Orientação Substancial do Direito de Conflitos
Contemporâneo
Song Xiao∗
A evolução do direito de conflitos a nível mundial durante o
século XX não foi plena. O percurso dessa evolução traduziu-se pela
"estabilidade - revolução - desenvolvimento - estabilidade progressiva".
A revolução conflitualista americana denunciou indubitavelmente a
grave crise que o direito de conflitos clássico enfrentava. Depois da
revolução conflitualista, quais as características globais e a tendência da
evolução do direito de conflitos contemporâneo? É esta a questão que o
presente texto vai abordar.
1. A regra "cega" e a revolução conflitualista
(1) O método do bilateralismo no direito de conflitos
contemporâneo
A função fulcral das normas de conflito reside em resolver os
conflitos entre as normas do direito privado de diferentes países e em
regular as relações jurídicas internacionais em matéria civil e comercial.
F. C. von Savigny derrotou o unilateralismo na teoria dos estatutos que
tinha quinhentos anos de história, propondo um novo método que
consistia no bilateralismo das normas de conflito.1 A sua doutrina "the
natural seat of legal relation" tem orientado muitos países europeus que
tomam as regras de conflito bilaterais como ideologia fundamental,
∗
1
Doutorando em direito privado internacional do Instituto de Estudos do Direito
Internacional da Faculdade de Direito da Universidade de Wuhan.
Os métodos do unilateralismo e do bilateralismo são dois métodos fundamentais
para resolver o conflito de leis. O unilateralismo parte da natureza e conteúdo das
regras concretas do direito privado do próprio país, analisando o alcance dos seus
efeitos dentro e fora do país; o bilateralismo parte da relação jurídica que provoca
o conflito, procurando-lhes as normas competentes razoáveis. Para a discrição
pormenorizada dos métodos do unilateralismo e do bilateralismo consultar: F.
Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours (1992 - II),
p. 32 - 43.
1
construindo ramos de direito independentes. As normas de conflito
anglo-saxónicas começaram a ser implementadas tardiamente. Estas
normas foram orientadas pela teoria dos direitos adquiridos de Dicey e
Beal, e com base nelas foram desenvolvidas pouco a pouco muitas
regras de conflito bilaterais que tiveram o elemento geográfico como
elemento de conexão. Os dois sistemas jurídicos acabaram por atingir
o mesmo objectivo.
Na história das normas de conflito, o método do bilateralismo
marcou uma época. Pela primeira vez foi tratado com igualdade o
direito privado dos vários países. A lei do foro deixou de ter
prevalência e ficou numa posição neutra. Sob a orientação das regras
de conflito bilaterais, o direito privado dos diferentes países ultrapassou
as fronteiras e foi aplicado noutros países.2 O "carácter internacional"
das normas de conflito foi assim posto em destaque, o que constituiu
uma exigência intrínseca do seu objecto, i.e., a relação jurídica civil ou
comercial internacional. Outra contribuição muito importante do
método do bilateralismo foi a superação da rigidez da aplicação jurídica
da teoria dos estatutos. A teoria dos estatutos partia geralmente das
regras do direito privado local, explorando o seu âmbito espacial e
temporal de aplicação. No entanto, as regras concretas do direito
privado de um determinado país quase nunca previam expressamente o
seu âmbito espacial e temporal de aplicação internacional, o que
tornava difícil presumir qual o seu âmbito de aplicação. Além disso,
muitas relações jurídicas civis e comerciais a nível internacional não
encontraram as regras de direito privado correspondentes no sistema do
direito privado local. O método do bilateralismo partiu da relação
jurídica que originava o conflito e procurou para cada relação jurídica
um sistema do direito privado com competência razoável, tendo
superado a rigidez da teoria dos estatutos. O método do bilateralismo
estabeleceu as bases do direito de conflitos contemporâneo.
(2) As regras cegas
No século XX, a partir da década de trinta, os estudiosos
americanos do direito de conflitos iniciaram, por influência da escola
do direito realista, uma revolução sobre o direito de conflitos moderno
(clássico). Essa censura atingiu o topo depois da segunda guerra
2
F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours
(1992-II), p. 3.
2
mundial. A escola do direito realista foi a corrente filosófica
americana que exerceu maior influência no século XX. Esta corrente
censura o conceptualismo e o formalismo do direito e defende um
estudo profundo da verdadeira função e dos efeitos práticos do direito
na vida social. As regras de conflito bilaterais foram censuradas
radicalmente devido às suas deficiências intrínsecas. Todo o percurso
da revolução conflitualista foi no sentido de defender que as regras de
conflito bilaterais clássicas podiam ser consideradas regras "cegas",
pois não permitiam encontrar os resultados materiais eventuais do caso.
A "cegueira" devia-se às deficiências do método do bilateralismo, tais
como:
A falta dum pressuposto
O bilateralismo caracterizava-se pela igualdade de tratamento do
direito privado dos diferentes países. O direito do local do foro ocupava
uma posição neutra e as regras do direito privado dos diferentes países
podiam trocar-se e aplicar-se. No entanto, Savigny, fundador do
método do bilateralismo, tinha como pressuposto teórico o conceito da
"homogeneidade ocidental". "Ele considerava que os países cujo direito
tinha origem no direito romano estavam ligados por um laço que
facilitava a aplicação interna do direito estrangeiro. A religião cristã
também fortalecia essa homogeneidade. Para Savigny, a religião
cristã e o direito romano são dois factores que contribuíram para a
homogeneidade das nações ocidentais." 3 Pela homogeneidade do
direito, Savigny deduz que os países têm a obrigação de reconhecer o
regime jurídico dos outros países. É precisamente com base neste
entendimento que ele consegue abandonar radicalmente a tradição do
territorialismo da teoria dos estatutos e preconizar a aplicação das
regras de conflito bilaterais para resolver os problemas de conflitos de
leis existentes nos países com tradição cristã e com origem no direito
romano. Por isso, a visão da igualdade do direito privado de Savigny
caracteriza-se por sinais do centralismo do continente europeu (ou pelo
menos do centralismo ocidental).
As duas guerras mundiais derrotaram o conceito hegemónico e
centralizador da Europa ocidental. Os países orientais e outros de
tradição jurídica e religiões diferentes penetraram na concepção dos
ocidentais sobre o "mundo". Perante os conflitos do direito privado
3
H. Batiffol, Droit International Privé, tradução por Chen Hongwu e outros, Editora
de Traduções Zhong Guo Dui Wai, 1989, p. 331.
3
alargados bruscamente a todo o mundo, os países de religião cristã e
com influência do direito romano deixaram de tratar com igualdade o
direito privado dos diferentes países. Segundo o pensamento de
Savigny o âmbito de aplicação das normas de conflito ultrapassava os
países de religião cristã e cujo direito tinha origem no direito romano,
por isso tornou-se demasiadamente idealista e deixou de ser prático.
Os estudiosos do direito realista puseram em questão profunda as
normas de conflito clássicas por causa desta falta de pressuposto.
Valorização do procedimento e desvalorização do direito material
Através dum elemento de conexão territorial, as regras de conflito
bilaterais submetiam a relação jurídica em matéria civil e comercial
internacional ao sistema de direito privado de certos países. O
elemento de conexão era uma concretização do "seat" da relação
jurídica. A escola de Savigny considerou que esse elemento revelava
a relação de conexão ou subordinação efectivamente existente entre
uma determinada relação jurídica e o direito de certo território4. O
elemento de conexão fazia parte do facto jurídico e a relação jurídica
baseava-se no facto jurídico. Assim um elemento de conexão
adequado podia revelar a natureza de toda a relação jurídica. O
sistema do direito privado orientado pelo elemento de conexão era mais
adequado. Mas isto era a situação ideal, porque na realidade na maior
parte das relações jurídicas, todos os factos jurídicos se misturavam,
por isso não era fácil extrair a parte dos factos jurídicos que tinha um
significado determinante, não sendo possível também encontrar um
elemento de conexão com significado determinante. Na relação
jurídica civil e comercial internacional, os factos jurídicos com
significado determinante dispersavam-se geralmente por diversos
países e não se concentravam num só. Por isso, as regras de conflito
bilaterais de Savigny continham um forte componente de
préexaminismo.
Como faltava à relação jurídica legitimidade quanto à pertença a
determinado
sistema de direito privado, existia uma barreira
insuperável entre a escolha do direito e a aplicação concreta do direito
material. As regras de conflito bilaterais uma vez que valorizavam
apenas o procedimento para a escolha do direito, mas davam pouca
4
Ver F. C. von Savigny, Conflito de Leis e Âmbito de Aplicação Espacial e
Temporal das Regras Jurídicas, tradução por Li Shuangyuan e outros, Editora Fa
Lu, 1991, p. 67.
4
importância à aplicação do direito material, não podiam assim garantir
uma aplicação justa do direito material. O defeito das regras de
conflito bilaterais era valorizar o procedimento e desvalorizar o direito
material, sendo claras quanto ao procedimento e cegas quanto ao direito
material. Estas foram as causas que levaram Cavers a iniciar uma
revolução conflitualista. Segundo Cavers, "Tanto as regras de conflito
teóricas como as regras de conflito práticas tentaram na medida do
possível colocar os problemas jurídicos no âmbito da competência
territorial e não no âmbito da resolução justa de determinadas
causas,…a atribuição do tribunal não é a livre escolha do direito, mas
sim a resolução de determinados litígios…, se não se ultrapassar a
questão de saber de que forma uma escolha jurídica pode afectar a
resolução de conflitos, como é possível fazer uma opção sensata?"5
As regras de conflito bilaterais não conseguem prever o resultado
concreto dos casos. Esta natureza "cega" pode ser considerada um
defeito fundamental das normas de conflito clássicas.
Problema técnico na aplicação das regras de conflito bilaterais
No percurso da aplicação das regras de conflito bilaterais,
existiram muitos problemas técnicos insuperáveis que agravaram o seu
grau de "cegueira". As regras de conflito bilaterais eram adequadas
para os territórios onde coexistiam as tradições do direito romano e da
religião cristã. Existia uma homogeneidade entre os diferentes
direitos privados desses territórios, por isso quando se aplicavam em
transposição, os processos de determinação e interpretação da lei
competente eram semelhantes. O alargamento da visão ocidental do
"mundo" provocou mudanças nos conceitos jurídicos, no pensamento e
até mesmo em toda a tradição jurídica a nível mundial. Para resolver
os conflitos de lei em casos concretos, as regras de conflito bilaterais
enfrentaram conflitos maiores e mais difíceis de superar.
Relativamente a isto, as regras de conflito bilaterais são incompetentes.
Além disso, através do elemento de conexão, as regras de conflito
bilaterais não apontaram para a lei competente concreta mas para todo o
sistema de direito privado de um país, que era considerado "a leap into
5
D. F. Cavers, A Critique of the Choice-of-Law Problem, 47 Harv. L. Rev., 1933.
Ver também G. Parra-Aranguren, General Course of Private International Law,
Recueil des cours, 1988-III, p. 161.
5
darkness"6 (uma queda na escuridão). No vasto sistema do direito
privado estrangeiro, é difícil encontrar uma lei competente que oriente
as regras de conflito, uma vez que estão em causa tradições jurídicas
diferentes. Por isso, as regras de conflito bilaterais apenas ajudam o
juiz a orientar-se numa pequena parte do percurso.
Os problemas gerais das regras de conflito bilaterais, que incluem
a qualificação, o reenvio, a questão do pressuposto e a adaptação da lei
competente, são demasiadamente abstractos e difíceis de dominar,
podemos dizer que existe mesmo uma grande barreira que se ergueu
entre as regras de conflito e a lei competente concreta. Mesmo no
Ocidente, as normas de conflito clássicas são uma grande torre de
marfim. Por tudo isto podemos imaginar quais foram as influências
dessas normas de conflito clássicas na prática judicial da China, que é
um país que só há pouco tempo recebeu o direito ocidental.
(3) Contributos da revolução conflitualista americana
A revolução conflitualista americana iniciou-se no século XX, nos
anos 30, e terminou nos anos 70 com o segundo "restatement of the
conflict of laws". Surgiram entretanto vários estudiosos famosos das
normas de conflito, tais como Cavers, Currie, Ehrenzweig e Reese.
Estes estudiosos fizeram uma censura radical às normas de conflito
clássicas que tinham como sujeito as regras de conflito bilaterais, e
apresentaram as suas doutrinas.7
A "revolução" representou muitas vezes destruição mais do que
construção.
As teorias da revolução conflitualista americana
relativamente à escolha do direito acabaram por se alinhar todas sem
excepção no direito do foro, era a chamada "homeward trend"
(tendência para casa). Um tratamento igual para o direito privado de
todos os países e a colocação do direito do foro numa posição neutra
6
7
F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours,
1992-II, p. 36.
B. Currie apresentou a "doutrina da análise dos interesses estaduais". O objectivo
da doutrina de A. A. Ehrenzweig era considerar a aplicação do direito do foro
como princípio fundamental das normas de conflito, era a chamada "nova doutrina
do direito do foro". W. L. M. Reese apresentou o famoso "princípio da conexão
mais estreita". Para uma descrição mais pormenorizada em chinês sobre a
revolução conflitualista americana, ver Li Hao Pei: A Revolução Americana do
Direito Internacional Privado, in Obras Escolhidas de Li Hao Pei, Editora Direito,
edição de 2001, p. 390-423.
6
trouxeram a vitalidade às normas de conflito. Indubitavelmente, a
"homeward trend" (tendência para casa) significou a decadência das
normas de conflito clássicas e também uma escolha provisória das
normas de conflito durante o período transitório entre a destruição
revolucionária e a reconstrução racional. No mundo contemporâneo,
os sistemas de direito privado dos diferentes países gozam ainda de
autonomia e independência, tendo a relação jurídica do direito civil e
comercial internacional um desenvolvimento mais significativo do que
anteriormente. Os conflitos do direito privado aumentaram em vez de
diminuírem. As normas de conflito clássicas precisam de uma
reforma, assumindo um maior significado histórico.
O significado mais importante da revolução conflitualista
americana residiu em possibilitar às regras de conflito clássicas, cujo
sujeito são as regras de conflito bilaterais, o reconhecimento da sua
maior deficiência, que é a valorização do procedimento para a escolha
do direito em detrimento do resultado da aplicação do direito material.
É impossível eliminar radicalmente a "cegueira" das normas de conflito
no quotidiano em que existe ainda uma exclusão entre a cultura jurídica
e a tradição jurídica, mas as próprias normas de conflito têm que se
esforçar nesse sentido. De facto, a revolução conflitualista não abalou
nem destruiu o fundamento das normas de conflito clássicas. Pelo
contrário, as normas de conflito clássicas deram uma resposta activa
tendo sido criadas novas hipóteses com esta revolução. Nos últimos
vinte anos, muitos países atingiram o auge da produção legislativa no
direito internacional privado;8 baseando-se numa certa manutenção da
tradição do bilateralismo reformulado e absorvendo a excelente
doutrina desenvolvida pela revolução conflitualista. A tendência geral
dos últimos vinte anos tem sido ultrapassar os vícios das "regras cegas"
e diminuir a distância entre o procedimento para a escolha do direito e o
8
As legislações internas mais representativas são: as duas "Restatements of the
Conflict of Laws" dos Estados Unidos de 1971, alteradas em 1986; O Direito
Internacional Privado da Áustria em 1978; o Capítulo VIII dos Princípios Gerais
do Direito Civil da China em 1986; as duas alterações à Lei de Aplicação do
Código Civil da Alemanha em 1986 e 1999; o Direito Internacional Privado
Federal da Suíça de 1987; a Lei de Aplicação das Leis Contratuais da Inglaterra em
1990; as Propostas de Lei do Direito Internacional Privado da Inglaterra em 1995,
etc. Quanto às legislações internacionais, para além duma série de convenções
internacionais produzidas nos últimos vinte anos pela Conferência do Direito
Internacional Privado de Haia, existe ainda a Convenção do Direito Internacional
Privado de Montevidia de 1979 e a Convenção de Roma de 1980 sobre a Lei
Aplicável às Obrigações Contratuais.
7
resultado da aplicação do direito material. É esta a orientação
substancial do direito de conflitos contemporâneo.
2. Primeira orientação
limitada das regras bilaterais
substancial:
exclusão
Partindo da perspectiva do direito de conflitos, o sistema jurídico
dum país divide-se em três tipos de regras: o primeiro tipo de regras
afastam completamente as orientações das regras de conflito e não
admitem que as regras de conflito lhe delimitem o âmbito temporal e
espacial - são as regras do direito público e do direito processual - que
têm assim um componente de territorialidade; o segundo tipo de regras
precisa das regras de conflito para lhes delimitar o âmbito de aplicação
temporal e espacial a nível internacional - são as regras do direito
privado; o terceiro tipo são as próprias regras de conflito.
Para superar o problema da "valorização do procedimento e da
desvalorização do direito material", as normas de conflito
contemporâneas fizeram uma pequena alteração à delimitação atrás
referida. Esta alteração consistiu em extrair uma pequena parte das
regras do segundo tipo, i.e., as regras do direito privado, que se
aplicavam directamente para afastar a aplicação das regras de conflito
bilaterais, garantindo assim a concretização do resultado substancial.
Do ponto de vista da "doutrina da análise dos interesses estaduais", esta
parte das regras representa os grandes interesses do Estado e deve ser
aplicada com prevalência. A clássica cláusula da ordem pública era
um método indirecto desta exclusão, agora temos mais dois métodos de
exclusão directa, que são a exclusão pela restrição constitucional e a
exclusão pelas leis de aplicação imediata.
(1) Exclusão indirecta pela cláusula da ordem pública
Quando as regras de conflito bilaterais apontam para a lei
competente do país estrangeiro, mas em consequência da sua
aplicação são violados os princípios morais e os princípios
fundamentais do direito do foro, afasta-se imediatamente aquela lei, o
que representa a exclusão indirecta da aplicação das regras de conflito
bilaterais. Nas normas de conflito clássicas, todos os resultados
substanciais das normas bilaterais são controlados e analisados por uma
única cláusula da ordem pública. No entanto, a cláusula da ordem
pública é ambígua o que dá ao juiz um grande poder discricionário e
8
geralmente é controlada pelas normas de conflito dos diferentes países.
Caso contrário, a utilização abusiva da cláusula da ordem pública
representaria a derrota do fundamento do bilateralismo e a eliminação
das normas de conflito.
Nestes termos, não é ideal utilizar a cláusula da ordem pública
para aumentar o efeito substancial das normas de conflito. Apesar da
aplicação da cláusula da ordem pública ter afastado indirectamente as
regras de conflito bilaterais, prevenindo o resultado substancial do
desagrado do país do foro, qual será a lei aplicada depois da exclusão
da lei estrangeira competente? Ainda não existe uma resposta lógica,
mas na prática esta matéria é alvo de discussão. A cláusula da ordem
pública serve como medida passiva de prevenção em casos muito
excepcionais e não consegue obter um resultado substancial específico.
É exactamente o contrário do que acontece com a restrição
constitucional e com as " leis de aplicação imediata".
(2) Exclusão pela restrição constitucional
Em alguns âmbitos do direito privado, para conseguir
determinados objectivos políticos ou resultados substanciais, o país do
foro afasta a orientação das normas bilaterais e aplica as disposições
concretas da Constituição. A Constituição é a lei suprema no sistema
jurídico de um país e as normas de conflito são apenas um ramo de
direito. As cláusulas concretas da Constituição podem, portanto,
afastar as correspondentes normas de conflito. Existem dois tipos de
restrição e exclusão das normas de conflito pela Constituição. Um
tipo de restrição é exercida pelos países em que não existe uma
unificação entre o direito privado e as normas de conflito, e que têm
como objectivo fazer face às necessidades de defesa e consolidação das
políticas federais; outro tipo é a restrição exercida pelos países onde
existe um direito privado unificado, e cujo objectivo é reforçar as
cláusulas substanciais da Constituição relativamente à protecção dos
direitos humanos fundamentais9.
Os Estados Unidos é um exemplo típico do primeiro tipo. Cada
Estado tem o seu sistema de direito privado e as suas normas de
conflito. A Constituição Federal constitui uma restrição às normas de
conflito dos diferentes Estados. As cláusulas mais famosas são a "Full
9
P. E. Herzog, Constitutional Limits on Choice of Law, Recueil des cours (1992-III),
p.249-257.
9
Faith and Credit Clause" do nº 1 do artigo 4º e a "Due Process Clause"
do nº 1 do artigo 14º da Constituição Federal revista. Os objectivos
principais destas duas cláusulas são defender e consolidar os Estados
federais, coordenando o seu direito privado e proteger os interesses do
arguido de forma a evitar que lhe seja aplicado um direito privado que
não tenha nenhuma relação com ele. Actualmente, existe uma
tendência para a uniformização dos critérios de aplicação das duas
cláusulas. No caso "Allstate Insurance Co. V. Hague"10, o tribunal
apresentou o seguinte critério: "Para que o direito material de um
Estado seja escolhido e aplicado de acordo com a Constituição, esse
Estado tem que ter uma conexão ou uma série de conexões importantes
com aquele caso processual e a aplicação da norma jurídica tem que
defender simultaneamente os interesses desse Estado para evitar uma
escolha jurídica arbitrária e uma injustiça radical"11. Assim, podemos
ver que o critério de aplicação dos dois princípios da Constituição
Federal absorveu a doutrina da análise dos interesses estaduais de
Currie e o princípio da conexão mais estreita de Reese. Se alguma
regra de conflito dum Estado vier contrariar esses dois princípios, deve
ser afastada, aplicando-se directamente os princípios constitucionais.
Por sua vez, a Alemanha é o exemplo clássico do país com um
direito privado unificado, cuja Constituição restringe e afasta as normas
de conflito. Depois da Segunda Guerra Mundial, por influência da
revolução conflitualista americana, a Alemanha começou a dar atenção
à restrição e exclusão das normas de conflito pela Constituição como
forma de obter efeitos substanciais directos. Isto está representado
plenamente nas cláusulas da lei básica da Alemanha que atribuem
direitos fundamentais aos cidadãos, que são aplicadas directamente,
afastando ou alterando as regras do direito de conflitos clássicas. No
âmbito do direito da família, como as regras de conflito consideravam a
nacionalidade ou o domicílio do marido como o único elemento de
conexão e negligenciavam as normas constitucionais sobre a igualdade
entre homem e mulher, foram imediatamente afastadas. Do mesmo
modo, as normas de conflito que foram determinadas por factores
relacionados com os pais e negligenciavam os interesses dos filhos,
foram substituídas pela lei básica da Alemanha.12
10
11
12
Allstate Insurance Co. V. Hague, 449US (1981).
Peter Hay, Conflict of Laws (2ª edição), West Publication Co. (1994), p.223-234.
F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours
(1992-II), p.97.
10
Como existem no nosso país quatro zonas jurídicas, coexistem
quatro sistemas de direito privado e de normas de conflito que se
confrontam. Devido a razões históricas, não existem na Constituição
nem nas Leis Básicas de Hong Kong e de Macau disposições que
coordenem o direito privado e as normas de conflito dessas quatro
zonas jurídicas, o que constitui uma lacuna da nossa Constituição e das
duas Leis Básicas. Estamos na fase inicial da judicialização da
Constituição e por isso a questão relativa à exclusão das regras de
conflito pelas cláusulas constituicionais para conseguir efeitos
substanciais merece uma profunda discussão.
(3) Exclusão pelas "leis de aplicação imediata"
No sistema de direito privado de qualquer país, existem algumas
regras materiais que, por causa da sua natureza e objectivo legislativo,
têm de afastar-se das regras de conflito bilaterais para serem aplicadas
directamente. Savigny analisou este facto e considerou esta questão a
mais complicada de toda a sua doutrina sobre o direito de conflitos. A
partir daí, o sector do direito privado internacional de França e da Itália
considerou isto uma representação da função activa da ordem pública13.
Depois da Segunda Guerra Mundial, houve um súbito aumento das
intervenções nacionais nas respectivas económicas. Nesta altura
surgiram muitas regras que ficavam na fronteira entre o direito público
e o direito privado clássicos, e que excluiam a aplicação das normas de
conflito para serem aplicadas imediatamente nos casos civis e
comerciais internacionais. No entanto, a aplicação das cláusulas da
ordem pública está geralmente sujeita a restrições rigorosas, cujo
conteúdo está relacionado com a moralidade básica e com os princípios
jurídicos fundamentais. Além disso, a sua função passiva de negação
é mais valorizada. As cláusulas da ordem pública mal conseguiram
enfrentar as novas regras que surgiram depois da Segunda Guerra
Mundial.
Assim, o estudioso francês Francescakis apresentou em 1958 a
doutrina da lei da aplicação imediata que, na sua opinião, compreende
quatro características: a) a sua aplicação não resulta da orientação das
regras de conflito; b) o seu alcance é definido pelo legislador de acordo
com o método do unilateralismo (i.e., de acordo com a sua natureza, o
13
G. Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des
cours (1998-III), p.121-123.
11
seu contexto e o objectivo legislativo); c) as leis de aplicação imediata
tanto podem ser de carácter pessoal como de carácter territorial (do
ponto de vista clássico da teoria dos estatutos); d) são regras
excepcionais para regular as relações do direito privado e
desempenham uma função importante na protecção dos interesses do
Estado.14
Compete às leis de aplicação imediata afastar as regras de conflito
bilaterais, exigindo uma aplicação directa aos casos civis e comerciais
internacionais. Elas consagram os interesses estaduais do local do
foro e as políticas materiais, representando ainda a orientação
substancial do direito de conflitos contemporâneo.
A maior dificuldade para o desenvolvimento da doutrina das leis
de aplicação imediata reside na sua consagração concreta, porque as
normas jurídicas de um país raramente prevêem expressamente a sua
aplicação imediata aos casos civis e comerciais internacionais,
sujeitando-se ao julgamento do juiz conforme a sua natureza, contexto e
objectivo legislativo. Em geral, as leis de aplicação imediata
compreendem as seguintes regras: regras reguladoras da ordem
mercantil, tais como a lei contra a concorrência desleal, a lei de
monopólio, as regras de controle das importações e exportações, as
regras de controle cambial, as regras de revelação de informações sobre
os títulos, etc.; leis sobre a protecção dos interesses das terras nacionais,
tais como as regras que proíbem os estrangeiros de comprar terras
nacionais, as regras sobre a protecção dos campos cultivados; outras
regras de protecção em matéria laboral e de ambiente. Por um lado
estas regras representam os interesses estaduais, por outro prejudicam
em grande medida os interesses dos particulares.
As leis de aplicação imediata aumentaram também na área das leis
contratuais, sendo chamadas muitas vezes de "normas imperativas".
As normas contratuais imperativas contrapõem-se às normas
contratuais facultativas, não podendo o efeito das primeiras ser
diminuído através do contrato. No entanto, nem todas as normas
contratuais imperativas são leis de aplicação imediata. As normas
contratuais imperativas dividem-se em normas imperativas internas e
normas imperativas internacionais.15 As normas imperativas internas
14
15
G. Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des
cours (1998-III), p.129.
T. Hartley, Mandatory Rules in International Contracts: The Common Law
Approach, (266) Recueil des cours (1997), p.346.
12
estão no âmbito de orientação das normas de conflito, o que quer dizer
que as partes contratuais internas não podem diminuir os seus efeitos
através de contratos. As partes contratuais internacionais, por seu
turno, podem excluir os seus efeitos através das regras de conflito.
Como as normas imperativas internacionais não podem ser excluídas
pelas partes contratuais internacionais através dum acordo de escolha
da lei contratual competente, são leis de aplicação imediata no âmbito
do direito contratual.
Se as regras de conflito apontam para o direito privado dum país
estrangeiro, em primeiro lugar devem ser aplicadas as leis de aplicação
imediata desse país. Se, para além do país do foro e do país da lei
competente, um terceiro país tiver uma conexão estreita com o caso, as
leis de aplicação imediata desse terceiro país deverão também ser
consideradas? Relativamente a esta questão, são constantes as
discussões doutrinais e a legislação concreta é conservadora.16
Acabámos de analisar três casos de exclusão das regras de conflito
que revelam a orientação substancial do direito de conflitos
contemporâneo. Quanto à ordem pública, a exclusão é clássica e
indirecta. Relativamente à aplicação das cláusulas da ordem pública, a
atitude tomada a nível internacional é cada vez mais rigorosa e
cautelosa. A restrição constitucional e a exclusão das leis de aplicação
imediata são formas de exclusão imediata que apareceram depois da
Segunda Guerra Mundial e que revelam directamente a procura de
efeitos materiais concretos pelo país do foro. No entanto, comparando
com a aplicação das regras de conflito, as duas últimas formas de
exclusão são excepcionais e limitadas. A sua aplicação abusiva
afectará com certeza o valor fundamental das normas de conflito.
3. Segunda orientação substancial: transformação das
regras de conflito bilaterais
16
Apesar do artigo 7º, nº 1 da Convenção de Roma de 1980, da CEE, sobre a Lei
Aplicável às Obrigações Contratuais ter previsto a consideração das leis de
aplicação imediata dum terceiro país, alguns países como a Inglaterra, França e
Alemanha não concordaram. Em 1985, quando o Instituto Internacional para a
Unificação do Direito Privado elaborou a Convenção das Nações Unidas sobre os
Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias, decidiu não aceitar na
Convenção a aplicação das "leis de aplicação imediata" dum terceiro país. Ver G.
Parra-Aranguren, General Course on Private International Law, Recueil des cours
(1998-III), p. 133.
13
A estrutura das regras de conflito bilaterais clássicas, que é muito
simples, é composta apenas por duas partes: o "âmbito" e a
"conexão".17 As relações jurídicas civis e comerciais internacionais
têm um âmbito limitado e a conexão inclui o elemento territorial e o
sistema de direito privado apontado por esse elemento. Podemos ver,
com base nesta estrutura, que as regras bilaterais clássicas valorizam a
escolha do sistema do direito privado entre os países que têm uma
relação com o caso, e não a escolha do direito material concreto para
resolver os conflitos. Existe ainda uma distância entre o sistema de
direito privado de um país e a lei competente que produz efeitos
substanciais concretos.
As regras bilaterais clássicas não
ultrapassaram esta problemática, o que fazia com que o juiz que
aplicava as normas de conflito "caísse na escuridão". Por isso as
normas bilaterais clássicas são regras "cegas".
A revolução conflitualista americana tentou abolir radicalmente as
regras "cegas" mas não conseguiu. A par disso, noutros lugares,
especialmente na Europa, foram feitas transformações progressivas aos
sujeitos censurados pelos Estados Unidos e foram obtidos bons
resultados. 18 A transformação das regras de conflito bilaterais
consistiu em reduzir a distância entre estas e os efeitos materiais e
transformar as regras de conflito bilaterais em normas de orientação
substancial. Esta transformação reflectiu-se em concreto na aplicação
plena de três novos tipos de regras de conflito bilaterais e cláusulas de
excepcão:
(1) Regras de conflito facultativas
As regras de conflito facultativas são constituídas por dois ou
mais elementos de conexão, em que se pode escolher o direito privado
orientado por um deles para regular a relação jurídica em matéria civil e
comercial internacional.
A aplicação das normas de conflito
facultativas tem como objectivo: alargar os requisitos formais ou
materiais para a validade de certos actos jurídicos, tais como fazer
testamento, contrair matrimónio e celebrar contratos em geral; facilitar
o estabelecimento de certas relações, tais como a legitimação da
filiação da mãe solteira ou outros tipos de filiação e a relação entre os
17
18
Ver Wang Jin, Direito Internacional Privado, Editora Direito, 1999, p. 233.
Symeon C. Symneonides, Private International Law at the End of the 20th Century:
Progress or Regress? General report, Kluwer law International (1988), p.26.
14
cônjuges, etc.; ou até para facilitar a dissolução de certas relações, tal
como o divórcio. Em suma, desde que o sistema de direito privado
orientado por um dos elementos de conexão satisfaça os efeitos
substanciais previstos pelo país do foro, não é necessário ter em conta
que o sistema do direito privado orientado por outros elementos de
conexão tenha previsto ou não efeitos substanciais em contrário.
(2) Regras de conflito sobrepostas
As regras de conflito sobrepostas opõem-se às regras de conflito
facultativas. Quando existem dois ou mais elementos de conexão, os
direitos privados de dois ou mais países orientados por eles devem ser
aplicáveis também às relações jurídicas em matéria civil e comercial
num determinado país. O objectivo da aplicação das regras de
conflito sobrepostas é controlar certos efeitos substanciais. Só quando
se satisfaz simultaneamente as normas do direito privado de dois ou
mais países é que se consegue produzir certos efeitos substanciais.
Geralmente, quando se faz a aplicação sobreposta do direito privado de
dois ou mais países, um deles é o direito privado do foro. Certas
políticas substanciais do foro não preenchem o critério das "leis de
aplicação imediata" da ordem pública, mas aparecem nas normas de
conflito sobrepostas.
(3) Regras de conflito protectivas
O direito privado contemporâneo concede, sem excepção, uma
protecção especial às pessoas numa posição social ou económica
desfavorável. Geralmente, são objecto desta protecção os detentores
de direitos especialmente lesados, consumidores, empregados e
alimentados, que são reconhecidos juridicamente como a parte fraca.
A política de protecção no direito privado estendeu-se também ao
âmbito das normas de conflito, que atribui à parte fraca o direito de
escolher o direito privado que lhe é mais favorável, através das normas
de conflito facultativas, podendo ao mesmo tempo realizar a finalidade
de protecção. As normas de conflito protectivas são as normas de
conflito que prevêem expressamente a aplicação do direito privado
mais favorável ou tendencialmente mais favorável à parte fraca. As
leis do país que tem uma conexão mais estreita unilateralmente com a
parte fraca, tais como as leis do país da nacionalidade e do domicílio
habitual são geralmente consideradas o direito privado tendencialmente
15
mais favorável à parte fraca e portanto é exigida a sua aplicação com
prioridade ou em sobreposição.
Quanto à estrutura dos três tipos de regras de conflito referidos e
comparando-as com as regras de conflito bilaterais clássicas com uma
única estrutura, estas podem ser designadas como "regras de conflito
bilaterais amplas". Quanto ao contexto, essas regras esforçaram-se
por superar a "cegueira" das regras de conflito bilaterais clássicas,
procurando realizar as políticas materiais determinadas pelo país do
foro. No entanto, as políticas substanciais procuradas por esses três
tipos de regras de conflito devem ser as políticas reconhecidas
plenamente a nível internacional,19 que não podem ser aplicadas em
sentido restrito para defender os interesses do próprio país ou dos
particulares do próprio país, prejudicando os interesses do outro país ou
dos particulares do outro país.
(4) As cláusulas de excepção
Perante a realidade duma sociedade que está sempre em mudança,
a lei possui inevitavelmente um certo grau de automatismo e rigidez.
Desde que as normas de conflito tenham como fundamento os
princípios bilaterais da igualdade dos direitos privados, por maior que
seja o esforço para a sua transformação não se pode eliminar
radicalmente o automatismo e a rigidez das regras. Quando o tribunal
não estiver satisfeito com o resultado do direito material orientado pelas
suas próprias regras de conflito, pode recorrer aos meios legislativos
para evitar esse resultado, aparecendo nestas situações as cláusulas de
excepção no direito de conflitos.
As cláusulas de excepção das normas de conflito clássicas
Duma forma rigorosa, as cláusulas de excepção das normas de
conflito clássicas consistiam apenas nas cláusulas da ordem pública que
excluíam indirectamente as normas de conflito que deveriam ser
aplicadas para realizar a finalidade de exclusão. No entanto, as
cláusulas da ordem pública só podem ser aplicadas em determinadas
condições. Portanto, os tribunais procuram sempre outros meios para
realizar a finalidade de exclusão, tais como o regime do reenvio e da
19
F. Vischer, General Course on Private International Law, Recueil des cours
(1992-II), p. 121.
16
qualificação 20 . No entanto, a intenção legislativa do reenvio e da
qualificação não é essa. Esta prática desonesta já foi abandonada
pelos países.
As cláusulas de excepção das normas de conflito contemporâneas
Sendo simultaneamente um princípio fundamental e a principal
cláusula de excepção das normas de conflito contemporâneas, o
princípio da conexão mais estreita tem sido aceite gradualmente pela
doutrina e pelos actos legislativos de diversos países. Em qualquer
ramo de direito, os princípios fundamentais são mais susceptíveis de
serem cláusulas de excepção para superar a rigidez das regras, uma vez
que os princípios são mais flexíveis e amplos e as regras concretas são
consideradas uma realização dos princípios. Quando necessário, os
princípios podem corrigir o resultado injusto das regras 21 . Isto
acontece também com o princípio da conexão mais estreita no âmbito
das normas de conflito. Quando o tribunal não está satisfeito com o
direito material orientado pelas regras de conflito concretas, considera
por suposição que existiam num país leis com uma conexão mais
estreita com o caso concreto e aplica as leis daquele país.
A aplicação de uma parte do princípio da conexão mais estreita
utilizado como uma cláusula de excepção pelas normas de conflito
contemporâneas, revela indubitavelmente a intenção do foro de
procurar determinado resultado substancial. No entanto, a aplicação
do princípio da conexão mais estreita como cláusula de excepção deve
ter um carácter excepcional, porque a sua aplicação abusiva
enfraqueceria o fundamento das normas de conflito.
20
21
Por exemplo, as regras de conflito do país do foro A apontam para o país B.
Como o país do foro não está satisfeito com o resultado da aplicação da lei
competente de B, aproveita as regras de conflito do B para apontar de novo para o
país A ou C para obter um resultado material satisfatório para o foro. Nisto
consiste o aproveitamento do reenvio para realizar a finalidade de exclusão.
Outro exemplo: uma questão civil e comercial internacional deveria ser
identificada como sendo uma relação jurídica do tipo I, mas como a lei competente
orientada pelas regras de conflito do país do foro para regular a relação jurídica I
não é satisfatória para o país do foro, este qualifica intencional e erradamente a
relação jurídica I como relação jurídica do tipo II, obtendo assim um resultado
material satisfatório para o país do foro. Nisto consiste o aproveitamento da
qualificação para realizar a finalidade de exclusão.
Por exemplo, o princípio da boa fé é utilizado muitas vezes como uma cláusula de
excepção para as regras concretas da lei contratual.
17
4. Terceira
orientação
substancial:
alargamento do âmbito da autonomia da vontade
A liberdade contratual é um princípio fundamental reconhecido
pelo direito privado dos diversos países. A liberdade contratual é
representada, no âmbito das normas de conflito, pelo princípio da
autonomia da vontade, i.e., através do acordo das partes, estas escolhem
autonomamente o direito material aplicável aos contratos civis e
comerciais internacionais. A autonomia da vontade é o princípio
fundamental no direito de conflitos dos diversos países para a escolha
da lei contratual. Ela pode prever directamente o resultado jurídico nas
transacções comerciais internacionais e as partes de diferentes países
podem negociar acerca do resultado previsto, diminuindo assim os
custos transaccionais e aumentando a estabilidade das transacções.
Além disso, a autonomia da vontade evita o perigo da sujeição
simultânea dos contratos internacionais mais complexos a tribunais de
diferentes países e à jurisdição do direito privado de diferentes países.
Graças às virtudes da autonomia da vontade, há uma tendência para o
alargamento contínuo do seu âmbito de aplicação nas normas de
conflito contemporâneas.
(1) Alargamento do princípio da autonomia da vontade no
âmbito das normas de conflito clássicas
A autonomia da vontade aplica-se principalmente no âmbito dos
contratos. Relativamente à autonomia da vontade nos contratos gerais
em matéria comercial, a principal tendência actual é diminuir as
restrições que lhe dizem respeito. Isto reflecte-se principalmente no
facto de haver cada vez mais países a admitir tacitamente as cláusulas
facultativas e a admitir que as partes escolham um direito que não tem
nada a ver com o contrato ou com as partes contratuais. Assim,
facilita-se às partes a escolha do direito que lhes é mais favorável e
maximizam-se os proveitos do contrato. Mas isto não implica que a
autonomia da vontade no âmbito contratual não tenha limites. As
razões para a exclusão das normas de conflito gerais também servem
para excluir o direito escolhido pelas partes. Além disso, o princípio
da autonomia da vontade também é limitado por algumas regras de
conflito protectivas (e.g. as regras de conflito protectivas nos contratos
laborais). Duma forma geral, o âmbito do alargamento é obviamente
maior que o âmbito de restrição.
18
A autonomia da vontade está também a alargar o seu âmbito de
aplicação fora do âmbito contratual. Se o que está em causa num
determinado caso são apenas os interesses entre as partes e não os
interesses de terceiros, não há razão para impedir que as partes
escolham por acordo o direito material para acelerar a resolução dos
seus conflitos. Além disso, a igualdade entre o direito privado de
diversos países é o valor fundamental das normas de conflito. A
escolha das partes entre o direito privado de diversos países que se
encontrem ao mesmo nível corresponde à procura dos valores das
normas de conflito. As duas razões acima referidas são fundamentos
razoáveis para o alargamento da autonomia da vontade para fora do
âmbito do direito contratual.22 Actualmente, no âmbito da violação de
direitos, do direito da família, do direito das sucessões e do
fideicomisso, apareceram normas que apontam para a aplicação do
princípio da autonomia da vontade.23 É de referir em especial que,
comparando com a autonomia da vontade no âmbito dos contratos, as
restrições à sua aplicação são maiores. A autonomia da vontade não é
o principal meio de escolha jurídica nesses âmbitos, limitando-se as
partes a escolher livremente entre alguns sistemas jurídicos que têm
uma conexão estreita com o caso.
(2) Alargamento do princípio da autonomia da vontade no
âmbito das "leis de aplicação imediata" e do direito público
As normas de conflito contemporâneas estão a enfrentar uma
difícil problemática teórica, que é a aplicabilidade do direito público
estrangeiro. Esta problemática surgiu do reforço do controlo e da
intervenção económicos dos países depois da Segunda Guerra Mundial,
altura em que foi criada uma zona jurídica na fronteira entre o direito
público e o direito privado com um carácter misto de direito público e
direito privado. O direito público clássico foi excluído desde sempre
do sistema das normas de conflito pela teoria dos estatutos,24 exclusão
22
23
24
F. Vischer, Gerneral Course on Private International Law, Recueil des cours
(1992-II), p. 127.
Ver Xiao Yongping, Das Normas de Conflito, Editora Universidade Wuhan, 1999,
p. 194-198.
A teoria de estatutos de Bartolus distinguiu em primeiro lugar o direito público, o
direito processual e o direito privado, considerando que o direito público e o direito
processual não produzem efeitos externos. Só depois é que fez uma distinção
entre o "direito das pessoas" e o "direito das coisas" no direito privado, abordando
19
essa que ainda se mantém hoje em dia. A problemática reside na
questão de se aplicar ou não, no próprio país, o direito estrangeiro que
exerce controlo e intervém na vida económica. No fundo esta questão
faz parte da problemática das "leis de aplicação imediata" acima
referidas.
As "leis de aplicação imediata" do próprio país devem excluir as
normas de conflito e ser aplicadas com prioridade. Quando as normas
de conflito apontam para uma determinada lei estrangeira, devem
também ter em conta as "leis de aplicação imediata" do próprio país.
Relativamente ao estatuto das "leis de aplicação imediata" de terceiro
país, actualmente os vários países tomam uma atitude reservada.
Agora a questão reside em saber se as partes podem acordar em
escolher as "leis de aplicação imediata" de um certo país,
nomeadamente aquela parte das leis que representam um controlo e
uma intervenção económicos.
Em certos países como os Estados Unidos, a resposta é afirmativa
quanto à questão da aplicação das leis de arbitragem internacional.
Existe um entendimento acerca dos processos nos tribunais segundo o
qual se deve fazer uma distinção entre os casos dos países
desenvolvidos e dos países em vias de desenvolvimento. O regime
jurídico sobre o controlo económico dos países desenvolvidos é mais
completo, por isso estes não devem admitir que as partes escolham,
podendo excluir uma parte das leis, o que prejudicaria os seus
interesses públicos. Pelo contrário, o regime jurídico sobre o controlo
económico dos países em vias de desenvolvimento é mais atrasado,
existindo uma grande quantidade de lacunas em certas áreas, pelo que
esses países devem admitir que as suas partes escolham, podendo assim
ser introduzido o regime jurídico dos países desenvolvidos. Por isso
esta atitude deve ser apoiada e promovida.25
Este ponto de vista, que evidenciou a distância entre a formação
do regime jurídico sobre o controlo económico dos países em vias de
desenvolvimento e dos países desenvolvidos, é obviamente objectivo.
Também pode acontecer que, quando os países em vias de
25
separadamente os seus efeitos externos. Ver H. Batiffol, Droit International Privé,
tradução por Chen Hongwu e outros, Companhia de Tipografia e Tradução Zhong
Guo Dui Wai, 1989, p. 303-308. As normas de conflito posteriores seguiram esta
prática e excluíram sempre o direito público e o direito processual.
P. J. Mcconnaughay, The Scope of Autonomy in International Contracts and its
Relation to Economic Regulation and Development, Columbia Journal of
Transnational Law, Vol. 39, No. 3, 2001, p. 655-656.
20
desenvolvimento admitem a autonomia da vontade das partes,
introduzam directamente o regime jurídico dos países desenvolvidos.
No entanto, este ponto de vista segue indubitavelmente a posição do
centralismo ocidental. Os países em vias de desenvolvimento só
poderiam resolver definitivamente os problemas através duma
aprendizagem esforçada do regime jurídico sobre o controlo económico
dos países desenvolvidos, com o qual tivessem uma certa
homogeneidade, que lhes permitisse elaborar e aperfeiçoar as próprias
leis correspondentes. A introdução das leis através da autonomia da
vontade das partes só pode resolver o problema naquele momento.
Numa perspectiva de longo prazo, o direito do próprio país fica numa
posição subordinada, o que impede o seu aperfeiçoamento. Portanto,
não compensa.
Por isso, o princípio da autonomia da vontade só deve ser aplicado
no âmbito da arbitragem comercial internacional e não deve ser
alargado para o âmbito do direito público e das "leis de aplicação
imediata".
(3) Orientação substancial trazida pelo alargamento da
autonomia da vontade
O alargamento do princípio da autonomia da vontade ao âmbito
das leis de conflito contratuais e doutras normas de conflito exclui mais
uma vez as regras de conflito bilaterais rígidas, possibilitando às partes
a previsão do resultado jurídico substancial. O alargamento da
autonomia da vontade é um método importante para a orientação
substancial das normas de conflito contemporâneas.
No entanto, a orientação substancial trazida pela autonomia da
vontade não tem o mesmo significado que os outros métodos.
Recorrendo à exclusão das normas de conflito e à transformação das
regras bilaterais clássicas, o país do foro tem em conta as suas políticas
fundamentais para a orientação substancial das normas de conflito.
Quando um país admite a autonomia da vontade das partes, não realiza
com isto as suas próprias políticas substanciais. Pelo contrário, as
partes escolhem de acordo com os seus interesses materiais. 26 A
autonomia da vontade acaba por fazer com que os direitos privados de
diversos países, incluindo o direito do país do foro, fiquem numa
26
Symeon C. Symneonides, Private International Law at the End of the 20th Century:
Progress or Regress? General Report, Kluwer Law International (1988), p. 40.
21
posição concorrencial.
5. Conclusão
Os defeitos intrínsecos da "cegueira" das regras de conflito
clássicas resultaram na revolução conflitualista americana.
A
revolução não abalou nem estragou o fundamento do direito de
conflitos clássico. Pelo contrário, o direito de conflitos clássico deu
uma resposta positiva, tendo sido introduzidas algumas novidades. A
orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo é o
resultado principal desta resposta.
A orientação substancial do direito de conflitos contemporâneo é
composta por três aspectos, que são: a exclusão limitada das regras de
conflito, a transformação das regras de conflito bilaterais e o
alargamento do âmbito da autonomia da vontade. Estão implícitos nos
primeiros dois aspectos as políticas substanciais do país do foro e no
terceiro aspecto a escolha autónoma do resultado substancial pelas
partes.
A orientação substancial das normas de conflito contemporâneas
permitiu um aumento formal do grau de flexibilidade na escolha
jurídica. Em termos de valores de orientação, passou-se de uma
justiça conflitual para uma justiça material. A primeira valoriza a
escolha jurídica e procura uma uniformidade no resultado da sentença;
a segunda salienta mais a realização das aspirações razoáveis das partes
e a resolução justa do caso.
O resultado da orientação substancial das normas de conflito
contemporâneas alterou simultaneamente a estrutura plana e uniforme
das normas de conflito clássicas, mormente das regras de conflito
bilaterais. Além das regras de conflito bilaterais, as normas de
conflito contemporâneas também incluem regras novas, tais como as
cláusulas restritivas constitucionais, as "leis de aplicação imediata", as
regras de conflito bilaterais facultativas, repetitivas e protectivas, as
cláusulas da autonomia da vontade com âmbito de aplicação alargado e
as cláusulas de excepção. Em suma, as normas de conflito após a
revolução conflitualista tornaram-se num ramo de direito com regras
abundantes e múltiplos níveis e estruturas. Esta é também uma
orientação para o esforço do direito de conflitos contemporâneo da
China.
22
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Orientação Substancial do Direito de Conflitos Contemporâneo