Quando as Cláusulas Compromissórias Demandam Interpretação1
A cláusula compromissória inserida em contrato ou em documento apartado,
classificada como incompleta, ambígua, contraditória etc., não se verifica
apenas em contratos domésticos ou se revelar um problema exclusivamente
de direito brasileiro, mas ocorre em âmbito mundial e em contratos que
regulam relações complexas e com altos valores envolvidos.
É muito comum se deparar com cláusula compromissória que nomeia
incorretamente a instituição arbitral ou que inclui referência equivocada quanto
à sua designação, tal como comumente ocorre com a Câmara de Mediação e
Arbitragem da FIESP (como é conhecida e divulgada), quando o correto é
Câmara de Mediação e Arbitragem do Centro e Federação das Indústrias de
São Paulo, atualmente denominada Câmara de Mediação, Conciliação e
Arbitragem do Centro e Federação das Indústrias do Estado de São Paulo –
CIESP/FIESP, ou quando indica equivocadamente o local sede da instituição
etc. Outro equívoco muito comum, é prever os métodos extrajudiciais de
solução
de
conflitos
autocompositivos
(mediação
e
conciliação)
e/ou
arbitragem (método heterocompositivo), como por exemplo, “as partes
indicam a mediação ou arbitragem para solucionar definitivamente os conflitos
surgidos em decorrência da interpretação ou execução do contrato” e no
mesmo instrumento, às vezes, ainda indicam o foro (judicial) competente.2
Enfim, como a cláusula compromissória é denominada de “cláusula da meia
noite” no sentido de que sua inclusão em contrato que foi precedido de longas
negociações e, às vezes, durante muitos meses, sua inserção no contrato se
1 1
Artigo publicado na Revista Direito ao Ponto, Arbitragem e Mediação, Edição Especial II – Câmara de
Conciliação, Mediação e Arbitragem de Sâo paulo CIESP/FIESP, Ano 4, Nº 7, 2011, p.13/14.
2
Cf nosso artigo “Cláusulas arbitrais ambíguas ou contraditórias e a interpretação da vontade
das partes”, In: Reflexões sobre Arbitragem, in memoriam do Desembagador CláudioVianna de
Lima, Pedro B MARTINS eE José Maria R. GARCEZ (orgs.), Sáo Paulo: LTr, 2002, p. 188/208.
Também disponível em www.selmalemes.com.br , seção de artigos.
1
verifica quando todos já estão estafados e se lembram de sua existência ( pois,
praticamente, é regra nos contratos comerciais, financeiros, acordo de
acionistas etc). Nesse passo, simplesmente copiam a cláusula de um outro
contrato (sem a análise necessária quanto à conveniência do local da
arbitragem e o direito aplicável) ou inovam de modo a negligenciar na redação
da cláusula. Fatalmente, surgido o conflito, a redação da cláusula gerará
problemas para a sua operacionalização. Tal proceder imporá a instauração de
um “contencioso parasita”, pois em vez de se instaurar a arbitragem para
solucionar o conflito surgido, as partes previamente terão que se por em
acordo quanto à forma de operacionalizar a arbitragem. Prevê-se, neste
momento, quase sempre um impasse, pois se as partes já divergem quanto ao
cumprimento
do
contrato,
imaginem
o
que
ocorrerá
com
a
cláusula
compromissória.
Foi pensando nessa situação que o legislador dispôs a respeito nos arts. 6º e
7º da lei n. 9.307/96 (Lei de Arbitragem), ao estabelecer o procedimento de
suporte para instaurar a arbitragem diante de cláusulas arbitrais vazias. Mas
mais do que isso, o legislador no afã de ser coerente com a sistemática
arbitral, previu e regulou a forma pela qual se prioriza a essência do instituto
da arbitragem como forma extrajudicial de solução de conflitos e transfere
obrigatoriamente aos árbitros a competência para avaliar e interpretar se
aquela cláusula, a princípio considerada doente, teria salvação ou não.
É neste sentido que a doutrina nacional e a jurisprudência firmaram conceitos
escorados em princípios jurídicos que auxiliam na interpretação da cláusula. O
primeiro norte a seguir é o art. 112 do Código Civil (CC) “nas declarações de
vontade se atenderá mais a intenção nelas consubstanciada do que ao sentido
literal da linguagem”. A partir desse enunciado, competirá ao intérprete aferir
qual foi a real intenção das partes num contrato, que poderia simplesmente
seguir o rumo natural (eleição de foro) ou, por vontade das partes, dispõem e
mencionam a conciliação, mediação e/ou a arbitragem, bem como a
concomitância de foro (comarca) para solucionar os impasses surgidos em
2
decorrência
daquele
contrato.
Neste
mister
hermenêutico,
por
óbvio,
considera-se igualmente o principio da boa-fé, que está na base do direito
contratual (art.113 do CC).
A primeira ilação obrigatória a influenciar qualquer regra de hermenêutica na
área arbitral é que ninguém incluiria, em sã consciência, as formas
autocompositivas ou heterocompositivas de solução extrajudicial de conflitos
se não tivesse minimamente a intenção de utilizá-las.
É com base nessas premissas que a doutrina nacional e internacional, e a
jurisprudência
doméstica
e
comparada
desenvolveram
dois
conceitos
importantes como critérios interpretativos dessas cláusulas. O primeiro é
sempre procurar empreender uma interpretação que busque um efeito útil
(princípio do efeito útil ou da efetividade) para a “cláusula compromissória
patológica”, tal como cunhada por Frederic Eismamm, em vez daquele que não
imprima nenhum.3
Assim é que se busca dar razoabilidade às cláusulas que indicam, por exemplo,
a arbitragem e a eleição de foro. Neste caso, se firma o entendimento que
ambas podem conviver harmoniosamente e não são excludentes, pois, à luz do
disposto nos arts. 7º, 16, § 2º, 22, §§ 2º e 4º; 31 etc. da Lei de arbitragem,
foi instituído todo um sistema de apoio, prévio ou no curso da arbitragem, em
que árbitros e juízes agem em cooperação, seja para instituir a arbitragem,
seja para auxiliar na execução de uma medida cautelar determinada pelos
árbitros etc.
Esta foi a conclusão a que chegou o ministro do Superior Tribunal de Justiça STJ Aldir Passarinho no julgamento do Conflito de Competência n. 111.230 –
DF em 02.08.2010. Na mesma linha, o ministro Sidnei Beneti do STJ
em
brilhante artigo sobre a “Arbitragem e a Tutela de Urgência” aduz “...neste
ponto curiosa constatação: a arbitragem, que vem auxiliar na jurisdição
estatal, aliviar-lhe a carga de trabalho na composição das massas de lides, não
3
A interpretação segundo o efeito útil está regulada no art. 1157 do CC francês, ao dispor que
quando uma cláusula é suscetível de dois sentidos, devemos dar preferência àquele que possa
produzir um efeito útil, em lugar daquele que não possa produzir nenhum. Preceito similar é
encontrado no art. 131 do antigo Código Comercial brasileiro, mantido em vigor como regra de
hermenêutica de bom senso.
3
pode prescindir totalmente desta, da jurisdição estatal, para efetivar-se e
consolidar-se.”4
Portanto, a conclusão útil e razoável que se chega quando diante de cláusula
que elege a arbitragem e o foro é inconcussa: as partes tiveram a intenção de
solucionar os conflitos oriundos do contrato por arbitragem e já se antecipam e
indicam também o foro judicial para as medidas de apoio antes e no curso da
arbitragem.
A utilização do princípio de interpretação pró-validade da cláusula
compromissória também se verifica na linha do acima aduzido, pois a
interpretação é efetuada atentando para o critério da especialidade, ou seja, se
previsto a arbitragem em detrimento da regra comum, é autorizado inferir que
se dá prevalência à arbitragem. Foi nesse sentido que uma das pioneiras
decisões judiciais brasileiras na matéria se inclinou, pois entendeu o Tribunal
de Justiça de São Paulo, em caso que havia a menção às regras de arbitragem
da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional,
conjuntamente
com
a
indicação
de
foro
(Agravo
de
Instrumento
n.
124.217.4/0, da Quinta Câmara de Direito Privado, em 16.09.99), que
prevalecia a arbitragem: “as cláusulas que se possam mostrar conflitantes
devem ser interpretadas e estudadas na sua particularidade e não na
generosidade do combinado”.
Portanto, similar interpretação pode ser dada às clausulas que, por exemplo,
mencionam a mediação ou a arbitragem, já que não se há de confundir o
método extrajudicial autocompositivo que pode ser instaurado previamente,
com o método heterocompositivo substituto da jurisdição estatal. Cada
instituto tem suas especificidades e não são conflitantes, mas coadjuvantes e
estão consentâneos com os demais instrumentos jurídicos que fomentam a paz
social.
Enfim, diante de cláusulas compromissórias que não são absolutamente
consideradas cheias, o intérprete deve fazer uso dos princípios acima citados,
seja
previamente
e
prima
facie
pela
instituição
de
arbitragem,
seja
obrigatoriamente pelo árbitro (art. 8. p. único da Lei n. 9.307/96) e, em último
4
Revista do Advogado, Associação dos Advogados de São Paulo - AASP, n. 87, setembro de
2008, p. 101.
4
lugar quando se mostra inviável aplicar o art. 8, ao judiciário dando vigência
aos arts. 6 e 7 da Lei n. 9.307/96.
Selma Maria Ferreira Lemes, professora de arbitragem do GVLAW da Escola
de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas – DIREITO/FGV. Membro
da Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional CCI. Integrou a Comissão Relatora da Lei de Arbitragem.
5
Download

Leia o texto.