A CIDADE E O DIREITO DE PROPRIEDADE
ANDREA TEICHMANN VIZZOTTO1
RESUMO: O trabalho traça um paralelo entre a cidade e o exercício do direito de
propriedade a partir das limitações urbanísticas e de edificações desde o início das
cidades até os dias atuais em que o exercício do direito de propriedade está
condicionado ao atendimento da função social.
PALAVRAS-CHAVE: Cidade, Função Social da Propriedade, Plano diretor.
ABSTRACT: The present work draws a parallel between the city and the exercise of
the right of property from the town planning limitations since the beginning of cities
up to the current days in which the exercise of the right of property is stipulated to
the service of the social function.
KEYWORDS: Urban Planning, function of property, urban instrument.
1.
NOTAS INTRODUTÓRIAS -
Os direitos sempre foram espelhos das
épocas (ALTAVILA, 2001).
1
Mestre em Planejamento Urbano e Regional pela UFRGS. Professora da FACOS. Procuradora do
Município de Porto Alegre. Contato: [email protected]
158
O crescimento rápido e desordenado das cidades é um dos
fatores desencadeadores do desequilíbrio de ocupação de áreas urbanas com a
formação de espaços urbanos providos de suficiente infra-estrutura e serviços em
contraposição a outros desprovidos de equipamentos urbanos que garantam o
devido bem-estar e qualidade de vida aos habitantes do local. Essa dinâmica das
cidades também gerou um descompasso entre a legalidade e a realidade urbana,
criando uma dicotomia entre a cidade formal e a cidade informal, além de provocar
uma desigualdade quanto ao uso do solo, favorecendo a especulação imobiliária.
Uma das decorrências do fenômeno urbano é o maior ou menor grau de intervenção
no exercício do direito de propriedade. A cronologia histórica confirma essa
assertiva.
No Brasil, o exercício da propriedade está condicionado ao
atendimento da função social. O enfoque da propriedade passou a ser direcionado à
sociedade e não ao proprietário do bem, titular desse direito. A função social da
propriedade, orientada à coletividade (SAULE JUNIOR, 1999) exige do proprietário o
exercício desse direito de forma a atender esse aspecto social. É como se houvesse
uma segmentação da propriedade no sentido de ter o proprietário que adotar um
novo perfil de comportamento. É ele, a um só tempo, titular de direito subjetivo e
depositário de deveres de índole social, para cujo alcance lança mão dos poderes
inerentes ao seu domínio (RABAHIE, 1991, p. 233).
Na atualidade a amplitude do exercício do direito de
propriedade ainda suscita discussões, não obstante a clareza do disposto pelo artigo
182, parágrafo 2º da Constituição Federal: A propriedade urbana cumpre sua função
social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor. O próprio comando constitucional denota a ligação direta
entre a cidade e o exercício do direito de propriedade, tanto que delega aos planos
diretores a ordenação da cidade e os condicionantes do exercício do direito de
propriedade.
O presente artigo tem por finalidade traçar um paralelo entre a
evolução da cidade e o exercício do direito de propriedade no decorrer dos séculos
159
e, por meio das limitações de edificações e urbanísticas, entender a razão para tão
direta vinculação da propriedade à cidade, demonstrando-se a importância do plano
diretor como orientador da política urbana no Brasil.
2.
DA CIDADE ANTIGA À MODERNA: A PROPRIEDADE
A propriedade, segundo o sentido etimológico, origina-se da
palavra latina proprietas, traduzindo o poder de alguém sobre algo ou a qualidade
daquilo que pertence a alguém. O direito de propriedade sempre se caracterizou
pela faculdade de o titular usar, gozar e dispor do bem. Os glosadores dirão que a
propriedade é no “jus utendi et abutendi”, o direito de usar e abusar da coisa. Pothier
vai buscar a doutrina romanista a fórmula: “usus, fructus, abusus” (GILISSEN, 2003,
p. 635). Direito esse que era, pela visão privatista, até pouco tempo atrás, oponível
a terceiros de forma absoluta, inviolável e sagrada (BOBBIO, 1992, p.95).
O direito de propriedade é uma das instituições mais antigas
da civilização. Da mesma forma está entre aqueles que maior transformação sofreu
ao longo dos tempos (DALLARI; FIGUEIREDO, 1991, p.46).
Mesmo que posta em princípios bastante diferentes dos
atuais, desde o tempo dos tártaros se admitia a propriedade dos rebanhos, ou no
caso dos germanos, da colheita, mas não do solo. Ao contrário, outros povos
antigos, como o grego e o romano, desde a mais remota antiguidade sempre
reconheceram a propriedade privada (COULANGES, 2002, p.65).
O direito de propriedade surgiu muito antes da formação das
cidades. Porém, é inegável que a aglomeração da população em centros urbanos foi
um dos muitos fatores determinantes da transformação do exercício desse direito.
160
Assim, há, portanto, uma relação entre a evolução das cidades e o exercício do
direito de propriedade aos longos dos tempos.
As primeiras restrições ao exercício do direito de propriedade
remontam aos primórdios da Antiguidade Clássica e tinham cunho meramente
religioso. Cada família possuía os deuses do lar que, por razões religiosas ficavam
separados em uma edificação distinta da casa principal em razão da particularidade
de cada culto familiar, (COULANGES, 2002, p.67). O sagrado exercia uma função
limitadora entre as moradias.
Curioso observar que já nas XII Tábuas, na denominada de
jure aedium e agrorum havia uma restrição à propriedade que consistia em
regulação sobre o espaço necessário entre duas construções, bem como
delimitando o espaço para circulação de carroças e outros equipamentos no espaço
público.
Na Roma Clássica o direito de propriedade entendido como
direito individual e absoluto e segundo o proprietário colocava-se em posição
especial diante da coisa. Exerce sobre ela todos os direitos-“jura”- possíveis. Pode
usá-la, usufrui-la e, em qualquer sentido, destruí-la. O “jus utendi,fruendi e abutendi”os três “jura” -caracterizam, pois, o mais absoluto dos direitos
(CRETELLA
JUNIOR,1993, p.118). Com a queda de Roma ocorreu o esvaziamento das cidades
e pouco significativas foram as normas urbanísticas nesse período.
Na Idade Média, como o comando e o poder estavam nas
mãos dos senhores feudais, restou fortalecido, nas mãos de poucos, o exercício do
direito de propriedade:
[...] No entanto, com o desenvolvimento e conseqüentes
mudanças nos feudos, certos senhores construíram muralhas
distanciadas da casa principal, propiciando a moradia dos
camponeses e uma estrutura social diversa. Inicialmente
ligados à revolução agrícola, dois fatores tiveram relevância no
desenvolvimento social da época:”renascimento do comércio e
o fortalecimento das cidades. [...] Burgos, aldeias e vilas
tornaram-se independentes, desligando-se do seu antigo
161
senhor feudal, fazendo nascer a “burguesia”, formada, em sua
maioria, por negociantes (COSTALDELLO, apud BOQUESI,
2006, p. 13).
Muito embora o fortalecimento da propriedade como direito
individual na Idade Média não havia regras de higiene, saneamento ou qualquer
disciplinamento sobre as habitações e construções nas cidades.
A população urbana, além de ser muito reduzida durante a
época feudal, concentrava-se em centros altamente fortificados
e de pequeno tamanho; não havia afastamento entre as
construções, predominavam as vielas e becos, evitando-se
espaços abertos e descampados. Inexistiam regras; muitas
normas do Direito Romano só foram recuperadas séculos
depois (CRETELLA JUNIOR, 1993, p. 210).
Ainda com relação às cidades medievais há um espaço
público comum, complexo e unitário onde se encontram todos os edifícios públicos e
privados. É o interesse privado o dominante e há uma regulamentação minuciosa
identificando as intersecções entre o espaço público e os edifícios privados, e as
zonas em que os dois interesses se contrapõem: as saliências das casas que
cobrem uma parte da rua, os pórticos, as escadas externas, etc. (BENÉVOLO, 2003,
p. 269).
Com a decadência do regime feudal a nobreza uniu-se aos
soberanos, fazendo surgir o regime absolutista. A intervenção na propriedade
privada e na liberdade individual marcou o século XIV e XV. As intervenções
urbanísticas, na grande maioria, eram de cunho estético, ligadas à idéia particular de
monumentalidade do monarca, (CORREIA, 2001, p.145).
Em um rápido salto histórico, o ano de 1789 foi o marco na
história da evolução das cidades e da propriedade. A França endividada em razão
da gestão na realeza, com tributação excessiva às baixas camadas da população
estava transformada no caos. Nesse período a França possuía ao redor de 25
milhões de habitantes, sendo que três quartos viviam no meio rural. A população
camponesa, atrelada ao regime feudal, saiu em busca de uma nova forma de viver,
dirigindo-se à cidade de Paris. A capital da França, nesse período, com a média de
162
650 mil habitantes, não possuía condições de infra-estrutura para suportar esse
novo contingente populacional. As ruas da cidade passaram a servir de casa aos
camponeses, desempregados e flagelados que vieram em busca de novas
oportunidades. Paris era a cidade da revolta.
Os pensadores iluministas defendiam a igualdade jurídica e
tributária a todos os cidadãos.
Liberte, Igualité e Fraternité eram os ideais da
Revolução. Surge aí o Estado Liberal, caracterizado pela mínima intervenção na
propriedade e mercado, regulando apenas a estrutura do Estado e os limites do
poder público. Esse tipo de atuação visava à preservação da liberdade individual
com a otimização das relações jurídicas.
A Revolução Francesa simbolizou a ascensão da burguesia,
libertação do homem em relação às rígidas estruturas
hierarquizadas do medievo e ao poder absoluto do monarca do
“Ancien Regime”. À esfera privada coube a persecução das
liberdades individuais e dos interesses egoístas, esfera
pretensamente apolítica. O direito de propriedade, nesse
contexto, surge como baluarte das liberdades individuais contra
a ingerência do Estado. (VARELA apud Costa, 2002, p. 739)
O Estado Liberal provocou o excesso e o abuso de liberdade
por parte dos particulares. Por outro lado, entre as idéias liberais estava a da
imodificabilidade dos contratos, por resultar da manifestação absoluta de vontades,
inequívoca e sem possibilidade de retratação. Isso, de certa forma, levou à
exploração do homem pelo homem, conduta devidamente apoiada e lastreada pelo
sistema liberal.
O período da Revolução Industrial, iniciado na Inglaterra na
segunda metade do século XVIII, foi o ponto de partida para o fenômeno da
massificação social, marco importante na história das cidades. A busca do
desenvolvimento da mecanização levou ao aumento da produção agrícola, assim
como dos bens de consumo industrializados.
Com esse desenvolvimento industrial ocorreu uma nova
transformação urbano-social em razão do processo de migração para as cidades,
163
havendo uma redistribuição populacional e o aumento da massa urbana em busca
de bens e serviços oferecidos nos centros urbanos. Enquanto a população mundial
quadruplica após 1850, a população urbana se multiplica por dez (HARDUEL, 1990,
p. 101). Além disso, esse período foi caracterizado pela aceleração da ocupação do
solo de decorrência do exercício de forma absoluta da titularidade da terra por seus
respectivos proprietários. Esses fatores, entre outros, levaram à densificação dos
centros urbanos com problemas de valorização desigual e desequilíbrio na infraestrutura até então existente.
Todavia, uma das principais características desse processo de
transformação das cidades e do direito de propriedade foi a desvalorização da forma
de atuação da administração pública, especialmente no que se refere ao controle
público do ambiente construído, (ALOCCHIO, 2005, p. 17). Acreditava-se na
possibilidade da correção dos problemas urbanos existentes com ações calculadas,
com a recusa de aceitar as dificuldades próprias do ambiente como um fator
inevitável.
Já na época pós-industrial, à vista dos problemas decorrentes
da transformação das cidades, passou-se a buscar mecanismos de contenção das
conseqüências geradas pela industrialização:
Alguns defeitos mais evidentes da cidade pós-liberal- a
densidade excessiva do centro, a falta de moradias baratassão atenuados por alguns corretivos: os parques públicos (que
oferecem uma amostra artificial do campo, agora inalcançável)
e as “casas populares” construídas com o dinheiro público [...].
Mas
estes
remédios
permanecem
insuficientes:
o
congestionamento e a crise das moradias continuam ou
pioram. (BENEVOLO, 2003, p. 581).
A partir da constatação sobre a evolução acelerada e
desordenada da cidade, a administração pública passou a regular o espaço mínimo
essencial à cidade, administrando a abertura e dimensão mínima para as ruas,
percursos, construindo redes de instalação de esgotos, águas e eletricidade, entre
outras medidas de infra-estrutura básica. Houve sim a valorização e o incremento do
espaço e dos serviços públicos, mas nada comparado à valorização dos terrenos. A
164
utilização dos terrenos urbanizados dependia única e exclusivamente da vontade
dos proprietários que, juntamente com o poder público, direcionavam a morfologia e
o modo de desenvolvimento das cidades.
...a administração atuava apenas de forma indireta, mediante
regulamentos que limitavam as medidas dos edifícios em
relação às medidas dos espaços públicos. Além disso, ocorria
a simples limitação entre os prédios contíguos. Desse modo, os
proprietários retinham toda a valorização gerada pela
intervenção no desenvolvimento da cidade, o que vedava à
administração recuperar os investimentos públicos para a
geração dos serviços urbanos- considerados pagamentos a
fundo perdido. (ALOCCHIO, 2005, p. 20)
Na produção e gestão do espaço urbano o privilégio era dado
à propriedade imobiliária, o que se refletiu, de forma irremediável, na morfologia e no
tecido dos centros urbanos:
Nesta combinação, os interesses da propriedade imobiliáriaparasitários e contrastantes com os interesses do capital
produtivo- são claramente privilegiados. A forma da cidade é a
que torna máxima a renda imobiliária urbana, isto é, a mais rica
de diferenças (um centro mais denso e uma periferia mais rala,
dividida em setores de caráter diverso), mesmo que resulte ser
ineficiente e dispendiosa. O mecanismo urbano está sempre
congestionado, porque os aparelhamentos públicos- ruas,
instalações, serviços- são sempre insuficientes, ao passo que a
exploração dos terrenos particulares alcança ou supera os
máximos fixados pelos regulamentos. (BENEVOLO, 2003, 588)
Ao final do século XVIII surgem novas idéias como reação aos
desequilíbrios urbanos decorrentes da explosão das cidades pela Revolução
Industrial. Várias correntes de pensamento para a transformação das cidades
surgiram com o objetivo de aproximação das denominadas artes maiores do
cotidiano, a busca pela simplificação e funcionalidade decorativas, a aspiração a
uma linguagem única, uniforme e, por isso, universal e o esforço de redenção ao
industrialismo. Nessa linha de pensamento podem ser citados os socialistas utópicos
como Robert Owen, o Conde de Saint Simon, Thomas Morus e Charles Fourier.
165
Além desses, Georges-Eugène Haussmann, e as intervenções na cidade de Paris, e
Ebenezer Howard, com o modelo de cidade-jardim, defendiam a renúncia aos
protótipos clássicos para produzir novos modelos urbanos em consonância com a
época vivida. Essa transformação do protótipo de cidade trazia embutida a forma do
exercício do direito de propriedade, baseado então, no modelo político socialista.
De referir ainda, nessa análise comparativa entre a evolução
das cidades e do direito de propriedade, o surgimento do Estado Social na primeira
metade do século XX, como reflexo da massificação social oriunda, ainda, da
Revolução Industrial. Isso exigiu do Estado o efetivo aumento das formas de
proteção dos cidadãos. Fez-se necessário um Estado prestativo onde houvesse o
reconhecimento dos interesses plurissubjetivos e da multifuncionalidade dos direitos
fundamentais.
Como afirma BONAVIDES (2003, p. 145) a sociedade de
massa, produto das cidades, passou a exigir muito mais do que a abstenção estatal
na esfera das liberdades do indivíduo. O objetivo do Estado do Bem Estar Social era
não apenas a liberdade dos cidadãos, mas a prestação e a garantia de condições
materiais mínimas para a vivência com dignidade, buscando a igualdade entre os
cidadãos, amenizando os problemas decorrentes da massificação social. Com isso a
questão do bem estar social e da qualidade de vida refletiram-se não apenas na
organização sócio-jurídica, mas também na forma de pensar a questão urbana,
agregando-se um novo elemento ao habitar das cidades.
Pode-se dizer seguramente que o advento do Estado Social foi
o grande responsável por estas mudanças na regulação da
propriedade. A partir daquele momento o poder público passou
a aplicar imposições de caráter administrativo, de natureza
civil, ao direito de propriedade.
São concebidas as famosas limitações administrativas e
restrições de vizinhança, que passaram a coibir maus usos da
propriedade, de modo a impedir que a utilização do direito de
propriedade de uns infringisse o direito de propriedade de
outros.(NASSER, 2005)
Ainda no século XX foi relevante o movimento da modernidade
como influente na transformação das cidades, com a defesa da oposição à tradição
166
e à história. Pretendia-se uma ruptura com as condições históricas precedentes, por
meio da destruição daquilo até então existente. O “destruidor criativo” é, nesse
sentido, uma figura heróica. É ele quem leva a extremos vitais a inovação técnica e
social. Além de compreender o espírito de sua época, cabe a ele transformá-la
(SOMEKH, 1997, p. 36). A ruptura e a transformação do passado em algo novo
foram os princípios do movimento modernista:
Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete
aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e
transformação das coisas em redor- mas ao mesmo tempo
ameaça, destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo
o que somos (BERMANN, 1987, p. 40).
Sob outro aspecto, o movimento modernista na arquitetura,
como tal, surgiu como uma reação às condições de mecanização da produção. Em
realidade foi uma reação ao caos e à desordem decorrente da Revolução Industrial,
à industrialização, ao crescimento das cidades e às condições de vida da população
trabalhadora urbana.
A doutrina modernista tinha como objetivo maior a substituição
de uma situação urbana existente, não compreendida e criticada como caos urbano,
por uma nova ordem totalmente lógica-ideal, esquemática e determinística
(NYGAARD, 2005, p. 51). Esse pensamento se traduziu não apenas na forma de
criar a transformar a cidade, mas no de exercer o direito de propriedade marcado
pelo tônus político-socialista. Como exemplo, as propostas de Le Corbisier, La Ville
Contemporaine, em 1922, La Ville Radieuse, no ano seguinte, Chandigar, ou então a
cidade de Brasília, quase corbusiana (HALL, 2005, p. 246). Os traços de cunho
social comum a todos os projetos citados estão traduzidos na proposta, na forma e
na divisão dos espaços de maneira a garantir igualdade de uso do espaço.
Ao propugnar por uma toalha branca (KOPP apud NYGAARD,
2005, p. 125) como forma de definir o novo e o moderno, Le Corbusier não se referia
apenas à arquitetura e ao planejamento urbano, mas buscava através deles o
surgimento de um novo homem, o homem-tipo. Com isso pretendia que o urbanismo
167
transformasse não apenas o espaço das cidades, mas o homem enquanto ser
social.
Mas a nova cidade sindicalista distingue-se por um aspecto
vital: agora todos estarão igualmente coletivizados. Agora
todos irão morar em gigantescos prédios coletivos,
denominados “Unites”; cada família receberá um apartamento
não de acordo com o emprego do chefe da casa, mas com
rígidas normas de espaço; ninguém receberá nem mais nem
menos do que o mínimo necessário para uma existência
eficiente. E agora todos- não apenas a elite afortunada- terão
acesso aos serviços coletivos. A cozinha, a limpeza, o
pajeamento das crianças deixam de ser atribuição da família.
(HALL, 2005: 249)
O planejamento modernista orientado pela racionalidade, pela
técnica e pela burocracia, sem qualquer participação da sociedade, passou a ser
questionado em meados da década de 70. Henry Lefebvre, Manuel Castells e David
Harvey representaram a inovação do debate com o questionamento sobre o papel
da sociedade no planejamento da cidade. Era a defesa da cidade menos
burocrática, mais orgânica, mais social e mais técnica. Era a ênfase no papel da
função social da propriedade.
A cidade dos nossos dias é o produto acumulado de todas as
fases e experiências do decorrer do tempo e da História. É o livro de pedra,
(BENJAMIN, 1985) na medida em que relata e demonstra a evolução da cidade.
Nesse contexto também se insere a evolução do direito de propriedade. Do exercício
eminentemente absoluto ao papel condicionado à função social.
A típica cidade contemporânea está marcada, entre outros,
pelo rápido e desordenado crescimento, pela concentração espacial e pelo
desequilíbrio de infra-estrutura básico no espaço urbano. Esses fatores aliados à
concentração de renda e à valorização da terra reforçaram a desigualdade no uso e
ocupação do solo urbano, favorecendo e especulação imobiliária.
168
Ao longo desses períodos de civilização a cidade sofreu
significativas transformações, quer quanto à sua função morfológica, quer quanto ao
seu papel social. Da mesma forma, o direito de propriedade passou por mudanças
não apenas quanto à sua constituição intrínseca, mas no seu exercício propriamente
dito.
3.
A FUNÇÃO SOCIAL COMO CONDICIONANTE AO EXERCÍCIO DO DIREITO
DE PROPRIEDADE NO BRASIL
O processo de excessiva valorização do direito individual da
propriedade, traduzido pela ótica civilista do exercício desse direito, garantindo ao
titular o uso, gozo e fruição do bem, segundo o jus utendi e abutendi de origem
romana, foi substituído, paulatinamente, pela concepção social da propriedade.
A concepção do Estado Social, na primeira metade do século
XX, trouxe em seu bojo a mudança de paradigma, introduzindo a proteção aos
direitos sociais. Essa transformação alcançou o direito de propriedade que passou a
ser
protegido enquanto direito objetivo assim entendido como a liberdade de o
possuidor usar e utilizar o bem a fim de satisfazer uma necessidade social, e não
individual.
Especificamente no Brasil, a Constituição Federal de 1934, na
esteira do momento histórico, incorporou ao seu bojo a garantia aos alguns direitos
sociais. No que pertine ao direito de propriedade, limitou-se a prever a possibilidade
de desapropriação por necessidade ou utilidade pública.
Artigo.113 - A Constituição assegura a brasileiros e a
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança
individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XXVII- É garantido o direito de propriedade, que não poderá
ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que
a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade
pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa
indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar
169
da propriedade particular até onde o bem público o exija,
ressalvado o direito à indenização ulterior.
A Lei Maior de 1937 estabeleceu que, embora assegurado o
direito de propriedade, seu conteúdo e exercido estariam condicionados às
determinações legais. Foi por meio da Constituição Polaca que se inicia o processo
legal de relativização do direito de propriedade, até então considerado pela ótica
civilista, como absoluto e intocável.
Artigo 122 - A Constituição assegura aos brasileiros e
estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à
segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
[...]
XIV- o direito de propriedade, salvo a desapropriação por
necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.
O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis
que lhe regularem o exercício.
Já a Constituição de 1946 introduziu o conceito de função
social da propriedade ao prever, no artigo 141 e 147, que o uso da propriedade
estaria condicionado ao bem-estar social.
Artigo 141 - A Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
§ 16 - É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por
interesse social, mediante prévia e justa indenização em
dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou
comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar
da propriedade particular, se assim o exigir o bem público,
ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.
Artigo 147 - O uso da propriedade será condicionado ao bemestar social. A lei poderá, com observância do disposto no art.
141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com
igual oportunidade para todos.
A Constituição de 1969 previu a desapropriação por interesse
social, para fins de reforma agrária mediante indenização justa, pagável em títulos
170
da dívida pública, desde que a propriedade rural não contrariasse os princípios
embasadores da ordem econômica e social. Há sim o espírito da função social da
propriedade como princípio orientador de exercício do direito de propriedade.
Artigo 157 - A ordem econômica tem por fim realizar a justiça
social, com base nos seguintes princípios:
[...]
III - função social da propriedade;
Muito embora nas Constituições anteriores esteja inserido,
mesmo que timidamente, o princípio da função social da propriedade, apenas com a
Constituição Federal de 1988 que houve a mudança clara e objetiva do núcleo de
exercício do direito de propriedade. Garantido o direito a propriedade privada pelo
artigo 5º inciso XXII, seu exercício está condicionado ao atendimento da função
social, de acordo com o inciso XXIII, da Constituição Federal. Mais que isso, foi dado
tratamento específico à política urbana nos seguintes termos:
Artigo 182. A política de desenvolvimento urbano, executada
pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais
fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno
desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o
bem- estar de seus habitantes.
§ 1º - O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal,
obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o
instrumento básico da política de desenvolvimento e de
expansão urbana.
§ 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade
expressas no plano diretor.
§ 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com
prévia e justa indenização em dinheiro.
§ 4º - É facultado ao Poder Público municipal, mediante lei
específica para área incluída no plano diretor, exigir, nos
termos da lei federal, do proprietário do solo urbano não
edificado, subutilizado ou não utilizado, que promova seu
adequado aproveitamento,
sob pena, sucessivamente, de:
I - parcelamento ou edificação compulsórios;
II - imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana
progressivo no tempo;
III - desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida
pública de emissão previamente aprovada pelo Senado
Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas
171
anuais, iguais e sucessivas, assegurados o valor real da
indenização e os juros legais.
A partir de então a propriedade não mais possui um fim nela
mesma e o indivíduo passa a ser encarado como um meio para cumprir uma função,
enquanto a propriedade é formada para responder a uma necessidade econômica
(LEAL,1998, p.50). Sendo assim, a função social da propriedade implica em
transformação destinada a incidir diretamente sobre o fundamento dos direitos dos
proprietários e especificamente no conteúdo desse direito (COLLADO, 1979).
O enfoque da propriedade passou a ser a direcionado à
sociedade e não ao proprietário do bem, titular desse direito. A função social da
propriedade apresenta-se de forma difusa no sentido de
dirigir-se a toda a
coletividade, (SAULE JUNIOR, 1999) exigindo do proprietário o exercício desse
direito de forma a atender esse aspecto social.
É como se houvesse uma segmentação da propriedade no
sentido de ter o proprietário que adotar um novo perfil de comportamento a fim de
atender à função social conferido ao exercício do direito de propriedade. É ele, a um
só tempo, titular de direito subjetivo e depositário de deveres de índole social, para
cujo alcance lança mão dos poderes inerentes ao seu domínio (RABAHIE, 1991, p.
233).
Essa alteração intrínseca no direito de propriedade refletiu-se
diretamente nas cidades, uma vez que a valorização da terra urbana decorre não em
razão da sua fertilidade, mas pela sua acessibilidade (GRAU, 1983, p. 72). Com a
valorização urbana, pela disputa de espaços nas cidades, a terra se transformou em
mercadoria (SOMEKH, 2001, p. 82).
Com isso, o exercício do direito de propriedade condicionado
ao atendimento de uma função social acarretou a necessidade de formulação de
regras que, não apenas, ordenassem a cidade, mas garantissem a preservação do
ambiente urbano como um bem único, de titularidade difusa, não mais individual.
172
A par da questão legislativa referente ao direito de propriedade
o crescimento desordenado das cidades, as questões de disparidade de renda, da
valorização excessiva da terra, da especulação imobiliária, da falta de infra-estrutura
suficiente nas cidades para atender às demandas básicas da população são alguns
dos fatores que influenciaram nessa mudança paulatina quanto ao exercício do
direito de propriedade. E nesse sentido os planos diretores, instrumentos básicos de
realização da política urbana, são formas de conformação do exercício do direito de
propriedade do solo (CORREIA, 2001, p. 336).
O paralelo entre a evolução do Estado de Direito, do
crescimento das cidades e da evolução do exercício do direito de propriedade é
essencial à contextualização e entendimento das razões do surgimento de novos
instrumentos jurídico-urbanísticos de política urbana.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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A CIDADE E O DIREITO DE PROPRIEDADE