BURKE, Peter, Variedades de história cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
318 p.
Silvia Sasaki
Mestranda em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
Nesta obra, Burke faz uma coletânea de ensaios, dispostos em onze capítulos, discutindo
algumas das muitas variedades de história cultural, com o objetivo de demonstrar que o
questionamento da forma clássica de tal modo de fazer história resultou em uma multiplicidade de
abordagens e objetos, bem como suscitou a importância da interdisciplinaridade para embasar a
emergência destes novos dimensionamentos.
Para o autor, o significado de cultura, diante das mais possíveis traduções e empregos, só
pode ser definida em termos de nossa própria história, diferenciando-se conforme as regiões,
costumes e épocas. Porém, mesmo sabendo que toda cultura tem uma história, o termo história
cultural remonta a fins do século XVIII, na Alemanha186.
O primeiro capítulo trata das origens da história cultural e as possíveis identidades do tema.
No conjunto em que a história cultural aborda, as histórias da literatura, das artes e das línguas
emergiram como efeitos do Renascimento, interligando cultura e sociedade. O fato é que as
diferenças entre costumes – rudes ou requintados – estavam associadas também aos diferentes modos
de pensamento, onde as civilidades estavam ligadas ao intelecto. Assim, enquanto os alemães
centravam-se em cultura, os franceses usavam a expressão como “o progresso do espírito humano”.
Para o segundo capítulo, Burke explicita as possíveis subjetividades abarcadas pela história
cultural, principalmente o reconhecimento dos territórios oníricos, reivindicados pelos historiadores
das últimas gerações, como Michel Foucault. O ensaio apresentado neste capítulo defende a
possibilidade de “uma história dos próprios sonhos” (BURKE, 2006: 41) e suas implicações
metodológicas e investigativas. O fato é que o autor concluiu que os sonhos são uma fonte em
potencial para analisar a história cultural. Com cautela, este universo onírico de símbolos pode ser
tratado em conjunto, como indícios para os historiadores, categorizando e comparando-os a fim de
uma possível interpretação cultural dos sonhos.
186
Na década de 1780, entrou em uso geral na Alemanha o termo kultur.
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O ensaio seguinte trata do delicado embate entre história e memória. Burke intitula tal
capítulo como “História e memória social”, apontando desta forma um resumo dos complexos meios
pelos quais se recorda e se registra o passado. Um dos problemas levantados é o da memória
individual e coletiva, onde uma influencia a outra formando as estruturas sociais e culturais. Além
disso, cinco variedades de meios de comunicação nas organizações das memórias são analisadas: as
tradições orais; a ação do historiador; as imagens; os rituais e os espaços. E para finalizar o capítulo,
o autor demonstra os usos da amnésia social como uma obliteração de memórias em conflito, onde o
historiador, em alguns casos, desempenha o papel de lembrar às pessoas o que muitas delas
gostariam de ter esquecido.
Para o terceiro ensaio, é suscitada uma interessante abordagem sobre o estudo da linguagem
gestual, como um subsistema inserido em uma estrutura maior de comunicação: a própria cultura.
Embora o autor tenha feito tal abordagem culturalista com foco na Itália, este caminho que tem os
gestos e o controle do corpo como objetos são indícios de comportamento e conivência com a cultura
social, isto é, relativizam a própria cultura e sua história (já que os gestos também se modificam em
relação ao tempo).
Assim como os gestos, o riso também tem sua importância na história sociocultural. Tão
aplicável quanto os modos à mesa, o chiste tem muito a dizer de cada cultura e de cada geração. O
riso, portanto, é tratado pelo autor como uma medida social, revelando determinadas tensões em
culturas diferentes. A idéia do cômico como cultura material parte do pressuposto de que é
impossível reprimir de todo o riso, bem como as mudanças nas convenções sociais. Isto é, o riso é
reflexo dos objetos de seu tempo, seja ironizando, subvertendo ou comicizando, com significados
que mudam com o decorrer do tempo.
No ensaio seguinte, Burke apresenta os diários e correspondências de viagens como fontes
para a história cultural. A possibilidade de se colocar tanto o leitor quanto o historiador no lugar do
viajante - e ver através dos olhos deste, experimentando como se fosse o próprio – é tentadora, mas
deve ser levada com precaução. Isto porque os limites entre estranhamento e preconceitos são muito
tênues e podem se emaranhar, levando às enganosas interpretações. Contudo, o autor tenta evitar os
perigos opostos do construtivismo e do positivismo, abordando estas narrativas como documentos
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preciosos para a história, percebendo que as distancias culturais também são percepções importantes,
desde que corretamente tratadas.
A importância do urbano e das cidades em geral como material para a história é debatida no
sétimo ensaio. O valor atribuído à vida privada tem como espaço referencial também os lugares
públicos, onde um encontra-se imbricado no outro. Logo, os espaços urbanos – sejam no concerne do
público ou privado – são lugares de cultura, onde os sujeitos atuam e agem na construção e
manutenção da história, através das estruturas sociais e políticas. Tal temática tem certa continuidade
no oitavo capítulo, pois Burke, dentro dos espaços das cidades italianas, analisa as diferenciações e
aproximações entre cultura popular e erudita. O fato é que elementos eruditos e populares transitam
nas estruturas sociais, cabendo aos historiadores e estudiosos em geral reconhecerem os
poliformismos destes processos.
Extrapolando fronteiras, o autor evidencia a América Latina como inserção do Novo Mundo,
no nono ensaio. Interessantemente, Burke inicia sua análise com os romances de cavalaria, de fins do
século XIX, e como estes estão presentes no Brasil em forma de literatura de cordel, desde o mesmo
período. A maior importância desta abordagem está na persistência dos temas, geralmente
estruturados em termos de tradições culturais e condições sociais que favorecem a manutenção
dessas tradições.
Continuando seus ensaios sobre o Brasil, no penúltimo capítulo é feita uma abordagem do
Carnaval brasileiro como objeto legitimo e recorrente da própria cultura do país. A partir de uma
visão estrangeira, Burke discute a interação cultural entre diferentes grupos, afirmando que, no caso
do Brasil, um processo de redescoberta da cultura popular esteja evidenciando novas estruturas de
valorizações, principalmente a afro – americana por parte das elites, como uma “re-africanização do
Carnaval” (BURKE, 2006: 230).
Em sua conclusão, o autor afirma que estes novos estudos culturais – como uma “virada
cultural” (BURKE, 2006: 233) – florescem no âmbito das humanidades, onde os estudiosos se
definem como pesquisadores das mais diversas possibilidades de “culturas” (cultura visual, cultura
da ciência, cultura política e outras). Tantas variedades praticadas desde o fim do século XVIII, para
Burke, ainda não estão estabelecidas de maneira tão sólida, mas evocam sua importância. Diante de
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tantos questionamentos, em uma era de fragmentações e relativismos, a história cultural se
demonstra essencialmente necessária não somente para dar respaldo aos novos interesses por parte
dos historiadores e estudiosos, promovendo respostas às fraquezas de paradigmas anteriores, mas
também para dar vozes àqueles antes vistos como uma grande unidade massificada, como se não
houvesse diferenciações entre os grupos e indivíduos.
A história cultura se demonstra como uma possibilidade de tradução do passado, tornando
esta inteligível ao presente, pois ao invés de uma opção somente pela alteridade, onde a oposição é a
forma redutível de percepção, esta se demonstra como uma abordagem dos distanciamentos culturais
– ao invés dos “choques culturais” - minimizando as diferenças. O que antes era marginal é
deslocado para o centro dos olhares, redefinindo as fronteiras entre cultural e social. Não se trata de
homogeneizações, mas sim de encontros culturais nos quais as diferenças são perceptíveis e não
anuladas, onde as fronteiras são atravessadas por repetidas vezes, em um processo de interação entre
diferentes subculturas - embora o termo empregado pelo autor pareça, neste contexto, tão pejorativo.
Por fim, e também por falta de uma definição exata para cultura, tanto Burke quanto os interessados
nestas questões galgam uma concepção de bricolagem cultural, onde o processo de assimilação e
apropriação deslocam-se como essências para suas abordagens.
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