor em sócio. Deverão ser observadas as disposições estatutárias da associação, não lhe sendo vetado obstar que
esse terceiro estranho ao corpo social passe a integrá-lo. A idéia fundamental
é que a sociedade faça um juízo de oportunidade e conveniência quanto à
admissão de novos sócios. Isso se corrobora com a idéia de que em regra a
condição de sócio é intransmissível, salvo permissão do estatuto (art. 56).
No caso de dissolução da associação, o restante do patrimônio líquido,
depois de deduzidas as quotas dos associados será, na forma do art. 61, destinada a entidades de fins não econômicos. Elas podem ser tanto designadas
no estatuto, ou no caso de omissão deste, por deliberação dos associados. Em
qualquer caso, o destinatário será instituição municipal, estadual ou federal
cujos fins são semelhantes.
Fundações
A fundação é uma universalidade de bens — universitas bonorum — a que a
lei atribui personalidade jurídica. Segundo expõe Silvio Rodrigues: “se o direito
tem por escopo proteger os interesses humanos, é de certo modo ilógico imaginar
a atribuição de personalidade a um acervo de bens. Todavia, a objeção pode ser
contornada se considerarmos que, embora a fundação consista num patrimônio,
a sua instituição almeja atingir a satisfação de algum interesse humano.”176
Diferentemente das sociedades e associações que se assentam na idéia de
uma coletividade de pessoas unidas por um fim comum, o núcleo das fundações resta num determinado acervo de bens. O ponto nuclear, portanto, não
é mais affectio societatis de alguns indivíduos, mas a reserva de determinado
patrimônio para o atingimento de determinados objetivos. O artigo 62 inaugura o capítulo próprio das fundações:
Art. 62. Para criar uma fundação, o seu instituidor fará, por escritura pública
ou testamento, dotação especial de bens livres, especificando o fim a que se destina, e
declarando, se quiser, a maneira de administrá-la.
Parágrafo único. A fundação somente poderá constituir-se para fins religiosos,
morais, culturais ou de assistência.
175
Art. 55. Os associados devem ter
iguais direitos, mas o estatuto poderá
instituir categorias com vantagens
especiais.
176
Silvio Rodrigues. Direito Civil, v. I. São
Paulo: Saraiva, 2004; p. 99.
FGV DIREITO RIO
135
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
No iter constitutivo de uma fundação, é preciso destacar dois momentos
distintos: por um lado, existe um ato de fundação propriamente dito, que
deriva da emanação de vontade, e por outro, o ato de dotação de um patrimônio que lhe dará vida.
Como dita o art. 62, o ato de dotação compreende a reserva de bens livres,
a indicação dos fins e a maneira pela qual o acervo será administrado, podendo ser feito tanto por escritura pública como por testamento.
Os bens indicados nessa dotação devem estar livres e desembaraçados,
pois qualquer ônus que recaia sobre eles poderia obstar a formação da entidade, atentando, concomitantemente, contra o relevante interesse social que
ela visa a alcançar.
A doutrina distingue duas modalidades de instituição: a direta e a fiduciária. De acordo com a primeira, o instituidor delineia, através da manifestação
de sua vontade, um número maior de contornos que a fundação deve abarcar.
Nela, é o próprio instituidor que projeta e regulamenta a fundação. No caso
da formação fiduciária, a responsabilidade pela organização da fundação é
delegada a outrem. O instituidor tão somente afeta os bens àquele objetivo,
mas não interfere diretamente na sua concretização.
A lei confere ainda especial proteção aos bens dotados que não formam
montante suficiente para a constituição da fundação. Sob essa constatação
existiria perspectiva quase certa de se frustrar o intento do instituidor. Sobre
o tema, prescreve o art. 63 do CC2002 que nessas circunstâncias, os bens
destinados à fundação serão, se de outro modo não dispuser o instituidor,
incorporados em outra fundação que se proponha a fim igual ou semelhante.
Dispositivo que não encontra paralelo no CC1916 é o art. 64. Ele confere
nova dimensão ao princípio da irrevogabilidade de declaração de vontade do
instituidor, na medida em que nem mesmo aquele que realiza a dotação tem
a faculdade de revogá-la. O intento do legislador é coibir que a constituição
de uma fundação se torne subterfúgio para o aperfeiçoamento de um fim
jurídico ou moralmente escuso.
Dado o relevante fim social em jogo, os artigos 65 e 66 do CC2002 mencionam algumas atribuições conferidas ao Ministério Público com respeito às
fundações. Os arts. 1199 e seguintes do CPC tratam também da fiscalização
e organização das fundações, especificando algumas funções reservadas ao
Ministério Público.
O art. 69 do CC2002, por fim, prevê os casos em que se deve processar a
dissolução das fundações. A extinção pode ser requerida por qualquer interessado ou pelo Ministério Público, sendo a mesma decretada por sentença.
O patrimônio deverá ser incorporado em outra fundação de fins semelhantes
determinada no estatuto ou ato constitutivo. Na omissão destes, o patrimônio será destinado à outra fundação designada pelo juiz.
FGV DIREITO RIO
136
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Sociedades
O traço distintivo da sociedade perante as associações é a busca do lucro
no desenvolvimento de suas atividades. Em função do seu objeto ou da forma societária adotada, as sociedades podem ser ou empresárias ou simples.
Nas sociedades empresárias, o elemento essencial para a sua caracterização
é o caráter profissional de sua gerência, que se expressa no exercício de modo
habitual da atividade econômica e no intento de obter lucratividade.
Recorrendo a elementos constantes da redação do art. 966, a sociedade
empresária é aquela que explora habitualmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. A busca pelo
lucro e a idéia de profissionalismo são, como visto, traços caracterizadores
fundamentais.
As sociedades simples, por sua vez, não são aquelas destituídas do escopo
de angariar lucro, uma vez que essa é característica própria de todas as sociedades. A sociedade simples, portanto, também executa atividade econômica
e seus integrantes partilham os resultados auferidos.
Essa sociedade tem as suas atividades econômicas especificadas na legislação. É o ordenamento jurídico positivo quem lhe reserva o objeto social e
confere a qualificação como sociedade simples. Trata-se, portanto, de uma
opção legislativa.
Sendo assim, serão sociedades simples todas aquelas que adotarem: (i)
forma de cooperativa; (ii) exercerem objeto atinente à atividade própria de
empresário rural; ou ainda (iii) executarem atividades definidas por lei como
não empresariais, como as localizadas no parágrafo único do art. 966 do
CC2002.
QUESTÕES DE CONCURSO:
Exame da Ordem — OAB/SP nº 126
21. Relativamente às associações civis é INCORRETO afirmar:
(A) As associações civis constituem um conjunto de pessoas que colimam fins ou interesses não econômicos, que podem ser alterados,
pois seus membros deliberam livremente, já que seus órgãos são
dirigentes.
(B) O ato constitutivo da associação consiste num conjunto de cláusulas contratuais vinculantes, que unem seus fundadores e os novos
associados que, quando nela ingressarem, deverão submeter-se aos
seus comandos.
(C) A associação deverá ser constituída, por escrito, mediante redação
de um estatuto, lançado no registro competente, contendo decla-
FGV DIREITO RIO
137
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ração unânime da vontade dos associados de se congregarem para
formar uma coletividade, não podendo adotar
(D) qualquer das formas empresárias, visto que lhe falta o intuito especulativo.
(E) A associação é um contrato pelo qual um certo número de pessoas,
ao se congregar, coloca em comum serviços, atividades, conhecimentos, em prol de um mesmo ideal, objetivando um fim não econômico ou econômico, com ou sem capital, com
(F) ou sem intuitos lucrativos.
Exame da Ordem — OAB/SP nº 125
23. No que diz respeito às pessoas jurídicas, é INCORRETO afirmar:
(A) As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis
pelos atos de seus agentes que nessa qualidade causem danos a terceiros, ressalvado direito regressivo contra os causadores do dano, se
houver, por parte destes, culpa ou dolo.
(B) Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito público
com a inscrição do ato constitutivo no registro pertinente, decaindo
em cinco anos o direito do particular interessado pleitear a anulação
de seus atos constitutivos.
(C) São pessoas jurídicas de direito público externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.
(D) Obrigam a pessoa jurídica os atos dos administradores, exercidos
nos limites de seus poderes definidos no ato constitutivo.
Exame da Ordem — OAB/SP nº 123
21. Alberto instituiu uma fundação por escritura particular, com finalidade educacional, e com dotação de bens livres, tendo registrado o instrumento
no Cartório de Títulos e Documentos, deixando de mencionar a maneira de
administrá-la.
(A) A fundação não está corretamente instituída; todavia, o registro supre a irregularidade, uma vez que a finalidade é válida, sendo possível estipular, a posteriori, o modo de administrá-la.
(B) A fundação está corretamente instituída, com registro e finalidade
perfeitos, podendo estabelecer-se, a posteriori, o modo de administrá-la.
(C) A fundação está corretamente instituída, porque, nela, o essencial é
a finalidade e a dotação de bens livres.
(D) A instituição fundacional é nula, integralmente, como nulo é o seu
registro.
FGV DIREITO RIO
138
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
PARTE III: DIREITO DOS BENS
AULA 13 — CONCEITOS ESTRUTURAIS — BENS
EMENTA
Conceito de Bens — Classificação dos Bens — Bens Corpóreos e Incorpóreos
— Bens Móveis e Imóveis — Bens fungíveis e infungíveis — Bens consumíveis e
não-consumíveis — Bens divisíveis e indivisíveis — Bens disponíveis e indisponíveis — Bens públicos e particulares — Bens de produção
CASOS GERADORES
“Roubo de Terras” e “Apreensão de Caça-Níqueis”
LEITURA OBRIGATÓRIA
CALIXTO, Marcelo Junqueira. “Dos Bens”, in TEPEDINO, Gustavo (org).
Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp.
149/176.
LEITURAS COMPLEMENTARES
EBERLE, Simone. “Novos bens para novos tempos: por uma teoria coerente e unificada dos bens”, in Revista Trimestral de Direito Civil nº 23
(2005), pp. 105-118; e AMARAL, Francisco. Direito Civil — Introdução. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 297/327.
1. ROTEIRO DE AULA
A presente aula visa a estabelecer um dos conceitos-chave do direito civil:
o estudo dos bens. A disciplina relativa aos bens se confunde com uma série de classificações, dando a impressão de que conhecer a matéria significa
apenas decorar todas as classificações apresentadas pelos livros. Como você
verá, aprender a classificar os bens é um exercício de primeira importância no
direito civil moderno, pois é justamente a classificação que determinará, em
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139
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
diversas hipóteses, a natureza de um contrato ou a possibilidade de um bem
ser objeto de penhora.
Mas o que é um “bem”? Para Caio Mário, bem é tudo aquilo que agrada
ao homem, podendo ser inseridos nessa categoria os seguintes elementos:
a alegria de viver o espetáculo do pôr-do-sol177, o dinheiro, a herança de
um parente, entre outros. Mas não será que existe uma diferença entre
aplaudir o pôr-do-sol e receber uma herança? A primeira distinção que
pode se fazer é com base no critério da patrimonialidade. Todavia, é importante lembrar que a patrimonialidade não é requisito necessário para a
caracterização de um bem jurídico, pois o direito também reconhece bens
que não podem ser apreciados economicamente, como o direito ao nome
e o estado de filiação.
Segundo expõe Caio Mário, “[o]s bens, especialmente considerados,
distinguem-se das coisas, em razão da materialidade destas: as coisas são
materiais ou concretas, enquanto que se reserva para designar os imateriais
ou abstratos o nome de bens, em sentido estrito.” Nesse sentido, entende
o autor que a diferenciação entre bem e coisa se refere à materialidade do
objeto de análise.
Os entendimentos sobre o tema variam inclusive na legislação estrangeira.
O Código Civil português determina que “coisa” tudo aquilo que pode ser
objeto de relações jurídicas178. Os italianos, por sua vez, também consideram
“coisa” um termo mais amplo do que “bem”.
O Código Civil de 1916 não adotou nenhum desses entendimentos,
usando os termos “bem” e “coisa” indistintamente179. Essa imprecisão terminológica foi encerrada no Código Civil de 2002, unificando a linguagem. O
Código refere-se apenas a “bens”, englobando tanto os bens materiais como
os imateriais, não sendo necessário fazer-se a distinção entre “bem” e “coisa”.
Bens Corpóreos e Incorpóreos
Divisão vinda do direito romano, as “coisas corpóreas” (“res corporales”)
são os bens materiais, tangíveis, “que podem ser tocados” (“quae tangi possunt”). Bens incorpóreas são os chamados bens imateriais, ou seja, que não
podem ser tocados.180
Todavia, deve-se ressaltar que o critério de diferenciação não pode ser em
si a tangibilidade, uma vez que a corporalidade (meio físico) por vezes só
pode ser estabelecida por via indireta. O interesse prático dessa distinção reside no fato de que os bens corpóreos podem ser objeto de compra e venda,
enquanto os incorpóreos só podem ser objeto de cessão lato sensu, como os
direitos autorais sobre obra artística.
177
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol 1. Rio de Janeiro: Forense, 2004; p. 400.
178
Código Civil Português, art. 202.
179
Código Civil Brasileiro (1916), art.
54: “As coisas simples ou compostas,
materiais ou imateriais, são singulares
e coletivas (...)”.
180
José Cretella Júnior. Curso de Direito
Romano. Rio de Janeiro: Forense, 1995;
p. 110.
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140
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Bens Imóveis
Para o direito civil clássico, a principal classificação de bens é aquela que
os divide em bens móveis e imóveis. Diversas são as conseqüências dessa
classificação, pois o tratamento concedido a um bem, dependo se for móvel
ou imóvel, varia desde o seu registro, além de alcançar a transmissão da propriedade, a disciplina das garantias reais, etc.
A importância concedida ao bem imóvel, em especial, deriva de sua tradição em ser associado à riqueza. O direito romano já fazia essa distinção para
privilegiar os bens imóveis, ou seja, a terra, e os instrumentos diretamente
necessários para sua exploração como escravos e animais (res mancipi).
A trajetória brasileira também seguiu (e ainda segue) a prevalência dos
bens imóveis como sinônimo de riqueza. Esse contexto apenas recentemente começou a ser modificado, principalmente com a crescente importância
atualmente dedicada ao regime da propriedade intelectual (direitos autorais,
marcas e patentes).
Entretanto, a tradição agrária não foi eliminada no direito brasileiro, fazendo-se presente no tratamento concedido aos bens imóveis. Essa constatação passa pela formalidade para a transmissão da propriedade imobiliária e
se torna mais evidente na necessidade apresentada pelo mercado de fiadores
possuírem bens imóveis.
Os bens imóveis são divididos em quatro categorias:
(i) por natureza: trata-se do solo e tudo o que lhe é aderente sem a intervenção humana. Dessa forma, árvores, arbustos e plantas são imóveis por
estarem presas ao solo pela raiz, mesmo se tiverem sido plantadas;
(ii) por acessão física: tudo o que o homem incorpora permanentemente ao
solo, como a semente lançada à terra, os edifícios e as construções que não
podem ser retiradas sem sua destruição, modificação, fratura ou dano. Os
pavilhões para exposição que são posteriormente destruídos são imóveis por
acessão. São excluídas desse regime as construções como barracas de feiras,
tendas de circo e parques de diversão itinerantes.
(iii) por acessão intelectual: são bens móveis que se tornam imobilizados
pela vontade humana, como “máquinas instaladas numa indústria, um quadro pendurado na parede de uma residência, um trampolim beirando uma
piscina”.181 Trata-se de uma ficção legal, que permite ao proprietário em virtude do destino que ele atribua ao objeto, a mudança de sua natureza. O
Código Civil de 2002 alterou este instituto, hoje regulado pelos princípios
relativos às pertenças, e em regra não seguem o destino do bem a que se
acham vinculados (art. 94 do Código de 2002).182
(iv) por determinação legal: são os bens que a lei trata como imóveis, como
direitos reais sobre imóveis, o direito à sucessão aberta, entre outros. Casa de
madeiras que podem ser transportadas de um lugar a outro sem serem destru-
181
Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol. I.
São Paulo: Saraiva, 2003; p. 124.
182
Marcelo Calixto. “Dos Bens”, in Gustavo Tepedino (org.) Parte Geral do Novo
Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2002; p. 158.
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141
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ídas não perdem a classificação de imóveis, nem materiais que são separados
de um imóvel para depois serem reempregados.
Bens Móveis
São bens móveis aqueles suscetíveis de movimento próprio, ou de remoção
por força alheia, sem alteração da substância ou de sua destinação econômico-social, ou aqueles que a lei confira expressamente esse regime de aplicação.
Dessa forma, pode-se falar em duas categorias de bens móveis:
(i) por natureza: todas os bens suscetíveis de deslocamento sem alteração
de substância ou de destinação econômico-social. Aqui temos as exceções dos
bens imóveis por acessão; e
(ii) por determinação legal: são bens com o gás, a energia elétrica e outras
formas de energia, os direitos reais sobre móveis, os direitos pessoais de caráter patrimonial e suas respectivas ações. Todos eles tornam-se móveis porque
assim dispôs o legislador. Navios e aeronaves, embora sobre eles recaia a hipoteca, são bens móveis. Além destes, os direitos autorais também são reputados
bens móveis.
Bens fungíveis e infungíveis
Bens fungíveis são os que podem ser substituídos por outros da mesma
espécie, qualidade e quantidade. Os bens infungíveis, por seu turno, são os
que não podem ser substituídos por outros da mesma espécie, qualidade e
quantidade.
Os bens fungíveis atendem ao princípio de que o gênero nunca perece
(genera nunquam pereunt). O dinheiro é o exemplo sempre citado. Uma dívida contraída por conta de um empréstimo de R$ 10 (dez) reais não obriga
o devedor a devolver a mesma nota de R$ (dez) reais que foi utilizada para
a realização do empréstimo, mas qualquer outra nota de R$ 10 (dez) reais,
ou duas notas de R$ 5 (cinco) reais, ou dez notas de R$ 1 (hum) real e assim
por diante.
A fungibilidade é própria dos bens móveis, pois os imóveis são únicos e
por esse motivo infungíveis. Só pode haver um bem imóvel em um dado
endereço. Já os bens móveis não sofrem da mesma restrição.
A vontade das partes pode transformar um bem fungível em infungível. Por exemplo, um livro, após ser autografado por seu autor, passa a
ser único.
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142
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Bens consumíveis e não-consumíveis
Caso fosse adotado um rigor científico extremo, nenhum bem seria em
si consumível, pois segundo as leis da natureza, “nada se cria, nada se perde,
tudo se transforma”.
Entretanto, ao direito interessa a escala humana, e um bem é consumível
se o seu uso implica na destruição imediata de sua própria substância (consumibilidade natural), ou se o mesmo é destinado à alienação (consumibilidade
jurídica).
É acertada a decisão do legislador de separar o conceito de fungibilidade
do de consumibilidade. Não existe correlação absoluta entre as duas idéias.
Um livreiro pode oferecer manuscritos de um autor à venda, e esses são consumíveis, embora infungíveis.
Bens divisíveis e indivisíveis
A divisibilidade é própria do bem. Diz-se divisível o bem que “sem modificação da substância ou considerável desvalorização, pode dividir-se em
partes homogêneas e distintas.”183 Já os bens indivisíveis são aqueles que não
podem ser partidos sem alteração de sua substância ou sacrifício do seu valor.
Trata-se de um critério com bases utilitaristas, voltado para a manutenção do
valor econômico do bem.
A indivisibilidade pode ser criada pela vontade humana, como, por exemplo, uma dívida que só pode ser paga integralmente.
Bens singulares e coletivos
O novo Código Civil mantém essa distinção, embora só conceitue os bens
singulares (art. 89), que reunidos, são considerados de per si, independente
dos demais.
Os bens coletivos, ou universais, são tratados como agregados em um
todo. Na universalidade de fato há uma pluralidade de bens autônomos a
que se dá uma destinação unitária, como no caso de uma biblioteca. Na universalidade de direito há o complexo de relações jurídicas dotadas de valor
econômico, como no patrimônio e na herança.
Essa classificação será de grande importância para o estudo de temas ligados à prática contratual e ao Direito Empresarial, como o estabelecimento
empresarial (fundo comercial) e a concorrência desleal.
183
Orlando Gomes. Introdução ao Direito Civil. Rio de Janeiro: Forense, 1999;
p. 225.
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143
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Bens disponíveis e indisponíveis
Bens disponíveis são aqueles que podem ser objeto de negócios jurídicos.
Para os romanos esses eram os res in commercium, em contraposição aos res
extra commercium.
Os bens indisponíveis podem ser divididos em 3 categorias: os naturalmente indisponíveis, como o ar atmosférico, o mar, que não podem ser subordinados à dominação humana; bens legalmente indisponíveis, como bens
públicos de uso comum, a honra, a vida; e os bens inalienáveis pela vontade
humana, submetidos a uma cláusula de inalienabilidade.
Bens públicos e particulares
Considerando os bens em relação ao seu titular, podem os mesmos ser de
natureza pública ou privada. Esta distinção encontra embasamento no texto constitucional, definindo o art. 20 da Constituição Federal os chamados
“bens da União”.
Os bens públicos são divididos em: bens de uso comum, como ruas, estradas e praças; bens de uso especial, destinados ao serviço ou ao estabelecimento
de algum dos entes da Administração Pública, como edifícios de repartições
públicas; e bens dominicais, que integram o patrimônio de pessoas jurídicas
de direito público como objeto de direito pessoal e real dessas entidades.
É vedada a alienação de bens de uso comum e de uso especial. Somente os
bens dominicais podem ser objeto de negócios jurídicos, ainda assim sendo
necessária a respectiva autorização legislativa.
O professor poderá trabalhar com os alunos, durante a aula, algumas perguntas que enfatizam aspectos práticos de todas as classificações
estudadas. São sugeridas as seguintes questões:
(i) O sistema de classificação dos bens poderia ser diferente? Este
sistema reflete o sistema econômico atual?
(ii) Um livro está em uma estante de uma livraria. Qual é sua classificação? Depois é comprado por um aluno de uma Faculdade de Direito. Este mesmo aluno leva o livro para uma palestra de seu famoso
autor onde este livro é autografado. Houve mudança na classificação?
Este mesmo aluno se forma e, com os anos, torna-se um importante jurista, passando o livro a integrar sua biblioteca. Houve nova alteração?
(iii) A proibição de alienação de bens públicos de uso especial é justificável em todos os casos?
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INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
2. CASOS GERADORES
2.1. “Roubo de Terras”:
Muito se fala na imprensa sobre “roubo de terras”:
“De tais conversas extraem-se provas cabais de que o empresário está envolvido
com o roubo de terras públicas do DF.”
(in www2.correioweb.com.br/cw/ EDICAO_20021012/col_cor_121002.htm)
“Os fatos são: A matéria que [a revista] publicou sobre o maior roubo de terras
públicas da Amazônia tinha 4 páginas.”
(in www.carosamigos.terra.com.br/novas_corpo_ci.asp?not=602)
“Não ao roubo de terras”. “Os manifestantes carregavam cartazes com os
dizeres: “Coexistência sem muros”, “Paz, liberdade e segurança para os dois povos”.”
(in www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/ story/2003/07/030716_guilacb.shtml)
Mas será correta essa designação? O caso abaixo explora os efeitos práticos
de se aplicar a correta classificação dos bens.
O Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro recebeu da Delegacia de
Polícia de Petrópolis inquérito policial que indicava fortes indícios de roubo de
terras por um grupo armado. O grupo invadiu o terreno de uma fazenda produtora de hortaliças e afugentou os trabalhadores mediante uso de machados e facas.
Os ladrões se recusam a sair do terreno, alegando que este agora lhes pertence. Os
empregados da fazenda não conseguem voltar ao trabalho.
O Promotor de Justiça da Comarca de Petrópolis, ao receber o inquérito, imediatamente ofereceu denúncia contra todos os integrantes da quadrilha por roubo,
art. 157 do Código Penal, o qual está assim redigido:
Roubo
Art. 157 — Subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave
ameaça ou violência a pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer meio, reduzido à
impossibilidade de resistência:
Pena — reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
A classificação dos bens foi corretamente empregada no caso concreto? A sua
aplicação no caso poderia conduzir a um resultado distinto?
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145
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A resposta à pergunta é bastante simples, uma vez que o promotor
usou erroneamente o tipo penal, mas o exemplo ajudará os alunos a
perceber a importância de se classificar corretamente os bens.
Como alternativas ao crime de roubo, pode-se trabalhar com os alunos as hipóteses de aplicação dos crimes de esbulho possessório (art.
161, II CP) ou Extorsão (art. 158), apenas para que eles tenham idéia
das diferenças práticas que ocorreriam se outro tipo penal fosse utilizado (principalmente na pena a qual o infrator poderia ser condenado).
2.2. “Apreensão de Caça-Níqueis”:
A empresa FunTime Jogos e Diversões Eletrônicas Ltda. importa máquinas
caça-níqueis da Bolívia e contrata a sua disponibilização em bares e boates na
cidade do Rio de Janeiro. Depois de dez anos no mercado, ela começa a sofrer
prejuízos com constantes ações da polícia, geralmente culminando na apreensão
de suas máquinas. Cada máquina que é apreendida pela polícia representa um
significativo prejuízo para a empresa, uma vez que o estabelecimento objeto da
operação policial geralmente decide romper o contrato com a FunTime para evitar maiores transtornos com as autoridades policiais.
Preocupados com essa situação, os advogados da FunTime resolvem ingressar
em juízo com uma medida ousada: impetrar mandado de segurança em face do
Exmo. Sr. Secretário de Estado e de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro para buscar decisão que impeça a policia de apreender as suas máquinas.
Liminarmente, os advogados pediriam a suspensão de toda e qualquer ação da
polícia no sentido de apreender as referidas máquinas.
Como principal argumento, alegam os advogados que as máquinas caça-níqueis são “bens de produção” e, portanto, não poderiam ser apreendidas deliberadamente pelas autoridades policiais, pois elas incorporam o acervo de bens
indispensáveis para o funcionamento da empresa.
No seu entendimento, a liminar requerida pela FunTime deverá ser concedida? Justifique.
O objetivo da questão é debater com os alunos o conceito de bem de
produção. Após os debates, é aconselhável exibir na apresentação que
for elaborada para essa aula a seguinte noticia veiculada pela imprensa:
CASSINO GUANABARA
Surgiu um entrave legal no combate às máquinas de caça-níqueis
que se espalham pela cidade. A 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça concedeu liminar à Sajal Locação de Máquinas de Diversões Ltda.
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146
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
determinando a devolução de todas as que foram apreendidas até hoje.
Os advogados da empresa alegaram que os caça-níqueis são “bens de
produção”. (Coluna Gente Boa — O Globo — 25.07.2005)
O número do processo é 2005.004.0967, j. em 19/07/2005, rel:
Des. Sidney Hartung.
3. QUESTÕES DE CONCURSO
Concurso para ingresso na carreira de Advogado Geral da União (1998):
51. Os frutos armazenados em depósito para expedição ou vendas são os:
(a) percipiendos
(b) estantes
(c) consumidos
(d) percebidos
(e) pendentes
Concurso para o cargo de Advogado Júnior — BR Distribuidora (maio/2004):
37. O Direito Civil não conhece a categoria de imóvel por:
(a) natureza
(b) fungibilidade
(c) determinação legal
(d) acessão física
(e) acessão intelectual
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147
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 14 — BENFEITORIAS — BEM DE FAMÍLIA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Bens principais e acessórios — Benfeitorias necessárias — Benfeitorias
úteis — Benfeitorias voluptuárias — Paradigma da Essencialidade — Bem
de família — Requisitos — Inalienabilidade e Impenhorabilidade — Análise
da Lei nº 8009 — Análise de jurisprudência
CASO GERADOR
Benfeitorias: Indenização e Retenção — “Home Theater é bem de família?” — “Devedor solteiro, solitário e fiador”
LEITURA OBRIGATÓRIA
NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: Novos Paradigmas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003; pp. 385/392 e 413/428.
LEITURAS COMPLEMENTARES
AZEVEDO, Antonio Junqueira. “Bens Acessórios”, in Estudos e Pareceres de
Direito Privado. São Paulo: Saraiva, 2004; pp. 80/92. RIZZARDO, Arnaldo. Parte Geral do Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2002; pp.
296/306.
1. ROTEIRO DE AULA
A presente aula continua o estudo dos bens, analisando agora os bens reciprocamente considerados, com especial atenção para as chamadas benfeitorias e sua correspondente classificação. Os bens reciprocamente considerados
são tradicionalmente divididos em principais e acessórios. A benfeitoria, por
sua vez é um bem acessório.
Muito se discute sobre a natureza de uma benfeitoria, se ela é necessária,
útil ou voluptuária. Essa definição terá repercussões práticas importantes na
relação contratual, sobretudo em contratos de locação de imóveis.
FGV DIREITO RIO
148
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A principal contribuição que o regime das benfeitorias concedeu ao estudo
do direito civil moderno é, sem dúvida, a abertura de um campo fértil para a
análise das relações jurídicas com base na utilidade dos bens para as pessoas.
Com base em ampla jurisprudência, hoje é buscada a construção de uma teoria sobre a aplicação do regime de classificação das benfeitorias (necessárias,
úteis e voluptuárias) não apenas para os bens, para todo e qualquer contrato.
Esse é o chamado paradigma da essencialidade, que busca aplicar essa classificação na interpretação e aplicação de cláusulas contratuais, privilegiando disposições que asseguram condições necessárias para a vida do homem.
Quando se fala que uma benfeitoria é necessária, estar-se querendo dizer que
ela é necessária à conservação do bem principal, como um imóvel, por exemplo. Ao classificar um certo contrato como necessário, estar-se a exigir o seu
cumprimento de forma prioritária, pois assim demanda uma pessoa humana.
O objetivo didático dessa aula é aprofundar o estudo das classificações dos bens, introduzindo o aluno no estudo da jurisprudência, além
de motivá-lo a pensar criticamente a classificação dos bens acessórios.
Em um primeiro momento, convém expor a posição da doutrina sobre os bens acessórios e as pertenças, para depois exemplificar o estudo
com acórdãos.
Em um segundo momento, sugere-se que o professor faça com a
turma uma análise sobre a classificação das benfeitorias, sempre à luz
da jurisprudência. Ao término, convém expor aos alunos sobre as transformações que hoje atravessam as relações jurídicas, sobretudo com
respeito à aplicação do chamado “paradigma da essencialidade”. Essa
linha de raciocínio será posteriormente desenvolvida na aula sobre bem
de família.
Bens Principais e Acessórios
Em um mundo complexo, as relações não podem ser analisadas individualmente. Há mesmo quem diga que, especificamente na seara contratual,
vivemos um momento de hipercomplexidade. No caso dos bens, podemos
encontrar a mesma situação, particularmente no que concerne à relação entre
bens principais e acessórios.
O Código Civil aborda o estudo dos bens reciprocamente considerados
em capítulo próprio, do art. 92 ao art. 97. O bem principal, na dicção do
art. 92, é aquele que “existe sobre si, abstrata ou concretamente”. Adverte San
Tiago Dantas que o verbo existir da definição deveria ser melhor explicado.
No seu exemplo, a existência de uma roda de um carro é independente, ela
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149
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ocupa espaço no mundo físico e é identificada como uma roda, entretanto
ela só cumpre sua função econômica se estiver inserida dentro de um carro.
Já o bem acessório, segundo Caio Mário, “pela sua própria existência subordinada, não tem, nesta qualidade, uma valoração autônoma, mas liga-selhe o objetivo de complementar, como subsidiário, a finalidade econômica
da coisa principal.”184
No tratamento dos bens reciprocamente considerados, duas são as regras
principais: (i) o bem acessório segue o destino do bem principal (“accessorium
sequitur principale”); e (ii) o bem acessório, formando um todo com o bem
principal, integra o direito que sobre o mesmo exerce o titular.
Dá-se à primeira regra o nome de princípio da gravitação jurídica. O Código Civil atual retirou esse princípio de seu texto uma vez que a lei permite
que as partes convencionem de modo contrário, desvinculando o destino do
bem acessório daquele reservado ao bem princiapal.
Todavia, o próprio Código Civil dispõe em diversos momento no sentido
de vincular o acessório ao principal: (i) a posse do imóvel presume a dos móveis que nele estiverem (art. 1209); (ii) a obrigação de dar coisa certa abrange
seus acessórios, ainda que não mencionados, exceto se o contrário resultar do
título ou das circunstâncias do caso (art. 233); (iii) a nulidade da obrigação
principal importa a da cláusula penal (art. 922); e (iv) na disposição de um
crédito são abrangidos todos os seus acessórios (art. 287).
Bens acessórios podem ser:
Naturais — quando aderem espontaneamente ao principal sem a intervenção humana, como nos frutos das árvores, as crias de animais (não inseminados através de ação humana); ou
Industriais — quando surgem do esforço humano, como as casas em relação ao terreno onde se encontram; e
Civis — quando resultam de uma relação abstrata de direito, não de uma
vinculação material como nos demais bens acessórios. É o caso dos juros em
relação ao principal, os ônus reais em relação à coisa gravada, ou seja, direitos
relacionados a relações jurídicas principais.
Além dessa classificação em bens acessórios naturais, industriais e civis, os
bens acessórios podem ainda ser classificados em frutos, produtos e benfeitorias. Existe ainda a categoria das chamadas pertenças, inovação do Código
Civil de 2002.
Frutos
Os frutos são as utilidades que a coisa periodicamente produz, sem desfalques da sua substância. A palavra “periodicamente” é de grande relevância,
pois pela periodicidade é que os frutos podem ser diferenciados dos produtos.
184
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol I. Rio de Janeiro:
Forense, 2004; p. 435.
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150
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Os produtos, ao serem retirados, fazem a coisa perder substância. Por exemplo, a retirada de carvão de uma mina é a retirada de um produto. A mina
perde substância e em algum momento ficará sem carvão, uma vez que o
mesmo não se renova. Com a retirada de frutos, contudo, o bem não perde
substância, possibilitando a sua retirada periodicamente.
Os frutos são classificados quanto a seu estado. Os frutos são pendentes,
enquanto unidos à coisa que os produziu; percebidos ou colhidos, uma vez que
são separados do bem principal; estantes, se depois de separados permanecem armazenados ou acondicionados para posterior alienação; percipiendos,
os que deviam ser, mas não foram percebidos; e, por fim, consumidos, aqueles
que não existem mais por terem sido utilizados.
Para que se tenha uma idéia da importância da classificação dos bens acessórios e, mais especificamente dos frutos, veja a decisão abaixo:
CIVIL E CONSUMIDOR. INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA. PROMESSA
DE COMPRA E VENDA DE UNIDADE AUTÔNOMA. DESCUMPRIMENTO DO PRAZO DE ENTREGA. RESCISÃO DO CONTRATO COM PERDAS
E DANOS. Ação de rescisão de promessa de compra-e-venda de unidade autônoma
c/c perdas e danos, fundada no descumprimento de cláusula do pacto que fixa prazo
para entrega da coisa pelo incorporador. Alegação de força maior consubstanciada na
demora da obtenção de financiamento junto ao agente financeiro inimputável aos
autores, já que se insere no risco do empreendimento e não pode ser considerado fato
imprevisível. Devolução integral do desembolso. Tese incabível de pré-fixação das perdas para a hipótese de inadimplemento, com cláusula penal meramente moratória.
Renúncia clausular imposta ao consumidor à disputa de outras verbas que se afigura
abusiva, já que o coloca em desvantagem frente ao fornecedor do produto. Exegese
do art. 51, IV, da Lei 8.078/90. Perdas in re ipsa, consubstanciadas nos frutos civis
que retiraria da coisa, no valor de um aluguel mensal, quantum a ser encontrado
em liquidação por arbitramento. Incidência correta de juros legais de 6% (seis por
cento) ao ano até a entrada em vigor do novo Código Civil, e de 1% (um por cento)
ao mês a partir daí, por força do art. 406 c/c § 1º, do art. 161, do CTN. Sentença que caminhou nessas direções, incensurável, improvimento recurso que pretendia
revertê-la. Unânime.
(TJRJ — Apelação Cível nº 2005.001.00313, Des. Murilo Andrade de Carvalho; j. em 26/04/2005)
A distinção feita entre os diversos tipos de frutos não é meramente teórica,
uma vez que o possuidor de boa fé, por exemplo, faz jus aos frutos percebidos, mas não aos pendentes, nem aos colhidos antes do prazo. O possuidor
de má-fé, por sua vez, não tem direito aos frutos, devendo restituir aqueles
já percebidos.
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151
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Os frutos, como vemos sendo comercializados na Bolsa de Mercadorias
e Futuros, podem até mesmo não existir fisicamente. Isso não impede que
transações sejam feitas com base neles, conforme expõe o acórdão abaixo:
Venda de safra futura. Bens móveis por antecipação. A venda de frutos, de molde
a manifestar o intuito de separação do objeto da venda em relação ao solo a que
adere, impõe a consideração de que tais coisas tenham sido, pela manifestação de
vontade das partes contratantes, antecipadamente mobilizadas. Se, no momento do
ajuizamento do feito, já havia sido realizada a colheita, tem-se como acertada a decisão que nega aos frutos a natureza de pendentes. Agravo a que se nega provimento.
(STJ, AgRg no Ag 174406 / SP, Min. Eduardo Ribeiro, j. em 25/08/1998)
Vale lembrar que, assim como os bens acessórios genericamente falando,
também os frutos podem ser naturais, industriais e civis.
Produtos
Em oposição à definição encontrada para os frutos, os produtos são as
utilidades retiradas de um bem que importam em redução de sua substância.
Os produtos não são renováveis, pois a sua extração leva inexoravelmente ao
esgotamento do bem de onde ele se deriva. O principal exemplo de produto
é o mineral que se extrai de uma mina.
Pode-se dizer que os produtos são retirados periodicamente, mas esta periodicidade é passageira. Os frutos podem ser retirados, a princípio, infinitamente, os produtos não.
Pertenças
O novo Código Civil dispôs no art. 93 sobre as pertenças. Diferentemente
dos bens acessórios lato sensu, as pertenças são partes constitutivas da própria
coisa e estão em conexão íntima com ela, mas podem ser separadas sem ter
seu valor econômico destruído. As pertenças podem estar ligadas à utilização
do bem para destinação de forma duradoura ao serviço, uso ou aformoseamento do bem principal.
Diferente dos bens acessórios, as pertenças não seguem, em via de regra,
o destino do bem principal, mas podem seguir por interesse das partes e por
determinação legal, ou ainda por força das circunstâncias do caso. Sendo assim, a elas não se aplica o princípio da gravitação jurídica.185
Segundo Silvio Venosa, as pertenças tem como características: i) um vínculo intencional, material ou ideal, estabelecido por quem faz uso da coisa, colocado a serviço da utilidade do principal; ii) um destino duradouro
185
Marcelo Calixto, “Dos Bens”, in Gustavo Tepedino (org.) Parte Geral do Novo
Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2002; p. 173.
FGV DIREITO RIO
152
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
e permanentemente ligado à coisa principal e não apenas transitório; e iii)
uma destinação concreta, de modo que a coisa fique efetivamente a serviço
da outra. Sendo assim, a pertença forma, juntamente com a coisa, unidade
econômico-social.186
Mesmo antes da entrada em vigor do novo Código Civil, a doutrina já
reconhecia a existência das pertenças. O novo Código apenas inovou em
conferir ao instituto um tratamento expresso em seu texto.
Benfeitorias
Benfeitorias são o resultado de despesas e obras com a conservação, melhoramento ou aformoseamento de um bem principal. A sua classificação segue
portanto o intuito de sua realização: para conservar, acrescer uma utilidade
ou para simplesmente tornar mais confortável ou luxuoso o bem principal.
Na prática, é sempre preciso perguntar: em que consiste a conservação de
um bem imóvel? Deve-se pensar que conservar um bem é mantê-lo exatamente da mesma forma em que ele foi entregue ou seria apenas impedir a sua
ruína? Essa é apenas uma das diversas questões que movimentam os tribunais
na questão das benfeitorias. A necessidade acaba sendo apreciada casuisticamente pelo juiz, com base nos fatos narrados e nas circunstãncias das pessoas
e bens envolvidos na ação. Os juízes deverão também observar os usos e
costumes do local. Em um país de dimensões continentais como o Brasil o
conceito de benfeitorias necessárias, úteis ou voluptuárias pode variar.
Além do espaço, o tempo também interfere no conceito de benfeitoria.
Conforme explicita Arnoldo Wald, “uma garagem, que era considerada benfeitoria voluptuária há quarenta anos atrás pode, hoje, ser classificada como
benfeitoria útil.”187
As benfeitorias podem ser:
Necessárias, quando têm por fim conservar a coisa ou evitar que se deteriore. Estas devem ser indenizadas pelo proprietário independentemente da
boa ou má-fé do possuidor que as realize. Entretanto o direito de retenção só
assiste ao possuidor de boa-fé (art. 1220 do CC).
A conservação do bem e a necessidade de se realizar uma benfeitoria foi
determinante para a decisão do acórdão cuja ementa abaixo se transcreve:
Reintegração de posse. Comodato. Sentença de procedência. Pretenção de posse ad
usucapionem, comprometida pela condição de locatários com que acenaram os réus,
jamais demonstrada, todavia, como lhes cumpria fazer. O comodatário que, notificado, não demite de sai posse do bem, comete esbulho. Benfeitorias. O comodatário
só tem direito à indenização pelas benfeitorias extraordinárias e urgentes que se viu
obrigado a fazer, no intuito de conservação do bem emprestado, não assim por outras,
186
Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil,
vol I. São Paulo: Atlas, 2002; p. 311.
187
Arnoldo Wald. Curso de Direito Civil
Brasileiro, vol. I. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1992; p. 178.
FGV DIREITO RIO
153
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
úteis ou necessárias que sejam, como se recolhe do artigo 1.254, do Código Civil de
1.916 (584, do atual), sobremodo porque tem ciência de que as erige em prédio
alheio. Prova pericial desnecessária. Apelação não provida.
(TJRJ, Apelação Cível 2005.001.09845, Des. Mauricio Caldas Lopes, j. em
17/05/2005)
Úteis, quando aumentam e facilitam o uso da coisa. As benfeitorias úteis
apenas melhoram a qualidade e a capacidade de utilização dos bens. Devem
ser indenizadas ao possuidor de boa-fé, ao qual também assiste o direito de
eventual retenção.
Voluptuárias, quando as benfeitorias são de mero deleite ou recreio, não
aumentando o uso habitual da coisa, ainda que a tornem mais agradável ou
sejam de elevado valor. Pode haver indenização destas benfeitorias se for impossível seu levantamento sem prejuízo ao imóvel.
POSSE DE BOA FÉ. BENFEITORIA NECESSÁRIA. DIREITO DE RETENÇÃO. INDENIZACAO POR BENFEITORIAS. O possuidor de boa fé tem
o direito de indenização pelas benfeitorias necessárias e úteis, com o respectivo poder
de retenção, e o de ressarcimento das voluptuárias, se não puder levantá-las sem detrimento do imóvel.
(TJRJ, Apelação Cível nº 2003.001.07773, Des. Milton Fernandes; j. em
06/05/2003)
O contrato de locação de imóvel urbano apresenta algumas especificidades. Nele pode ser inserida cláusula expressa de isenção de indenização de
benfeitorias úteis e necessárias que o locador tiver realizado com autorização
do proprietário (arts. 35 e 36 da lei 8245/91). A Lei de Locação de Imóveis
Urbanos é especial em relação ao Código Civil e ao Código do Consumidor,
logo esta derrogaria a aplicação destes dois textos normativos.
Assim já decidiu o Superior Tribunal de Justiça, conforme se nota no acórdão abaixo:
LOCAÇÃO — RETENÇÃO POR BENFEITORIAS — CODIGO DO
CONSUMIDOR — LEI 8.070/90 — INAPLICABILIDADE.
1. NÃO É NULA CLAUSULA CONTRATUAL DE RENÚNCIA AO DIREITO DE RETENÇÃO OU INDENIZAÇÃO POR BENFEITORIAS.
2. NÃO SE APLICA ÀS LOCAÇÕES PREDIAIS URBANAS REGULADAS
PELA LEI 8.245/91, O CÓDIGO DO CONSUMIDOR.
3. RECURSO NÃO CONHECIDO.
(STJ, REsp 38274/SP; Min. Edson Vidigal; j. em 09/11/1994)
FGV DIREITO RIO
154
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Contudo, o STJ posteriormente reviu o seu posicionamento, em diversas
outras decisões (vide, nesse sentido, Resp nº 90366/MG, Min. Luiz Vicente
Cernicchiaro, j. em 11/06/1996).
Paradigma da Essencialidade
A distinção entre benfeitorias necessárias, úteis e voluptuárias é feita com
base na sua relação com o bem principal. A necessidade, utilidade e mero
aformoseamento em questão são pautados por critérios de natureza patrimonial.
Alguns autores tem buscado ampliar o regime concedido às benfeitorias
para conceber a relação de necessidade que possa vir a existir entre a pessoa
humana e um bem ou prestação jurídica.
A releitura das categorias visa torná-las mais aptas a concretizar os valores
constitucionais, como a dignidade da pessoa humana, o direito à saúde, o
respeito à terceira idade e etc. Atualmente as benfeitorias são conceituadas
com base na utilidade que é proporcionada a um outro bem.
Essa apropriação da classificação das benfeitorias para as demais relações
jurídicas, buscando trazer as necessidades da pessoa para o debate, denominase paradigma da essencialidade. A partir de sua concepção, pode-se dividir
não apenas os bens, mas também as prestações relativas a um contrato, em:
existencialmente essenciais, úteis e supérfluas.
Desta forma, os pincéis de um pintor são bens existencialmente essenciais,
da mesma forma que seria um piano para um pianista. São bens necessários
para o sustento de seus proprietários, imprescindíveis para sua vida digna.
Essa constatação acarretaria a sua impenhorabilidade.
No próprio Código de Processo Civil pode-se encontrar um delineamento
da matéria, cuja aplicação é objeto de diversas decisões judiciais, nos arts. 648
e 649, que assim dispõem:
CPC, art. 648: “Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.”
CPC, art. 649: “São absolutamente impenhoráveis:
I — os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;
II — as provisões de alimento e de combustível, necessárias à manutenção do
devedor e de sua família durante 1 (um) mês;
III — o anel nupcial e os retratos de família;
IV — os vencimentos dos magistrados, dos professores e dos funcionários públicos,
o soldo e os salários, salvo para pagamento de prestação alimentícia;
V — os equipamentos dos militares;
FGV DIREITO RIO
155
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Vl — os livros, as máquinas, os utensílios e os instrumentos, necessários ou úteis
ao exercício de qualquer profissão;
Vll — as pensões, as tenças ou os montepios, percebidos dos cofres públicos, ou
de institutos de previdência, bem como os provenientes de liberalidade de terceiro,
quando destinados ao sustento do devedor ou da sua família;
Vlll — os materiais necessários para obras em andamento, salvo se estas forem
penhoradas;
IX — o seguro de vida;
X — o imóvel rural, até um modulo, desde que este seja o único de que disponha
o devedor, ressalvada a hipoteca para fins de financiamento agropecuário.”
O regime adotado por esse novo paradigma encontra atualmente maiores desafios nas discussões sobre o bem de família. Mas o debate não deve
ficar restrito ao bem de família, pois a concepção acima referida afeta toda e
qualquer relação que envolva bens jurídicos, demandando do intérprete uma
renovada ordenação de valores e instrumentos para a prática do Direito. O
bem de família é caracterizado em função da sua destinação propriamente
existencial, a necessidade humana de moradia justifica a imposição de um
regime jurídico específico para tal espécie de bem.
Bem de Família
O bem de família constitui uma exceção ao princípio de que o patrimônio do devedor responde por suas dívidas. O referido instituto foi criado
em atenção à família e aos relevantes valores sociais que a circunscrevem.
Trata-se de uma porção de bens que a lei resguarda com as características
de impenhorabilidade (e eventualmente de inalienabilidade) em benefício
da constituição e permanência de uma moradia para o corpo familiar.188 No
código civil, a disciplina do bem de família encontra-se no livro dedicado ao
direito de família.
As origens do instituto remontam ao Homestead Act do direito americano,
cujo objetivo era a fixação de famílias em terras desabitadas. No direito brasileiro, o bem de família ainda atende a uma necessidade semelhante àquela
do instituto norte-americano, ou seja, a proteção da moradia para a entidade
familiar, todavia diversas peculiaridades podem ser apontadas no direito brasileiro que particularizam o seu tratamento na legislação nacional.
Bem de família voluntário e legal
No direito anterior, não só o Código Civil disciplinava o Bem de Família,
mas também a legislação processual e demais leis materiais. A previsão legal
188
Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil,
vol I. São Paulo: Atlas, 2002; p. 355.
FGV DIREITO RIO
156
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
basilar se encontrava nos arts. 70 a 73 do revogado Código Civil de 1916.
Assim estava redigido o antigo art. 70 do CC1916:
Art. 70. É permitido aos chefes de família destinar um prédio para domicílio
desta, com a cláusula de ficar isento de execução por dívidas, salvo as que provierem
de impostos relativos ao mesmo prédio.
Parágrafo único. Essa isenção durará enquanto viverem os cônjuges e até que os
filhos completem sua maioridade.
Ainda de acordo com o art. 233 do antigo Código Civil, o chefe de família
era o marido, entendimento esse que é hoje incompatível com a disciplina
constitucional. Na falta daquele, o entendimento era no sentido de que essa
prerrogativa competiria à mulher. O CC2002, estando em consonância com
a Constituição, prevê que a legitimidade para instituir o bem competirá a
ambos os cônjuges.
Dessa forma, rompendo com o tratamento concedido ao instituo no
CC1916, assim dispõe o atual Código Civil sobre a matéria:
Art. 1.711. Podem os cônjuges, ou a entidade familiar, mediante escritura pública ou testamento, destinar parte de seu patrimônio para instituir bem de família,
desde que não ultrapasse um terço do patrimônio líquido existente ao tempo da
instituição, mantidas as regras sobre a impenhorabilidade do imóvel residencial estabelecida em lei especial. (grifado)
Parágrafo único. O terceiro poderá igualmente instituir bem de família por testamento ou doação, dependendo a eficácia do ato da aceitação expressa de ambos os
cônjuges beneficiados ou da entidade familiar beneficiada.
O bem de família tem por objeto um imóvel no qual a família fixa sua
residência e que ficará a salvo de eventuais credores. O Código Civil, como
forma de conferir a mais ampla proteção aos valores relacionados à matéria,
estende a tutela do bem de família às pertenças e acessórios que guarnecem
o imóvel.189
Importante no estudo do referido tema é a Lei nº 8.009/90, uma vez que
se pode mesmo afirmar que, no Brasil, existem duas disciplinas do bem de
família: a do Código Civil (segunda a qual deve o proprietário requerer a sua
instituição) e a da Lei n 8.009 (que se processa pela simples previsão legal).
O artigo 1º da Lei nº 8.009/90 tem a seguinte redação:
Artigo 1º — O imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é
impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal,
previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que
sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas nesta Lei. (grifado)
189
Art. 1.712. O bem de família consistirá em prédio residencial urbano ou
rural, com suas pertenças e acessórios,
destinando-se em ambos os casos a
domicílio familiar, e poderá abranger
valores mobiliários, cuja renda será
aplicada na conservação do imóvel e no
sustento da família.
FGV DIREITO RIO
157
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Parágrafo único — A impenhorabilidade compreende o imóvel sobre o qual se
assentam a construção, as plantações, as benfeitorias de qualquer natureza e todos
os equipamentos, inclusive os de uso profissional, ou móveis que guarnecem a casa,
desde que quitados.
A previsão do artigo 1º precisa ainda ser conjugada com o disposto no art.
5º da mesma Lei, segundo o qual:
Artigo 5º — Para os efeitos de impenhorabilidade, de que trata esta lei, considera-se residência um único imóvel utilizado pelo casal ou pela entidade familiar para
moradia permanente. (grifado)
Parágrafo único — Na hipótese de o casal, ou entidade familiar, ser possuidor
de vários imóveis utilizados como residência, a impenhorabilidade recairá sobre o de
menor valor, salvo se outro tiver sido registrado, para esse fim, no Registro de Imóveis
e na forma do artigo 70 do Código Civil.
Detalhe que merece menção é o de que segundo a Constituição de 1988,
não há que proceder com distinções entre a família legítima e a ilegítima para
a configuração do instituto. A lei fala tão somente em “entidade familiar”.
Por conta da Lei nº 8.009/90, o bem de família conforme disposto no
Código Civil deixou de ter maior utilidade prática (trata-se do chamado bem
de família voluntário). No regime do Código Civil, o interessado se vale de
ato jurídico solene e registra o imóvel como bem de família, ensejando assim
a característica de impenhorável.
De acordo com a Lei nº 8.009/90, o tratamento do bem de família é bastante distinto: o imóvel residencial, desde que servindo de moradia à família,
já se encontra abarcado por essa proteção, não sendo mais necessário que se
recorra ao oneroso registro para produzir efeitos legais. Adicionalmente, a
Lei nº 8.009/90 amplia o alcance da impenhorabilidade desses imóveis, não
impondo as restrições do antigo art. 70 do CC1916.
É importante apenas não confundir os conceitos de impenhorabilidade com
o de inalienabilidade, uma vez que esse último remete à impossibilidade por
parte do proprietário de alienar o imóvel caracterizado como bem de família.
Fraude contra credores
Uma das maiores preocupações que cerca o instituto do bem de família é
o eventual estímulo à prática de fraude contra credores, na medida em que o
bem de família se encontra a salvo da persecução destes.
Se por um lado é certo que a lei não compactua com procedimentos de
natureza manifestadamente ilícita, a elucubração jurídica daqueles que objetivam se valer de meios fraudulentos pode se revestir dos mais variados
FGV DIREITO RIO
158
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
meandros que o formalismo jurídico possibilita. Ainda que com relação à
forma, certos atos jurídicos sejam válidos e perfeitamente exeqüíveis, deve-se
perquirir se o escopo que os motiva não é o de implicar prejuízo a outrem.
A possibilidade de converter um imóvel em bem de família está condicionada à não perpetuação de prejuízo a credores existentes à época do ato.
Nessa lógica, só pode o bem de família ser criado quando seu proprietário se
encontre em estado de solvência. Uma vez estabelecido como tal, não responde o bem afetado por dívidas posteriores.
Essa especial preocupação do legislador de evitar a fraude contra credores
pode ser notada, por exemplo, no art. 4º da Lei nº 8.009/90:
Artigo 4º — Não se beneficiará do disposto nesta Lei aquele que, sabendo-se insolvente, adquire de má-fé imóvel mais valioso para transferir a residência familiar,
desfazendo-se ou não da moradia antiga.
§ 1º — Neste caso, poderá o juiz, na respectiva ação do credor, transferir a impenhorabilidade para a moradia familiar anterior, ou anular-lhe a venda, liberando a
mais valiosa para execução ou concurso, conforme a hipótese.
Ainda, ao assim proceder, o agente de má-fé poderá ter outros intentos
frustrados, pois em geral, não possuindo nada além daquele imóvel qualificado como bem de família, as dificuldades para a obtenção de crédito serão
certas, prejudicando assim outras relações negociais.
Impenhorabilidade e inalienabilidade
Impenhorabilidade e inalienabilidade são características expressas na lei. A
inalienabilidade, entretanto, não é peremptória, podendo ser afastada desde
que anuam os interessados.
Já a impenhorabilidade, isto é, a não executoriedade por dívidas, constitui
o próprio núcleo do instituto do bem de família, embora existam certas exceções de ordem legal, como a existência de débitos de natureza tributária relativos ao imóvel. Outra exceção é a constatação de fraude contra credores que
visa a obstar a satisfação de crédito anterior à instituição do bem de família.
O artigo 2º da Lei nº 8.009/90 estipula certos elementos que ficam de
fora da proteção auferida pelo bem de família. É o caso dos veículos de transporte, das obras de arte e dos adornos suntuosos.190
As exceções ao bem de família legal vêm tratadas pelo art. 3º da referida
lei, o qual trata das exceções à impenhorabilidade. Elas são as seguintes:
190
Lei nº 8.009/90, art 2º. Excluem-se
da impenhorabilidade os veículos de
transporte, obras de arte e adornos
suntuosos. Parágrafo único - No caso
de imóvel locado, a impenhorabilidade
aplica-se aos bens móveis quitados que
guarneçam a residência e que sejam de
propriedade do locatário, observado o
disposto neste artigo.
FGV DIREITO RIO
159
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Artigo 3º — A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução
civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
I — em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas
contribuições previdenciárias;
II — pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção
ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função
do respectivo contrato;
III — pelo credor de pensão alimentícia;
IV — para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições
devidas em função do imóvel familiar;
V — para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo
casal ou pela entidade familiar;
VI — por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença
penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.
VII — por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
A última dessas hipóteses supra se liga à idéia de que a impenhorabilidade
implicaria em dificuldades a obtenção de fiadores na locação. Essa consideração, no entanto, merece uma análise mais apurada, na medida em que a
jurisprudência recentemente conferiu nova orientação a essa norma.
Bem de família e contrato de fiança
O Supremo Tribunal Federal recentemente proferiu uma decisão bastante
controvertida sobre a hipótese de proteção de um bem pelo regime do bem
de família, estando o mesmo vinculado a um contrato de fiança. Trata-se do
Recurso Extraordinário 352.940-4/SP.
Algumas considerações são pertinentes para compreender a alteração dessa
linha jurisprudencial. Inicialmente devemos atentar aos dispositivos legais
que abordam a questão.
(i) A Lei 8009/90, em seu art. 3º, VII, conforme acrescentado pela Lei nº
8.245/91 (Lei de Locações), assim dispõe:
Artigo 3º — A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução
civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:
VII — por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.
(ii) A Constituição Federal, em seu art. 6º, com redação dada pela Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, determina que o direito a
moradia é um dos direitos sociais garantidos pelo texto constitucional:
FGV DIREITO RIO
160
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a
segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência
aos desamparados, na forma desta Constituição.
A Constituição Federal é dotada de primazia axiológica em relação à legislação ordinária. Em outras palavras, na Constituição estão insertos valores
que devem guiar a interpretação e aplicação de todas as demais normas infraconstitucionais. É justamente essa a perspectiva que fundamenta a decisão
proferida pelo Ministro Carlos Velloso na decisão do citado Recurso Extraordinário, onde o artigo da Lei nº 8009/90 foi reconhecido como sendo
incompatível com a nova redação do art. 6º da Constituição Federal.
Assim está redigida a ementa do julgado:
CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE.
Lei n. 8.009/90, artigos 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso
VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida
em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC
26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica:
ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental,
prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido.
Em sua decisão, o relator explicitou as bases constitucionais para defender
a não aplicação do disposto expressamente na Lei nº 8.009/90, afirmando
que “tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo — inciso VII
do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de
2000.” Ainda segundo o relator: “[e]ssa não recepção mais se acentua diante
do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F.,
o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social.
Ora, o bem de família — Lei 8.009/90, art. 1º — encontra justificativa, foi
dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental
que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição.”
Duração e dissolução
Questão que merece realce é a da duração do bem de família. O antigo
Código Civil determinava que duraria a proteção enquanto fossem vivos os
cônjuges e até que os filhos completassem a sua maioridade.
De acordo com o Código Civil de 2002, existe a possibilidade de desconstituição voluntária do bem de família. Deixando de ser domicílio da família,
qualquer interessado poderá requerer a extinção do benefício. Ainda, em seu
FGV DIREITO RIO
161
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
art. 1721, dispõe o CC2002 que a dissolução da sociedade conjugal não extingue o bem de família.
Objeto do bem de família
As menções ao objeto do bem de família que vêm sendo feitas na legislação pátria não são plenamente coincidentes. No art. 70 do CC1916, falava-se
em “prédio destinado ao domicílio da família”; o art. 1º da Lei nº 8.009/90,
por sua vez, fala em “imóvel residencial”; o CC2002 fala em imóvel urbano
ou rural em seu art. 1712, sendo esse inegavelmente de maior abrangência.
(i) Na Lei nº 8.009/90, a configuração do objeto passa pelas seguintes
constatações:
O art. 4º, §4º, no tocante aos imóveis rurais191, restringe a impenhorabilidade à sede de moradia, com os bens móveis inseridos nela. Destaque-se
a possibilidade da pequena propriedade rural também ficar abrangida pela
proteção em tela (art. 5º, XXVI, da CF).
O art. 1º da Lei também afirma que são excluídos de penhorabilidade as
plantações, benfeitorias e equipamentos de uso profissional e móveis, desde
que quitados. O art. 2º enumera elementos que estão excluídos dessa proteção.
(ii) No Código Civil, a configuração do objeto passa pelas seguintes
considerações:
Distintamente do que ocorre com a Lei nº 8009/90, o regime do CC2002
demanda que o interessado proceda à instituição voluntária do imóvel como
sendo bem de família.
Coexistem no CC2002 o art. 1712, que determina que o bem de família
será prédio residencial urbano ou rural, abrangendo-se suas pertenças e acessórios, e o art. 1711, que limita o valor da instituição a um terço do patrimônio líquido à época da instituição.
A abrangência que pode ser observada no art. 1712 vem dirimir certos
questionamentos doutrinários. Sua razão de ser é a idéia de que nada vale o
resguardo ao direito à moradia sem que concomitantemente haja previsão de
uma forma de se garantir a conservação da mesma.
O objeto do bem de família não possui hoje limite máximo a partir do
qual não haveria proteção.192 O art. 1711, por sua vez, não convenciona limite fixo, mas apenas pré-fixa em um terço o limite do patrimônio líquido que
poderá ser alvo dessa afetação.
191
Lei nº 8.009/90, art. 4º, § 4º - Quando a residência familiar constituir-se
em imóvel rural, a impenhorabilidade
restringir-se-á à sede de moradia, com
os respectivos bens móveis, e, nos casos
do artigo 5º, inciso XXVI, da Constituição, à área limitada como pequena
propriedade rural.
192
Em sentido contrário, o DecretoLei nº 3.200/41, com a redação da lei
5.653/71, estipulava valor de até 500
vezes o maior salário mínimo vigente.
A Lei nº 6742/79, por sua vez, eliminou
qualquer limite de valor aos bens de
família.
FGV DIREITO RIO
162
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Processo de constituição
Para constituir um bem de família, no regime do CC2002, devem ser
observadas as prescrições dos artigos 260 a 265 da Lei nº 6.015 / 73 (Lei dos
Registros Públicos).
Art. 260. A instituição do bem de família far-se-á por escritura pública, declarando o instituidor que determinado prédio se destina a domicílio de sua família e
ficará isento de execução por dívida.
O art. 260 afirma a necessidade de se valer de escritura pública. Os arts.
261 e 262 ainda instituem a necessidade de se valer de publicações, objetivando essa publicidade dar conhecimento a credores que possam vir a serem
prejudicados.
Art. 261. Para a inscrição do bem de família, o instituidor apresentará ao oficial
do registro a escritura pública de instituição, para que mande publicá-la na imprensa local e, à falta, na da Capital do Estado ou do Território.
Art. 262. Se não ocorrer razão para dúvida, o oficial fará a publicação, em forma
de edital, do qual constará:
I — o resumo da escritura, nome, naturalidade e profissão do instituidor, data do
instrumento e nome do tabelião que o fez, situação e característicos do prédio;
II — o aviso de que, se alguém se julgar prejudicado, deverá, dentro em trinta
(30) dias, contados da data da publicação, reclamar contra a instituição, por escrito
e perante o oficial.
Art. 263. Findo o prazo do nº II do artigo anterior, sem que tenha havido reclamação, o oficial transcreverá a escritura, integralmente, no livro nº 3 e fará a
inscrição na competente matrícula, arquivando um exemplar do jornal em que a
publicação houver sido feita e restituindo o instrumento ao apresentante, com a nota
da inscrição.
A constituição de bem de família, segundo expresso pelas disposições do
RGI, são em verdade atos próprios da Administração. Apesar de ser levado ao
Judiciário, como facilmente se observa, não existe um litígio, mas sim, uma
jurisdição voluntária, onde para que determinado ato seja regularmente validado, há necessidade de ingerência do Poder Judiciário. A decisão judicial,
aqui, não operará efeito substitutivo de vontade das partes, tal qual ocorre na
composição de litígios.
Por fim, destaque-se que as demais normas procedimentais de constituição do bem de família encontram-se nos artigos 264 e 265 da Lei de Registros Públicos.193
193
Art. 264. Se for apresentada reclamação, dela fornecerá o oficial, ao instituidor, cópia autêntica e lhe restituirá
a escritura, com a declaração de haver
sido suspenso o registro, cancelando a
prenotação.
§ 1° O instituidor poderá requerer ao
Juiz que ordene o registro, sem embargo da reclamação.
§ 2º Se o Juiz determinar que proceda ao registro, ressalvará ao reclamante
o direito de recorrer à ação competente
para anular a instituição ou de fazer
execução sobre o prédio instituído, na
hipótese de tratar-se de dívida anterior
e cuja solução se tornou inexeqüível em
virtude do ato da instituição.
§ 3° O despacho do Juiz será irrecorrível e, se deferir o pedido será transcrito
integralmente, juntamente com o instrumento.
Art. 265. Quando o bem de família
for instituído juntamente com a transmissão da propriedade (Decreto-Lei n.
3.200, de 19 de abril de 1941, art. 8°, §
5º), a inscrição far-se-á imediatamente
após o registro da transmissão ou, se for
o caso, com a matrícula.
FGV DIREITO RIO
163
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Bem imóvel do devedor solteiro e solitário
Por fim, ponto que merece destaque, em especial devido também à recente
jurisprudência, é a possibilidade do bem de família servir para a garantia do
imóvel do devedor solteiro e solitário.
O bem de família, segundo a letra da lei, é voltado para a proteção da
família. Essa conclusão é derivada da redação expressa do art. 1º da Lei nº
8.009/90. Contudo, nos últimos anos vem aparecendo na jurisprudência,
com certa notoriedade, a tese de que a interpretação teleológica do art. 1º, ou
seja, a interpretação que busca o real fim que a lei objetiva, não se limita ao
resguardo da família.
Esse foi o entendimento constante de recente decisão do STJ, no ERESP
nº 182223/SP. Em sua decisão, o relator afirma que, em relação ao bem de
família, “seu escopo definitivo é a proteção de um direito fundamental da
pessoa humana: o direito à moradia. Se assim ocorre, não faz sentido proteger quem vive em grupo e abandonar o indivíduo que sofre o mais doloroso
dos sentimentos: a solidão. É impenhorável, por efeito do preceito contido
no Art. 1º da Lei 8.009/90, o imóvel em que reside, sozinho, o devedor celibatário.”
O bem de família, instituto de natureza garantista, deve ser compreendido
como forma de assegurar a todos os indivíduos o direito à moradia. Embora
sua orientação inicial versasse genuinamente sobre a família, o âmbito de sua
proteção vem sendo expandido em algumas decisões. O argumento, assim,
é o de que a mens legis é a de não privar o devedor, e não só a sua família, de
um local para morar.
Esse entendimento, no entanto, não é pacífico, existindo diversos julgados
que se manifestam pela proteção exclusiva da família como sendo o objetivo
da Lei nº 8.009/90. Nesse sentido, já se pronunciou o TJRJ:
EMBARGOS DO DEVEDOR. BEM DE FAMÍLIA. MULHER SEPARADA
JUDICIALMENTE. LEI Nº 8009, DE 1990. INAPLICABILIDADE.
Execução. Embargos do Devedor. Alegação de impenhorabilidade de bem imovel
residencial, com fulcro na Lei 8009/90. A lei referida destina-se a proteger não o
devedor, mas a sua família. Assim a impenhorabilidade nela prevista, abrange o
imóvel residencial que sirva ao casal ou entidade familiar não alcançando devedores
solitários, tais como solteiros, separados ou divorciados. No caso, a devedora-apelante
é separada, não comprovando que resida com membros da família. Sentença mantida. Recurso improvido.
(Apelação Cível n° 2002.001.16619)
Todavia, o mesmo Tribunal já teve oportunidade de se manifestar favoravelmente à proteção do imóvel do devedor solteiro em outros julgados.
FGV DIREITO RIO
164
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Em decisão recente, o Des. Celso Lins e Silva asseverou que “a intenção do
legislador é clara em proteger não apenas a família, mas também o direito
à moradia. Interpretar de forma diversa, isto é, no sentido de que a proteção se limita aos casados, conviventes ou companheiros, é discriminar aquele
que optou por viver sozinho ou que ate então não encontrou a pessoa ideal.
Inegavelmente, estar-se-ia violando o texto constitucional, por tratar desigualmente o solteiro, o celibatário.”Como observado, as opiniões ainda são
divergentes sobre o tema, embora possa ser vislumbrada uma crescente recepção ao alargamento da proteção do bem de família ao imóvel do devedor
solteiro e solitário.
2. CASO GERADOR
2.1. Benfeitorias — Indenização e Retenção
John Smith é um importante executivo de uma empresa petrolífera que está
prestes a abrir uma filial no Rio de Janeiro. Para auxiliar na abertura de seu
escritório carioca, a empresa mandou John para o Brasil com a missão de ficar na
cidade por pelo menos três anos. A própria empresa tratou de alugar para John
uma bela casa no Itanhangá.
Todavia, a estada de John na cidade não começou bem. Logo na primeira
semana, ao retornar de Macaé, o helicóptero de John sofreu um acidente grave.
O executivo teve sorte de escapar com vida, mas sofreu sérias lesões em ambas as
pernas, o que demandaria, pelo menos, uma semana que internação e mais dois
anos de exercícios especiais e fisioterapia.
Após a semana no hospital, alguns assuntos começaram a preocupar John, sobretudo a disposição da casa que foi alugada. Como John não gostaria de sair da
casa, já que havia se ligado emocionalmente à mesma, ele solicitou ao seu estagiário que fizesse o orçamento com várias empresas de construção para a elaboração
de duas obras na casa: (i) a remoção da escada da frente, que leva ao portão
principal da casa, por um mini-elevador; e (ii) a construção de uma piscina para
que John possa fazer os seus exercícios de recuperação.
Depois de pesquisar os orçamentos, John optou por fazer a obra da escada com
a empresa que lhe ofereceu o menor preço. Já no caso da piscina, o orçamento escolhido por John foi o segundo mais caro. O motivo para escolher esse orçamento foi
a qualidade reconhecida da empresa na construção de piscinas para residências.
Precisa John pedir indenização ao seu locador para a realização das obras? Ao
término do contrato de locação, será John indenizado pelas obras realizadas? Caso
o locador não concorde em indenizar John, poderá ele exercer direito de retenção?
O fato de John ter sofrido um acidente muda em qualquer aspecto as respostas que
você daria para as questões acima?
FGV DIREITO RIO
165
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
2.2. “Home Theater é bem de família?”
A Família Borgia, passando por dificuldades financeiras, vê-se frente ao intento de um de seus credores de penhorar seus bens. Na ação ajuizada, além do imóvel onde residia o casal Borgia e seus dois filhos, postulava-se concomitantemente
a penhora dos bens móveis constantes na referida residência. A fundamentação
residia na suntuosidade manifestadamente expressa no art. 1º da Lei 8009/90.
Na contestação apresentada pelo advogado dos Borgia, foi alegado, com base
no mesmo art. 1º, que o intento do legislador era resguardar não só a habitação,
mas também os elementos que a guarnecessem, desde que essenciais. Alegou por
fim, que além da residência, todos os bens lá constantes eram indispensáveis,
excluindo-se assim de forma determinante a possibilidade de penhorá-los.
Observando que o litígio só poderia ser resolvido através da análise casuística
dos bens, o juiz, na audiência de instrução e julgamento, requereu do autor da
ação a relação dos bens e o respectivo valor a eles imputado.
Na produção de provas, o credor apresentou a relação demandada pelo magistrado. Nela se destacava a existência de um televisor importado, digital, tela de
plasma, acrescido de um Home Theater. Valor: R$ 12.000 (doze mil) reais. Era
o único televisor da família.
No julgamento do Resp. nº 50.313-2/SP, o relator afirmou que: “O certo é
que reiterados julgados da Corte, inclusive da Terceira Turma, assentaram que os
equipamentos e bens móveis que guarnecem a casa não respondem por dívidas de
qualquer natureza,e, salvo exceções, não poderão eles ser objeto de expropriação
judicial. Dentre eles encontram-se, o fogão, geladeira, cama do casal e televisão a
cores, tal como no caso versante, que não se tem como adorno suntuoso, indispensáveis à utilidade familiar.”
Na qualidade de julgador do caso da família Borgia, você acolheria ou não a
alegação de penhorabilidade do autor?
2.3. “Devedor solteiro, solitário e fiador”
João quase não tem tempo de se dedicar à família. Desde que foi promovido
no emprego, João só fala com a mãe nos finais de semana, quando passa na casa
de Dona Nair para buscar umas camisas passadas.
Com o dinheiro economizado nos últimos três anos de escritório, João conseguiu comprar um apartamento em um bairro de classe média de sua cidade.
Ele mora sozinho, já que quase não possui vida social. João é, portanto, solteiro
e solitário.
Para completar o seu infortúnio, João concordou com ser fiador no contrato
de locação de Mathias, seu amigo de faculdade. Qual não foi a surpresa de João
quando recebeu em casa uma notificação extra-judicial de Alberto, credor de Ma-
FGV DIREITO RIO
166
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
thias, alegando que o seu amigo estava inadimplente há cinco meses e que, para
quitar as dívidas, Alberto solicitava providências da parte de João.
Como argumento de defesa em eventual ação judicial movida por Alberto,
João está considerando a hipótese de protestar pela proteção do bem de família
para o seu imóvel. Ao conversar com colegas do escritório, João recebeu as seguintes
informações:
(i) Clarissa não acha uma boa idéia João tentar proteger o seu imóvel pelo
instituto do bem de família uma vez que ele não é casado ou vive em
união estável com ninguém. Segundo Clarissa, para se constituir uma
família no direito brasileiro são necessárias pelo menos duas pessoas.
Sendo assim, quem não é casado ou não vive em regime de união estável
não pode ser considerado como família, o que impossibilitaria a proteção com base no mencionado instituto;
(ii) Cléber também não concorda com o argumento de João. Segundo o
amigo, imóveis dados como fiança em contratos de locação não tem
direito a invocar a proteção do bem de família. Trata-se de disposição
expressa da Lei nº 8.009/90. Dessa forma, pleitear algo que a lei diz
justamente o contrário seria perda de tempo;
(iii) Caio, por sua vez, também não concorda com o argumento de João.
Segundo o mesmo, como João mora sozinho, ele não poderá invocar a
proteção do bem de família. O amigo até sugeriu que João, para ter
sucesso em sua argumentação, convide o irmão Alfredo, que acaba de
chegar do interior de Minas, para morar no seu apartamento. Segundo
Caio, quando a lei fala em proteção da família, ela não menciona proteção de “casais”, pelo que dois irmãos morando sob o mesmo teto seria
considerado como uma “família” para os fins da lei.
Você concorda com as opiniões recebidas por João? Se você fosse consultado por
João, qual seria a sua resposta? Justifique.
FGV DIREITO RIO
167
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
PARTE IV: NEGÓCIOS JURÍDICOS
AULA 15: — CONCEITOS ESTRUTURAIS — NEGÓCIO JURÍDICO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Ato e Negócio Jurídico — Fato Jurídico — Negócio jurídico — Classificação
dos Negócios Jurídicos — Existência do Negócio Jurídico — Existência, Validade
e Eficácia do negócio jurídico — Considerações acerca dos requisitos de validade
do art. 104
LEITURA OBRIGATÓRIA
Venceslau, Rose Melo. “O negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro:
Renovar, 2002; pp. 177/192.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena.
Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 207/220.Caio Mário da Silva. Instituições
de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 475/495.
1. ROTEIRO DE AULA
Ato e Negócio Jurídico
No Código Civil de 1916, ato jurídico era considerado como todo ato
voluntário, revestido das condições determinadas pela lei e que produzisse regularmente efeitos jurídicos. Fatores como a vontade humana careciam ainda
de maiores estudos sobre a sua participação para a formação de um conceito,
e ao contrário do que se observa atualmente, a diferenciação entre ato jurídico e negócio jurídico ainda não restava bem delineada.
A noção de negócio jurídico provém de trabalhos doutrinários alemães
que passaram a considerar a importância das manifestações de vontade na
produção de efeitos jurídicos. Dessa forma, a doutrina gradativamente se
aproximou de um conceito contemporâneo de ato jurídico, o qual, mais moFGV DIREITO RIO
168
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
dernamente, é compreendido em um sentido amplo, passando a se desdobrar
em dois outros significados: (i) o ato jurídico em sentido estrito; e (ii) o negócio jurídico.
Antes de estudar os atos jurídicos em sentido amplo, algumas considerações acerca da categoria mais ampla de fatos jurídicos se fazem necessárias.
Fato Jurídico
Fato jurídico é um acontecimento, quer seja humano, quer seja natural,
apto a produzir efeitos jurídicos, provocando o nascimento, a continuação,
a modificação ou a extinção de relações jurídicas e dos direitos que a ela se
referem.
Os fatos jurídicos podem ser subdivididos em espécies. Eles se bipartem
tendo como critério a sua natureza, podendo ser denominados fatos humanos
voluntários ou eventos naturais.
Os fatos jurídicos naturais (que decorrem de eventos naturais) são independentes da vontade do homem. Não se deve afirmar que os mesmos são
completamente estranhos ao homem, visto que fulminam as relações jurídicas — que por sua vez são titularizadas por pessoas físicas ou jurídicas (conjunção de vontades humanas para o atingimento de um fim).
Esses fatos decorrem da manifestação da natureza, podendo ser ordinários
ou extraordinários. Os ordinários são aqueles cuja verificação é comum, tal
qual o nascimento e a morte; os extraordinários, por sua vez, são dotados de
maior margem de imprevisibilidade, correspondendo aos denominados caso
fortuito ou força maior.
Além dos fatos jurídicos naturais, deve-se mencionar a existência de fatos
humanos voluntários, que são aqueles que resultam da atuação humana, seja
ela positiva ou negativa. Tais fatos influem nas relações jurídicas, variando em
razão da tipologia do ato praticado. Dividem-se em fatos lícitos (atos jurídicos
lícitos em sentido amplo) e fatos ilícitos.
Os atos jurídicos lato sensu, são aqueles caracterizados pela atuação da
vontade da parte em sua constituição e na produção de seus efeitos. A manifestação de vontade assume aqui um papel muito mais relevante do que nas
tipologias examinadas acima. Os atos jurídicos em sentido amplo subdividem-se em duas espécies:
(i) Ato jurídico stricto sensu — a declaração de vontade é dirigida para
a produção de efeitos previamente determinados em lei, imodificáveis pela ação volitiva. Não compete à parte modificar, moldar os
efeitos dessa declaração de vontade, mas apenas decidir pela produção de um ato que possui os seus efeitos já previamente estipulados.
FGV DIREITO RIO
169
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A manifestação de vontade se corporifica pela intenção ou não de
sofrer em sua esfera jurídica os efeitos já determinados pela letra da
lei;
(ii) Negócio jurídico — Os efeitos que se produzem a partir dos negócios jurídicos são aqueles não proibidos pela lei. Não confrontando
com a dicção legal, as partes possuem espaço para construir relações
jurídicas de diversos moldes. O teor negocial aqui é flagrantemente
maior, implicando na composição de interesses. Os efeitos são permitidos pela lei e são desejados pelos agentes.
Os fatos ilícitos, por sua vez, são aqueles que se processam contrariamente
à ordem jurídica, provocando o dever de reparação. Produzem efeitos diversos ou não pretendidos pelos agentes que lhes dão causa.
Negócio jurídico
Negócio jurídico é a declaração de vontade destinada a produzir efeitos
jurídicos voluntariamente perseguidos.194 Os sujeitos de direito, mediante o
exercício de sua vontade em conformidade com a lei, dão origem a relações
jurídicas.
Certo é que ato e negócio jurídico são institutos onde a vontade se encontra presente. A distinção se processa quando se atenta ao conteúdo dessas
figuras e aos efeitos que delas decorrem.
No ato jurídico em sentido estrito, o conteúdo e efeitos são previamente
determinados pelo ordenamento, competindo à vontade apenas decidir pela
produção ou não desses efeitos.
O negócio jurídico, por sua vez, difere desse tratamento ao possibilitar
às partes modelarem esse conteúdo, e conseqüentemente, os efeitos do ato.
O negócio jurídico é campo onde há liberdade de construção para as partes,
liberdade essa que se manifesta no livre desembaraço da vontade negocial.
Essa vontade negocial se manifesta tendo em vista o princípio da autonomia da vontade (autonomia privada), que como o próprio nome já diz, trata
da liberdade de negociação que os agentes privados são dotados.
A própria autonomia privada, em certa análise, não deixa de ser uma permissão legal. Ela se manifesta nas hipóteses em que a lei não pré-estabelece todo
o conteúdo e efeitos que uma determinada manifestação de vontade assume.
Quando há campo para a livre manifestação da autonomia privada, as partes podem determinar o conteúdo, forma e efeitos dos seus atos jurídicos (aqui compreendidos em sentido amplo), atuando na criação de um negócio jurídico.195
Acerca do conceito moderno de autonomia privada, pertinente é observar que:
194
Gustavo Tepedino, Maria Celina
Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 210.
195
Frise-se que negócio jurídico é uma
espécie de ato jurídico em sentido
amplo.
FGV DIREITO RIO
170
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“O conceito de autonomia privada vem, contudo, sendo reformulado pela doutrina contemporânea. Hoje, não mais se deve entender que os valores constitucionais
criam limites externos à autonomia privada, mas antes, informam seu núcleo funcional. A autonomia privada não consiste, definitivamente, em um “espaço em branco”
deixado à atuação da liberdade individual, mas ao contrário, apenas recebe tutela
na medida em que se conforme aos valores constitucionais.” 196
A vontade dos indivíduos pode ser construída dentro desse campo da autonomia privada, sendo vedado que ela o extrapole, dispondo contrariamente ao Direito.
Os efeitos dessa vontade somente serão perceptíveis no mundo jurídico
através de uma manifestação. Deve o agente explicitar essa vontade, que é o
elemento interno, por intermédio de uma declaração, elemento externo, para
que os efeitos desejados possam ser alcançados.
Sob pena do negócio ser reputado inválido, essa manifestação de vontade
deve se operar de forma livre, desembaraçada, e em consonância com valores
jurídicos com diretrizes como a boa-fé objetiva, a função social do contrato e
a dignidade da pessoa humana.
A declaração de vontade, instrumento de exteriorização dessa vontade,
pode ser expressa ou tácita. A manifestação expressa é a utilização de meios
inequívocos que demonstrem o real intento do agente. A manifestação tácita
resulta de um comportamento do agente do qual pode se inferir o sentido de
sua vontade.
A forma do negócio jurídico constitui-se do tecnicismo que o direito impõe
à manifestação de vontade. Observa-se que o conceito de forma do negócio
possui duas dimensões: (i) é a própria manifestação de vontade, isto é, a exteriorização da vontade (considerada aqui eminentemente no plano psíquico);
e (ii) é a roupagem, isto é, os requisitos que essa manifestação deve conter
para que seja considerada válida pelo Direito.
Classificação dos negócios jurídicos
Existem diversas formas de se classificar os negócios jurídicos e a doutrina
se vale dos mais variados critérios para esse fim. O esforço para classificação
dos negócios surge como meio para facilitar a interpretação e a aplicação dos
dispositivos que são pertinentes à matéria.
Uma primeira classificação dos negócios jurídicos, com já visto, os divide
em negócios bilaterais e unilaterais. Como destaca Caio Mário:
“É negócio jurídico unilateral o que se perfaz com uma só declaração de vontade
(testamento, codicilo), enquanto bilateral se diz aquele para cuja constituição é necessária a existência de das declarações de vontade coincidentes.”197
196
Gustavo Tepedino, Maria Celina
Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 211.
197
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2005; p. 496., p. 496.
FGV DIREITO RIO
171
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Negócios jurídicos unilaterais são aqueles em que uma parte, por intermédio de uma declaração de vontade, realiza um determinado ato jurídico.
Negócios Jurídicos bilaterais, por sua vez, são aqueles que implicam na existência de duas declarações de vontade coincidentes sobre o objeto. Essas manifestações de vontade devem coincidir, surgindo nesse momento o consentimento. Quando o mesmo não ocorre, ainda que haja manifestação volitiva de
mais dos dois agentes, o negócio não se forma.
Sendo assim, os negócios jurídicos bilaterais se formam quando uma pessoa emite uma manifestação de vontade em determinado sentido, e outra
pessoa declara sua anuência a essa manifestação de vontade. É o consentimento entre esses agentes, o ajustamento entre seus desígnios, que promove
o surgimento dessa modalidade de negócio jurídico.
Os negócios jurídicos podem ainda ser classificados em onerosos ou gratuitos. O que se tem em vista aqui é o efeito do negócio. O negócio oneroso
é aquele que proporciona ao agente a percepção de vantagem econômica,
mediante o exercício de uma prestação. A idéia presente aqui é a da correspectividade de prestações, isto é, da mútua transmissão de bens.198
Gratuito, ao contrário, é aquele negócio onde uma pessoa proporciona à
outra determinado enriquecimento sem contraprestação por parte do beneficiado. A vantagem é exclusiva para uma das partes da relação, a qual não é
obrigada a prestar, sendo apenas beneficiária direta da diminuição do patrimônio da outra. Como destaca Caio Mário:
“O negócio a título oneroso configura a produção de conseqüências jurídicas concretizadas na criação de vantagens e encargos para ambos, como a compra e venda,
em que a prestação de cada parte se contrapõe à da outra parte. O negócio jurídico a
título gratuito traz benefício ou enriquecimento patrimonial para uma parte, à custa
da diminuição do patrimônio da outra parte, sem que exista correspectivo dado ou
prometido, como na doação pura, em que o doados transfere bens de seu patrimônio
para o do donatário, que se enriquece sem se sujeitar a nenhuma prestação.” 199
Os negócios jurídicos podem também ser classificados como inter vivos e
causa mortis. O negócio jurídico inter vivos é aquele pactuado para produzir
os seus efeitos durante o período de vida das partes. Ele produz efeitos desde
logo. Contudo, isso não significa que o negócio jurídico inter vivos tenha a
sua natureza desnaturada quando ocorre a circunstância de se estenderem os
seus efeitos para depois da morte do agente. A idéia central que o classifica
dessa forma é que as conseqüências desse ato se processam com mais intensidade durante a vida das partes que lhe deram causa, podendo se estender,
naturalmente, para além de suas mortes.
198
Gustavo Tepedino, Maria Celina
Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 213.
199
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2005; p. 497.
FGV DIREITO RIO
172
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
O negócio jurídico mortis causa produz os efeitos após o advento da morte
do agente. Frise-se que o ato não produz nenhum efeito até que ocorra esse
evento. O exemplo clássico desse tipo de negócio jurídico é o do testamento.
Os negócios jurídicos dividem-se ainda em principais e acessórios. Principal é aquele que existe por si mesmo e independentemente de outro. Já o
acessório é aquele cuja existência pressupõe a de outro que seja principal, não
possuindo existência autônoma. O negócio jurídico acessório segue a sorte
do principal: caso esse seja invalidado, extinto pela vontade das partes ou
inquinado de algum vício que impeça a produção de seus efeitos, seguirá o
negócio acessório a sua mesma sorte.
Atentando ao critério da forma, os negócios Jurídicos podem ser classificados como solenes e não solenes.
Solenes (ou formais) são aqueles que se revestem de certa forma especial.
Não solenes (ou consensuais) são aqueles que possuem forma livre, tendo validade qualquer que seja a forma assumida pela manifestação de vontade. Nesse
sentido, cumpre mencionar o disposto nos arts. 107 e 108 do Código Civil:
Art. 107. A validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial,
senão quando a lei expressamente a exigir.
Art. 108. Não dispondo a lei em contrário, a escritura pública é essencial à
validade dos negócios jurídicos que visem à constituição, transferência, modificação
ou renúncia de direitos reais sobre imóveis de valor superior a trinta vezes o maior
salário mínimo vigente no País.
O art 107, como visto, enuncia a regra acima exposta, ao passo que o art. 108
é um exemplo de imposição legal de forma específica para o negócio jurídico.
Existência, Validade e Eficácia do negócio jurídico
Plano da Existência, plano da validade e plano da eficácia são os três planos nos quais o intérprete deve sucessivamente examinar o negócio jurídico,
a fim de verificar se ele obtém plena realização.200
Preliminarmente, vale destacar a importância do estudo dos planos
do negócio jurídico. A sua relevância passa pela necessidade de que as
relações jurídicas sejam aptas à produção dos efeitos almejados, pelo livre
desenvolvimento da vida negocial (circulação de riquezas), para alcançar
uma idéia transposta a vários ramos do Direito. Isto é, seja no Direito
Civil, Direito Administrativo, Direito Processual, Direito Comercial, ou
qualquer outro ramo dos estudos jurídicos, os atos serão revestidos de
elementos, requisitos de validade e de fatores que condicionam sua eficácia. Essa dinâmica se origina no campo civilista e é nele primeiramente
200
Antônio Junqueira de Azevedo. Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2003,
4ª ed.; p. 66.
FGV DIREITO RIO
173
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
estudada, mas se espraia numa série de situações nem sempre ligadas diretamente ao Direito Civil.
No estudo dos negócios jurídicos é necessário que estes sejam analisados
sob o enfoque de três planos distintos, que são afetos à sua existência, validade
e eficácia.
No que concerne à existência, têm-se os elementos constitutivos (ou essenciais) do negócio jurídico; em relação à validade, têm-se os requisitos de validade e por fim, a eficácia remete aos fatores de eficácia de um certo negócio.
Plano da existência. Neste plano pode-se observar os elementos essenciais
do negócio jurídico que são: (i) Declaração de vontade; (ii) Objeto; e (iii) Forma. A noção de essencialidade deve-se ao fato de que caso esses elementos
não se encontrem presentes, o negócio jurídico nem mesmo chegará a existir.
O plano subseqüente é o plano da validade, onde se encontram os requisitos de validade. São, na verdade, verdadeiros qualificadores, tais quais
adjetivos, dos elementos acidentais acima expostos. Não são numerus clausus,
estritamente delimitados, visto que a lei pode estatuir novos requisitos. São
os requisitos gerais, insertos no art. 104 CC: agente capaz; objeto lícito, possível e determinado ou determinável; e forma prescrita ou não defesa em lei.201
São qualificadores que ultrapassam a simples existência do negócio, a qual é
aferida com a simples presença dos elementos.
O negócio jurídico que padece de vícios no tocante aos seus requisitos
de validade pode ser reputado como nulo ou anulável. Essa noção será pormenorizada em aulas subseqüentes, porém vale, em breve síntese, destacar
que a nulidade é decorrência da violação de normas de ordem pública (inderrogáveis), isto é, previsões decorrentes da própria lei. A anulabilidade,
por sua vez, decorre da violação ao regime jurídico definido pelos próprios
particulares (derrogáveis), e, justamente por conta disso, são vícios de importância mais restrita.
A nulidade pode ser alegada de ofício pelo juiz ou por qualquer pessoa. O
negócio nulo é desde sua constituição inválido. A anulabilidade, por sua vez,
enseja uma situação diferente, pois o negócio é válido até que a parte interessada pleiteie a sua anulação em virtude do vício que o inquina.
Abordar os efeitos de ambas as formas de invalidade é tarefa mais complexa. O negócio nulo nunca produziu efeito, visto que é plenamente inválido.
Quando a nulidade é decretada, os efeitos dessa decretação se operam ex
tunc, isto é, retroativamente. O que tiver, por exemplo, sido pago em virtude
de uma obrigação nula, deverá ser repetido. Em regra, o ordenamento não
admite que do ato nulo se produza efeitos.202
O negócio anulável produz efeitos regularmente até que seja anulado. A
parte que poderia pleitear a anulação pode da mesma forma convalidar o ato,
quando então se tornará perfeito. Contudo, quando anulado, os efeitos dessa
invalidação se processarão ex nunc, isto é, da decretação em diante.
201
Note que os requisitos são apenas os
adjetivos ressaltados em itálico.
202
Por vezes essa regra é relativizada,
seja por força do julgamento dos litígios no caso concreto, seja em virtude
de determinadas situações em que a lei
prevê efeitos para o ato nulo, como no
casamento putativo.
FGV DIREITO RIO
174
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Tanto os elementos como os requisitos do negócio jurídico são estabelecidos no art. 104 do CC, que determina:
Art. 104. A validade do negócio jurídico requer:
I — agente capaz;
II — objeto lícito, possível, determinado ou determinável;
III — forma prescrita ou não defesa em lei.
O caput do artigo alude apenas à validade. No entanto, quando da leitura
dos incisos, são encontrados não só os requisitos, mas também a previsão dos
elementos do negócio.
Para que haja negócio, ou seja, para que tão somente exista, mister se faz
a previsão de agente, de objeto e de manifestação de vontade que se traduza
numa certa forma. Presentes esses requisitos, é certo que o negócio existe.
Imagine agora o seguinte negócio jurídico: menor de 15 anos se obriga a
prestar, periodicamente, determinada quantidade de substância entorpecente
proibida por lei. O menor o faz, inclusive, por intermédio de um contrato.
Sendo o agente incapaz, é impossibilitado de transigir no mundo jurídico,
mas, ao arrepio da lei, pactua com outrem. Ainda, o objeto desse negócio é
flagrantemente ilícito, na medida em que o tráfico de substâncias entorpecentes proibidas por lei é repudiado pelo ordenamento. O exemplo é caricatural,
mas o negócio, sob a perspectiva civilista, é existente, embora inválido. A
validade, como visto, é uma consideração que ocorre em momento posterior.
A eficácia, por sua vez, é o terceiro dos planos do negócio jurídico, sendo
condicionada a fatores, que nem sempre são próprios do mundo jurídico.
O negócio, agora já existente e válido, mostra-se em tese apto à produção
de efeitos jurídicos. Pode ocorrer, no entanto, que esses efeitos nem sempre
sejam operados, como nos seguintes exemplos:
(i) A subordinação de um pagamento à ocorrência de uma determinada condição, como a vitória de uma equipe esportiva numa determinada
competição. O negócio existe, é válido, mas sua eficácia está condicionada à
vitória de umas das equipes. Caso essa não ocorra, o negócio será permanentemente ineficaz;
(ii) A dotação testamentária de certos bens opera a transmissão causa mortis
apenas após o advento da morte do testador. A morte é uma certeza, embora
indeterminada a época em que irá se processar. O negócio, apesar de existente
e válido, carece do implemento desse termo para que produza efeitos.
(iii) A doação de um imóvel, negócio jurídico existente e validamente
constituído, mas que não se processa em virtude de um deslizamento de terra
que soterrou e destruiu o imóvel (força maior).
Por fim, vale mais uma vez recorrer à lição de Antônio Junqueira de Azevedo, que destaca:
FGV DIREITO RIO
175
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
“O exame do negócio, sob o ângulo negativo, deve ser feito através do que batizamos com o nome de técnica de eliminação progressiva. Essa técnica consiste no seguinte: primeiramente, há de se examinar o negócio jurídico no plano da existência,
e aí, ou ele existe, ou ele não existe. Se não existe, não é
negócio jurídico, é aparência de negócio (dito “ato inexistente”) e, então, essa aparência não passa, como
negócio, para o plano seguinte, morre no plano da existência. No plano seguinte, o da
validade, já não entram os negócios aparentes, mas sim somente os negócios existentes;
nesse plano, os negócios existentes serão, ou válidos ou inválidos; se forem inválidos,
não passam para o plano da eficácia, ficam no plano da validade; somente os negócios
válidos
continuam e entram no plano da eficácia. Nesse último plano, por fim,
esses negócios, existentes e válidos, serão ou eficazes ou ineficazes (ineficácia em sentido restrito).” 203
Considerações acerca dos requisitos de validade do art. 104
Capacidade do Agente — Trata-se aqui de uma condição subjetiva de
validade do negócio jurídico. A falta de capacidade pode gerar a nulidade do
negócio jurídico quando for uma incapacidade absoluta ou a sua anulabilidade quando se tratar de uma incapacidade relativa.
Essa capacidade deve ser aferida no momento do ato. Mesmo que após a
prática do o agente se torne capaz, isso não será suficiente para sanar a nulidade, em se tratando de incapacidade absoluta. Da mesma forma, a incapacidade superveniente ao ato não o macula, permanecendo o ato como válido.
Destaque-se ainda que a idéia de capacidade deve ser conjugada com o
sentido de legitimidade. Pode haver situações em que um indivíduo seja plenamente capaz, e dessa forma, absolutamente apto para a prática de todos
os atos da vida civil. Mas esse agente, para a prática de determinado negócio
jurídico, pode não ser dotado de legitimidade.
Essa legitimidade é uma espécie de permissão para a prática de um negócio jurídico em especial. O exemplo mais eloqüente é a compra e venda que
se opera entre ascendentes e descendentes. Quando um pai vende um imóvel
ao filho, há a presunção de que este tentará beneficiar o seu ascendente, ocasionando prejuízo aos demais herdeiros. Até que sobrevenha a anuência dos
demais interessados, faltará legitimidade para essa alienação.
Objeto lícito, possível, determinado ou determinável — Para que o negócio jurídico seja válido há necessidade de adequação a esses requisitos legais,
quais sejam: a possibilidade, a liceidade e a determinabilidade. A liceidade
ou licitude é a conformidade do objeto com o ordenamento jurídico, seja
na esfera civil, penal, ou administrativa; a possibilidade é correlata a idéia de
liceidade, pois possíveis são os objetos lícitos, não devendo-se aqui confundir
com a noção de possibilidade material; a determinabilidade é a característica
203
Antônio Junqueira de Azevedo. Negócio Jurídico. São Paulo: Saraiva, 2003,
4ª ed.; p. 64.
FGV DIREITO RIO
176
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
que fundamenta a necessidade do objeto ser determinado ou pelo menos,
determinável, isto é, há necessidade de estabelecer com certa precisão no que
corresponderá o objeto do negócio jurídico.
Forma prescrita ou não defesa em lei — aqui se encontra um requisito
de natureza formal que determina como a manifestação de vontade deve ser
exteriorizada. A regra geral é a da liberdade de forma, mas pode ser excepcionada pela necessidade de observância forma especial.
2. CASO GERADOR
A Delta Participações S.A, sociedade anônima legalmente constituída, tem
por objeto a aquisição de participações acionárias em outras sociedades. A percepção de lucro dessa pessoa jurídica advém da especulação que promove utilizando
os valores mobiliários de diversas companhias.
Ocorre que no último biênio, a Delta participações vem acumulando sucessivos prejuízos, fato que gerou sérios problemas em sua operação.
A Companhia não é insolvente, na medida em que o valor das dívidas acumuladas não excede o patrimônio da mesma. Contudo, uma situação foi observada:
após diversos prejuízos sucessivos, a sociedade encontrou-se momentaneamente
sem liquidez em seus recursos. Ou seja, não possuía capital em espécie (dinheiro)
para o pagamento de débitos elementares, como direitos trabalhistas.
Essa situação levou os administradores a tomar uma decisão: estabeleceriam
um empréstimo junto ao Banco Gama S.A no exato valor da dívida trabalhista
vincenda. Em paralelo, negociariam a alienação de alguns imóveis pertencentes à
Companhia para fazer caixa.
O empréstimo foi aprovado pelo conselho de administração da companhia e
acordado diretamente entre o corpo diretivo da Delta Participações e a gerência
do Banco Gama. Em seguida, foi remetida correspondência aos funcionários,
informando-os da necessidade de se dirigirem à instituição financeira para o recebimento de seus créditos. Frisou-se, para tranqüilidade geral, que o débito seria
responsabilidade da companhia e que os funcionários não teriam nenhum outro
transtorno senão o de dirigirem-se à agência bancária.
Ocorre que o Banco Gama procedeu de forma diversa do acordado com a
Companhia. Estabeleceu contratos nos quais os funcionários da Delta Participações figuravam diretamente no pólo passivo da relação, ou seja, como obrigados.
Seriam eles os reais devedores da dívida.
Isso foi possível porque se tratavam de funcionários humildes, de pouca experiência negocial, além do contrato ser demasiadamente complexo para que, em
rápida leitura, pudessem os funcionários questionar todo o procedimento.
A alienação de bens da Delta fracassou e a mesma não realizou o pagamento
do reputado empréstimo. Consequentemente, o banco reivindicou o adimplemen-
FGV DIREITO RIO
177
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
to da dívida aos funcionários da companhia. Correspondências, notificação de
cobrança, negativização do nome em instituições de proteção ao crédito foram
alguns dos meios utilizados pela instituição financeira para cobrar a dívida.
Com base nesta primeira aula sobre os planos do negócio jurídico, dê um parecer fundamentado sobre a situação acima descrita. Enfoque na exigibilidade (ou
não) do negócio estabelecido entre o Banco e os Funcionários da Delta.
Linhas gerais da resposta:
1. Discorrer brevemente sobre os planos e seus requisitos;
2. O negócio certamente não é válido porque a manifestação de
vontade, se existente, está viciada. A questão é problematizar se realmente existe manifestação de vontade, e nesse caso, não há nem mesmo que se falar em existência do negócio jurídico. Essa foi a linha de
decisão do relator do acórdão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro,
a partir do qual o presente caso foi gerado, e cuja ementa segue abaixo:
Responsabilidade Civil. Os contratos de empréstimo celebrados entre as
partes litigantes nem sequer adentraram o plano de existência do negócio
jurídico, sendo que, ainda que assim não entendido, afiguram-se inválidos,
considerando o erro substancial e escusável na manifestação da vontade dos
contratantes. Indevida negativação em cadastro restritivo. Dano moral inconteste e in re ipsa. Verba indenizatória que se mantém, diante do critério
da razoabilidade e da proporcionalidade. Desprovimento do recurso.
(TJRJ, Apelação Civil 2005.001.16954, rel. Des. Odete Knaack de
Souza; j. em 24.08.2005)
FGV DIREITO RIO
178
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 16 — INVALIDADE DO NEGÓCIO JURÍDICO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Nulidade e Anulabilidade — distinções e efeitos.
LEITURA OBRIGATÓRIA
MATTIETTO, Leonardo. “Invalidade dos atos e negócios jurídicos”, in
Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de
Janeiro: Renovar, 2002; pp. 177/192.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Gomes, Orlando. Introdução ao direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2007;
pp. 419/435. Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e
Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme a Constituição da
República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266.Caio Mário
da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005;
pp. 306/311-315/330.
1. ROTEIRO DE AULA
Nulidade e Anulabilidade
O estudo das invalidades do negócio jurídico é um dos mais importantes
na análise do Direito como um todo. O seu raciocínio ajuda a compreender
e esclarecer todo o regime de nulidades não só do Direito Civil, mas, ainda,
do Direito Constitucional, Direito Administrativo, Tributário etc.
Tal construção, contudo, é oriunda do direito moderno. Com efeito, as
legislações ainda não têm disciplinado com a precisão necessária o tema das
invalidades, o que acaba causando uma certa perplexidade aos operadores
do direito.
Como vimos, o negócio jurídico pode ser existente, válido e eficaz, desde
que contenha certos elementos e preencha determinadas condições. Todavia,
é possível que o negócio jurídico, por ser contrário ao ordenamento jurídico,
não obtenha a chancela do mesmo e, portanto, tenha algum defeito. Sem
embargo, para que o negócio jurídico (e qualquer ato jurídico lícito) seja
FGV DIREITO RIO
179
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
válido, é preciso que a emissão de vontade esteja submetida às determinações
legais.
Antes de aprofundarmos o tema, entretanto, é preciso fazer um alerta no
que diz respeito à terminologia negócio ineficaz. Até o presente momento,
temos tratado o negócio ineficaz como aquele que não produz efeitos, quer
seja válido ou inválido. No entanto, tal acepção diz respeito à ineficácia stricto
sensu, porquanto a doutrina tradicional se refere à ineficácia lato sensu. Nesse
sentido Orlando Gomes lembra:
“Na acepção lata, a ineficácia abrange a invalidade, porque o negócio nulo é ineficaz. Mas, em sentido estrito, ineficácia opõe-se a invalidade. O negócio é inválido
quando defeituoso em seus pressupostos e requisitos. Diz-se ineficaz, quando, embora
válido, não produz os efeitos normais devido a obstáculo estranho aos seus elementos
essenciais, como a necessidade de prática de ulteriores atos para se tornar eficaz ou
implemento de condição ou advento do termo.”204
Invalidade, por outro lado, é a sanção imposta pela lei ao negócio jurídico
realizado em desobediência ao ordenamento. Tal sanção, no entanto, comporta duas espécies: nulidade e anulabilidade. A distinção reside no fato de
que o ordenamento civil não atinge na mesma intensidade todas as infrações.
Com algumas ela é mais severa do que para com outras. Como afirma Orlando Gomes os “negócios jurídicos defeituosos são, portanto, de graus diversos”205.
Em outras palavras, os negócios podem ser nulos ou anuláveis. A diferença
é encontrada no interesse envolvido no caso concreto. Quando a invalidade
se fundamenta em razões de ordem pública, tratar-se-á de uma nulidade. No
caso de anulabilidade a violação é a um interesse particular. Isto é, o ato
é praticado em desobediência a normas que protegem especialmente certas
pessoas. No caso da anulabilidade o ato não é tão grave como nos casos de
nulidade, apesar de ser imperfeito.
A relevância da distinção encontra-se nos efeitos da referidas invalidades:
Nulidade
Anulabilidade
Violação a ordem pública.
Violação a interesse particular.
Pode ser declarado ex officio.
Só pode ser declarado mediante
requerimento dos interessados.
Não é suscetível de confirmação
Admite ratificação
Não convalesce pelo decurso do tempo.
Prazo decadencial de 4 anos.
Não produz efeitos.
Produz efeitos até a sentença
que declara a invalidade.
204
GOMES, Orlando. Introdução ao
direito civil. Rio de Janeiro: Forense,
2007, p. 422. Trataremos de ineficácia
somente em seu sentido estrito.
205
Idem, p. 423.
FGV DIREITO RIO
180
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Crítica à disciplina tradicional das invalidades
Não obstante o regime das invalidades, é preciso lembrar que ele sofre
uma verdadeira crítica na medida em que os efeitos colocados acima não são
rígidos como queriam alguns autores. As assertivas que os atos nulos não produzem quaisquer efeitos ou que a sentença que declara a anulabilidade produz efeitos ex nunc, por exemplo, não resistem às análises mais profundas.
Inúmeros são os atos nulos que produzem efeitos (interrupção da prescrição por citação nula, efeitos do casamento de boa-fé, parentesco por afinidade em casamento nulo etc.). Por outro lado, o ato anulável, segundo
Leonardo Mattieto, produz efeitos ex tunc, porquanto a lei civil prevê que as
partes devem retornar ao estado anterior.
Princípio da Conservação dos Negócio Jurídicos
Não se pode esquecer, por fim, que apesar do ato ser nulo ou anulável,
é possível a sua manutenção no ordenamento. Tal constatação tem fundamento no princípio da conservação dos negócios jurídicos, segundo o qual
o intérprete devem buscar, ao máximo possível, a manutenção do negócio
realizado. Certamente o ordenamento busca apaziguar as relações sociais, e
não um instrumento para fulminar todos os atos realizados. Dessa forma, ele
só sanciona quando e até onde os valores ou interesses o exigem.
Instrumentos do referido princípio são a ratificação (art. 172), a redução
(art. 184) e a conversão (art. 170). A ratificação consiste na confirmação de
um negócio anulável. Através da ratificação, as partes purgam o vício que o
afeta. A redução, por sua vez, importa na manutenção de um negócio válido,
retirando, porém, a sua nulidade parcial. Em outros termos, se o negócio
contém uma parte inválida, o negócio não resta completamente fulminado
se aquela for separável. Por último, a conversão implica na recategorização
de um ato nulo. Em outras palavras, por esse instituto o ordenamento abre a
possibilidade de, quando ausente um elemento natural (categorial), transformá-lo em outro tipo, mediante o aproveitamento dos elementos prestantes.
Ele acarreta, em verdade, uma nova qualificação categorial206.
206
AZEVEDO, Antonio Junqueira. Negócio jurídico: existência, validade e
eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 67.
FGV DIREITO RIO
181
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
UnB/CESPE — OAB
35º Exame de Ordem 2008.1
QUESTÃO 34.
Acerca dos fatos jurídicos, assinale a opção correta.
A.
A nulidade absoluta, por ser de ordem pública, não se convalesce
pelo decurso do tempo nem pode ser suprida pelo juiz, ainda que a
requerimento dos interessados, sendo insuscetível de confirmação.
B. O negócio jurídico concluído pelo representante legal em conflito
com interesses do representado é anulável, ainda que o terceiro,
pessoa com a qual o representante celebra o negócio, não tenha
conhecimento de tal conflito. Se restar caracterizada a má-fé desse
terceiro, o negócio jurídico é eivado de nulidade absoluta.
C. Quando a lei não exigir forma expressa, o silêncio indica consentimento ou anuência quanto à manifestação de vontade na interpretação dos negócios jurídicos.
D. Para que o dolo de terceiro acarrete anulabilidade do negócio jurídico, é exigido que as partes envolvidas no negócio conheçam, de
antemão, a existência do dolo.
Resposta: A
FGV DIREITO RIO
182
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 17 — INTERPRETAÇÃO DOS NEGÓCIOS JURÍDICOS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Interpretação dos negócios jurídicos
LEITURA OBRIGATÓRIA
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 495/509.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena.
Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 220/230. Venceslau, Rose Melo. “O
negócio jurídico e as suas modalidades”, in Gustavo Tepedino (org.).
A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp.
177/200.
1. ROTEIRO DE AULA
Interpretação do negócio jurídico
Na primeira aula sobre negócio jurídico foi constatado que esse instituto
tem por escopo fundamental a criação de relações jurídicas, que como tal, intentam a busca de efeitos de natureza não só econômica, mas também social.
Por intermédio dessas relações, as partes se vinculam mediante o estabelecimento concomitante de direitos subjetivos e deveres jurídicos.
A existência de similitudes entre a lei e o negócio jurídico é patente. Dessa
forma, não há que se desprezar a abordagem dessas características comuns (e também de suas diferenças) no estudo hermenêutico dessa espécie de ato jurídico.
A primeira das características comuns, e também a mais elementar, é a de
que tanto a norma legal quanto o negócio jurídico são expressões da vontade
humana, pois definem condutas, direitos, deveres jurídicos e toda sorte de
efeitos jurídicos.
No entanto, apesar de serem expressões da vontade e prescreverem direitos
e deveres, a lei e o negócio jurídico diferem quanto ao agente produtor dessas
FGV DIREITO RIO
183
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
normas. A lei é manifestação da vontade do Estado. A lei, em sentido formal,
promana de ato do poder legislativo, que através de ritos procedimentais estabelecidos em sede constitucional, edita leis em caráter genérico e abstrato que
balizam a conduta de todos os indivíduos. Já os negócios jurídicos são constituídos por intermédio da manifestação de vontade de agentes particulares,
que criam normas cujo campo de incidência se restringirá aos participantes
desse pacto. Somente aos contratantes serão impostas obrigações, mas é possível, como se verá posteriormente, que os efeitos jurídicos do instrumento
contratual alcancem a órbita jurídica de terceiros.
Sendo o negócio jurídico exteriorização da vontade humana, é certo
que a sua interpretação deve cogitar não só de elementos de ordem jurídica, mas também de ordem psíquica. Trata-se de problemática especialmente atinente à atividade interpretativa do julgador, pois é quando
da instalação dos litígios, quando já se demandou a tutela do Estado, ou
de uma corte arbitral, em sua solução, que o juiz ou árbitro vai inquirir
sobre os desígnios que os agentes intentavam quando da construção do
liame contratual.
A interpretação do negócio jurídico se coloca umbilicalmente relacionada
ao conteúdo da declaração de vontade, e nesse sentido, muito mais do que
atentar as regras de interpretação, os magistrados se atêm às particularidades
do caso concreto.
No art. 112 do nosso código civil encontra-se um princípio interpretativo
de vital importância nessa seara. Ele estabelece a necessidade de atentar mais
à intenção da declaração de vontade do que ao conteúdo literal que ela assume. Nesse sentido:
Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Logicamente isso não significa que o intérprete desse negócio deva desprezar por completo o teor literal do mesmo. Todavia, os negócios jurídicos
podem assumir grande variedade de formas e de objetos, de maneira que
estabelecer um ritual interpretativo seria complexo e redundaria em imprecisão. Dessa forma, optou-se por alargar a margem de discricionariedade do
intérprete que, no caso concreto, buscará a real vontade das partes.
Essa abordagem no caso concreto é fruto da consideração de que a manifestação de vontade, que redunda na criação do negócio jurídico, se encontra
intimamente ligada a elementos econômicos e sociais, bem como outros fatores de ordem jurídica, como os princípios jurídicos da boa-fé e da lealdade
entre as partes no contrato.
Outro ponto de destaque é o que alude à reserva mental, e nesse sentido o
art. 110 do Código Civil acrescenta a previsão de tal instituto no ordenamen-
FGV DIREITO RIO
184
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
to legal brasileiro, não obstante a sua previsão nos campos jurisprudencial e
doutrinário já existir de longa data.
No entendimento de Serpa Lopes, reserva mental é a manifestação de
vontade dissonante de seu real conteúdo, de modo que os efeitos decorrentes
do ato praticado não sejam queridos pelo declarante.207
Se a outra parte que pactua o negócio desconhecia a dissonância entre
declaração e vontade, o ato deve ser conservado em prestígio à boa-fé dessa
parte e à segurança das relações jurídicas. Caso contrário, se era do conhecimento da outra parte a divergência entre vontade e declaração, a conseqüência será a invalidação do negócio.
Verifique-se que nesse campo da interpretação dos negócios jurídicos, a
boa-fé objetiva assume uma posição de verdadeira proeminência, sendo um
dos nortes interpretativos dos negócios jurídicos. Esse princípio se traduz na
necessidade de se observar ações pautadas na ética e lealdade entre as partes,
tutelando ainda a confiança depositada na parte contrária da relação.
O art. 113 do Código, mais uma vez salienta a necessidade de interpretação em consonância com o princípio da boa-fé, aliando ainda o elemento
costumeiro na interpretação do negócio (usos dos negócios).
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os
usos do lugar de sua celebração.
Os contratos benéficos, por seu turno, devem ser interpretados de forma
restrita, nos limites pretendidos pelo agente. São aqueles mediante os quais
se exerce alguma espécie de liberalidade, como na doação ou na renúncia. Se
por acaso o doador transferiu mais bens do que realmente tinha em mente,
a transmissão no que toca ao excesso deve ser invalidada. Nesses negócios, é
com especial atenção que a vontade do agente instituidor deve guiar a atividade do intérprete.
2. QUESTÕES DE CONCURSO:
Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)
39. Assinale a única afirmação ERRADA quanto aos negócios jurídicos.
(a) A validade da declaração de vontade dependerá sempre de forma
especial.
(b) A validade do negócio jurídico requer, entre outros, objeto determinado ou determinável.
(c) Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e
os usos do lugar de sua celebração.
207
Miguel Maria de Serpa Lopes. Curso
de Direito Civil, v. I.. São Paulo: Freitas
Bastos, 1989; p. 402.
FGV DIREITO RIO
185
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(d) Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
(e) Silêncio importa anuência, quando as circunstâncias ou os usos o
autorizarem e não for necessária a declaração de vontade expressa.
Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) — prova azul:
29. No direito pátrio, como regra geral, o negócio jurídico inspira-se pelo
princípio da forma:
(a) particular.
(b) livre.
(c) consensual.
(d) pública.
(f ) especial.
21º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
1 — No que se refere a contrato firmado entre duas partes é CORRETO
afirmar:
(a) A vontade manifesta de uma das partes não subsiste se esta faz reserva mental de não mais querer aquilo que manifestou;
(b) A reserva mental é indiferente à validade do negócio jurídico, exceto quando o destinatário da manifestação de vontade efetuada com
reserva mental tiver conhecimento da mesma;
(c) A reserva mental de uma das partes importa em erro concernente ao
objeto da declaração de vontade;
(d) O negócio realizado com reserva mental de uma das partes é anulável por não importar em um querer definitivo.
2 — Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao silêncio nos
contratos:
(a) O silêncio no sentido jurídico pode ser conceituado como aquela
situação quando uma pessoa não manifestou sua vontade em relação a um negócio jurídico, nem por uma ação especial necessária
a este efeito (vontade expressa) nem por uma ação da qual se possa
deduzir sua vontade (vontade tácita);
(b) Se alguém me apresenta um contrato e manifesta que tomará meu
silêncio como aquiescência, eu não me obrigo, porque ninguém
tem o direito, quando eu não consinto, de forçar-me a uma contradição positiva;
FGV DIREITO RIO
186
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(c) O silêncio só produz efeitos jurídicos quando, devido às circunstâncias ou condições de fato que o cercam, a falta de resposta à interpelação, ato ou fatos alheios, ou seja, a abstenção, a atitude omissiva
e voluntária de quem silencia induz a outra parte, como a qualquer
pessoa normal induziria, à crença legítima de haver o silente revelado, desse modo, uma vontade seguramente identificada;
(d) O silêncio importará em anuência do contrato todas as vezes em
que se estiver diante de contratos de adesão, houver prazo obrigatório assinalado para manifestação da parte, sob pena de não o
fazendo considerar a contraparte que houve aquiescência e a parte
tiver tido ampla oportunidade de tome conhecimento de todos os
termos e cláusulas do contrato.
Gabarito: 39 (a); 29 (b); 1(b); 2(d)
FGV DIREITO RIO
187
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 18 — DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO: ERRO E DOLO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Manifestação de vontade defeituosa — Disciplina jurídica do erro — Erro
de Fato e Erro de Direito — Disciplina jurídica do dolo — Dolo essencial e dolo
acidental — Dolus Bonus e Dolus Malus — Dolo Positivo e Dolo Negativo —
Dolo de Terceiro.
LEITURA OBRIGATÓRIA
Nevares, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no
novo código civil”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo
Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 251/271.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 513/529. Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp.
268/284.
1. ROTEIRO DE AULA
Manifestação de vontade defeituosa
O negócio jurídico, como visto, se processa mediante uma declaração de
vontade condizente com a lei e que tenciona a produção de efeitos jurídicos.
Deriva, assim, da emissão de vontade do agente. Essa manifestação de vontade é um dos elementos constitutivos do negócio, sem a qual o mesmo não
chega nem mesmo a transpassar o plano da existência.
No entanto, uma vez existente essa vontade, o direito se ocupa dos
requisitos de validade que ela deve demonstrar para que o negócio possa
validamente se aperfeiçoar. Ainda que emanada diretamente do agente,
essa declaração pode não traduzir o seu íntimo querer, a sua vontade real
e dessa maneira, o intérprete termina por se deparar com um negócio
defeituoso. Quando a vontade manifestada não corresponder à vontade
FGV DIREITO RIO
188
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
real, ao desejo do agente, esse negócio encontrar-se-á sujeito à nulidade
ou anulabilidade.
Destaque-se que à luz das teorias encampadas pelo nosso direito civil,
existe a distinção entre ausência de vontade e emissão defeituosa operando em
planos diversos. Sendo a vontade elemento do negócio, e estando ela ausente,
esse ato será inexistente. Por outro lado, sendo a manifestação volitiva defeituosa, o negócio é existente, embora inválido.
Os defeitos que podem atingir o negócio jurídico podem ser de dois tipos.
Os vícios de consentimento e os vícios de vontade.
Os vícios de consentimento afetam a manifestação de vontade em si, fazendo com que a sua elaboração ocorra de modo errôneo. A exteriorização
dessa vontade ocorre de modo distorcido e produz efeitos diversos daqueles
que o agente tinha em mente. Se os fatores que macularam a vontade não
existissem, o declarante ou teria agido de forma diversa ou teria se abstido de
celebrar esse negócio.
Os vícios da vontade, também denominados vícios reais, são aqueles nos
quais o ato se manifesta em consonância com a vontade anímica do agente,
mas, no entanto, essa vontade é repudiada pelo ordenamento. Não se observa oposição entre a vontade íntima do agente e a vontade por ele externada,
porém há dissonância entre a vontade do agente e a ordem legal208. Aqui, o
real querer do agente se encontra harmonizado com a forma pela qual essa
vontade se manifesta, existindo, entretanto, reprovação por parte da lei.
Disciplina jurídica do erro
A noção clássica de erro o define como uma falsa representação da realidade que influencia de maneira determinante a manifestação de vontade.
No erro, o agente procede contrariamente ao seu querer, pois atua ou
por desconhecimento completo ou por conhecimento impreciso acerca de
alguma circunstância. A idéia central desse conceito reside no fato de que o
agente agiria de modo diverso ou mesmo nem praticaria o ato caso tivesse
uma percepção correta da realidade.
Erro e ignorância não se confundem embora venham tratados conjuntamente pelo Código Civil. Ignorância é o desconhecimento do agente em relação aos efeitos que serão produzidos a partir da sua declaração de vontade.
Do ponto de vista jurídico, não há diferença.
Nesse sentido, a ignorância não pode ser observada quando o agente emite determinado ato de vontade tendo a noção de que os efeitos que serão
perpetrados a partir dele são desconhecidos. Se o agente não tem completo
conhecimento do alcance do seu ato não há mais em que se falar em vício do
negócio jurídico.
208
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2005; p. 514.
FGV DIREITO RIO
189
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Um dado relevante no erro é a noção de espontaneidade na manifestação
da vontade. Não importa que o agente tenha querido resultado diverso, que
não tivesse completa consciência dos efeitos próprios do ato que praticou. No
erro, o agente pratica o ato de forma espontânea. Ninguém o coage à prática,
nem o insta a praticá-lo por intermédio de artifícios escusos, ou seja, dolosos.
Os requisitos para a caracterização do erro, são, segundo Clovis Beviláqua:
(i) a escusabilidade; (ii) recair sobre o objeto do ato (e não sobre suas designações); (iii) referir-se aos motivos essenciais do negócio; e (iv) relevância do erro.
Escusabilidade — O erro não pode ser grosseiro, de fácil visualização por
um homem de inteligência mediana (homem comum) agindo com a diligência normal que o negócio requer. Se o erro assume essas características não há
que se pleitear anulação do ato. É a regra do art. 138.
Art. 138. São anuláveis os negócios jurídicos, quando as declarações de vontade
emanarem de erro substancial que poderia ser percebido por pessoa de diligência
normal, em face das circunstâncias do negócio.
Essa idéia visa precipuamente a garantir a segurança jurídica. Se qualquer
erro facilmente verificável pudesse ensejar a anulação dos negócios jurídicos,
haveria grande instabilidade. Além disso, é necessário resguardar o outro contratante em virtude da sua boa-fé. Aferir a escusabilidade do erro é tarefa para
o juiz ou árbitro no caso concreto.
Segundo afirma Silvio Venosa, “foi correta a supressão do requisito escusabilidade porque, na nova lei, o negócio só será anulado se o erro for
passível de reconhecimento pela outra parte. A escusabilidade, nesse caso,
torna-se secundária.” E complementa o autor: “O que se levará em conta é
a diligência normal da pessoa para reconhecer o erro, em face das circunstâncias que cercam o negócio. Sob tal prisma, há que se ver a posição de
um técnico especializado e de um leigo no negócio que se trata. Avultam
em importância as condições e a finalidade social do negócio que devem ser
avaliadas pelo juiz”209
Erro Substancial ou Essencial — Para que o ato seja passível de anulação é
necessário que o erro seja substancial (ou essencial). Como pode se perceber
pela sua própria nomenclatura, o erro essencial tem papel de suma importância na declaração de vontade realizada pelo agente. Se tivesse consciência
da falsa representação da realidade ensejada pelo erro, não teria concluído o
negócio. Ele incide sobre a causa do negócio ou pelo menos, sobre uma das
várias causas do mesmo.
A definição legal sobre o que é erro substancial vem no art. 139, I. O inciso I do mesmo artigo fala do erro quanto à pessoa, dando-lhe tratamento
ainda mais especificado:
209
Silvio de Salvo Venosa. Direito Civil:
Parte Geral. São Paulo: Atlas, 2003; p.
426.
FGV DIREITO RIO
190
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 139. O erro é substancial quando:
I — interessa à natureza do negócio, ao objeto principal da declaração, ou a
alguma das qualidades a ele essenciais;
II — concerne à identidade ou à qualidade essencial da pessoa a quem se refira a
declaração de vontade, desde que tenha influído nesta de modo relevante;
III — sendo de direito e não implicando recusa à aplicação da lei, for o motivo
único ou principal do negócio jurídico.
O erro acidental, contrariamente ao substancial, não é suficiente para
anular o negócio. Ele incide sobre motivos ou qualidades não essenciais.
Nesse caso, não se abre espaço para se pleitear anulação, pois o declarante realizaria o negócio, ainda que conhecendo do erro. Mais uma vez é o juiz, no
caso concreto, que irá aferir a essencialidade ou não do erro. Não há que se
pensar em critérios pré-definidos, visto que o erro que numa situação pode
assumir a qualificação de secundário, pode noutro negócio revestir caráter
de essencialidade.
O art. 142 trata de hipóteses onde a incidência do erro não pode ser suficiente para a invalidação do ato:
Art. 142. O erro de indicação da pessoa ou da coisa, a que se referir a declaração
de vontade, não viciará o negócio quando, por seu contexto e pelas circunstâncias,
se puder identificar a coisa ou pessoa cogitada.
Como já por nós examinado, a causa não foi encampada pelo nosso ordenamento como elemento do negócio jurídico. Limita-se a lei, no art. 140
do Código Civil, a enunciar que o falso motivo só enseja anulação quando
expressamente enunciado como razão determinante do negócio. No mais,
quando não expressos os motivos que levaram o agente a negociar, residindo apenas no seu campo psíquico, não há que se falar em sua influência no
mundo jurídico.
Erro de Fato e Erro de Direito
Já o erro de direito, por conta de alterações legislativas, implica em certa
divergência. O erro pode não recair sobre circunstâncias de fato conforme
examinado acima, mas ao contrário, estar diretamente ligado ao desconhecimento da norma jurídica ou das conseqüências jurídicas do acordo.
Esse desconhecimento não deve ser compreendido aqui como a total ignorância da existência. O próprio ordenamento é expresso nesse sentido, por
força do art. 3º da LICC. O erro, neste caso, consiste no falso conhecimento
do direito aplicável, ou da interpretação do mesmo, redundando na produção de efeitos jurídicos diversos do pretendido.
FGV DIREITO RIO
191
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Há ainda que destacar que o erro de direito somente pode dar margem
à anulação quando se mostra como motivo determinante da declaração, ou
seja, o agente somente resolveu proceder com esse ato na medida em que
tinha uma noção equivocada da norma jurídica.
Disciplina jurídica do dolo
Não há conceituação sobre dolo constante do Código Civil. O Código
inicia o tratamento da matéria no art. 145, elencando o dolo entre as causas
de anulabilidade do negócio jurídico.
O dolo é a o estratagema, o artifício utilizado no intento de viciar a vontade daquele a quem se destina. São manobras efetuadas com o propósito de
obter uma declaração de vontade que não ocorreria caso o declarante não
fosse ludibriado. A definição de Clovis Bevilaqua se mostra bem elucidativa:
“Dolo é o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à
prática de um ato jurídico, que o prejudica, aproveitando ao autor do dolo ou a
terceiro”210
A distinção entre dolo e erro se assenta no fato de que o primeiro há uma
causação intencional do vício da vontade. No dolo há provocação. O erro,
como já examinado, tem origem na própria vítima, da sua íntima convicção,
sendo uma falsa representação da realidade espontaneamente provocada pela
mesma.
Essa distinção se mostra relevante pois, muitas vezes, é de mais fácil verificação o comportamento doloso por parte de algum agente do que a prova da
percepção errônea da realidade, exclusiva da vítima.
O dolo deve versar sobre elemento essencial do negócio jurídico para que
possa ser ensejada a sua invalidade. O dolo que trata de elemento acidental
não é suficientemente forte para que o negócio seja invalidado.
A idéia que circunda o dolo é o de levar uma determinada pessoa, o declarante da vontade, a agir de modo diverso do que pretenderia, caso não houvesse esse estratagema viciador da vontade. A doutrina, no entanto, diverge
acerca da necessidade de haver prejuízo efetivo à parte.
Para os que entendem pela necessidade de desvantagem econômica, o negócio no qual uma das partes proceda dolosamente sem, no entanto, imputar
a outra prejuízo estimável em pecúnia, não poderia ser invalidado.
O dolo deve ter origem no outro contratante. No caso de ser originário de
terceiro, deve ser conhecido por quem dele se beneficiar. Essa é a disposição
constante no art. 148, do Código Civil:
210
Clovis Bevilaqua. Teoria Geral do direito civil. 2. ed. Rio de Janeiro: Editora
Rio, 1980; p. 436.
FGV DIREITO RIO
192
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a
parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário,
ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e
danos da parte a quem ludibriou.
Dolo essencial e dolo acidental
O dolo essencial (ou principal) é uma das causas de anulabilidade do negócio jurídico. O dolo acidental, justamente por incidir em elementos acessórios
da declaração de vontade, não enseja a invalidade do ato, mas somente a reparação por perdas e danos. Ele nada mais é do que a prática de um ato ilícito.
Nesse sentido, prevê a redação dos artigos 146 e 186 do Código Civil:
Art. 146. O dolo acidental só obriga à satisfação das perdas e danos, e é acidental
quando, a seu despeito, o negócio seria realizado, embora por outro modo.
Art. 186. Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete
ato ilícito.
Existem outras classificações para o estudo do dolo, como as que fazem referência à dicotomia entre dolus bonus e dolus malus, ou ainda, a dolo positivo
e dolo negativo, abaixo enfocadas.
Dolus Bonus e Dolus Malus
O dolus bonus é o dolo com intensidade menor e tolerado pelo ordenamento jurídico. Um exemplo pode ser retirado do fato do comerciante que
elogia demasiadamente o produto que intenta vender, minorando além da
conta as imperfeições e desvantagens. A idéia que marca do dolus bonus é que
ele já é esperado, é natural e normal a certos negócios. Há uma presunção de
que o homem que age de forma proba e diligente, seria apto a não se envolver
nessa conduta dolosa.
Dolo Positivo e Dolo Negativo
Atentando ao fato de que o dolo pode se manifestar numa conduta positiva ou negativa, a doutrina apresenta essa classificação envolvendo o dolo
positivo e o dolo negativo.
O dolo positivo ou comissivo engloba a prática de condutas, de atos que
consubstanciam o intento do agente em enganar a outra parte. O declarante
FGV DIREITO RIO
193
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
não agiria de modo errôneo se não houvesse esse comportamento malicioso
por parte do agente. O dolo negativo ou omissivo, por sua vez, é a omissão que
visa a fazer com que o declarante manifeste sua vontade de forma viciada.
Ocorre quando o agente falta com o seu dever de informar, dever que decorre
do princípio da boa-fé objetiva.
Dolo de Terceiro
Pode ocorrer que um terceiro, mesmo a quem os efeitos do negócio não
aproveitem de nenhuma forma, perpetre um comportamento doloso. Nesse
sentido, o art. 148 do Código Civil destaca que:
Art. 148. Pode também ser anulado o negócio jurídico por dolo de terceiro, se a
parte a quem aproveite dele tivesse ou devesse ter conhecimento; em caso contrário,
ainda que subsista o negócio jurídico, o terceiro responderá por todas as perdas e
danos da parte a quem ludibriou.
O ato é anulável se o beneficiário tivesse conhecimento do dolo, ou ainda
que estivesse obrigada a ter esse conhecimento.
O dolo de terceiro pode se apresentar em três situações: (i) dolo de terceiro
contando com a cumplicidade (participação efetiva) da parte do negócio; (ii)
dolo de terceiro com mero conhecimento da parte beneficiária; e (iii) dolo
exclusivo de terceiro, sem conhecimento do favorecido.
Quando o comportamento doloso se processa com alguma forma de conhecimento da parte que ele se aproveita (situações i e ii) têm-se a anulabilidade do negócio. Na situação em que a parte não faz a menor idéia do comportamento doloso do terceiro, o negócio deverá subsistir, mesmo porque,
deve-se ter em vista a boa-fé da parte a quem o dolo aproveitou. Certo é que
o prejudicado poderá pleitear direito a indenização por perdas e danos face
ao terceiro que agiu ilicitamente.
Como se verá adiante, a coação, ao contrário do que determinava o regime
do Código de 1916, assume no atual Código tratamento semelhante ao dolo
no que concerne à coação de terceiro sem o conhecimento de contratante
beneficiado.
Por fim, no dolo de ambas as partes, a lei pune ambas as condutas, evitando a anulação do ato. Essa é a regra do art. 150 do Código Civil. Trata-se de
uma derivação da regra de que a ninguém é dado alegar a própria torpeza.
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194
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
2. CASO GERADOR
No dia 23 de abril de 2004, Bruno e Elizabeth, um casal de namorados que
residia no apartamento 303, do prédio de nº 45, na Rua Manoel Gonçalves, no
bairro de Laranjeiras, tiveram uma discussão acalorada. Não se sabe ao certo o
motivo da discussão, mas o fato é que o casal foi encontrado morto, no dia seguinte, pelo porteiro do prédio. O caso ainda hoje é um mistério para as autoridades
policiais. Todos os jornais de circulação na cidade divulgaram por alguns dias a
notícia da tragédia e as suas eventuais repercussões.
O fatídico apartamento 303 era alugado. O locador, Antônio Mathias, tomou
o cuidado de reformar todo o apartamento depois da tragédia. “Foi uma medida
mais espiritual do que estética” — chegou a declarar para os amigos. Depois de concluída a reforma, nada mais naquele apartamento lembrava a existência do casal.
Mas Antônio estava resolvido a vender o imóvel. Passado algum tempo, conseguiu comprar uma outro imóvel e para lá se mudou, colocando o apartamento
303 para ser vendido através dos classificados de um grande jornal.
Dois dias depois, Francisco e Carolina, um casal de namorados, foi visitar o
apartamento. Eles logo se encantaram com a vista e com as condições para a compra do imóvel. Depois de providenciada toda a documentação, foi devidamente
lavrada a escritura de compra e venda do imóvel, que agora passava a ser de
legítima propriedade de Francisco.
Numa manhã de domingo, ao retornar de uma caminhada na praia, Carolina encontra no elevador com uma moradora do prédio. A senhora, sem muita
cerimônia, ao perceber que Carolina nada sabia sobre a tragédia do 303, trata
de prontamente relatar todo o evento à nova moradora.
Atordoada com a noticia, a jovem corre para contar ao namorado sobre os
eventos transcorridos em seu apartamento há menos de dois anos atrás. Francisco,
indignado com a má-fé de Antônio, imediatamente contata o seu advogado. Na
segunda-feira, após reunião com seu advogado, Francisco está certo de que o negócio será anulado através de decisão judicial e pretende ingressar com a medida
na mesma semana.
Se você fosse o juiz desse caso, como seria a sua decisão? A venda do apartamento 303 pode ser anulada com fundamento na tragédia ocorrida com Bruno
e Elizabeth? Justifique.
O presente caso foi baseado na decisão do Tribunal de Justiça do
Rio de Janeiro referente à na Apelação Cível nº 6421/2004, rel. Des.
Maldonado de Carvalho; j. em 31.04.2004, cuja ementa está abaixo
transcrita:
Civil. Anulação de escritura de compra e venda de imóvel residencial.
Vício na manifestação da vontade. Erro acidental. Validade do negócio
jurídico. Não ganha qualquer ressonância jurídica a indicação sobre a
FGV DIREITO RIO
195
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
ocorrência de vício oculto como causa direta da anulabilidade do negócio
jurídico, uma vez que o imóvel adquirido, por ausência de qualquer indicação nesse sentido, não se mostra impróprio ao uso que se destina, ou,
em razão de vício redibitório, teve prejudicado sensivelmente o seu valor.
O vício redibitório, como os doutrinadores o definem, é o defeito oculto
que torna a coisa imprópria ao uso a que se destina, ou lhe prejudica sensivelmente o valor. Já o erro, na linha de Carvalho de Mendonça, deve ser
visto como seu fundamento, uma vez que o agente não faria o contrato caso
conhecesse a verdadeira situação, impedindo, assim, que a vontade se forme
em consonância com a verdadeira motivação do contratante, apenas o erro
substancial influi sobre a validade do negócio jurídico. Exclui-se, portanto,
o erro acidental que, não recaindo na essência da declaração, não provoca
divergência capaz de justificar a anulação do negócio jurídico. É necessário, pois, que o erro recaia na substância do ato, no objeto principal da
declaração, ou em alguma das suas qualidades substanciais. São anuláveis
somente as declarações de vontade decorrentes de erro essencial, porquanto
o erro acidental não recai nos motivos determinantes da vontade. Recurso
improvido.”
Sendo assim, no caso concreto, o TJRJ refutou a pretensão dos autores afirmando que não se tratava de erro essencial e, portanto, não
cabendo anulação. Os alunos poderão fazer conjecturas acerca da existência de dolo por parte do alienante, ou até onde ele faltou com o
dever de lealdade contratual e boa-fé ao omitir o fato.
3. QUESTÃO DE CONCURSO:
20º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
2 — Assinale a alternativa INCORRETA no que se refere ao dolo:
(a) O silêncio de uma das partes sobre fato relevante à consecução do
negócio constitui dolo;
(b) Se ambas as partes procederem com dolo, pode alegá-lo para anular
o negócio, ou reclamar indenização, a parte a quem o negócio realizado não aproveitou;
(c) O dolo principal ou essencial torna o ato anulável. O dolo acidental
só obriga à satisfação de perdas e danos;
(d) O dolo civil ao contrário do dolo do direito penal é mais genérico,
deixando ao juiz a faculdade de interpretar o caso, diante das circunstâncias, para dizer se houve ou não dolo para viciar a vontade.
Gabarito: 2(b)
FGV DIREITO RIO
196
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 19 — DEFEITOS DO NEGÓCIO JURÍDICO: COAÇÃO, SIMULAÇÃO E FRAUDE CONTRA CREDORES
EMENTÁRIO DE TEMAS
Disciplina jurídica da coação — Coação por parte de terceiros — Disciplina
jurídica da simulação — Disciplina jurídica da fraude contra credores
LEITURA OBRIGATÓRIA
Neves, José Roberto de Castro. “Coação e fraude contra credores no Código
Civil de 2002”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 291/309.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 530/544. Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp.
284/291; 297/306.
1. ROTEIRO DE AULA
Coação
A coação é qualquer ameaça, quer seja de natureza física, quer seja moral,
mediante a qual se constrange alguém a praticar um determinado ato. A previsão legal se encontra no art. 151 do Código Civil, a partir do qual também
se faz possível destacar os principais elementos do instituto:
Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta
ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.
Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente,
o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.
FGV DIREITO RIO
197
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Os elementos marcantes para que se configure a coação são (i) essencialidade da coação; (ii) intenção de coagir; (iii) real gravidade do mal causado;
(iv) ilicitude da cominação; (v) dano atual e iminente; (vi) justo receio de
prejuízo, igual, pelo menos, ao decorrente do dano extorquido; e (vii) ameaça
que deve recair sobre pessoa ou bens do paciente, ou pessoas de sua família.
Da mesma forma que os demais vícios já estudados até aqui, coação deve
ser causa determinante do negócio jurídico, ou seja, sem ela, o negócio ou
não teria se realizado ou teria ocorrido de forma manifestadamente diversa.
Se ainda que presente a coação, ela não seja a causa determinante, como
no caso do coagido desejar a prática do negócio de qualquer forma, não poderá ser pleiteada a invalidade do mesmo. O querer do agente, nesse caso,
permanece espontâneo.
Se incidir sobre elemento acidental do negócio (coação acidental), a realização
ocorreria indistintamente, mas de forma diversa da que se processou. Surge aqui o
dever de ressarcimento do prejuízo, mas não a prerrogativa de anular o ato.
O temor provocado pela coação deve ainda ser considerável (de natureza
moral ou patrimonial). O temor de natureza moral é aquele que se dirige
contra a vida, liberdade, honra da vítima, pessoas de seu círculo familiar ou
ligadas àquela por fortes vínculos afetivos. A coação patrimonial incide sobre
o patrimônio da vítima. Dessa forma, esse temor deve apresentar certa gravidade, pois se ele derivar das pressões a que os indivíduos são corriqueiramente submetidos, frustrar-se-á o intento de anula o negócio.
Adicionalmente, o perigo de dano deve ser iminente. Se a ameaça for produzir efeitos em um futuro distante, não há como qualificar a coação, mesmo
porque, abrir-se-ia a possibilidade do coagido buscar a tutela do poder estatal, desembaraçando-se da injusta pressão.
O temor deve ser fundado, ou seja, deve ser claro em sua manifestação.
Não há que se decretar invalidade se o coagido apenas supunha ser vítima de
pressão de fato inexistente. Esses são as características descritas no art. 151:
Art. 151. A coação, para viciar a declaração da vontade, há de ser tal que incuta
ao paciente fundado temor de dano iminente e considerável à sua pessoa, à sua família, ou aos seus bens.
Parágrafo único. Se disser respeito a pessoa não pertencente à família do paciente,
o juiz, com base nas circunstâncias, decidirá se houve coação.
Um outro dado também importante é a ilicitude do mal com que se processa a coação. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um
direito. Essa é a prescrição do art. 153 do Código Civil:
Art. 153. Não se considera coação a ameaça do exercício normal de um direito,
nem o simples temor reverencial.
FGV DIREITO RIO
198
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
No entanto, o exercício do direito não se confunde com abuso do direito
(art. 187) que seria justamente o seu desvio de finalidade. O exercício do direito se orienta especificadamente à consecução da vantagem a que ele alude.
Não é possível que dele venha o agente se valer para atingir finalidade diversa
daquela para a qual foi criado.
Como elencado na relação de requisitos para a configuração da coação,
essa conduta deve provocar na vítima receio de dano ao menos igual ao que
seria provocado pelo o ato sobre o qual a coação versa. Deve-se verificar sempre a real dimensão dos danos. De um lado, deve-se averiguar os danos provocados caso o coagido aja de acordo com os desígnios do coator; de outro,
deve-se também ter em mente as conseqüências que serão visualizadas na
hipótese de se resistir à coação.
Esse procedimento, entanto, sofre hoje certas objeções em virtude da possibilidade de ocorrerem danos de natureza diversa, tais como os danos materiais e morais.
Alguns autores entendem ainda ser possibilidade de coação quando a
ameaça se dirige ao próprio coator. É o exemplo do filho, que para obter
vantagem do pai, ameaça se matar.
Ainda, a doutrina diferencia coação moral de coação física. A primeira vicia o consentimento, ao passo que a última liquida totalmente a possibilidade
de escolha. Não há que se falar, nessa situação em declaração de vontade.
A coação física (igualmente tratada por vis absoluta) é um constrangimento de natureza corporal que retira toda a capacidade do querer. Não há manifestação de vontade, ou seja, há ausência total de consentimento com o ato
praticado. Não havendo consentimento, carece o negócio jurídico de um de
seus elementos essenciais, quer seja, a declaração de vontade, e portanto, deve
ser tido como inexistente. A coação absoluta não é vício da vontade.
A coação relativa (vis compulsiva ou coação moral) se opera de forma diversa, sendo vício da vontade. A vítima tem maior campo para manifestar a
sua vontade, podendo inclusive não ceder à coação, enfrentado o mal imposto. Com a coação relativa, o ato se torna apenas anulável.
O temor reverencial é determinado pelo art. 153. Trata-se do receio de
desgostar pessoas a quem o agente julga dever obediência e respeito, como
no caso dos filhos em relação aos pais. Há, contudo, que se observar se esse
suposto “temor” não configura de fato coação.
Coação por parte de terceiros
Quando do estudo sobre o dolo de terceiro, foi observado que o mesmo
não macularia o ato se fosse desconhecido pela parte beneficiada. Essa solução
é manejada, dentre outros motivos, pela proteção à boa-fé do beneficiado.
FGV DIREITO RIO
199
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Sob os auspícios do Código de 1916, a dinâmica da coação determinava
que mesmo com o desconhecimento da parte beneficiada pela coação, abrirse-ia a possibilidade de anulação do ato. Essa era uma solução muito desfavorável, como visto, ao contratante de boa-fé.
Já o novo Código prevê solução diversa, semelhante àquela estudada em
relação ao dolo. Se houver coação de terceiro e esta for desconhecida pelo
contratante que dela se beneficiar, não se abre a possibilidade de anulação. O
negócio subsiste, pleiteando-se indenização do terceiro coator.
Ocorre que se o beneficiado tiver conhecimento da coação ou dela diretamente participar, ambos estarão solidariamente obrigados ao dever de
indenizar, afora a conseqüente possibilidade de anular esse negócio (arts. 154
e 155 do Código Civil).
Disciplina jurídica da simulação
Simulação, como conceito jurídico, corresponde ao ato, ou negócio jurídico, que oculta a real intenção do agente. Ao contrário do que dispunha o
Código Civil de 1916, a simulação agora é causa de nulidade do ato e não
mais de anulabilidade. A razão dessa alteração reside no fato de que na simulação, não há vício da vontade. Há, sim, uma aparência de legalidade, mas o
interior do ato esconde a intenção de burla à lei.
Na simulação, o negócio que se apresenta à vista de todos não é o realmente desejado pelas partes, mas é aquele que confere aparência legal ao
que a verdadeira manifestação volitiva persegue. Destaque-se ainda que essa
disparidade entre o querido e o apresentado não é ocasional, mas proposital.
A característica mais relevante do negócio simulado é a divergência intencional entre a vontade e a declaração. Não há que se falar aqui em vício da
vontade, pois essa se manifesta de forma desembaraçada. A simulação é um
vício social, na medida em que as partes, agindo em conluio, criam a imagem
de um negócio diferente do pretendido.
Nesse sentido, na caracterização da simulação, destaca-se a (i) intencionalidade na divergência entre vontade e declaração, (ii) acordo simulatório
entre os que declaram vontade, (iii) o intuito de enganar terceiros.
Há intencionalidade na divergência entre vontade e declaração. O emitente sabe que a declaração é errada, mas ainda assim procede com essa falsa
representação da realidade.
O intuito de enganar não pode ser equiparado com o de prejudicar terceiros. Não há, na simulação, vinculação necessária de prejuízo a alguém. No
entanto, quando essa vontade de implicar prejuízo a outrem existe, diz-se que
a simulação é maliciosa. Fácil, diante do exposto, é perceber que a declaração
que não visa ao mal alheio reputa-se como inocente.
FGV DIREITO RIO
200
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
No que se refere a essa distinção entre inocente e maliciosa, erige-se uma
celeuma doutrinária. No Código anterior, o art. 103 determinava que somente a simulação maliciosa viciava o negócio. Tal regra não foi repetida pelo
atual Código, o que levou grande parte dos autores, na esteira da corrente
jurisprudencial já majoritária, a acreditar que a simulação inocente ensejaria
a nulidade do negócio da mesma forma que a maliciosa.
A simulação pode assumir a forma de simulação relativa e simulação absoluta. Há simulação absoluta quando a declaração falaciosa se faz objetivando
a não produção de nenhum resultado. O interesse real dos agentes é não praticar ato algum. Na realidade, não há que falar em ato ou negócio encoberto,
pois nenhum ato existe.
Na simulação relativa há de fato um negócio pretendido pelas partes, mas
a intenção delas é que esse negócio permaneça dissimulado (daí também ser
chamada dissimulação). O negócio aparente tem por escopo encobrir outro
de natureza diversa.
Se esse ato não prejudicar terceiros e não atentar contra a lei, o ato que o
dissimula pode ser afastado, assumindo a vontade perante todos a sua face
real. Esse é o sentido da lei, manifestado pelo art. 167 do Código Civil:
Art. 167. É nulo o negócio jurídico simulado, mas subsistirá o que se dissimulou,
se válido for na substância e na forma.
Apesar de inválido o negócio simulado (nulo), subsistirá o dissimulado se
suas forma e substância. forem válidas.
Em relação à simulação relativa, a construção doutrinária enfoca ainda 3
formas pelas quais ela pode se manifestar:
(i) Sobre a natureza do negócio — ex. simulação de doação, quando na
realidade procede-se com compra e venda. O objetivo é fugir da
excessiva tributação que marca a alienação de imóveis.
(ii) Sobre o conteúdo do negócio — ex. numa alienação, o valor definido
no instrumento contratual é inferior o valor efetivo da transação;
(iii) Sobre a pessoa que participa do negócio — trata-se de uma verdadeira
construção ficcional, onde outra pessoa é envolvida na transação a
fim de mascarar o conhecimento daqueles que realmente atuam no
ato. É o caso dos chamados “laranjas” ou “testas de ferro”.
O art. 168 destaca os legitimados, que podem ser quaisquer interessados,
bem como o Ministério Público, nos casos em que seja chamado a intervir.
FGV DIREITO RIO
201
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Disciplina da fraude contra credores
Conforme será observado no segmento sobre relações obrigacionais, a
garantia dos credores em relação à satisfação de seus créditos reside no patrimônio do devedor. Quando o devedor não paga a obrigação a que está
vinculado, abre-se a prerrogativa ao credor de ingressar no Poder Judiciário,
pleiteando a retirada de bens do patrimônio jurídico do devedor com vistas
a saldar esse débito.
A fraude contra credores, grosso modo, corresponde a toda sorte de atos que
objetivem frustrar a garantia que os credores encontram no patrimônio do
devedor. Em regra, opera-se com a transferência de patrimônio.
O estado de insolvência do devedor ocorre no momento em que suas
dívidas superam os seus créditos, ou melhor, quando o passivo é maior do
que o ativo. Dessa forma, todos os atos que ele pratique e que importem em
transferência do seu patrimônio passam a ser vistos com ressalvas, justamente
porque esses bens constituem a garantia de que os credores terão os seus direitos satisfeitos.
Ocorre fraude contra credores “quando o devedor insolvente, ou na iminência de tornar-se tal, pratica maliciosamente negócios que desfalcam seu
patrimônio em detrimento da garantia que este representa para os direitos
creditórios alheios.”211
A fraude contra credores, grosso modo, corresponde à transferência de patrimônio com vistas a evitar a sua utilização no pagamento aos credores. No
seu conceito pode-se observar a existência de dois elementos, um de ordem
objetiva e outro de ordem subjetiva. O elemento objetivo, como já examinado, consiste no ato prejudicial ao credor, na medida em que por intermédio
dele, o devedor ou se torna insolvente ou torna mais grave a insolvência já
instalada. O dado de ordem subjetiva é a intenção do devedor (muitas vezes
aliado a terceiros) de prejudicar o credor.
Aos credores que possuem garantias especiais em relação ao patrimônio
do devedor não é dado alegar a invalidade do ato, afora os casos em que as
garantias datas se mostrem insuficientes. Esse, por exemplo, seria o caso do
credor hipotecário que observa que o valor do imóvel dado em garantia não
mais garante a totalidade do seu crédito.
Por conta disso, a fraude contra credores é instituto que se presta precipuamente à tutela dos credores quirografários, isto é, aqueles que não possuem
garantias de qualquer natureza em relação ao pagamento de seus créditos.
Em regra, são eles que legitimariam o interesse de ajuizar a ação pauliana, por
intermédio da qual se pleiteia a anulação do negócio jurídico.
Três são os requisitos apontados pela doutrina para a caracterização da
fraude contra credores: (i) anterioridade do crédito; (ii) consilium fraudis; e
(iii) eventus damni.
211
Gustavo Tepedino, Maria Celina
Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 297
FGV DIREITO RIO
202
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A anterioridade do crédito é determinada pelo art. 158, §2º. Quem contrata com devedor já insolvente, abre mão de patrimônio que garanta o cumprimento dessa obrigação. Deve o credor, antes de pactuar, certificar-se da
solvência do devedor.
O eventus damni se liga à necessidade de se comprovar o prejuízo. Sem ele,
não há interesse na propositura da ação pauliana.
O terceiro e último elemento é o consilium fraudis, dado de ordem subjetiva. Não é necessária a intenção em prejudicar o credor, mas apenas a consciência de que a prática do ato redundará no afastamento da garantia.
Um outro dado relevante é a vedação à transmissão gratuita de bens, seja
a doação ou a remissão de dívidas. Nesse caso, o legislador foi claro ao considerar desnecessária a comprovação de fraude. Como as liberalidades, tal
como a doação, são negócios celebrados a título gratuito, sem que importe
em contraprestação, a lei as proíbe em resguardo ao interesse dos credores
(art. 158 do Código Civil).
A ação pauliana, por sua vez, é titularizada pelo credor lesado, que a ajuíza
tutelando direito seu. Objetiva a invalidação do ato jurídico que afetou a
garantia que o credor encontra no patrimônio do devedor. Essa ação deve ser
movida contra todos os participantes do ato fraudulento, ou seja, todos que
integraram o pólo passivo da relação obrigacional. Essa regra deriva do art.
161, que na realidade assumiria redação mais apropriada aludisse à idéia de
que todos os envolvidos na construção da fraude figurariam como réus.
Em relação aos efeitos da ação pauliana, cumpre destacar que as vantagens
oriundas da anulação do ato, nos termos do art. 165, remetem ao acervo de
bens sobre o qual ocorrerá o concurso de credores. A anulação beneficiará a
todos os credores, sejam quirografários ou os dotados de algum privilégio.
A fraude contra credores é apenas uma das espécies de fraude. A sofisticação da mente humana é suficientemente capaz de criar novas situações onde
o embuste se revestirá, aparentemente, dos requisitos de validade. Muitas
vezes competirá ao juiz ou árbitro, no caso concreto, aferir a intenção dos
agentes determinando a anulação do ato.
2. CASO GERADOR
Alfredo e Valdete são casados e dentre os bens do casal encontra-se um apartamento locado no bairro de Laranjeiras. Com a aposentadoria de Alfredo, o casal,
nos próximos meses, finalmente colocará em prática o acalentado sonho de se
mudarem para a cidade de Natal.
Nesse sentido, Alfredo e Valdete resolvem doar o apartamento em questão aos
filhos do casal, Lucas e Letícia. A razão de ser dessa transferência foi o fato de os
referidos filhos já se encontrarem formados, independentes economicamente, e,
FGV DIREITO RIO
203
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
portanto, com condições de arcar com despesas próprias da manutenção de um
imóvel.
Deve-se destacar ainda que, afora o apartamento em questão, Alfredo e Valdete possuem outros imóveis, um residencial e ainda uma sala comercial — a qual,
no entanto, encontra-se penhorada.
A penhora se deu em virtude do não adimplemento por parte do casal de um
empréstimo levantado junto ao Banco Alfa S/A há alguns meses.
Confiante de que o valor do imóvel penhorado saldaria suas dívidas, o casal
resolveu dar seguimento aos seus intentos. Com o imóvel já doado, Alfredo e Valdete planejavam a vida na nova cidade.
Ficaram surpresos, contudo, quando receberam a citação judicial informando
do ajuizamento de ação pauliana visando a desconstituição da doação celebrada.
O Banco Alfa afirmou que o valor do imóvel penhorado não cobria o valor da
dívida e os custos com o trâmite judicial. Destacou a instituição financeira que
o valor de mercado do bem sofrera um considerável decréscimo nos últimos meses
e dessa forma, uma garantia suplementar seria necessária, daí a necessidade de
igualmente penhorar o imóvel do casal.
Alfredo e Valdete contestam essas alegações destacando que o valor do imóvel
seria sim suficiente para saldar o débito. Ainda que não o fosse, há a impossibilidade de anular o negócio, visto que a intenção dos doadores não foi a de burlar
a lei.
Com base no exposto, responda:
a) A ação pauliana foi ajuizada com fundamente em que instituto jurídico? Enumere quais são os elementos desse instituto e quem são
os integrantes do pólo passivo da relação processual.
b) As alegações do casal na contestação são procedentes? Justifique.
Linha geral de resposta
O presente caso foi baseado na Apelação Cível nº 2005.001.14678,
julgada pelo TJRJ.
Na resposta do item (b), vale observar que não há consilium fraudis,
isto é, o casal não tinha noção de que o ato desfalcaria os credores.
Nesse sentido, eles procedem ingenuamente. A defesa deve enveredar
por essa linha. Os alunos poderão alegar vedação à transmissão de bens
a título gratuito. Isso não é aplicável, visto que os devedores ainda não
eram insolventes.
FGV DIREITO RIO
204
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
3. QUESTÕES DE CONCURSO
24º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
40 — Sobre simulação no novo Código Civil, é correto afirmar que:
(a) Não se trata de hipótese de anulação, como no Código anterior,
mas sim de nulidade do negócio jurídico;
(b) Decorre da prática de atos legais, mas com a finalidade de prejudicar terceiros, ou, ao menos, frustrar a aplicação de determinada
regra jurídica;
(c) Foi excluída do novo Código Civil, não sendo causa de inexistência, nem nulidade e, tampouco, de anulação do negócio jurídico;
(d) É o artifício ou expediente astucioso, empregado para induzir alguém à prática de um ato jurídico, que o prejudica.
22º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
3 — Em relação à simulação é CORRETO afirmar:
(a) tal como na coação, uma das partes é forçada, mediante grave ameaça, a praticar o ato ou celebrar o negócio;
(b) na simulação relativa o negócio dissimulado não subsiste, mesmo
que seja válido na substância e na forma;
(c) nunca é acordada com a outra parte ou com as pessoas a quem ela
se destina;
(d) é uma declaração falsa, enganosa, da vontade, visando aparentar
negócio diverso do efetivamente desejado.
20º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
3 — No que se refere à coação, assinale a alternativa INCORRETA:
(a) A coação física, violência, vis absoluta, exclui o consentimento. Não
há negócio jurídico porque falta o elemento principal — a vontade
do agente — que foi privado de manifestá-la, o que acarreta a inexistência do negócio;
(b) A coação, como vício do consentimento, se aprecia objetivamente,
sem consideração à condição das partes;
(c) O caso do credor que ameaça levar o devedor a juízo, a fim de
obrigá-lo ao pagamento da dívida, não constitui coação;
(d) A ameaça de um mal remoto ou evitável não constitui coação capaz
de viciar o negócio.
Gabarito: 40 (a); 3 (d); e 3 (b)
FGV DIREITO RIO
205
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 20 — LESÃO E ESTADO DE PERIGO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Estado de perigo — Conseqüências do estado de perigo — Disciplina jurídica
da lesão — Conseqüências da lesão.
LEITURA OBRIGATÓRIA
Nevares, Ana Luiza Maia. “O erro, o dolo, a lesão e o estado de perigo no
novo código civil”, in Gustavo Tepedino (org.). A Parte Geral do Novo
Código Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2002; pp. 271/290.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 544/552. Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp.
291/297.
1. ROTEIRO DE AULA
Estado de Perigo
O conceito de estado de perigo pode ser encontrado no art. 156 do Código Civil, ao dispor que o referido estado será configurado quando “alguém,
premido da necessidade de salvar-se, ou a pessoa de sua família, de grave
dano conhecido pela outra parte, assume obrigação excessivamente onerosa.”
O estado de perigo é um dos defeitos do negócio jurídico, e como tal, é
passível de anulação. Sua natureza é similar a dos outros vícios estudados até
aqui, qual seja, a de vício do consentimento. Configura-se o estado de perigo quando o agente, premido por circunstâncias de fato que exercem forte
influência sobre a sua vontade, realiza negócio jurídico em condições desvantajosas, assumindo obrigação excessivamente onerosa.
O estado de perigo guarda certa similitude com a coação, uma vez que
nessa modalidade de defeito do negócio jurídico, a ameaça ou violência temida pelo coagido provém de alguém interessado na prática do ato. No estado
FGV DIREITO RIO
206
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
de perigo, diferentemente, também há uma ameaça, que decorre, entretanto,
de uma circunstância fática.
Na configuração do estado de perigo, configuram-se como elementos: (i)
necessidade de preservação da vida humana; (ii) dolo de aproveitamento; e (iii)
assunção de obrigação excessivamente onerosa. Nesse sentido, têm-se que:
Necessidade de preservação da vida humana — Não é qualquer bem jurídico
que se encontra em risco. Na configuração do estado de perigo, o declarante
manifesta sua vontade em momento específico, um momento verdadeiramente crítico, onde se observa a necessidade de preservação da vida humana,
que pode ser do próprio emitente ou de outrem. Essa emissão dessa vontade
ocorre em receio a um perigo iminente de dano.
No que concerne ao indivíduo que se encontra submetido à situação de
perigo, o art. 156 estabelece como regra duas hipóteses: (i) pode o emitente
agir em defesa própria, quando é quem corre perigo; (ii) pode ainda agir tendo em vista a defesa de um familiar, quando assume a obrigação tencionando
salvar do perigo um ascendente, um descendente ou o cônjuge.
Destaque-se que o estado de perigo pode ser configurado ainda quando a
obrigação assumida não for referente à proteção própria ou de um membro
da família, sendo essa a regra do art. art. 156, §. Compete ao juiz, casuisticamente, decidir pela aplicação dessa hipótese, atentando às circunstâncias em
que se formou o negócio jurídico.
Dolo de Aproveitamento — Na coação, conforme já examinado, o agente
coator constrange o emitente à manifestação de vontade que lhe seja favorável. O perigo que aflige ao coagido é criado por aquele se aproveita da
formação do negócio. O estado de perigo, por sua vez, configura-se pelo
surgimento espontâneo da situação de perigo.
A leitura do art. 156 permite afirmar que, embora o beneficiário da situação periclitante não a tenha dado causa, ele certamente tinha conhecimento
da necessidade de proteção à vida que a outra parte tinha, e se aproveitou
desta circunstância para obter a vantagem indevida.
Assunção de Obrigação Excessivamente Onerosa — De per se, o fato do indivíduo estar submetido a uma situação de perigo ao manifestar sua vontade
não é suficiente para eivar de defeito o negócio jurídico. Em tese, poderia
recusar-se a se submeter às condições abusivas do beneficiário e tentar ultimar
o negócio jurídico com outra pessoa. Têm-se, assim, que para se admitir o estado de perigo como defeito do negócio jurídico, a manifestação da vontade
negocial deverá resultar na assunção de uma obrigação excessivamente onerosa, em decorrência da urgência em se resguardar a vida humana do iminente
perigo a que está sendo submetida.
Vale ressaltar que o legislador não se ocupou em delimitar o que seria uma
obrigação excessivamente onerosa. O silêncio da lei é benéfico, pois assim
como uma determinada situação pode ser mais gravosa para um indivíduo
FGV DIREITO RIO
207
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
do que para outro, o excesso da prestação também é relativo, devendo ser
analisado casuisticamente.
Conseqüências do estado de perigo
Visando a igualar o estado das partes nesse tipo de situação, o Código
Civil reputa como anulável o negócio jurídico celebrado em estado de perigo
(art. 171, II). A anulabilidade da relação jurídica está sujeita ao prazo decadencial de quatro anos (art. 178, II).
Mesmo com a determinação legal, uma parte da doutrina sustenta que a
anulabilidade não seria o efeito mais adequado para os casos em que o negócio jurídico for celebrado em estado de perigo. Isso porque a anulação do
negócio jurídico levaria à devolução integral da quantia desembolsada pela
“vítima”, porém, não se pode esquecer que, ainda que de má-fé, houve um
serviço prestado pela outra parte, e que resultou em despesas.
Nesse sentido, poder-se-ia cogitar que seria mais correto utilizar-se da revisão objetiva do preço, como acontece nos casos de lesão (art. 157 § 2º, do
Código Civil), evitando assim tanto o enriquecimento sem causa do agente
que recebeu a prestação do serviço, quanto o prejuízo do prestador de serviço, que poderia abater da restituição os gastos que teve para cumprir sua
obrigação. Este é o entendimento do CJF, conforme se extrai do enunciado
148 da III Jornada de Direito Civil: “Ao estado de perigo (art. 156) aplica-se,
por analogia, o disposto no § 2º do art. 157”.
Disciplina jurídica da lesão
O conceito de lesão encontra-se no art. 157 do Código Civil, ao dispor
que “ocorre a lesão quando uma pessoa, sob premente necessidade, ou por
inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor
da prestação oposta.”
Pode-se afirmar que, de modo genérico, a lesão é “o prejuízo que uma
pessoa sofre na conclusão de um ato negocial, resultante da desproporção
existente entre as prestações das duas partes”.212 Esse instituto surgiu primitivamente na compra e venda, evoluindo através do tempo até abranger todo
tipo de convenção negocial.
Atualmente, o ordenamento jurídico nacional consagra o entendimento
de que existe lesão quando o agente, instado por uma necessidade, induzido
pela inexperiência ou conduzido pela leviandade, realiza um negócio jurídico
que proporciona à outra parte um lucro patrimonial desarrazoado ou exorbitante da normalidade.213
212
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de direito civil, v. I. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 347
213
Caio Mário da Silva Pereira. Ob cit.;
p. 348.
FGV DIREITO RIO
208
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Em relação à sua natureza jurídica, a doutrina também apresenta controvérsias, sendo que a corrente majoritária entende que a lesão é defeito atípico
do negócio jurídico.
Como elementos qualificadores da lesão, podem ser elencados os seguintes: (i) Desproporção evidente entre prestação e contra-prestação; (ii) Desigualdade Originária; (iii) Nexo Causal.
Desproporção evidente entre prestação e contra-prestação — Ocorre nas situações em que uma das partes angaria lucro desproporcionalmente maior
do que a prestação que pagou ou prometeu pagar. Essa aferição do valor das
prestações deve ocorrer ao tempo do contrato.
Desigualdade Originária — O negócio jurídico já deve nascer desequilibrado. No momento em que se manifesta a vontade e é celebrado o negócio jurídico, a vontade de uma das partes já estava viciada e a desproporção entre prestação e contra-prestação já existia, ou seja, a lesão nasce junto com o contrato.
Esta característica permite diferenciar a lesão da figura da resolução contratual
por onerosidade excessiva (art. 478 C.Civil), pois a onerosidade ocorre após a formação do negócio jurídico e nada tem a ver com vício da vontade. Deriva do advento de fato imprevisível que rompe o equilíbrio existente no seio do contrato.
Nexo Causal — Para que se configure a lesão, é preciso estabelecer uma
ligação entre a vulnerabilidade do agente lesado (dada pela necessidade ou
pela inexperiência) e a desigualdade entre a prestação e a contra-prestação.
Cumpre, então, traçar alguns paralelos entre o instituto da lesão e os demais defeitos dos negócios jurídicos:
Lesão e Estado de Perigo: em ambos os casos há uma desproporção entre o
valor cobrado e o valor justo do que foi oferecido. Entretanto, o estado de perigo se caracteriza pela necessidade de preservação da vida humana, enquanto
a lesão se configura simplesmente por necessidade premente que não envolva
risco de vida ou por inexperiência de um dos contratantes.
Além disso, a leitura do art. 157 nos mostra que não é preciso que se
comprove o dolo de aproveitamento para que se configure a lesão, pois a lei
não se exige o conhecimento prévio pelo beneficiário da necessidade ou da
inexperiência do contratante lesado.
Lesão e Coação: na lesão não existe o processo de intimidação sobre o ânimo
do agente para compeli-lo ao negócio jurídico, como acontece na Coação.
Conseqüências da Lesão
A exemplo do que ocorre com o Estado de Perigo, o Código Civil reputa
como anulável negócio jurídico defeituoso por conta de uma lesão à vontade
negocial (art. 171, II). A anulabilidade da relação jurídica também deverá
observar o decadencial de quatro anos (art. 178, II).
FGV DIREITO RIO
209
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Conforme já salientado anteriormente, quando tratou-se das conseqüências do estado de perigo para o negócio jurídico, o art. 157 § 2º do Código
Civil dispõe que será mantido o negócio jurídico sempre que a parte favorecida concorde com a redução de seu proveito, restabelecendo o equilíbrio entre
as partes que celebraram o negócio jurídico. Este entendimento foi reforçado
pelo enunciado 149 da III Jornada de Direito Civil do CJF: “Em atenção
ao princípio da conservação dos contratos, a verificação da lesão deverá conduzir, sempre que possível, à revisão judicial do negócio jurídico e não à sua
anulação, sendo dever do magistrado promover o incitamento dos contratantes a seguir as regras do art. 157, parágrafo segundo, do CC de 2002”.
2. Questões de concurso:
22º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
2 — Assinale a alternativa INCORRETA:
(a) A lesão destaca-se dos demais defeitos do negócio jurídico por acarretar uma ruptura no equilíbrio contratual na fase de execução do
negócio, posterior, portanto, à celebração do mesmo;
(b) O elemento objetivo da lesão consiste na manifesta desproporção
entre as prestações recíprocas, geradoras de lucro exagerado;
(c) A lesão é modalidade de defeito do negócio jurídico caracterizado
pelo vício do consentimento;
(d) O elemento subjetivo da lesão é caracterizado pela inexperiência ou
premente necessidade do lesado.
21º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
3 — No que se refere ao estado de perigo, assinale a alternativa INCORRETA:
(a) O perigo deve ser de natureza grave. Avalia-se a gravidade do perigo
em função das circunstâncias do caso concreto e das condições físicas e psíquicas da vítima;
(b) O perigo pode dizer respeito tanto à vida como à saúde, integridade
física ou mesmo a honra do declarante ou membro de sua família;
(c) O estado de perigo futuro também é passível de levar, desde logo, à
anulação do negócio jurídico pela vítima;
(d) Obrigação excessivamente onerosa no que concerne à configuração
do estado de perigo é aquela que decorre de condições iníquas, com
grande sacrifício econômico para uma das partes.
FGV DIREITO RIO
210
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
4 — No que se refere à lesão é CORRETO afirmar:
(a) Lesão é a exagerada desproporção de valor entre as prestações de um
contrato bilateral, concomitante à sua formação, resultado do aproveitamento, por parte do contratante beneficiado, de uma situação
de inferioridade em que então se encontrava o prejudicado;
(b) O negócio em que se aufere ganhos com a inexperiência ou a premente necessidade de contratar da contraparte, é necessariamente
um negócio válido;
(c) O momento em que a desproporção lesionária deve ser apreciada é
o da extinção do contrato;
(d) A premente necessidade configuradora da lesão tem um significado
psíquico, refere-se à necessidade psicológica de contratar, como na
compulsão ao consumo.
128º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase
21. Sob premente necessidade, Fernando adquire à vista um bem móvel
de Guilherme com preço manifestamente superior ao seu real valor de mercado. Nesse caso, é correto afirmar que esse negócio:
(a) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado dolo;
(b) não pode ser anulado apenas por este fato;
(c) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado lesão;
(d) pode ser anulado por conter vício do consentimento denominado erro.
Gabarito: 2 (a); 3 (c); 4 (a); 21 (c).
OAB — 41º Exame de Ordem 2010.1
36. A respeito dos defeitos dos negócios jurídicos, assinale a opção correta.
A. O dolo acidental, a despeito do qual o negócio seria realizado, embora por outro modo, acarreta a anulação do negócio jurídico.
B. Tratando-se de negócio jurídico a título gratuito, somente se configura
fraude quando a insolvência do devedor seja notória ou haja motivo
para ser conhecida, admitindo-se a anulação do negócio pelo credor.
C. A lesão é um defeito que surge concomitantemente à realização do
negócio e enseja a sua anulabilidade. Entretanto, permite-se a revisão
contratual para evitar a anulação, aproveitando-se, assim, o negócio.
D. Se, na celebração do negócio, uma das partes induzir a erro a outra,
levando-a a concluir o negócio e a assumir uma obrigação desproporcional à vantagem obtida pelo, outro, esse negócio será nulo porque a manifestação de vontade emana de erro essencial e escusável.
Resposta: C
FGV DIREITO RIO
211
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 21 — CONDIÇÃO, TERMO E ENCARGO
EMENTÁRIO DE TEMAS
Elementos acidentais do negócio jurídico — Classificação das Condições —
Condição Resolutiva e Condição Suspensiva — Disciplina jurídica do termo —
Exigibilidade do direito sujeito a termo — Disciplina jurídica do encargo.
LEITURA OBRIGATÓRIA
CASTRO NEVES, José Roberto. Uma Introdução ao Direito Civil. Rio de
Janeiro: Letra Legal, 2005; pp. 113/129.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Tepedino, Gustavo, Bodin de Moraes, Maria Celina e Barboza,Helena.
Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República, v. I. Rio
de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 241/266.Caio Mário da Silva. Instituições
de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 553/583.
1. ROTEIRO DE AULA
Elementos acidentais do negócio jurídico
Conforme visto nas aulas anteriores, os negócios jurídicos são dotados de
certos elementos essenciais sem os quais sua existência não é configurada.
Esses atos são puros (ou simples), quando a declaração de vontade se formula
sem a interferência (leia-se sujeição) a circunstâncias modificativas.
A sofisticação da vida social, entretanto, implicou na construção de elementos que ao serem fixados junto ao negócio jurídico, implicam na modificação de efeitos sobre o mesmo.
Surgem, assim, os elementos acidentais do negócio jurídico, que podem
assumir a forma de condição, termo ou encargo. São elementos que podem
ou não ser agregados aos negócios, mas uma vez opostos, assumem importância fundamental, não podendo ser separados.
A definição da natureza desses elementos também encampa certas divergências: A maior parte da doutrina os caracteriza como elementos de caráter
acessório, pois, em tese, o negócio poderia perfeitamente se realizar sem que
FGV DIREITO RIO
212
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
fossem colocados. No entanto, há autores que entendem que os elementos
acidentais não são declarações distintas, integrando o conteúdo propriamente dito do negócio.
Esses elementos essenciais, em regra, operam limitações impostas pelos
próprios declarantes. A condição sujeita o negócio a evento futuro e incerto;
o termo o faz por conta de evento igualmente futuro, porém certo de sua
verificação. O encargo, por fim, assume a feição de uma imposição ao titular
de um direito.
Condição
A definição legal de condição é encontrada no art. 121 do Código Civil,
ao dispor que: “Considera-se condição a cláusula que, derivando exclusivamente da vontade das partes, subordina o efeito do negócio jurídico a evento
futuro e incerto.”
Conforme pode ser observado, são elementos da condição a futuridade e a
incerteza. A futuridade implica em que um fato ocorrido no passado não pode
ser objeto de condição, apenas aqueles que ainda estão por ocorrer. Ainda,
necessário que a condição se remeta a fato incerto, isto é, fato que pode ou
não ocorrer, sendo essa mesma incerteza de ordem objetiva.
A exigibilidade do ato só se opera com o implemento da condição. Se for
estipulado, como já visto, uma obrigação de pagar determinada quantia mediante a vitória de determinada equipe esportiva, essa obrigação só será dotada de exigibilidade após a vitória dessa mesma equipe. A obrigação, antes do
advento do fato, não terá exigibilidade e, na hipótese de derrota da aludida
equipe, o pacto restará sem efeito.
Deve-se mencionar ainda os chamados atos ou negócios puros, os quais
não admitem a oposição de condição. São atos ligados aos direitos de família
puros e direitos personalíssimos. Não, há, nesse sentido, que falar em condição ao reconhecimento de um filho.
Classificação das Condições
A primeira das classificações das condições é aquela que as divide em lícitas e ilícitas. O art. 122 CC traz entendimento sobre esse assunto, determinando que:
Art. 122. São lícitas, em geral, todas as condições não contrárias à lei, à ordem
pública ou aos bons costumes; entre as condições defesas se incluem as que privarem
de todo efeito o negócio jurídico, ou o sujeitarem ao puro arbítrio de uma das partes.
FGV DIREITO RIO
213
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Os autores tendem a qualificar como ilícitas as condições imorais e ilegais.
As imorais são as condições que atentam contra a moral e bons costumes. As
ilegais, por sua vez, vinculam obrigações proibidas por lei.
As condições perplexas (ou contraditórias) são as despidas de sentido, que derivam em dúvida para o intérprete. Elas apresentam contradições de tal ordem que
outro fim não pode ser dado ao negócio que não a invalidação. Nesse sentido:
Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:
III — as condições incompreensíveis ou contraditórias.
A condição potestativa é aquela que se liga à vontade de uma das partes do
negócio, que pode determinar o seu implemento ou não. Nem todas as condições potestativas são ilícitas, mas certamente o são as potestativas puras que
se vinculam ao arbítrio exclusivo de uma das partes. Contrapõe-se à condição
causal, modalidade que não se vincula ao arbítrio de nenhuma das partes.
As condições impossíveis são aquelas que em virtude de algum fator, não
são passíveis de realização. Essa impossibilidade pode ser jurídica ou material.
O tratamento dessa matéria assumia contornos mais nítidos no Código Civil
de 1916, no qual as condições fisicamente impossíveis eram reputadas como
não escritas, ao passo que quando era jurídica a impossibilidade, preferia-se
a anulação do ato. A razão de ser dessa distinção, sustentam alguns autores,
seria a impossibilidade de se transigir contrariamente à lei. Daí a maior severidade com relação às condições juridicamente impossíveis.
No atual Código Civil, o tratamento da matéria se perfaz no art. 123, da
seguinte forma:
Art. 123. Invalidam os negócios jurídicos que lhes são subordinados:
I — as condições física ou juridicamente impossíveis, quando suspensivas;
II — as condições ilícitas, ou de fazer coisa ilícita;
III — as condições incompreensíveis ou contraditórias.
Dotado de maior rigor técnico, a lei atual determina que as condições
juridicamente impossíveis, quando suspensivas, invalidam os negócios que
subordinam. Se a condição impossível for resolutiva, deverá ser considerada
como não escrita, evitando tolher a eficácia do ato.
Condição Resolutiva e Condição Suspensiva
O art. 125 traz a noção de condição suspensiva determinando que: “Subordinando-se a eficácia do negócio jurídico à condição suspensiva, enquanto esta se não verificar, não se terá adquirido o direito, a que ele visa.”
FGV DIREITO RIO
214
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Nas condições suspensivas, o nascimento do direito a que a obrigação se refere fica em suspenso até que a condição se implemente, possuindo o titular
mera expectativa de direito.
As condições resolutivas, por sua vez, são aquelas nas quais a ocorrência do
evento implica na cessação dos efeitos do negócio. A noção legal se remete
aos artigos 127 e 128, ambos do Código Civil:
Art. 127. Se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, vigorará o
negócio jurídico, podendo exercer-se desde a conclusão deste o direito por ele estabelecido.
Art. 128. Sobrevindo a condição resolutiva, extingue-se, para todos os efeitos, o
direito a que ela se opõe; mas, se aposta a um negócio de execução continuada ou
periódica, a sua realização, salvo disposição em contrário, não tem eficácia quanto
aos atos já praticados, desde que compatíveis com a natureza da condição pendente e
conforme aos ditames de boa-fé.
Enquanto existir pendência da condição suspensiva, o ato permanecerá
sem eficácia. Nesse sentido, se o negócio versar sobre um direito de crédito,
o mesmo será inexigível, não havendo início do prazo prescricional, e caso
o devedor erroneamente realize o pagamento, o mesmo deverá ser repetido.
De toda forma, atentando a condição de expectativa de direito a lei faculta ao
credor executar atos de conservação. Essa é a regra do art. 130, do Código Civil:
Art. 130. Ao titular do direito eventual, nos casos de condição suspensiva ou
resolutiva, é permitido praticar os atos destinados a conservá-lo.
Quando deparado com o advento da condição, dá-se o aperfeiçoamento
da obrigação e o direito, de meramente eventual, passa a adquirido. A eficácia
do mesmo torna-se plena. Se por outro lado, há a frustração na implementação do evento (lembre-se que ele é incerto), a obrigação não produzirá efeitos.
Esse direito sujeito a condição é plenamente passível de transmissão, seja
ela inter vivos ou causa mortis, não devendo, em hipótese alguma, deixar de
destacar que essa transmissão abarca o caráter de incerteza na implementação do direito.
A condição resolutiva, conforme observado, possui dinâmica oposta à
condição suspensiva. Nela, a aquisição do direito se dá logo na pactuação,
na emissão de vontade, vindo a extinguir-se quando do implemento da condição resolutiva. Os direitos serão extintos quando da ocorrência da mesma.
A condição resolutiva pode se operar de forma expressa ou tacitamente,
quando então carecerá de notificação ou interpelação (Art. 474). Referente
ao implemento da condição, o art. 129 menciona que:
FGV DIREITO RIO
215
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 129. Reputa-se verificada, quanto aos efeitos jurídicos, a condição cujo implemento for maliciosamente obstado pela parte a quem desfavorecer, considerandose, ao contrário, não verificada a condição maliciosamente levada a efeito por aquele
a quem aproveita o seu implemento.
Quem manipula o implemento de um evento de modo a favorecer-se,
por óbvio, procede contrariamente ao direito. O art. 129 consubstancia a
proteção da lei à parte prejudicada em virtude da má-fé de quem manipula a
implementação da condição. Note-se que o dolo, isto é, a intenção deliberada
de impedir ou provocar o advento da condição deve estar presente.
Retroatividade da condição
Trata-se de um assunto marcado pela controvérsia, tendo reminiscências
no Direito Romano. Aqueles que defendem a retroatividade dos efeitos da
condição destacam que quando ocorre o seu implemento é como se o negócio
jurídico fosse puro e simples desde o seu início, desde a data da manifestação
da vontade. A idéia é central reside no fato de que, ficcionalmente, o tempo
de vacância até a implementação da condição nunca teria ocorrido, sendo o
negócio, desde o seu início mais remoto, além de válido, produtor de efeitos.
Não há dispositivo destacando entendimento algum sobre esse efeito no
atual Código, nem na legislação extravagante. Diversos autores afirmam que
esse efeito retroativo só se verificará quando as partes o convencionarem, ou
quando a lei expressamente o determinar. Em regra, os atos não encampam
o efeito retroativo.
Disciplina jurídica do termo
No termo, encontra-se um evento que subordina a eficácia do negócio
jurídico a um evento futuro e certo. O início ou final da eficácia do ato dependerá do implemento desse termo.
A dinâmica do instituto em muito se aproxima da referente à condição. A
distinção mais notória aqui é o fato de que a subordinação se faz em relação
a evento que, embora futuro, é certo.
A futuridade e a certeza são os elementos do termo, que pode assumir a
designação de termo inicial e termo final. O termo inicial (suspensivo, dilatório, ou dies a quo) é aquele a partir do qual o exercício de um direito se torna
possível. Remete ao início da eficácia do negócio.
Quando um negócio jurídico é submetido a termo inicial, desde o início se
verifica a aquisição do direito. No entanto, a eficácia do mesmo, isto é, a possibilidade de produzir efeitos jurídicos se retarda até o advento desse termo.
FGV DIREITO RIO
216
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Observe que o termo difere da condição, nesse ponto, pois opera desde
a pactuação a aquisição do direito. O direito já é existente, somente o seu
exercício carece da observância do evento.
A condição suspensiva, diferentemente, não suspende somente o exercício, mas também a própria aquisição do direito. Na condição há mera expectativa de direito, ao passo que no termo temos o direito propriamente dito.
O termo final (resolutivo, peremptório ou dies ad quem), ao contrário,
é aquele que implica na perda de eficácia do ato. Há a cessação dos efeitos
do negócio. Este surge pleno, implicando não só na existência e validade do
direito, como também na plena eficácia dele. Produz efeitos jurídicos tal qual
intentado na manifestação dos declarantes.
Em relação ao momento de ocorrência, o termo pode ser certo (determinado) e incerto (ou indeterminado). Frise-se que a certeza aqui não versa sobre a convicção no implemento do termo, pois como visto, essa integra o seu
próprio conceito. A nomenclatura certo/incerto remete ao momento de implemento do evento. Dessa forma, termo certo é aquele conhecido, ao passo
que termo incerto é aquele em que se ignora o momento de implementação.
O termo pode ainda ser classificado em convencional, quando advir por
vontade das partes ou legal, quando decorre da lei. Há quem sustente ainda
o termo judicial — oriunda de esfera jurisdicional.
O termo pode ainda ser expresso, quando vem delineado no conteúdo do
negócio, ou tácito, quando se infere no correr da relação jurídica.
A noção de prazo não pode ser confundida com a do termo em si, pois
aquele é o lapso temporal compreendido entre o momento de declaração da
vontade e a data de implemento do termo. Da mesma forma que a modalidade
de termo compreendido no ato, pode o prazo ser certo (quando sujeito a termo
certo) ou incerto. O art. 132 alude a regra legal sobre a contagem de prazos.
Exigibilidade do direito sujeito a termo
O termo é pactuado ante a anuência dos contratantes e dessa forma, em
regra, não é dado ao credor exigir o cumprimento da obrigação antes do advento do termo.
O art. 133 corrobora essa idéia, destacando que:
Art. 133. Nos testamentos, presume-se o prazo em favor do herdeiro, e, nos contratos, em proveito do devedor, salvo, quanto a esses, se do teor do instrumento, ou
das circunstâncias, resultar que se estabeleceu a benefício do credor, ou de ambos os
contratantes.
FGV DIREITO RIO
217
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Quando o prazo aproveita ao devedor, este pode cumprir a obrigação antes do advento do termo. Há situações, entretanto, onde o prazo aproveita ao
credor, e nesse caso, o pagamento antecipado é inconveniente a ele. Imagine,
nesse sentido, o credor que encomendou determinada quantidade de mantimentos, mas que ainda não disponibiliza de local apropriado para estocá-los.
O cumprimento da obrigação antes do prazo teria efeitos desastrosos.
Disciplina jurídica do encargo
O encargo tem previsão no Código Civil nos artigos 136 e 137, sendo
uma restrição imposta àquele que se beneficia de uma liberalidade. Sua natureza é de ônus imposto ao beneficiário.
Trata-se de cláusula inserida em negócios jurídicos gratuitos que vincula
obrigação de dar, fazer ou não fazer, mas sem que se configure um caráter
contraprestacional. O encargo não tem o condão de impedir a aquisição ou
exercício do direito objeto do negócio jurídico.
O encargo tem por escopo dar executividade a certos desígnios daquele
que realiza a liberalidade. Essa cláusula vincula o beneficiário na medida em
que ele aceita a liberalidade.
Ponto que merece especial atenção é o dos efeitos decorrentes do não
cumprimento do encargo. Nesse sentido:
“Observa-se que o dever jurídico criado pelo encargo gera um vínculo obrigacional para o beneficiário, de modo que seu descumprimento permite ao autor da
liberalidade, titular do direito subjetivo correspondente, exigir o cumprimento. A
legitimidade para exigir o cumprimento do encargo dependerá da identificação dos
interessados em cada negócio específico, pois a liberalidade pode ser instituída em
favor do próprio autor, de terceiro, ou de interesse geral, em negócios inter vivos ou
causa mortis”214
Quando ocorre a inexecução do encargo abre-se a perspectiva ao interessados de promover a execução forçada da mesma sem implicar no perecimento
do negócio. O doador e os terceiros beneficiados (ou seus herdeiros) poderão
pleitear judicialmente a execução do encargo. Se o doador já tiver falecido,
poderá o Ministério Público titularizar a referida ação. Essa possibilidade
encontra previsão no art. 553 do Código Civil:
Art. 553. O donatário é obrigado a cumprir os encargos da doação, caso forem a
benefício do doador, de terceiro, ou do interesse geral.
Parágrafo único. Se desta última espécie for o encargo, o Ministério Público poderá exigir sua execução, depois da morte do doador, se este não tiver feito.
214
Gustavo Tepedino, Maria Celina
Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza. Código Civil Interpretado conforme
a Constituição da República, v. I. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 265
FGV DIREITO RIO
218
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Pode ainda o instituidor decidir pela resolução do negócio, sendo essa
uma prerrogativa que só compete a ele. A previsão está assentada no art. 555
do Código Civil:
Art. 555. A doação pode ser revogada por ingratidão do donatário, ou por inexecução do encargo.
Essas regras tratam da doação, mas há que se estender, analogicamente,
suas regras a outras modalidades de negócios.
O encargo não produz reflexos nos campos da aquisição e exercício de
direitos. As prerrogativas que derivam do negócio são adquiridas e podem
ser exercidas independentemente de cumprido o encargo. Ele não é um elemento essencial ao negócio jurídico, mas uma vez que seja previsto, passa a
integrar o contrato.
2. QUESTÃO DE CONCURSO:
27º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
12 — Certo comerciante se obriga a fornecer determinados materiais de
construção a um empreiteiro, quando as paredes do prédio que este edifica
tiverem alcançado determinada altura. Denominamos esta cláusula:
(a) Condição resolutiva;
(b) Termo certo;
(c) Condição potestativa ilícita;
(d) N.R.A.
Gabarito: 12 (d).
Ordem dos Advogados do Brasil
VI EXAME DE ORDEM UNIFICADO — 2012
34. A condição, o termo e o encargo são considerados elementos acidentais, facultativos ou acessórios do negócio jurídico, e têm o condão de modificar as consequências naturais deles esperadas. A esse respeito, é correto
afirmar que:
A. se considera condição a cláusula que, derivando da vontade das partes ou de terceiros, subordina o efeito do negócio jurídico a evento
futuro e incerto.
B. se for resolutiva a condição, enquanto esta se não realizar, não vigorará o negócio jurídico, não se podendo exercer desde a conclusão
deste o direito por ele estabelecido.
FGV DIREITO RIO
219
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
C. o termo inicial suspende o exercício, mas não a aquisição do direito
e, salvo disposição legal ou convencional em contrário, computam-se
os prazos, incluindo o dia do começo e excluindo o do vencimento.
D. se considera não escrito o encargo ilícito ou impossível, salvo se
constituir o motivo determinante da liberalidade, caso em que se
invalida o negócio jurídico.
Resposta: A
FGV DIREITO RIO
220
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
PARTE V: PRESCRIÇÃO E DECADÊNCIA
AULA 22 — FUNDAMENTOS PARA APLICAÇÃO DA PRESCRIÇÃO
E DA DECADÊNCIA
EMENTÁRIO DE TEMAS
Conceito de prescrição — A teoria da pretensão e o art. 189 do Código Civil
— Distinção entre prescrição e decadência — Fundamento da prescrição — Requisitos da prescrição — A renúncia da prescrição — Alteração dos prazos prescricionais — Imprescritibilidade e autonomia da vontade — Quando se alega a
prescrição — Reconhecimento da prescrição de ofício — Relativamente incapazes
e pessoas jurídicas — Alguns aspectos peculiares da decadência — Conceito de
decadência — Impedimentos, interrupções e suspensões — Renúncia à decadência — Questões processuais.
LEITURA OBRIGATÓRIA
Neves, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de
Janeiro, Renovar, 2002, pp. 417/428.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa
Helena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República,
vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/366; e Pereira, Caio
Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense,
2005; pp. 677/702.
1. ROTEIRO DE AULA215
O estudo dos institutos da prescrição e da decadência evidencia a relação
existente entre o decurso do tempo e a modificação no status das relações
jurídicas.
O Código Civil de 1916 não apresentou qualquer definição para o instituto da prescrição, iniciando já o seu capítulo respectivo com um artigo que
215
O presente roteiro de estudo é uma
versão reduzida - e substancialmente
adaptada para os fins desse material
didático - do trabalho realizado conjuntamente com Tatiana Florence Magalhães e constante do livro Código Civil
Interpretado conforme a Constituição da
República, vol. I, organizado por Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza (Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).
FGV DIREITO RIO
221
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
tratava da renúncia à prescrição (art. 161). O Código atual procurou corrigir
essa imperfeição com a redação do artigo 189, o qual assim dispõe:
Art. 189 — “Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206.”
Contudo, é importante destacar que mesmo o art. 189 não soluciona de
todo o problema de conceituação do instituto da prescrição, uma vez que ele
aponta com mais clareza os efeitos gerados pela prescrição na relação jurídica,
mas também se mostra silente no que diz respeito à natureza e ao fundamento
do instituto.
Pode-se afirmar que a prescrição possui duas formas bastante distintas de
atingir uma relação jurídica. A prescrição pode tanto conferir ao sujeito a
possibilidade de adquirir um direito através de sua atuação prolongada por
determinado período de tempo, incorporando-o ao seu patrimônio (“prescrição aquisitiva”), como, ao reverso, pode, após o decurso de um lapso temporal, impedir que o titular de uma pretensão venha a concretizá-la, na medida
em que permaneceu inerte durante o prazo que lhe foi concedido para concretizar o seu poder de exigir (“prescrição extintiva ou liberatória”).
A seguir será tratada apenas a prescrição de natureza extintiva, uma vez
que a prescrição aquisitiva encontra previsão legislativa em outros campos do
estudo do Direito Civil, com destaque para o usucapião, tratado no Código
Civil nos artigos 1238 e ss.
Conceito de prescrição
A busca por uma conceituação do instituto da prescrição remonta a estudos antigos da doutrina nacional, embora até hoje ainda exista controvérsia
a seu respeito, principalmente com relação às diferenças existentes entre os
prazos prescricionais e decadenciais.
Existe concordância entre os autores sobre o fato de que a prescrição decorre da consumação de um prazo extintivo. A partir dessa conclusão, cumpre esclarecer qual seria o objeto da prescrição. O conceito apresentado pela
doutrina sempre esteve vinculado mais a um reconhecimento dos efeitos causados pelo advento do prazo prescricional do que propriamente à natureza
do instituto, o que contribui para a confusão entre as teorias que buscavam
afirmar um conceito de prescrição com aquelas que delineavam as suas principais características, sobretudo em contraste com o prazo decadencial.
De todos os entendimentos partilhados pela doutrina sobre o tema, podese identificar três linhas de exposição bem destacadas. Para alguns autores a
prescrição seria forma de extinção do direito material. A maioria da doutrina nacional, todavia, adotou postura favorável ao reconhecimento de que a
FGV DIREITO RIO
222
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
prescrição extinguiria a ação correspondente ao direito. Por fim, nas últimas
décadas, o entendimento de que a prescrição atingiria a pretensão encontrou
substancial aceitação na doutrina e na jurisprudência.
O entendimento segundo o qual a prescrição atingiria o direito material
foi defendido por Caio Mário da Silva Pereira, segundo o qual o prazo prescricional “conduz à perda do direito pelo seu titular negligente”. Assim, estando
o direito extinto pelo decurso do lapso temporal, ao seu antigo titular apenas
restaria o interesse de ver a prestação cumprida por um ato de liberalidade da
parte do antigo devedor. A causa para o pagamento de dívida já prescrita —
completa o autor — residiria então em dever de natureza moral.216
Todavia, obteve maior aceitação na doutrina nacional, a ponto de ser considerado como entendimento majoritário, o posicionamento no sentido de
que a prescrição extinguiria a ação, e não o próprio direito. Nessa direção,
afirma Clovis Bevilaqua que a prescrição “é a perda da ação atribuída a um
direito, de toda a sua capacidade defensiva, em conseqüência do não uso dela,
durante um determinado espaço de tempo”217
Dessa forma, o transcurso do prazo prescricional não fulminaria o direito,
mas apenas a ação, podendo o direito remanescente ser atendido, caso assim
desejasse o titular do dever jurídico correspondente.
Por fim, um terceiro entendimento propugnava que o objeto da ação destruidora da prescrição seria a pretensão, restando tanto o direito de ação quanto o direito subjetivo ilesos com relação ao transcurso do prazo prescricional.
Essa teoria foi consagrada no dispositivo do art. 189 do Código em vigor.
A teoria da pretensão e o art. 189 do Código Civil
O art. 189 incorpora ao direito pátrio a teoria de que a prescrição “extingue” a pretensão, conforme disposto no par. 194 do BGB, preservando-se
assim o direito, que poderá ser satisfeito mediante prestação espontânea pela
parte beneficiada com a prescrição.
Em que pese a inovação representada pela positivação da teoria, o regramento do instituto no Código Civil acompanhou a mesma orientação metodológica presente em grande parte dos estudos doutrinários sobre a matéria,
pois se conferiu grande importância aos efeitos, mas não se evidenciou quais
são os requisitos e os fundamentos da prescrição.
Nesse sentido, esclarece Gustavo Kloh que: “o texto legal fixou os efeitos
da prescrição, mas não os requisitos para a sua configuração, quando deveria
ter feito o contrário: é vital a estruturação de categoria legal prescricional, em
vez de mera regulação de prazos (que devem ser aplicados sob quais circunstâncias?), e isto não é feito; noutro giro, o engessamento dos efeitos é nocivo,
pois impede a gênese da solução adequada para cada caso.”218
De qualquer sorte, o reconhecimento de que a prescrição atua sobre a
pretensão constitui um avanço sensível na positivação da matéria. Pode-se
conceituar a pretensão como sendo “a posição subjetiva de poder exigir de
216
Caio Mário da Silva Pereira. Instituições de Direito Civil, vol. I, Rio de Janeiro,
Forense, 1996, 18ª ed, pp. 435/436.
217
Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 458.
218
Gustavo Kloh Muller Neves, “Prescrição e decadência no novo Código Civil”,
in Gustavo Tepedino (org.), A Parte
Geral do Código Civil, Rio de Janeiro,
Renovar, 2002, p. 421.
FGV DIREITO RIO
223
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
outrem alguma prestação positiva ou negativa”219 Em outras palavras, a pretensão é o poder de exigir uma prestação, um comportamento de outrem.
Sendo assim, a redação do art. 189 explicita que para a ocorrência da
prescrição deverá existir um direito e que, em sendo ele violado, surgirá uma
pretensão para o seu titular, a qual não sendo exercida dentro de um prazo
determinado, desencadeará o fenômeno da prescrição.
Vale ressaltar o entendimento de José Carlos Barbosa Moreira, segundo
o qual, existem pretensões que prescindem da violação do direito para o seu
surgimento. Essa constatação se faz de forma mais evidente no campo dos direitos reais, pois ao proprietário é concedido o poder de exigir o respeito por
parte de terceiros com relação à sua propriedade. Essa pretensão é anterior
a qualquer ato lesivo, que pode mesmo nem vir a ocorrer. Segundo o autor,
tanto as pretensões que prescindem da violação, como aquelas que nascem
para o titular antes mesmo da violação, também estão incluídas na regra prescricional do art. 189.220
Partindo da classificação dos direitos elaborada por Chiovenda, Agnelo
Amorim delimita o campo de atuação da prescrição justamente àqueles direitos que têm por finalidade um bem da vida, a ser alcançado através de uma
prestação, positiva ou negativa, por parte do sujeito passivo de uma relação
jurídica.221 Como regra geral, os direitos a uma prestação poderão ser violados, na medida em que o sujeito passivo não cumpre a ação ou omissão que
lhe era devida, surgindo, assim, nos termos do art. 189, a pretensão do titular
do direito violado em face do mesmo.
Será então essa pretensão recém-surgida o objeto do prazo prescricional
que se inaugura para o seu titular. Isso posto, pode-se afirmar que, se a prescrição tem por objeto a pretensão, os prazos prescricionais apenas poderão incidir sobre obrigações que contemplem uma prestação a ser realizada. Tanto é
assim que os prazos constantes do art. 206 tem por objeto prestações, as quais
disponibilizam ao titular do direito a possibilidade de exercer a respectiva
pretensão em juízo.
No caso das pretensões derivadas da violação de um direito cujo exercício
envolvia uma prestação, as mesmas serão exigidas em juízo através de ações
de natureza condenatória. Isso porque a decisão judicial condenará o sujeito
passivo a adimplir a prestação frustrada.
Ao ter o seu direito subjetivo violado, a pretensão contra o agente da violação poderá ser exercida no prazo previsto em lei. Caso a pretensão não seja
exercida, o art. 189 pontifica que a mesma restaria extinta.
Contudo, deve-se utilizar a palavra “extinta” com certa parcimônia. Isso
porque, ao fim e ao cabo, a prescrição não extingue a pretensão: ela apenas
concede ao devedor uma defesa para obstar, caso queira, a pretensão da qual
se vale o credor após superado o lapso prescricional.222
219
F. Pontes de Miranda. Tratado de Direito Privado, t. V, Rio de Janeiro, Borsoi,
1955, 2ª ed; p. 451.
220
José Carlos Barbosa Moreira, “Notas
sobre pretensão e prescrição no sistema
do novo Código Civil brasileiro”, RTDC, n.
11, 2002, pp. 71/72.
221
Agnelo Amorim Filho, “Critério
científico para distinguir a prescrição
da decadência e para identificar ações
imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,
n. 744, 1997, p. 728.
222
F. Pontes de Miranda. Tratado de
Direito Privado, t. VI, Rio de Janeiro,
Borsoi, 1955, 2ª ed.; pp. 104 e ss.
FGV DIREITO RIO
224
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Esse entendimento está fundado na concepção de que se a pretensão uma
vez prescrita restasse extinta, não haveria como se conceber que o juiz proferisse decisão favoravelmente ao autor que exercita pretensão já vitimada pelo
prazo prescricional, não tendo o réu argüido a respectiva exceção. Não perde
o autor o poder de exigir com a prescrição da pretensão. Na verdade, o que
se altera com o decurso do prazo prescricional é a possibilidade do réu apresentar oposição à pretensão do autor, devendo o juiz, uma vez constatada a
procedência da manifestação do réu, extinguir o processo.223
Distinção entre prescrição e decadência
Estabelecido o conceito de prescrição como sendo o decurso do lapso temporal que afeta a pretensão, cumpre mencionar as diversas teorias aventadas
pela doutrina para distinguir a prescrição do instituto da decadência.
O debate sobre a distinção entre os dois institutos tomou grandes proporções por conta de um tratamento irregular do assunto no CC1916, que
apenas mencionou o termo “prescrição” em suas normas, cabendo à doutrina
e à jurisprudência distinguir dentre o regramento do Código o que seria aplicável ao prazo prescricional e o que seria relativo à decadência.
Diversas teorias foram assim criadas para que se pudesse conferir ao
CC1916 a mais ampla eficácia, de modo a erigir uma dogmática do instituto
da prescrição que disponibilizasse ao aplicador do Direito um tratamento
adequado às relações jurídicas pertinentes.
Dessa forma, buscou a doutrina distinguir os dois institutos com base na
origem do direito. Segundo esse entendimento, quando a ação e o direito
partilham da mesma origem, trata-se de prazo decadencial, ao passo que se o
direito é preexistente à ação, que somente se apresenta quando da violação do
direito, trata-se de prazo prescricional.
Assim, a ação da minoria vencida para promover a impugnação de alterações do estatuto de uma fundação deverá ser movida dentro de um prazo
de natureza decadencial pois a respectiva ação surge conjuntamente com o
direito. Por outro lado, a uma ação de responsabilidade civil por inexecução
contratual corresponderá um prazo prescricional, surgindo o direito de ação
contra a parte que infringir dispositivo do contrato apenas do momento dessa violação.
Essa teoria encontrou críticas no fato de não oferecer orientação científica
para se reconhecer quando coincidem na origem o direito de ação e o direito
material.224
Uma das características mais citadas para o esclarecimento da distinção
entre os dois institutos é a suscetibilidade a interrupções e suspensões. O
entendimento no sentido da não aplicação das regras de interrupção e sus-
223
José Carlos Barbosa Moreira, “Notas
sobre pretensão e prescrição no sistema
do novo Código Civil brasileiro”, RTDC, n.
11, 2002, pp. 104/105.
224
Orlando Gomes, Introdução ao Direito
Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1996, 12ª
ed.; p. 507.
FGV DIREITO RIO
225
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
pensão aos prazos decadenciais é bastante usual. Conforme ressalta Silvio
Rodrigues:
“[f]ácil estabelecer a diferença entre prescrição e decadência quanto aos efeitos,
pois, enquanto a prescrição é suscetível de ser interrompida e não corre contra determinadas pessoas, os prazos de decadência fluem inexoravelmente contra quem quer
que seja, não se suspendendo nem admitindo interrupção”.225
Todavia, por força do art. 207, deve-se atentar para o fato de que a nova
disciplina instaurada pelo CC para o instituto da decadência estabelece exceções à regra, não devendo o aplicador direito mais arrolar categoricamente
essa particularidade como característica distintiva entre os dois institutos.
No que tange à suscetibilidade a interrupções e suspensões, a distinção entre
prescrição e decadência deve agora ser afirmada da seguinte forma: os prazos
prescricionais podem ser interrompidos ou suspensos, ao passo que, os prazos
decadenciais fluem de modo contínuo, salvo disposição legal em contrário.
Entende-se, por fim, que a distinção entre os dois institutos se mostra
mais evidente através da teoria exposta por Agnelo Amorim Filho, que busca
distinguir prescrição e decadência com base no cotejo entre as ações condenatórias e as ações constitutivas.
A prescrição, assim, diz respeito à pretensão de natureza condenatória, bem
como à sua respectiva execução, que surge para o titular de um direito quando da sua violação (art. 189). A pretensão, surgindo da violação do direito,
deverá ser exercitada em um determinado prazo, sob pena de se concretizar a
sua prescrição, que poderá ser oposta pelo sujeito passivo da relação jurídica.
São assim prazos prescricionais, por exemplo, os relativos a ações condenatórias de indenização, de perdas e danos (materiais e morais), ou ainda
condenatórias de obrigação de fazer ou de não fazer.
Já a decadência refere-se a um direito potestativo, isto é, um direito cujo
exercício se dá pela própria conduta de seu titular, restando ao sujeito passivo
apenas sujeitar-se ao mesmo. Aos direitos potestativos correspondem ações
de natureza constitutiva, que não sendo manejadas em tempo hábil, causam
a extinção do próprio direito.226
Fundamento da prescrição
Ao se tomar a prescrição sob um prisma estritamente individualista, poder-se-ia opor algumas considerações de ordem ética para a consagração do
instituto na medida em que o titular de um direito, com o esgotamento do
prazo prescricional, ficará impossibilitado de fazer valer a sua pretensão por
conta de exceção apresentada pelo devedor.
Analisando-se o instituto apenas pelos olhos do credor, a prescrição é geradora de injustiças, pois a pretensão que ontem poderia ser exercida, hoje está
sujeita a ser legalmente obstada por quem justamente provocou a sua violação.
225
Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.
I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.
329.
226
Agnelo Amorim Filho, “Critério
científico para distinguir a prescrição
da decadência e para identificar ações
imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,
n. 744, 1997, p. 738.
FGV DIREITO RIO
226
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Todavia, a aceitação universal do instituto da prescrição demonstra que
os seus fundamentos estão atrelados a outra perspectiva, que transcende as
análises puramente individualistas, pautadas nos interesses do pólo ativo de
uma relação jurídica, para encontrar justificação no interesse social.
A estabilidade das relações sociais e a segurança jurídica compõem portanto o fundamento da prescrição, uma vez que o instituto visa a impedir que o
exercício de uma pretensão fique pendente de forma indefinida. Estabelece-se
um lapso temporal para que a pretensão seja exercida. Transcorrido esse prazo
sem qualquer diligência por parte do seu titular, o próprio ordenamento jurídico que tutela a pretensão concede ao devedor a possibilidade de obstruir o
seu exercício em nome da estabilidade das relações sociais.
Conforme expõe Silvio Rodrigues, o fundamento do instituto reside “no
anseio da sociedade em não permitir que demandas fiquem indefinidamente
em aberto; no interesse social de estabelecer um clima de segurança e harmonia, pondo termo a situações litigiosas e evitando que, passados anos e anos,
venham a ser propostas ações reclamando direitos cuja prova de constituição
se perdeu no tempo.”227
Há também, de certa forma, uma punição ao titular de uma pretensão que
se quedou inerte, não lhe dando efetividade. Assim, a prescrição é o instituto
jurídico que melhor ilustra diversos brocardos que explicitam a idéia contida
no princípio geral do Direito de reprovação à conduta negligente, como iura
scripta vigilantibus (as leis foram escritas para os que não são negligentes) e
dormientibus non succurrit jus (o Direito não socorre os negligentes).
Reconhecendo o confronto inevitável entre o interesse individual do titular de uma pretensão em estender o lapso temporal dentro do qual a mesma
possa ser exercitada para todo o sempre e o interesse social em resolver as
situações conflituosas, aponta Clovis Bevilaqua a única solução possível: “[o]
interesse do titular do direito, que ele foi o primeiro a desprezar, não pode
prevalecer contra o interesse mais forte da paz social.”228
Vinculando a prescrição à necessidade de segurança nas relações sociais, e
apontando também para o atendimento de um imperativo de justiça, afirma
San Tiago Dantas:
“Como se passou muito tempo sem se modificar o estado das coisas, não é justo que
continuemos a expor as pessoas à insegurança que o nosso direito de reclamar mantém
sobre todos, como uma espada de Dâmocles. Então, a prescrição vem e diz: daqui
em diante o inseguro é seguro, quem podia reclamar não o pode mais. De modo que,
vêem os senhores, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da
ordem jurídica: distribuir a justiça — dar a cada um o que é seu — e estabelecer a
segurança nas relações sociais — fazer com que o homem possa saber com o quê conta
e com o quê não conta.”229 (Programa, p. 343)
227
Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.
I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.
327.
228
Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 459.
229
San Tiago Dantas, Programa de Direito Civil – Teoria Geral, Rio de Janeiro,
Forense, 2001, 3ª ed.; p. 343.
FGV DIREITO RIO
227
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Por haver um interesse público no sentido de que as relações jurídicas
em que interesses são contrapostos não perdurem indefinidamente, a regra
da prescrição assume caráter de ordem pública, não podendo assim ser derrogadas pela mera vontade das partes. Esse entendimento está plasmado em
diversas normas que regulam a matéria, sendo especialmente relevante para a
discussão sobre a renúncia à prescrição e a alteração dos prazos prescricionais
pelos particulares.
Requisitos da prescrição
Para que exista a prescrição é necessária a reunião de três requisitos: (i) a
existência de uma pretensão a ser exercida; (ii) a inércia continuada do seu
titular pelo período fixado em lei; e (iii) a ausência de causas que impeçam o
transcurso do lapso temporal.
O primeiro requisito refere-se ao objeto da prescrição, ou seja, o que será
afetado quando de sua concretização. O segundo requisito demanda a existência de um lapso temporal para que a pretensão seja exercida e, adicionalmente, que o titular da pretensão não a exercite dentro do respectivo prazo.
Deve-se atentar ainda para que não existam determinadas circunstâncias
que podem fazer com que o cômputo do lapso prescricional seja suspenso,
interrompido, ou mesmo nem se inicie contra algumas pessoas por expressa
previsão legal. Dessa forma, pode-se arrolar como o terceiro requisito a inexistência de tais circunstâncias para o estabelecimento da prescrição.
Segundo decorre das considerações expendidas no item 3 acima, a reunião
dos três requisitos faz nascer a prescrição, mas não causa de imediato a extinção da pretensão, uma vez que essa apenas será aniquilada com a oposição da
prescrição pelo devedor. Ou seja, a soma dos três requisitos apenas confere
ao devedor a possibilidade de se opor à pretensão de seu credor, tendo a sua
prescrição por argumento de defesa.
A renúncia da prescrição
A renúncia é um ato unilateral, que independe do consentimento de terceiro, através do qual se processa a extinção de um direito pelo particular.
Mais especificamente, conforme o ensinamento de Câmara Leal, a renúncia
da prescrição é a desistência expressa, ou tácita, do direito de invocá-la, feita
por quem dela se beneficia.230
A prescrição apenas estará sujeita à renúncia após a consumação do prazo
para o exercício da pretensão. Por ser matéria de ordem pública, é vedado às
partes estipular a sua renúncia antes mesmo do seu implemento.
230
Antônio Luís Câmara Leal, Da Prescrição e da Decadência – Teoria Geral
do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense,
1959, 2ª ed.; p. 63.
FGV DIREITO RIO
228
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Caso assim não o fosse, o instituto da prescrição estaria gravemente comprometido, uma vez que os credores passariam a exigir a renúncia do prazo
prescricional no momento em que o devedor contraísse qualquer obrigação.
A renúncia à prescrição se tornaria uma verdadeira cláusula padrão, integrante de toda espécie de contratos.
A renúncia à prescrição já consumada se justifica porque os benefícios dela
decorrentes já foram incorporados ao patrimônio do devedor, que agora pode
dispor dessa condição. Assim, percebe-se que “para a ocorrência da renúncia
exige-se que o intervalo prescricional tenha se consumado por inteiro.”231
A renúncia da prescrição encontra-se prevista no Código Civil, no art.
191, da seguinte forma:
Art. 191 — “A renúncia da prescrição pode ser expressa ou tácita, e só valerá,
sendo feita, sem prejuízo de terceiro, depois que a prescrição se consumar; tácita é a
renúncia quando se presume de fatos do interessado, incompatíveis com a prescrição.”
A renúncia poderá ser realizada de forma expressa ou tácita. Não existe
nenhuma forma requerida por lei para que a renúncia da prescrição seja exteriorizada, e sendo assim, a renúncia expressa poderá ser feita por qualquer
forma admitida em Direito.
Quanto à renúncia tácita, essa poderá ser aferida a partir do comportamento daquele que seria pela prescrição beneficiado, dando sinais de que,
apesar de esgotado o prazo para o exercício do direito, continua vinculado à
pretensão alheia. Diversos são os atos que denotam a renúncia tácita à prescrição, como o pagamento efetuado após a sua consumação, o pedido de
prorrogação de prazo e a oferta de garantia para que se efetue posteriormente
o pagamento do que é devido.
Deve-se acentuar, todavia, que a renúncia tácita dependerá sempre de um
comportamento ostensivo do sujeito no sentido de demonstrar, ainda que
não o declare, que do benefício da prescrição o mesmo se despojou. Havendo dúvida sobre a intenção do ato praticado, não se deve admitir a renúncia
tácita por não ser ela a regra, mas a exceção.232
Cabe mencionar ainda que o legislador manteve a salvaguarda de terceiros
perante os efeitos da renúncia à prescrição. Assim sendo, a renúncia feita por
devedor solidário ou co-devedor de obrigação indivisível não pode ser oposta
aos demais (art. 204). A prescrição, ressalta Clovis Bevilaqua, já fez romper o
vínculo obrigacional, dissolvendo assim a situação de solidariedade entre os
devedores ou a vinculação com a prestação relativa à coisa indivisível. Assim,
não pode um devedor assumir liberalidades incidentes sobre aquilo que não
lhe pertence.233
Especial atenção deve ser concedida ao caso do devedor insolvente, pois
ao renunciar à prescrição que lhe favorecia, o prejuízo a terceiros será carac-
231
TRF-5ª Reg., Emb.Infr. em Ap.Cív.
250.581, julg. 24.04.92
232
Silvio Rodrigues. Direito Civil, vol.
I, São Paulo, Saraiva, 2002, 32ª ed.; p.
334.
233
Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 462.
FGV DIREITO RIO
229
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
terizado como fraude contra credores. Isso ocorre, pois uma vez consolidada
a prescrição, o patrimônio do devedor obteve um acréscimo, na medida em
que poderá ele opor a prescrição a qualquer reclamação feita pelo credor,
restando assim exonerado dessa obrigação.
A renúncia em tais circunstâncias se mostra mais grave, na medida em que
os credores do devedor insolvente têm com ela a redução da possibilidade de
verem seus créditos satisfeitos. Nessa hipótese, poderão os credores promover
a competente ação pauliana para anular a renúncia (art. 158 e ss.).
Cumpre destacar que, além de poderem se opor à renúncia à prescrição já
efetuada pelo devedor insolvente, os seus credores poderão ainda alegar em
juízo a existência de prescrição que o beneficie (art. 193).
Alteração dos prazos prescricionais
Em sendo a prescrição um instituto que reflete diretamente um dos mais
significativos interesses da ordem pública, ou seja, o apaziguamento das relações sociais, o art. 192 encerra os debates doutrinários que tiveram sede
durante a vigência do CC1916: não é permitido aos particulares alterarem os
prazos de prescrição previstos em lei.
Quanto à possibilidade de se aumentar os prazos prescricionais sempre
houve consenso na doutrina e jurisprudência no sentido de sua impossibilidade. Contudo, no que tange à sua redução, as opiniões foram divergentes.
A favor da possibilidade de redução do prazo prescricional, argumenta
Clovis Bevilaqua que o fundamento para se garantir essa alternativa às partes
residiria no próprio interesse social, não ofendendo assim os imperativos de
ordem pública. O Direito, dessa forma, não deseja que o prazo de prescrição
se alongue de forma indefinida, portanto, encurtar o prazo não seria uma
forma de inutilizá-lo, como ocorre com a renúncia, mas sim de fortalecê-lo.
Arremata então o autor do CC1916 ao afirmar que “a lei apenas diz que a
prescrição não se renuncia antes de consumada (art. 161). Não diz que os
seus prazos se não encurtam.”234
O entendimento pela alternativa de redução dos prazos não prevaleceu, estando a celeuma doutrinária encerrada, pois estabelece o CC em vigor a impossibilidade das partes alterarem os prazos prescricionais. Ainda que não esteja
expresso no presente artigo, resta evidente que se as partes não podem alterar o
prazo prescricional, ele não poderá ser nem aumentado, nem reduzido.
Imprescritibilidade e autonomia da vontade
Os imperativos da ordem pública também se fazem sentir na proibição de que os particulares venham a acordar que determinada pretensão
será imprescritível. Da mesma forma que a alteração para aumentar ou
reduzir o prazo prescricional é vedada, a declaração de imprescritibili-
234
Clovis Bevilaqua, Código Civil dos Estados Unidos do Brasil, vol. I, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1951, 9ª ed.; p. 485.
FGV DIREITO RIO
230
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
dade também se encontra excluída da esfera de autonomia das partes
contratantes.
A imprescritibilidade decorre da própria lei ou da natureza de um direito.
Ao largo do tratamento concedido à prescrição e à decadência, identifica
Agnelo Amorim a existência de ações imprescritíveis, que seriam: (i) todas
as ações meramente declaratórias; e (ii) algumas ações constitutivas, as quais
são excluídas do regramento da decadência por não lhes fixar a lei qualquer
prazo para o seu exercício. No que tange às ações condenatórias, relativas ao
conceito de prescrição, como já visto, não existem ações imprescritíveis,235
pois quando a lei não lhes fixar um prazo específico, incidirá o prazo genérico, previsto no Código em vigor no art. 205.
Sobre a imprescritibilidade de pretensões que se relacionam com a natureza de determinados direitos, vale lembrar que os chamados direitos da
personalidade ilustram essa hipótese, estando contemplados nos arts. 11 e ss.
do CC. Considerando que o titular dos direitos da personalidade não pode
dispor livremente dos mesmos, abandonando ou renunciando às pretensões
que dos mesmos decorrem, é fácil perceber que tais pretensões não se enquadram ao instituto da prescrição. Conforme ressalta Gustavo Tepedino, a
imprescritibilidade dos direitos da personalidade “impede que a lesão a um
direito da personalidade, com o passar do tempo, pudesse convalescer, com o
perecimento da pretensão ressarcitória ou reparadora”.236
Há quem entenda, todavia, que as pretensões ressarcitórias derivadas de
ofensa aos direitos da personalidade poderiam ser objeto de prescrição. Nesse
sentido, ressalta Humberto Theodoro Júnior que embora o direito à honra
seja inalienável e imprescritível, a pretensão de exigir dano moral por lesão à
honra está sujeita aos efeitos da prescrição.237
Quando se alega a prescrição
O artigo 193 do Código Civil afirma que “a prescrição pode ser alegada
em qualquer grau de jurisdição, pela parte a quem aproveita”.
A prescrição pode ser alegada perante o juiz monocrático, em 1ª instância,
ou posteriormente em segundo grau de jurisdição. Não ocorre a preclusão se a
parte não alegar a prescrição logo na contestação, podendo fazê-lo durante todo
o processo de conhecimento, inclusive nas razões finais, orais ou escritas.238
Na 2ª instância a parte poderá suscitar a prescrição na apelação ou nas
contra-razões. Já em sede de embargos de declaração existe controvérsia, uma
vez que o STJ já entendeu que somente será possível suscitar a questão se já
tivesse sido ventilada anteriormente e não apreciada pela decisão embargada.239 Contudo, o mesmo tribunal, em acórdão mais recente, já decidiu que
“[a] prescrição extintiva pode ser alegada em qualquer fase do processo, nas
235
Agnelo Amorim Filho, “Critério
científico para distinguir a prescrição
da decadência e para identificar ações
imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,
n. 744, 1997, pp. 747.
236
Gustavo Tepedino, Temas de Direito
Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2001, 2ª
ed; p. 34.
237
Humberto Theodoro Júnior. Comentários ao Novo Código Civil, vol. III, tomo
II, Sálvio de Figueiredo Teixeira (org.),
Forense, Rio de Janeiro, 2003; p. 167.
238
RSTJ 85/85 e STJ, REsp. 14.449, DJ
12.08.1996, p. 27463.
239
STJ, REsp. 74.428, DJ 18.08.97, p.
37813.
FGV DIREITO RIO
231
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
instâncias ordinárias, mesmo que não tenha sido deduzida na fase própria de
defesa ou na inicial dos embargos à execução.”240
Cumpre destacar que não se admite a alegação de prescrição, pela primeira
vez, em sede de recurso especial e extraordinário, uma vez que ao STF e STJ
cabem apenas reexaminar questão já decida pelos tribunais, quando violar
norma constitucional e lei federal. A exigência de prequestionamento da matéria é óbice intransponível para o cabimento de recurso com esse objetivo.
Sobre a questão, vide STF, Súmulas 282 (1963) e 356 (1963).
Reconhecimento da prescrição de ofício
Não é dado ao juiz conhecer da prescrição de ofício. A prescrição, ainda
que reflita imperativos de ordem pública, visa também ao atendimento imediato de um interesse do sujeito passivo da relação jurídica. Assim sendo, não
é permitido ao juiz, salvo se para favorecer o absolutamente incapaz, declarar
de ofício a ocorrência da prescrição. Essa é a redação do art. 194:
Art. 194. O juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se
favorecer a absolutamente incapaz.
Sobre o absolutamente incapaz, o presente artigo estabelece uma exceção
à regra geral que veda o conhecimento ex officio da matéria prescricional. A
exceção está fundada na premissa de que, ainda que a prescrição deva sempre
ser alegada pela parte, o absolutamente incapaz não possui discernimento
para os atos da vida civil, não havendo assim possibilidade do mesmo vir a
cumprir a exigência da regra geral.
Adicionalmente, a proteção do absolutamente incapaz no presente artigo
mostra-se em sintonia com a progressiva relevância que adquire a tutela da
pessoa humana no Direito Civil, alterando-se as normas já consolidadas pela
dogmática em consonância com a percepção de que a pessoa deverá sempre
ser protegida da forma mais ampla nas situações apresentadas pela dinâmica
das relações jurídicas.
Não há como se conceber que o absolutamente incapaz restasse incluído
na norma que demanda a motivação da parte para o reconhecimento da
prescrição pelo juiz. Essa conclusão apenas contribuiria para o desamparo do
absolutamente incapaz, em tudo discrepante da proteção da pessoa humana
concretizada pelo art. 1º, III, da CF.
Ressalte-se que a prescrição que favorece o absolutamente incapaz poderá ser declarada de ofício pelo juiz, ou requerida pelo Ministério Público, por força do disposto no art. 127 da CF. Adicionalmente, cumpre
lembrar que o prazo prescricional nem mesmo se inicia contra o incapaz
240
STJ, REsp 157840/SP, DJ 07.08.00,
p. 109.
FGV DIREITO RIO
232
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
(art. 198, I, do CC), pelo que será sempre dado ao juiz reconhecer tal
situação de ofício.
Ao estabelecer de forma expressa que o absolutamente incapaz é a única
exceção ao impedimento de conhecer o juiz da prescrição de ofício, encerrase o debate sobre a possibilidade da Fazenda Pública se beneficiar também
dessa possibilidade.
O CC apenas se refere aos absolutamente incapazes e não existe motivo
para equiparar a Fazenda Pública aos primeiros, seja por uma regra de bomsenso e respeito para com os profissionais que defendem o Poder Público, seja
pela total improcedência jurídica do argumento.
Relativamente incapazes e pessoas jurídicas
Já sobre os relativamente incapazes, o Código Civil dedica proteção diferente daquela conferida aos absolutamente incapazes. Nesse sentido, a posição adotada pelo Código é a de resguardar ao relativamente incapaz o direito
de ação regressiva contra seus assistentes que derem causa à prescrição ou
não a alegarem oportunamente (art. 195). O mesmo tratamento é conferido
no mencionado artigo às pessoas jurídicas em eventuais ações contra os seus
representantes legais por dar causa ou deixar de alegar o decurso do prazo
prescricional.
É importante ressaltar que o artigo não cuida diretamente da prescrição,
mas sim do direito de ação, decorrente da não alegação da prescrição por parte de quem, ao assistir ou representar, deixa de suscitá-la, ou por dar causa à
sua concretização quando desfavorável ao assistido ou representado.
O CC1916, em seu art. 164, previu a hipótese de ação regressiva contra os assistentes e representantes legais quando esses deixassem de alegar a
prescrição. Apesar das aparentes semelhanças, o presente art. 195 apresenta
distinções fundamentais, que impedem a associação direta com o dispositivo
citado do código anterior.
Assim, enquanto o preceito em vigor se aplica aos relativamente incapazes,
o dispositivo pretérito tratava dos absolutamente incapazes (“pessoas que a lei
priva de administrar os próprios bens”). Adicionalmente, a referência à “ação
regressiva” foi suprimida, evitando-se uma limitação do alcance pretendido
pelo artigo.
A ação constante do art. 164 do CC1916 previa como seu fundamento a
atuação dos representantes legais que “por dolo, ou negligência derem causa
à prescrição”. Na redação do presente art. 195 a referência ao dolo e à negligência dos representantes foi retirada.
Dessa forma, poder-se-ia entender que a responsabilidade dos assistentes
ou representantes é alcançada pelo disposto no art. 927, parágrafo único, o
FGV DIREITO RIO
233
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
qual estabelece a responsabilidade sem culpa para os casos expressamente
previstos em lei ou quando da própria atividade desenvolvida pelo causador
do dano, pode-se depreender que advém risco para os direitos de terceiros.
A aplicação do dispositivo que contempla a responsabilidade sem culpa
para as figuras do art. 195 deve levar em conta as particularidades do caso
concreto, não devendo se estender de modo absoluto a responsabilidade do
art. 927, parágrafo único, uma vez que, se o representante legal de pessoa
jurídica, na maior parte das vezes, possui experiência na atividade que desempenha, podendo assim ser responsabilizado como um profissional que se
encontra exposto aos riscos da atividade que desenvolve, o mesmo não ocorre
com o assistente do relativamente incapaz.
Com efeito, o assistente do relativamente incapaz poderá, em grande parte
das vezes, não possuir conhecimentos jurídicos, e nem experiência na vida
prática para auxiliar na gestão de interesses de terceiros. O pai ou a mãe de
um menor, relativamente incapaz, p. ex., que deixar de alegar a prescrição
benéfica ao assistido não poderá ser submetido à responsabilidade sem culpa,
tal qual o representante legal de uma pessoa jurídica, do qual normalmente
se requer alguma expertise mínima para a vida negocial.
Alguns aspectos peculiares da decadência
O CC não apresenta uma conceituação do instituto da decadência, prevendo apenas normas gerais sobre o mesmo, como a contagem do prazo
decadencial, a possibilidade de renúncia, o conhecimento ex-officio por parte
do juiz, o momento em que pode ser alegada e etc.
A previsão de normas expressas sobre o instituto inova com relação ao regramento constante do CC1916, que apenas fazia referência ao termo “prescrição”, restando à doutrina e à jurisprudência promover uma distinção entre
prescrição e decadência, bem como assinalar qual a real natureza de cada
prazo previsto pelo CC1916.
Os prazos decadenciais no CC em vigor, conforme já salientado, encontram-se espalhados pelo texto do Código, acompanhando o direito que lhe é
pertinente nos Livros da Parte Geral e Especial.
Conceito de decadência
Para que se compreenda o conceito de decadência, faz-se necessário ter em
mente dois outros conceitos: o de direito potestativo e o de ação constitutiva.
Isso porque a definição do instituto da decadência está vinculada à extinção de
um direito potestativo, que deveria ter sido concretizado, normalmente através de uma ação de natureza constitutiva, no decorrer de determinado prazo.
FGV DIREITO RIO
234
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Primeiramente, cumpre abordar a questão do direito potestativo e esclarecer a sua relação com a decadência. A vinculação entre os dois conceitos
é realizada pela doutrina ao afirmar que a “decadência é a perda do direito
potestativo pela inércia do seu titular no período determinado em lei”.241
Valendo-se da classificação dos direitos em “direitos a uma prestação” e
“direitos potestativos”, proposta por Chiovenda, Agnelo Amorim Filho, explicita que a primeira categoria de direitos, uma vez violados, dará surgimento
a uma ação condenatória, cujo prazo para o seu exercício será prescricional. Já
os direitos potestativos, poderão ser exercidos em juízo através de ação constitutiva, sendo o seu prazo de natureza decadencial.242 Cumpre destacar que
o manejo de ação constitutiva não é necessária para a concretização de todo
e qualquer direito potestativo, pois tais direitos podem surgir por convenção
entre as partes, como ocorre, por exemplo, na avença entre particulares sobre
a prorrogação de contrato mediante notificação prévia de uma parte a outra.
Os direitos potestativos, distintamente do que ocorre com os “direitos a
uma prestação” (direitos subjetivos propriamente ditos), não dependem de
uma ação ou omissão alheia, pois os mesmos conferem ao seu titular o poder
de intervir na esfera jurídica de outrem, sem que os mesmos possam impor a
sua vontade. Nos direitos potestativos o sujeito passivo encontra-se em situação de sujeição perante o exercício do direito por parte de seu titular.
Dessa forma, compreende-se que os direitos potestativos são insuscetíveis
de violação, não correspondendo aos mesmos uma prestação, o que vincula
o seu exercício, quando necessário o pronunciamento judicial, às ações de
natureza constitutiva, uma vez que esse tipo de ação: (i) não pressupõe a
existência de violação a um direito, como ocorre com as ações de natureza
condenatória, próprias da prescrição; (ii) por meio delas não se exige uma
prestação do réu; e, conseqüentemente (iii) não visam à satisfação de uma
pretensão na medida em que a mesma é definida como “o poder de exigir de
outrem uma prestação”.243
Prescindindo os direitos potestativos da noção de pretensão, por não estarem sujeitos à prestação a ser violada pelo sujeito passivo da relação jurídica,
percebe-se que os tais direitos deverão ser exercidos em juízo através de ações
constitutivas, e não condenatórias.
E as ações de natureza constitutiva, por seu turno, remetem aos prazos
decadenciais para o seu exercício, já que a decadência não visa atuar sobre a
pretensão, mas sobre o próprio direito, que resta fulminado com o transcurso
do tempo sem que se mova a competente ação constitutiva. Conclui-se assim
que o objeto da decadência será o próprio direito, caso o mesmo não venha
a ser exercido dentro do prazo determinado. Adicionalmente, quando o seu
exercício demandar que se recorra ao Poder Judiciário, a ação correspondente
será de natureza constitutiva.
241
Francisco Amaral. Direito Civil – Introdução, Rio de Janeiro, Renovar, 2002,
4ª ed; p. 561.
242
Agnelo Amorim Filho, “Critério
científico para distinguir a prescrição
da decadência e para identificar ações
imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,
n. 744, 1997, pp. 728.
243
Agnelo Amorim Filho, “Critério
científico para distinguir a prescrição
da decadência e para identificar ações
imprescritíveis”, Revista dos Tribunais,
n. 744, 1997, pp. 733.
FGV DIREITO RIO
235
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
A concepção de que a decadência atua sobre o direito não é recente, podendo-se encontrar na doutrina clássica de Câmara Leal o entendimento no
sentido de que a decadência é “o perecimento do direito pelo decurso do
prazo fixado para o seu exercício, sem que seu titular o tivesse exercido”.244
O direito, por mandamento legal ou por acordo entre as partes contratantes, já aparece no universo jurídico subordinado a um lapso temporal para o
seu exercício, que em não se realizando, termina por extingui-lo. Apenas são
concedidas duas alternativas ao titular de um direito ao qual esteja atrelado
um prazo decadencial: ou exerce o direito dentro do lapso temporal concedido ou o perde para todo o sempre.
Impedimentos, interrupções e suspensões
Os prazos decadenciais não estão sujeitos a impedimentos, interrupção ou
suspensão. O entendimento no sentido da não aplicação das regras de impedimento, interrupção ou suspensão aos prazos decadenciais é bastante usual.
A característica de fluir contra todos e de modo contínuo, sem a possibilidade de impedimentos, interrupções ou suspensões foi uma das principais
características utilizadas pela doutrina para distinguir os prazos prescricionais
dos decadenciais na vigência do CC1916.
Todavia, deve-se atentar para o fato de que a nova disciplina instaurada
pelo CC para o instituto da decadência estabelece exceções à regra, não devendo o aplicador do direito mais arrolar essa característica de forma absoluta como qualidade distintiva entre prescrição e decadência. Diversamente
do que ocorre com a prescrição, os prazos decadenciais não estão sujeitos a
impedimentos, interrupção ou suspensão, mas essa regra não é absoluta pois
os prazos decadenciais poderão ser impedidos, interrompidos ou suspensos
por força de disposição legal específica nesse sentido, como ocorre com o
art. 208, que impede o cômputo do prazo decadencial contra os absolutamente incapazes.
Vale ainda ressaltar duas outras características própria dos prazos decadenciais: (i) quando forem os mesmos estabelecidos por lei, não poderão as
partes contratantes promover o seu aumento ou redução, pois se tanto fosse
permitido, frustrados seriam os interesses de ordem pública que fundamentam o instituto; e (ii) aplicam-se aos mesmos o disposto nos arts. 195 e 198,
I, do Código Civil, ou seja, são também aplicáveis aos prazos prescricionais
as regras sobre a ação da qual dispõem os relativamente incapazes e as pessoas
jurídicas contra os seus assistentes e representantes legais pela ocorrência da
prescrição (art. 195), sendo ainda afirmado que não correrá prazo decadencial contra os absolutamente incapazes (art. 198, I).
244
Antônio Luís Câmara Leal, Da Prescrição e da Decadência – Teoria Geral
do Direito Civil, Rio de Janeiro, Forense,
1959, 2ª ed.; p. 113.
FGV DIREITO RIO
236
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Renúncia à decadência
O artigo 209 do Código Civil determina que “[é] nula a renúncia à decadência fixada em lei”. Essa redação deixa claro que existem dois tipos de
decadência: a prevista em lei e a convencionada pelos particulares. No que
se refere à decadência legal, os imperativos da ordem pública fundamentam
a regra do art. 209, impondo que os prazos legalmente previstos não sejam
passíveis de renúncia pelos particulares.
A renúncia ao prazo decadencial legal será reputada ato nulo, por absoluta
incompetência das partes para a prática de tal ato. Assim sendo, a renúncia
ao prazo decadencial previsto em lei jamais produz qualquer efeito no mundo
jurídico, independentemente da consumação ou não da decadência.
A contrario sensu, os prazos decadenciais convencionais poderão ser objeto
de renúncia pelos particulares, não se cogitando, portanto, de sua nulidade pelo
simples existência desse ato. Outras causas poderão levar à nulidade da renúncia
ao prazo decadencial convencionado, mas não a elaboração do ato em si.
Os prazos decadenciais estabelecidos por convenção operam na seara dos
direitos disponíveis, admitindo-se que, se a autonomia da vontade pôde criar
determinado prazo, será igualmente possível promover a renúncia ao mesmo.
Cumpre adicionar que a renúncia à decadência convencional também deverá ocorrer após a sua consumação245. Essa medida busca evitar que a decadência
convencional seja esvaziada a ponto de se tornar usual a imposição de cláusula
renunciando aos seus efeitos já quando da estipulação do prazo decadencial.
Questões processuais
Novamente separando os efeitos da decadência legalmente prevista daquela convencionada pelas partes, o Código Civil, no seu artigo 210, estabelece
que deverá o juiz conhecer de ofício a decadência legal quando a mesma incidir sobre processo de sua competência. Trata-se de um dever imposto por lei,
e não uma mera faculdade, que poderia ser exercida ao talante do julgador.
Todavia, não poderá a decadência ser alegada pela primeira vez em sede
de recurso extraordinário e recurso especial, dado que a CF exige, por força
dos arts. 102, III, e 105, III, respectivamente, que para a admissão dos dois
recursos mencionados, a matéria objeto de impugnação tenha sido decidida
na instância inferior.
Sobre a decadência convencional, explicita o artigo 211 que “[s]e a decadência for convencional, a parte a quem aproveita pode alegá-la em qualquer
grau de jurisdição, mas o juiz não pode suprir a alegação.”
Aqui, ao inverso do que ocorre com a decadência legal, o prazo decadencial contratualmente estipulado não será objeto de conhecimento de ofício
245
Maria Helena Diniz, Curso de Direito
Civil Brasileiro, vol. I, São Paulo, Saraiva,
2002, 18ª ed; p. 305.
FGV DIREITO RIO
237
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
pelo julgador, na medida em que sobre tais prazos não incidem diretamente
os imperativos de ordem pública que fundamentam os prazos legais.
A oposição da decadência contratual poderá ser realizada em qualquer
grau ordinário de jurisdição, sendo válido para a mesma o entendimento
exposto acima sobre a impossibilidade de sua alegação em sede de recurso
extraordinário e especial.
3. QUESTÕES DE CONCURSO
Concurso para o cargo de Advogado da BR Distribuidora (2005) — prova azul
34. Sobre a prescrição, é correto afirmar-se que:
(a) o juiz não pode suprir, de ofício, a alegação de prescrição, salvo se
favorecer a absolutamente incapaz;
(b) aquele que possuir coisa móvel como sua, contínua e incontestadamente durante três anos, independente de título ou boa-fé, adquirir-lhe-á a propriedade;
(c) a interrupção da prescrição só pode ocorrer duas vezes;
(d) a exceção prescreve no dobro do prazo que a pretensão;
(e) a renúncia da prescrição jamais pode ser tácita.
126º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase
22. São imprescritíveis as pretensões que versam sobre
(a) os bens públicos, o estado da pessoa e a cobrança de prestações alimentares vencidas;
(b) a ação para anular inscrição do nome empresarial feita com violação
de lei ou do contrato;
(c) o estado da pessoa, os direitos da personalidade e a cobrança de
prestações vencidas de rendas vitalícias;
(d) o direito a alimentos e a ação de reparação civil em razão de contrafação.
128º Exame da Ordem — OAB/SP — 1ª fase
22. Sobre a prescrição e a decadência, é INCORRETO afirmar:
(a) quando houver prazo para o exercício de direito potestativo, o prazo será decadencial;
(b) quando consumada, a prescrição extingue a pretensão;
(c) a pretensão nasce a partir do momento em que o direito é violado;
(d) a prescrição nunca pode ser suscitada de ofício pelo juiz.
Gabarito: 34 (a); 22 (b); 22 (d).
FGV DIREITO RIO
238
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Ordem dos Advogados do Brasil
42º Exame de Ordem Unificado — 2010.2
21. A respeito das diferenças e semelhanças entre prescrição e decadência,
no Código Civil, é correto afirmar que:
A. a prescrição acarreta a extinção do direito potestativo, enquanto a
decadência gera a extinção do direito subjetivo.
B. os prazos prescricionais podem ser suspensos e interrompidos, enquanto os prazos decadenciais legais não se suspendem ou interrompem, com exceção da hipótese de titular de direito absolutamente
incapaz, contra o qual não corre nem prazoprescricional nem prazo
decadencial.
C. não se pode renunciar à decadência legal nem à prescrição, mesmo
após consumadas.
D. a prescrição é exceção que deve ser alegada pela parte a quem
beneficia, enquanto a decadência pode ser declarada de ofício pelo
juiz.
Resposta: B
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239
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
AULA 23 — SUSPENSÃO, IMPEDIMENTO E INTERRUPÇÃO DOS
PRAZOS PRESCRICIONAIS
EMENTÁRIO DE TEMAS
Impedimento e suspensão da prescrição — Interrupção da prescrição — Prazo
geral de prescrição — Prazos prescricionais e prazos decadenciais
LEITURA OBRIGATÓRIA
Tepedino, Gustavo, Moraes, Maria Celina Bodin de, e Barboza, Heloisa
Helena. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República,
vol. I. Rio de Janeiro: Renovar, 2004; pp. 367/392.
LEITURAS COMPLEMENTARES
Neves, Gustavo Kloh Muller, “Prescrição e decadência no novo Código Civil”, in Gustavo Tepedino (org.), A Parte Geral do Código Civil, Rio de Janeiro, Renovar, 2002, pp. 417/428; e Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil, v. I. Rio de Janeiro: Forense, 2005; pp. 677/702.
1. ROTEIRO DE AULA246
Os prazos prescricionais podem ser impedidos, suspensos ou interrompidos. O regramento dessas hipóteses encontra-se nos arts. 197 a 204 do
Código Civil.
Impedimento e suspensão da prescrição
Usualmente, quando se menciona que os prazos prescricionais “não correm” por algum motivo, está-se fazendo referência às causas de impedimento
ou suspensão desses prazos. A diferença entre suspensão e impedimento reside no fato de que, no impedimento, a causa estabelecida em lei é pré-existente ao início da contagem do prazo prescricional, motivo pelo qual impede-se
o próprio nascimento da prescrição.
246
O presente roteiro de estudo é uma
versão reduzida - e substancialmente
adaptada para os fins desse material
didático - do trabalho realizado conjuntamente com Tatiana Florence Magalhães e constante do livro Código Civil
Interpretado conforme a Constituição da
República, vol. I, organizado por Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza (Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; pp. 347/423).
FGV DIREITO RIO
240
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Já na suspensão, o prazo prescricional já iniciado deixa de correr em decorrência de alguma situação, voltando a correr quando de sua superação,
contando-se todo o tempo transcorrido até a sua suspensão.
O artigo 197 do Código Civil traz algumas hipóteses de impedimento e
suspensão ao dispor da seguinte forma:
Art. 197. Não corre prescrição:
I — entre cônjuges, na constância da sociedade conjugal;
II — entre ascendentes e descendentes, durante o poder familiar;
III — entre tutelados ou curatelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela
ou a curatela.
As causas de suspensão ou impedimento de que tratam o artigo 197 estão
baseadas em razões de ordem moral, como a confiança ou a relação familiar
existente entre os sujeitos das relações jurídicas.
Especialmente com respeito ao relacionamento dos cônjuges, previsto no
artigo 197, I, na constância da sociedade conjugal, deve-se lembrar que esse
tratamento também deve ser estendido à união estável, uma vez que a Constituição Federal a reconhece como entidade familiar no art. 226, §3º.
Adicionalmente, prevê o art. 198 que “também não corre a prescrição”:
I — contra os incapazes de que trata o art. 3°;
II — contra os ausentes do País em serviço público da União, dos Estados ou dos
Municípios;
III — contra os que se acharem servindo nas Forças Armadas, em tempo de guerra.
Aqui, diferentemente do que ocorre no artigo 197, as causas de impedimento ou suspensão da prescrição não de natureza moral, mas sim por conta
de uma situação que impede o sujeito da relação jurídica de agir, atuando
sobre o decurso do prazo prescricional.
Como já visto, não corre prazo prescricional contra os absolutamente incapazes. Essa regra independe de estar o absolutamente incapaz representado
ou não.
Também não corre a prescrição nas situações estabelecidas no art. 199,
quais sejam: (i) pendendo condição suspensiva; (ii) não estando vencido o
prazo; e (iii) pendendo ação de evicção. A doutrina critica severamente a inclusão desse artigo no Código Civil uma vez que, nessas hipóteses, não existe
ainda ação para exigir o cumprimento de uma obrigação. Ou seja, ainda não
há causa para a contagem do prazo prescricional.
Relacionado ao direito das obrigações, dispõe o artigo 201 sobre a suspensão do prazo prescricional em obrigações solidárias da seguinte forma:
FGV DIREITO RIO
241
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Art. 201. Suspensa a prescrição em favor de um dos credores solidários, só
aproveitam os outros se a obrigação for indivisível.
Somente podem invocar a suspensão ou o impedimento da prescrição os
sujeitos a quem o legislador se referiu nas hipóteses previstas em lei, não alcançando terceiros, nem mesmo os seus credores solidários. Excepciona o artigo,
contudo, a hipótese da obrigação ser indivisível, pois nessas circunstâncias não
há como fracionar as relações que incidem sobre o objeto da obrigação.
Interrupção da prescrição
O Código Civil arrola uma série de hipóteses nas quais o prazo prescricional
será interrompido, ou seja, após superado o motivo que impediu o seu decurso,
o prazo será contado novamente de forma integral. O fundamento das causas
de interrupção reside no fato de que o credor não se encontrava inerte quanto
ao manejo de sua pretensão e, sendo assim, essas causas passam a depender de
uma manifestação da parte. Elas envolvem uma atitude deliberada do credor,
que demonstra estar alerta e interessado na preservação de seu direito.
Uma das mais destacadas características da interrupção dos prazos prescricionais na doutrina e na jurisprudência consiste no debate sobre a sua
impossibilidade de ser utilizada por mais de uma vez.
Para alguns autores, o fundamento do instituto, consistente no interesse da sociedade em que os direitos não permaneçam muito tempo sem exercício, seria incompatível com a interrupção ilimitada da prescrição por parte do credor, que ao
assim proceder acarretaria, em última análise, a imprescritibilidade da sua pretensão.
O legislador pareceu resolver a questão, optando por estabelecer que a
interrupção da prescrição só pode se dar por uma vez, dentre as hipóteses
constantes dos incisos de I a VI do artigo 202, assim redigido:
Art. 202. A interrupção da prescrição, que somente poderá ocorrer uma vez,
dar-se-á:
I — por despacho do juiz, mesmo incompetente, que ordenar a citação, se o interessado a promover no prazo e na forma da lei processual;
II — por protesto, nas condições do inciso antecedente;
III — por protesto cambial;
IV — pela apresentação do título de crédito em juízo de inventário ou em concurso de credores;
V — por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
VI — por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe reconhecimento do direito pelo devedor.
Parágrafo único. A prescrição interrompida recomeça a correr da data do ato que
a interrompeu, ou do último ato do processo para a interromper.
FGV DIREITO RIO
242
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Ocorre, porém, que, na prática, esse entendimento pela impossibilidade
de se interromper a prescrição por mais de uma vez pode gerar situações de
extrema iniqüidade. Veja-se o exemplo constante nos comentários ao Código
Civil organizado por Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin e Heloisa Helena Barboza:
“Tome-se como exemplo o credor de uma letra de câmbio vencida que procede
ao protesto, interrompendo, assim, o prazo prescricional, a teor do art. 202, II. Sem
sucesso, posteriormente ingressa o credor com a ação de execução do título, a qual
prescreve em 3 anos (contra o aceitante), a partir do dia do vencimento (art. 70 do
D. 57.663/66). Esse prazo, entretanto, interrompido pelo protesto, voltou a correr
integralmente a partir de então, conforme dispõe o parágrafo único do art. 202.
Aplicando-se o que estabelece a lei, ter-se-ia que admitir que o prazo em questão não
poderia ser interrompido, pela segunda vez, pelo despacho que determinou a citação
na ação de execução proposta pelo credor (art. 202, I).”
“Levando-se em consideração que a inércia é requisito essencial do instituto em
foco, nada pode ser mais demonstrativo do interesse em receber o crédito — e, portando, da ausência do elemento acima referido — do que a propositura da respectiva
ação judicial, na qual o titular do direito, sem ter a quem mais recorrer, se socorre
do Poder Judiciário para impor ao devedor o adimplemento de sua obrigação.”247
Dessa forma, reconhecer que essa atuação do credor não poderá interromper a contagem do prazo prescricional geraria uma situação de grande injustiça. Competirá, portanto, aos magistrados, flexibilizar a norma do artigo 202,
pois, conforme ressalta J.M. Carvalho Santos, “a presunção é que a aplicação
da lei não conduza ao absurdo, como é de trivial regra de hermenêutica.”248
Prazo geral de prescrição
Os prazos prescricionais sofreram sensível redução no Código Civil de 2002
em relação ao CC1916. Trata-se de medida salutar uma vez que as tecnologias
modernas, empregadas nos meios de transporte e comunicação, aproximam
as pessoas e facilitam o contato entre elas, não mais se justificando o estabelecimento de prazos tão longos como os fixados no Código anterior.
Tenha-se em mente que quando o CC1916 foi aprovado fazia apenas dez
anos que Santos Dumont havia realizado o primeiro vôo mecânico do mundo, com o avião 14Bis, e três que Henry Ford havia inaugurado a primeira
linha de montagem de automóveis.
O artigo 205 do Código Civil dispõe que a prescrição “ocorre em dez
anos, quando a lei não lhe haja fixado prazo menor”. Dessa forma, 10 (dez)
anos é o prazo prescricional que valerá para todas as relações jurídicas, quan-
247
Gustavo Tepedino, Maria Celina Bodin de Moraes e Heloisa Helena Barboza
(orgs.). Código Civil Interpretado conforme a Constituição da República. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004; p. 379.
248
J. M. de Carvalho Santos, Código
Civil Brasileiro Interpretado, vol. VI, Rio
de Janeiro, Freitas Bastos, 1950, 4ª ed;
p. 444.
FGV DIREITO RIO
243
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
do a lei não dispuser de forma distinta. Como regra geral, o estabelecimento
de um prazo de 10 (dez) anos parece bastante razoável, reduzindo a metade o
prazo anteriormente previsto no CC1916, no seu art. 177.
Prazos prescricionais e prazos decadenciais
O Código Civil apresenta um regramento distinto daquele presente
no CC1916 no que se refere aos prazos prescricionais e decadenciais. No
CC1916, o art. 178 enunciava uma série de prazos, sem qualquer indicação
sobre a sua natureza, cabendo ao intérprete distinguir as hipóteses de prescrição daquelas relativas à decadência.
Os prazos constantes do presente art. 205 e 206, por seu turno, são todos de
natureza prescricional, facilitando em muito a tarefa do intérprete na aplicação
das regras correspondentes à natureza desses prazos. Por outro lado, os prazos
decadenciais estão previstos de forma esparsa nos livros da Parte Geral e Especial
do CC, acompanhando a positivação do direito sobre o qual recai a decadência.
Nesse sentido, vale transcrever trecho da Exposição de Motivos do CC, de
autoria de Miguel Reale, na qual se afirma que:
“Para por cobro a uma situação deveras desconcertante, optou a Comissão por
uma fórmula que espanca quaisquer dúvidas. Prazos de prescrição, no sistema do
Projeto, passam a ser, apenas e exclusivamente, os taxativamente discriminados na
Parte Geral, Título IV, Capítulo I, sendo de decadência todos os demais, estabelecidos, em cada caso, isto é, como complemento de cada artigo que rege a matéria, tanto
na Parte geral como na Parte Especial.”249
Dessa forma, uma dos mais dramáticos e inglórios debates travados pela
doutrina durante a vigência do Código anterior é encerrado com a definição
clara de quais prazos são prescricionais e quais são de natureza decadencial
no Código de 2002.
3. QUESTÕES DE CONCURSO
24º Exame da Ordem — OAB/RJ — 1ª fase
42 — À luz das normas legais que regem o instituto da prescrição, dispostas pelo Código Civil vigente, assinale a afirmativa correta:
(a) O protesto cambial não interrompe a prescrição;
(b) A prescrição consiste na extinção do direito subjetivo;
(c) Os prazos de prescrição não podem ser alterados por acordo das partes;
(d) A prescrição corre entre os cônjuges na constância da sociedade
conjugal.
249
Senado Federal. Novo Código Civil.
Impressa Nacional, Brasília, 2002, p. 40.
FGV DIREITO RIO
244
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
Concurso para o cargo de Advogado do BNDES (2004)
54. Prevê o artigo 189 do novo Código Civil que “violado o direito, nasce
para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que
aludem os arts. 205 e 206”. O Código prevê, de modo expresso, os prazos de
prescrição, que fluem da violação do direito, e disciplina as regras para sua
suspensão e sua interrupção. A esse respeito, assinale a única afirmação que
está de acordo com o Código Civil em vigor:
(a) A prescrição só pode ser interrompida duas vezes;
(b) A prescrição só pode ser interrompida por quem esteja interessado
na interrupção;
(c) A interrupção produzida contra o principal devedor não prejudica
o fiador;
(d) Prescreve em 4 anos a pretensão relativa à tutela, a contar da data da
aprovação das contas;
(e) Prescreve em 5 anos a pretensão de restituição de dividendos recebidos de má-fé, a contar da data em que foi deliberada a distribuição.
UnB/CESPE — OAB
39º Exame de Ordem 2009.2
QUESTÃO 29
Assinale a opção correta respeito da prescrição e da decadência.
A. A prescrição iniciada contra o credor continua a correr contra o
sucessor universal absolutamente incapaz.
B. Não corre prescrição enquanto pendente a condição suspensiva em
relação ao negócio jurídico.
C. Pode haver renúncia à decadência prevista em lei por aqueleque a
aproveita.
D. A pretensão condenatória não exercitada no prazo legal sujeita-se
aos efeitos da decadência.
Gabarito: 42 (c); 54 (d); 29 (b)
FGV DIREITO RIO
245
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA
Doutor em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(2009). Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro (2003). Bacharel pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (2000).Vice-coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade
da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas — RJ (Direito Rio).
Pesquisador Visitante do Information Society Program, da Faculdade de
Direito da Universidade de Yale. Professor dos cursos de graduação e pósgraduação da Direito Rio e da PUC-Rio, lecionando matérias relacionadas
ao Direito dos Contratos, Responsabilidade Civil, Propriedade Intelectual
e Direito da Tecnologia da Informação. Membro da Comissão de Direito Autoral da OAB/RJ (desde 2007). Conselheiro eleito do GNSO/ICANN
como representante dos usuários não-comerciais da Internet (20082009) e Membro eleito do Comitê Executivo do NCUC (non-commercial
users constituency), representando os usuários da Internet da América
do Sul (2009-2011). Membro eleito do Comitê Executivo da Iniciativa
por Princípios e Direitos Fundamentais na Internet, criada no Fórum de
Governaça da Internet (IGF) da ONU (2008-2010).
Gostaria de agradecer o trabalho de diversos pesquisadores e professores que, desde a primeira vez que essa matéria foi lecionada na Escola,
em 2005, contribuíram para o aperfeiçoamento do material. Nesse sentido, fica aqui registrado o agradecimento cronológico ao Bruno Belsito,
Pedro Mendonça Cavalcante, Ligia Fabris, Sergio Branco, Rafael Viola e
Rachel Guitton Marques, além dos monitores que contribuíram com a
atualização das questões de concurso e casos práticos.
FGV DIREITO RIO
246
INTRODUÇÃO AO DIREITO CIVIL
FICHA TÉCNICA
Fundação Getulio Vargas
Carlos Ivan Simonsen Leal
PRESIDENTE
FGV DIREITO RIO
Joaquim Falcão
DIRETOR
Sérgio Guerra
VICE-DIRETOR DE ENSINO, PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
Rodrigo Vianna
VICE-DIRETOR ADMINISTRATIVO
Thiago Bottino do Amaral
COORDENADOR DA GRADUAÇÃO
Cristina Nacif Alves
COORDENADORA DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO
Paula Spieler
COORDENADORA DE ATIVIDADES COMPLEMENTARES E DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
Andre Pacheco Mendes
COORDENADOR DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA
Thais Maria L. S. Azevedo
COORDENADORA DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Márcia Barroso
NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA — PLACEMENT
Diogo Pinheiro
COORDENADOR DE FINANÇAS
Milena Brant
COORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO
FGV DIREITO RIO
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