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Fome: um tema proibido –
últimos escritos de
Josué de Castro
ANNA MARIA DE CASTRO (ORG.)
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, 4.a ed., 239 p.,
R$ 28,00, ISBN 85-200-0663-9
ualquer pesquisa séria sobre a endêmica problemática da fome no
Brasil precisa, necessariamente, considerar a obra de Josué de
Castro (1908, Recife-1973, Paris). Médico por formação, ele é
marco na produção científica sobre a questão da alimentação e
no estudo e denúncia da fome, tendo inovado conceitualmente o estudo em tais áreas. Geografia da Fome, de 1946, é sua publicação mais
conhecida: encontra-se hoje na 14.ª edição no Brasil, sendo traduzida
para 25 idiomas.
Fome: um tema proibido, organizado por Anna Maria de Castro,
socióloga filha de Josué de Castro, projeta o cenário do fim da década
de 1960 e início da de 1970, a partir dos mais recentes escritos dele. A
quarta edição deve-se ao ressurgimento do tema fome, adormecido nas
últimas décadas e que volta agora à pauta impulsionado pelo destaque
às políticas nacionais de segurança alimentar e nutricional. A leitura
desses escritos, bem como de toda a obra de Josué de Castro, mostra
que seus conceitos e propostas continuam atuais e constituem instrumentos indispensáveis para repensar criticamente a exclusão social em
nossos dias, em particular na realidade brasileira e nordestina. O valor
principal da obra de Josué de Castro foi o de revelar o fenômeno da
fome para a humanidade, indicando que são as relações sociais e econômicas, estabelecidas entre os homens, que o produziram e o mantêm.
Os seus escritos fazem compreender a condição humana e seus valores,
numa dimensão transdiciplinar, envolvendo aspectos ecológicos, históricos e sociais.
Essa publicação trata dos temas centrais da pesquisa de Josué de
Castro, porém de forma mais abrangente, relacionado fome aos atuais
conflitos da humanidade. O livro foi organizado, a partir de coletânea
de artigos, ensaios e conferências, em três partes: a fome, desenvolvimento e subdesenvolvimento e geografia da fome.
No capítulo 1 da primeira parte, é apresentado o prefácio do livro
Homens e Caranguejos (1966), no qual o autor, num texto autobiográfico, fala de como o fenômeno se revelou a ele: “O fenômeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos
bairros miseráveis da cidade do Recife (...). A impressão que eu tinha
era que os habitantes dos mangues – homens e caranguejos nascidos à
beira do rio – à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando
mais na lama” (p. 26-27). Assim, ele identifica os homens que, na década de 30, haviam sido expulsos pela seca e pelo latifúndio e passaram a
viver nos mangues, transformando-se em “homens-caranguejo”. Hoje,
Q
MARIA RITA MARQUES DE
OLIVEIRA*
Curso de Nutrição – Faculdade de
Ciências da Saúde (UNIMEP/sp)
*Correspondências: Rod. do Açúcar,
Km 156 – FACIS, 13400-911,
Piracicaba/SP
E-mail: [email protected]
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o homem caranguejo saiu do mangue, tem outros nomes e vive na periferia das grandes cidades.
Ainda na primeira parte, o capítulo 2 aborda a fome e a explosão
demográfica no mundo, criticando os neomalthusianos apavorados
com a explosão demográfica, combatendo-os e apontando a fome
como o fator causador do desequilíbrio da ordem natural ou biológica
no sistema ecológico mundial. O texto é desenvolvido sob dois núcleos
centrais: o primeiro deles parte do princípio biológico da “teleonomia”, a propriedade que têm todos os sistemas vivos de desempenharem suas funções num ritmo e dinâmica que favoreçam ao máximo a
sobrevivência da espécie, visto que os maiores coeficientes de natalidade e mortalidade são encontrados nos países subdesenvolvidos. Entretanto, os índices de sobrevivência são superiores aos de mortalidade,
que o autor atribui a um desenvolvimento tecnológico defeituoso, dissociado do desenvolvimento social, obtido com estratégias de sobrevivência estabelecidas, especialmente, a partir do progresso da
microbiologia e da química. Assim, “embebidas num caldo de antibióticos, as crianças já não morrem no primeiro ano de vida (...). E essa a
causa fundamental da chamada explosão populacional que faz sobreviver um grande número de indivíduos que não vão produzir nada, ou
quase nada, mas vão aumentar as massas populacionais...” (p. 46).
O segundo núcleo está centrado na constatação de que o desenvolvimento tecnológico na época de Josué de Castro já havia atingido patamar para produzir alimentos suficientes para alimentar o planeta.
Considerando-se toda a produção mundial, o déficit energético era então de 15% e a deficiência de proteínas, uma grande preocupação.
Hoje em dia, como naquela época, dois terços da humanidade passam
fome, enquanto a produção mundial de alimentos teve aumentos expressivos, especialmente nos países desenvolvidos, assim como a deficiência protéica já não nos preocupa como antes. No Brasil, as diferenças
sociais se ampliaram, o número de excluídos cresceu, junto com o aumento da expectativa de vida. O valor médio de energia disponível
para consumo da população também aumentou, assim como os índices
de obesidade e doenças crônicas. As deficiências nutricionais da população brasileira descritas por Josué de Castro, com base na metodologia
da época, não apresentam mais o mesmo perfil, nem por isso deixaram
de ser preocupantes. Se antes a fome e a pobreza representavam o resultado do neocolonialismo, atualmente representam o resultado do
processo de globalização da economia neoliberal.
No capítulo 3 da primeira parte a fome é apresentada como uma
forma social capaz de desestabilizar a paz mundial. Josué de Castro dividia a sociedade entre os que não dormem porque têm fome e os que
comem, mas não dormem com medo dos que têm fome. Fala das implicações da fome coletiva sobre a personalidade humana: é nos períodos de catástrofes e de fome que aparecem os bandidos e os santos, o
que explicaria o surgimento dos cangaceiros e dos místicos religiosos
tão característicos do Nordeste. A baixíssima capacidade de produção e
de compra das populações famintas compõe “massas parasitas que pesam bastante em um dos pratos da economia mundial”, constituindo-se
em centros de agitação social.
A parte dois do livro é composta por três capítulos que abordam estratégias para o desenvolvimento, a ciência e a poluição. Nas palavras
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de Josué de Castro, “Na verdade o subdesenvolvimento não é a ausência de desenvolvimento, mas o produto de um tipo universal de desenvolvimento mal conduzido. (...) Só há um tipo de verdadeiro
desenvolvimento: o desenvolvimento do homem” (p. 104-105). O fracasso dos planos de desenvolvimento dos países subdesenvolvidos é
atribuído às leis que regem o comércio internacional, à ajuda insuficiente dos organismos internacionais, à má utilização dos recursos, à instabilidade e ilegitimidade dos governos e à falta de um projeto efetivo de
desenvolvimento nesses países. Hoje, temos um governo mais estável,
eleito pelo voto da maioria, a confiança dos investidores mundiais vem
aumentando, a economia apresenta ares de melhora, mas o índice de
desenvolvimento humano nem as reformas necessárias ao impulso desses índices aconteceram. Para Josué de Castro “Crescer é uma coisa; desenvolver, outra. Crescer é, em linhas gerais, fácil. Desenvolver
equilibradamente, difícil. Tão difícil que nenhum país do mundo conseguiu ainda” (p. 136).
A terceira e última parte do livro trata da geografia da fome, apresentando em seu primeiro capítulo a introdução do livro Sete Palmos de
Terra e um Caixão, escrito especialmente a pedido de uma editora americana. Apresenta a sua sociologia participante do autor, oposta à sociologia clássica, na busca de um retrato sociológico do Nordeste,
apontando-o como uma área de tensão, de certa forma ameaçadora,
que estaria chamando a atenção dos dirigentes do mundo. O segundo
capítulo apresenta uma avaliação da Conferência de Nova Déli sobre o
Comércio e o Desenvolvimento (1968), relacionando-a ao encontro de
Bandung (1955), “Conferência dos Povos de Cor”, que representou o
marco para a tomada de consciência para a questão da fome no mundo. No intervalo entre as duas conferências, o desenvolvimento econômico e os auxílios dos países ricos aos países pobres ficaram muito
aquém do desejado. O propósito da Conferência de Nova Déli – o de
discutir e estabelecer normas mais justas para o comercio internacional
– foi mais uma vez deixado em último plano. Entretanto, a conferência
teve sua importância política, evidenciando as diferenças entre os dois
mundos.
O livro traz ainda uma cronologia da vida e obra de Josué de Castro, que, se estivesse vivo, veria que a exclusão social imposta pelo atual
modelo de desenvolvimento é, sem dúvida, ainda maior e mais desafiadora que em sua época.
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