Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política Habitacional
Autoria: Danielle Cavalcanti Klintowitz, Maria Fernanda Alessio
Resumo
Objetiva-se analisar a política habitacional brasileira a partir da teoria do federalismo,
mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais das últimas décadas
influenciaram o desenho da política habitacional, que hora teve como principal protagonista o
governo federal, hora os governos subnacionais. Analisa-se primeiramente os arranjos
institucionais construídos no âmbito federal, seguindo para uma análise das mesmas questões
no âmbito estatual, com foco no Estado de São Paulo, a fim compreender de que modo a
União influencia a formação dos arranjos institucionais e desenho das políticas públicas
subnacionais.
Introdução
A política habitacional no Brasil teve um caminho descontínuo, desde seu início na década de
1960i, tendo sido marcada por períodos de extrema centralização no governo federal e por
outros períodos de maior protagonismo dos governos locais. Enquanto, durante o Regime
Militar, as relações intergovernamentais do Estado brasileiro eram mais similares às formas
que caracterizam um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações, a partir
da redemocratização, em meados da década de 1980, esta política, como outras políticas
sociais, começa a ser repensada sob a perspectiva da descentralização. Em cada um destes
momentos, pode-se observar diferenças significativas nas relações intergovernamentais, tanto
verticais – caracterizadas pelas relações entre União, Estados e Municípios - como horizontais
- caracterizadas pelas relações entre entes com a mesma hierarquia (Estados/Estados e
Municípios/Municípios), que marcaram, em grande medida, a trajetória da política pública de
habitação.
O presente trabalho objetiva analisar a política habitacional no Brasil a partir da teoria do
federalismo, mostrando de que modo os diferentes arranjos institucionais, ao longo das
últimas décadas, influenciaram o desenho das políticas públicas na área habitacional.
Recortamos o período que vai desde o Regime Militar até os dias atuais, quando é possível
observar um movimento de maior coordenação dos entes federativos para a formulação e
implementação das políticas habitacionais. Analisa-se primeiramente os diferentes arranjos
institucionais construídos no âmbito federal e seu impacto no percurso da política nacional,
seguindo para uma análise das mesmas questões no âmbito estatual, como foco no Estado de
São Paulo, a fim compreender como os arranjos institucionais de uma determinada política
pública, construídos na esfera federal, relacionam-se com a trajetória tanto dos arranjos
institucionais, como da própria política pública, nos outros níveis federativos. Como
referenciais teóricos para análise das relações intergovernamentais foram utilizados os
modelos de Wright e Pierson, que apresentam três classificações de autoridade: independente,
interdependente e hierárquica.
Modelos Teóricos de Wright e Pierson
No Modelo de Wright (1988), o termo relações intergovernamentais engloba todas as
possíveis relações entre os governos (tanto horizontais como verticais), sendo, portanto, um
termo mais amplo que federalismo. Este último, bastante adotado na literatura norteamericana, considera exclusivamente as relações entre estados e governo federal. Além disso,
Wright (1988) destaca, além do caráter institucional das relações intergovernamentais, o papel
dos atores no desenvolvimento dessas relações; esta atenção dada aos atores nos estudos sobre
as relações intergovernamentais é, possivelmente, uma das principais contribuições à análise
de políticas públicas, pois ultrapassa o aspecto institucional, até então considerado elemento
central no desenho das políticas públicas, ao considerar a interação de tais variáveis
institucionais com elementos advindos da ação dos atores (SANO, 2008).
Além do peso atribuído ao papel dos atores, Wright (1988) utiliza outras duas categorias
básicas para análise das relações intergovernamentais, relacionadas à divisão de poder numa
federação: unidades governamentais (ou governos subnacionais) e critérios de financiamento
das políticas públicas. A partir destas categorias, Wright (1988) desenvolve modelos para
representar a distribuição do poder em sistemas federativos e analisar a relação entre os
governos; tais modelos procuram identificar e compreender as formas de interação que podem
ocorrer em um sistema federativo e são classificados em: autoridade independente, autoridade
inclusiva e autoridade interdependente.
No modelo de autoridade independente ou autoridade dual, os governos manteriam um
relacionamento de total independência e autonomia, o que seria possível em situações nas
2
quais existe completa clareza acerca dos papéis de cada uma das esferas de governo. Este
modelo é similar ao federalismo dual ou layer-cake (Pierson, 1995), segundo o qual diferentes
esferas são responsáveis, de forma estanque, por problemas específicos de uma política
pública (Sano, 2008).
No modelo de autoridade inclusiva, autoridade hierárquica ou autoridade centralizada, o
escopo de atuação dos governos subnacionais depende totalmente das decisões tomadas pelo
governo nacional. Desta forma, estados e municípios acabam por se configurar como
unidades administrativas e o governo nacional centraliza todas as decisões, estabelecendo
uma relação hierárquica.
Já o modelo de autoridade interdependente, também denominado de autoridade sobreposta ou
coordenada, apresenta três características principais: 1) duas ou três esferas de governos
podem atuar simultaneamente numa mesma questão; 2) as áreas de autonomia exclusiva de
ação ou de jurisdição única são reduzidas e seriam espaços de ação similares ao modelo de
autoridade independente e; 3) o poder e a influência disponíveis a qualquer esfera de governo
são limitados, criando um padrão de autoridade em que prevalece a barganha, entendida como
a necessidade de acordos ou trocas.
Segundo Sano (2008), as três formas de autoridade identificadas por Wright (1988) estão
presentes nas relações intergovernamentais; porém, com o aumento da sobreposição entre
políticas e governos nas federações contemporâneas, cresce também a necessidade de maior
coordenação nas ações, algo mais próximo do modelo de autoridade interdependente.
Entretanto, mesmo nesse cenário, as formas dual e hierárquica permanecem nos países
federativos, até porque certa dualidade é necessária para manter a autonomia e os direitos dos
pactuantes de uma federação, ao passo que certo grau de inclusividade é fundamental em
federações mais heterogêneas e desiguais.
O modelo de Wright (1988) constrói uma tipologia interessante e bastante operacionalizálvel
para entender as diferentes possibilidades de coordenação numa federação. Contudo, este
autor não desenvolve um modelo analítico que permita identificar as variáveis que mais
afetam a produção de determinados arranjos federativos. Esta contribuição é fornecida por
Paul Pierson (1995) que observa que os sistemas federativos “superimpõem a questão do
quem deve fazer isto’ sobre a tradicional pergunta o que deve ser feito”. Segundo o autor, este
fenômeno decorre do fato de diferentes centros de poder atuarem sobre um mesmo espaço
territorial; além disso, o fato de inexistir uma resposta clara sobre os papéis de cada ator leva
à fragmentação das políticas sociais, seja pela ausência de ações governamentais, seja pela
sobreposição das iniciativas de diferentes níveis de governo em um mesma política. Para
Pierson (1995), em sistemas federais, autoridades do nível central coexistem com autoridades
territorialmente distintas – denominadas unidades constituintes - da federação. Como os
representantes do governo de ambos os níveis são parte de um mesmo sistema, embora
parcialmente autônomos, suas iniciativas de políticas sociais são altamente interdependentes,
mas em geral somente modestamente coordenadas; estes governos podem competir entre si,
desenvolver projetos independentes cujos propósitos se chocam, ou cooperar para atingir fins
que não poderiam alcançar sozinhos.
Segundo Sano (2008), a falta de uma coordenação mais efetiva, como identificada por Pierson
(1995), é uma das questões primordiais em sistemas federativos, principalmente com o
aumento das áreas de intersecção entre os níveis de governo. Esta coordenação é tanto mais
difícil quanto menor for a cultura política nesse sentido; assim, a transição de uma situação
federativa mais inclusiva, na qual a coordenação ocorre por meio da relação hierárquica
somente, para uma de maior autonomia dos atores e maior entrelaçamento de ações torna
mais complexo o desenvolvimento de um processo de coordenação participativo, isto é, que
leve em consideração o envolvimento dos diferentes níveis de governo nas decisões sobre as
políticas.
3
Pierson (1995) também chama a atenção para uma outra característica decorrente da
coexistência de diferentes centros de poder: a presença de um conjunto de atores
institucionalmente poderosos – as unidades constituintes – que podem definir suas próprias
políticas e influenciar a qualidade das ações da autoridade central. Ao considerar os governos
subnacionais como atores com poder de influência no processo de tomada de decisão, o autor
chama a atenção para quatro importantes aspectos institucionais que devem ser considerados
na análise de políticas públicas: 1) a reserva de poderes específicos para as unidades
federativas que, dessa forma, podem desenvolver políticas próprias; 2) a representação dos
interesses das partes no centro, por meio da qual podem influenciar as ações nacionais; 3) o
grau de comprometimento da equalização fiscal entre as unidades constituintes e sua
capacidade administrativa; e 4) os dilemas do shared-decision making, referente à
necessidade de coordenar tarefas e poderes compartilhados entre os níveis de governo.
Trajetória da Política Habitacional Nacional
Iniciamos a discussão a partir do Regime Militar (1964-1985), momento no qual as relações
intergovernamentais do Estado brasileiro aproximaram-se mais das formas que caracterizam
um Estado unitário do que àquelas que caracterizam as federações. Neste período, os
governadores e prefeitos das capitais eram destituídos de autonomia política e contavam com
escassa autonomia fiscal. Embora os estados recebessem recursos federais via transferências,
estes eram fortemente controlados pelo governo central (Arretche, 1999). Neste contexto, a
política habitacional era conduzida pelo Banco Nacional de Habitação (BNH), agente de
fomento federal responsável pela definição das políticas públicas e liberação dos recursos
para as demais esferas de governo; as esferas subnacionais, por sua vez, eram responsáveis
pela execução dos programas de habitação de interesse social, implementados em grande
parte pelas Companhias Habitacionais (COHABs), estruturas vinculadas aos governos
municipais, estaduais e, em alguns casos, regionais.
Observa-se, portanto, que o modelo de gestão da política habitacional era fortemente
centralizado neste período: as entidades subnacionais dependiam inteiramente dos
empréstimos concedidos pelo BNH; tais empréstimos eram condicionados à aprovação de
projetos, pelo próprio BNH, para a implementação dos programas propostos. Assim, apesar
de terem autonomia administrativa, estas entidades eram agentes de execução de uma política
estabelecida e fortemente controlada pelo governo federal. Neste modelo não existia espaço nem institucional, nem financeiro - para iniciativas de inovações em política habitacional no
âmbito dos governos locais (Arretche, 1999).
Tendo em vista que a gestão centralizadora do governo federal estabeleceu as políticas e os
recursos aos governos subnacionais, esse modelo de relacionamento estava caracterizado pelo
modelo de Autoridade Hierárquica de Wright (1988) explicado anteriormente, uma vez que
estabeleceu-se que a definição das políticas e liberação dos recursos era responsabilidade do
governo federal, ao mesmo tempo em que as ações de execução eram realizadas pelos
governos subnacionais.
No período entre 1960 e 1980, a economia brasileira se encontrava em pleno crescimento, o
que possibilitou que o governo federal disponibilizasse um significativo volume de recursos
para o setor habitacional. Entretanto, a partir da década de 1980, a economia do país registrou
uma profunda inflexão com a predominância de um longo ciclo de baixo dinamismo. Este
novo cenário trouxe repercussões significativas ao Sistema Financeiro da Habitação (SFH),
acarretando uma expressiva redução dos investimentos na segunda metade desta década. A
crise do SFH e do BNH, bem como a disposição do governo federal de reduzir os valores dos
financiamentos, acarretou um crescente ônus para os municípios ao transferir
progressivamente aos entes a responsabilidade integral sobre os custos do terreno,
infraestrutura, equipamentos coletivos dos empreendimentos habitacionais, equipe técnica e
4
mão-de-obra das políticas habitacionais. Embora tenha havido uma certa distribuição dos
encargos entre o BNH e os municípios, as condições de produção e financiamento das
COHABs foram deteriorando-se ao longo do tempo. Em 1986, o BNH foi extinto e suas
atribuições transferidas para a Caixa Econômica Federal (CEF).
Entre a extinção do BNH (1986) e a criação do Ministério das Cidades (2003), o setor
responsável pela gestão da habitação no governo federal esteve subordinado a sete ministérios
ou estruturas administrativas diferentes ii , caracterizando a descontinuidade e ausência de
estratégias para a consolidação de uma política habitacional nacional. Estes fatores, aliados à
instabilidade econômica da época, restringiram as possibilidades de financiamento dos
programas federais, de modo que as COHABs, que tinham altíssima dependência das
transferências federais, tiveram sua capacidade de implementação dos programas
habitacionais nos municípios prejudicada. A extinção do BNH, aliada à promulgação da
Constituição de 1988, que determinou que a implementação de programas habitacionais fosse
de competência comum a todas as esferas de governo, induziu, de certa forma, a um processo
de descentralização não coordenado das políticas habitacionaisiii. Ao mesmo tempo em que se
observava uma desarticulação da política federal de habitação, os estados brasileiros davam
continuidade às suas políticas por meio das COHABs (mesmo considerando as dificuldades
de obtenção de financiamentos federais), que haviam sido constituídas para participar da
política implementada pelo BNH.
Assim, a partir de 1987, os estados já tinham capacidade técnica herdada da política anterior e
podiam se articular para implementar políticas próprias (Arretche, 2000). Segundo Melo e
Jucá Filho (1990), com o desmonte institucional da política federal de habitação no final da
década de 1980, observou-se uma “estadualização da política habitacional” com a
proliferação de ações estaduais e municipais. Além de maior autonomia, os governos
estaduais, agora eleitos pelo voto popular, passaram a apresentar maiores preocupações com o
desenvolvimento de políticas públicas e com o atendimento de reivindicações populares,
estabelecendo suas prioridades e delineando novos modelos de políticas sociais, de acordo
com suas capacidades administrativas e recursos financeiros disponíveis (Royer, 2002). Desse
modo, no final da década de 1980, em nível estadual, assiste-se à criação de mecanismos que
viabilizaram um fluxo permanente de recursos financeiros, por meio do direcionamento de
impostos ou taxas para o setor, e garantiram, em alguns estados, uma oferta contínua de
serviços (Arretche, 1999; Royer, 2002).
Podemos dizer que, após a promulgação da Constituição de 1988, o estabelecimento da
competência comum da política habitacional para todos os entes federativos permite uma
aproximação da definição do modelo interdependente de Wright (1988), na medida em que as
três esferas de governo passaram a ser responsáveis pela mesma política pública, tornando
necessário o estabelecimento de acordos para definição de papéis e responsabilidades para o
desenvolvimento de ações no âmbito de tal política.
O modelo descentralizador-municipalista adotado pela Constituição significou também uma
maior autonomia para que os municípios experimentassem novas políticas habitacionais neste
período, observando-se um grande número de iniciativas de provisão habitacional de interesse
social. Sérgio Azevedo (2007) explica, que:
“a crise fiscal do Estado, especialmente nos âmbitos federal e
estadual, e a consequente diminuição de verbas para as
necessidades habitacionais, aliada à pressão popular no novo
contexto democrático, acarretaram um processo difuso e não
planejado de descentralização, que poderíamos chamar de uma
‘municipalização selvagem’ da política habitacional para os
setores de menor renda.”
5
De modo a viabilizar a implementação das políticas habitacionais, alguns municípios
recorreram a convênios e parcerias com COHABs de atuação regional. Outros criaram
empresas municipais para provisão habitacional que começaram a produzir unidades na
década de 1990. Esta fase de atomização de experiências nas esferas municipal e estadual foi
caracterizada por uma grande heterogeneidade e marcada pela diversidade de iniciativas, mas
pouco articulada em decorrência da ausência de uma política nacional. Embora tenham
surgido interessantes programas habitacionais que adotam pressupostos inovadores como
desenvolvimento sustentável, estímulo a processos participativos, parceria com a sociedade
organizada, projetos integrados e a articulação com a política urbana (MCidades, 2007;
Bonduki, 1996), estas experiências foram pouco disseminadas entre outros municípios,
podendo ser caracterizadas como experiências autônomas e isoladas, que não ajudaram, com
raras exceções, a gestar políticas mais amplas e disseminadas no contexto nacional.
No âmbito estadual, de modo geral, a participação dos estados na política habitacional no
final dos anos 1980 e início da década de 1990 se desenvolveu em torno de duas estratégias:
1) a institucionalização de um sistema estadual de habitação, ou seja, a constituição de
políticas habitacionais caracterizadas pela vinculação de fontes de recursos, instituições e
programas habitacionais com mecanismos de acesso, desenho e sistema de crédito próprios –
como veremos no caso do Estado de São Paulo; e 2) desenvolvimento de iniciativas de
promoção pública associadas a gestões governamentais com recursos orçamentários próprios
(como no caso de experiências do Rio Grande do Norte, Pará, Paraná, Goiás, Santa Catarina,
Ceará e Rio Grande do Sul), mas com baixa institucionalização e sem garantia de
continuidade no tempo (Arretche, 1996; Gonçalves, 2009).
A retomada da política habitacional federal após a extinção do BNH ocorreu apenas em 1990,
durante o governo Collor de Mello, com o Plano de Ação Imediata para Habitação (PAIH),
ação de caráter emergencial, marcada pela subordinação institucional da habitação como
questão de assistência social, para o atendimento de famílias com renda de até 5 salários
mínimos e que se propunha a financiar em 180 dias cerca de 245 mil unidades, por meio da
contratação de empreiteiras privadas. As linhas de crédito para as demais famílias
permaneceram fechadas (Carvalho, 1991; Azevedo, 2007). Este programa marcou também a
retomada das operações com recursos federais entre 1990 e 1991, já que neste programa as
unidades eram totalmente financiadas com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de
Serviço (FGTS). Aprofundando a tendência de privatização da política habitacional iniciada
no governo anterior, este programa transferia recursos públicos para a iniciativa privada,
enquanto as COHABs continuavam desempenhando um papel secundário de órgãos
assessores. Dessa forma, os agentes públicos receberam apenas 21% do montante de recursos
emprestados pelo FGTS e as cooperativas habitacionais, que tinham contratos com
empreiteiras visando às faixas de renda médias, receberam cerca de 70% dos recursos.
Entretanto, este programa foi mal sucedido e acabou implicando na suspensão de
financiamentos via FGTS entre os anos 1992 e 1995 (Arretche, 2000; Azevedo, 2007).
A formulação de uma nova política nacional de desenvolvimento urbano, pós-BNH, só
começou a ser elaborada a partir de 1995, na administração do presidente Fernando Henrique
Cardoso, com reformas que visaram rever o modelo das políticas de desenvolvimento urbano
do Regime Militar. O novo modelo caminhou para descentralizar a alocação dos recursos
federais e introduzir princípios de mercado na provisão de serviços. Esta descentralização da
gestão da política urbana deu-se a partir da instalação de instâncias colegiadas nos estados,
destinadas à tomada de decisões relativas à alocação dos recursos do FGTS para as áreas de
saneamento e habitação. Com base nas disposições estabelecidas pelo Conselho Curador do
FGTS, cada estado disporia de um orçamento anual para a aplicação em programas de
desenvolvimento urbano (60% para habitação e 40% para o saneamento). Entretanto, apesar
6
das instâncias colegiadas terem sido instaladas rapidamente, a maioria dos projetos propostos
pelos estados e municípios esbarrava na incapacidade de endividamento dos mesmos, de
modo que o modelo descentralizado proposto jamais foi efetivamente implementado
(Arretche, 2000).
Com a retomada dos financiamentos por parte do FGTS, foram criados novos programas de
financiamento para o setor habitacional; contudo, a maior parte dos financiamentos era
voltada diretamente ao beneficiário final, absorvendo a maior parte dos recursos do fundo.
Existia apenas uma modalidade que se destinava ao financiamento de estados e municípios,
em alguns casos, a fundo perdido. Estes programas eram focados na recuperação de áreas
habitacionais degradadas, ocupadas principalmente por população de renda de até 3 salários
mínimos, por meio de melhoria ou da construção de unidades habitacionais e de infraestrutura
(Programas Pró-Moradia e Habitar Brasil), e não mais na provisão de novas unidades
habitacionais, como nos modelos anteriores (Shimbo, 2010). Os governos subnacionais
passaram a ter participações muito pequenas na provisão de novas unidades habitacionais,
com raras exceções de governos mais autônomos que contavam com capacidade técnica e
fiscal própria.
A gestão FHC queria reforçar o papel dos governos municipais como agentes promotores da
habitação popular incentivando-os, inclusive, a adotar linhas de ação diversificadas, apoiando
programas geradores de tecnologia simplificada que possibilitassem a construção de moradias
de qualidade a custo reduzido. Estimulava, também, governos subnacionais a desenvolverem
experiências inovadoras de gestão habitacional por meio do financiamento de programas
voltados para este fim e estimulando o intercâmbio de experiências entre os governos
subnacionais para que estas inovações se disseminassem de forma horizontal. No que se
refere às potencialidades apresentadas por estes programas municipais, desenvolvidos
especialmente nos anos 1990, estudos realizados no final desta década demonstraram as
grandes possibilidades de inovação institucional e de adaptabilidade às especificidades locais.
Estas iniciativas funcionaram como um grande “laboratório” que permitiu a socialização de
inúmeras experiências bem-sucedidas, muitas das quais premiadas internacionalmente
(Bonduki, 1996; Souza, 1997 apud Azevedo, 2007).
Essa atividade coordenada entre governo federal e governos subnacionais, bem como o
incentivo para a participação da sociedade civil na construção da agenda, caracteriza o
modelo de Autoridade Interdependente, desenvolvido por Wright (1988).
O Ministério das Cidades foi criado como nova institucionalidade para a área de
desenvolvimento urbano, em 2003 (governo Lula), com o objetivo de retomar a agenda de
uma política urbana nacional, integrando os setores de habitação, saneamento ambiental e
transportes em um mesmo órgão. A opção do primeiro grupo dirigente do Ministério foi
formular uma política de forma federativa e participativa, mobilizando os três níveis de
governo e os distintos segmentos da sociedade civil para esta finalidade. O MCidades, desde
sua origem, foi proposto como um órgão coordenador, gestor e formulador, envolvendo de
forma integrada as políticas responsáveis pelos processos de urbanização e resgatando para si
a coordenação política e técnica das questões urbanas, que a partir da Constituição de 1988
foram sendo delegadas às prefeituras municipais sem um projeto claro de coordenação
intergovernamental, como discutido anteriormente. Coube-lhe, ainda, a incumbência de
articular, qualificar e mobilizar os diferentes entes federativos na montagem de uma estratégia
nacional para equacionar os problemas urbanos das cidades brasileiras, alavancando
mudanças com o apoio dos instrumentos legais estabelecidos pelo Estatuto das Cidades.
Assiste-se, portanto, a uma continuidade do movimento do Governo Federal em direção ao
modelo de Autoridade Interdependente (Wright, 1988), porém com um projeto de
coordenação intergovernamental mais claro, delineado pela construção de estratégias
financeiras e institucionais mais concretas, onde cada ente federativo tem seu papel
7
claramente desenhado dentro da política. Assiste-se, portanto, com a instituição deste novo
Sistema de Habitação, ao que Pierson (1995) caracterizou como transição de uma situação
federativa mais inclusiva (onde a coordenação se dá apenas através da relação hierárquica)
para o desenvolvimento de uma maior autonomia dos atores. Segundo este autor, esta
transição de maior entrelaçamento de ações torna mais complexo o desenvolvimento de um
processo de coordenação participativo, e por este motivo, o MCidades tem um grande desafio
frente aos dilemas do shared-decision making (Pierson, 1995).
No mesmo ano de criação do MCidades, avançou-se também na construção da instância de
participação e controle social da política urbana com a realização da 1ª Conferência Nacional
das Cidades, que traçou as linhas gerais e as diretrizes da política nacional de
desenvolvimento urbano, resultando, ainda, na eleição da primeira composição do Conselho
Nacional das Cidades. Na área de habitação, no início da década de 1990, os movimentos
populares aliados haviam construído uma proposta de Sistema Nacional de Política
Habitacional com o apoio de diversos atores técnicos. Muitas destas propostas,
posteriormente incorporadas ao Sistema instituído, haviam sido experimentadas e aprendidas
em iniciativas de governo subnacionais durante meados dos anos 1980 e 1990. Estas idéias
resultaram em um dos primeiros projetos de lei de iniciativa popular (PL 2.710/1991), que
após 13 anos de tramitação, viria a ser aprovado (Lei 11.124/2005), instituindo o Sistema
Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS) e o Fundo Nacional de Habitação de
Interesse Social (FNHIS). A importância política e institucional da regulamentação do SNHIS
e do FNHIS está no compromisso do MCidades de buscar viabilizar e articular fontes de
recursos permanentes para o financiamento da habitação de interesse social, dispersas e
sobrepostas em diversos programas nos três níveis governamentais.
O SNHIS foi organizado a partir da montagem de uma estrutura institucional, composta por
uma instância central de coordenação, gestão e controle, representada pelo MCidades, pelo
Conselho Gestor do FNHIS (CGFNHIS), por agentes financeiros e por órgãos e agentes
descentralizados. A adesão ao SNHIS por parte dos entes federativos é voluntária e se dá a
partir da assinatura do termo de adesão, por meio do qual os estados e municípios se
comprometem a constituir, no seu âmbito de gestão, um fundo local de habitação de natureza
contábil, gerido por um conselho gestor com representação dos segmentos da sociedade civil,
e a elaborar um plano local (estadual, distrital ou municipal) de habitação. Essa estrutura
espelha, no âmbito local, a estrutura institucional e financeira montada no âmbito federal e
visa permitir, por meio da adesão ao Sistema, que os agentes locais possam obter acesso aos
recursos do FNHIS. No modelo proposto, parte dos recursos seria destinada às transferências
fundo a fundo que ficariam condicionadas ao oferecimento de contrapartida do ente
federativo. O Plano Nacional de Habitação estabeleceu, também, a construção de um índice
de capacidade institucional (ICI), que serviria como indicador para a distribuição de recursos
do SNHIS. Até o momento, entretanto, as transferências fundo a fundo ainda não ocorrem, e o
ICI não foi construído, ficando os recursos do FNHIS, assim como os dos demais programas,
sujeitos à apresentação e aprovação de propostas junto à CAIXA e ao Ministério.
Assim, apesar de o modelo de Sistema que se desenhou na lei do SNHIS representar
claramente um direcionamento ao modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988),
na prática não se tem caminhado para um modelo verdadeiramente de shared-decision making
(Pierson, 1995), segundo o qual o processo decisório é compartilhado entre as diferentes
esferas federativas.
O modelo institucional adotado pelo SNHIS prevê a descentralização da sua implementação
mediante a transferência de atribuições para as esferas subnacionais e para agentes privados e
públicos (estatais ou não). Desta forma, estados e municípios passam a participar da gestão do
Sistema. A descentralização, por sua vez, deve cumprir a premissa da sintonia entre os entes
integrantes do Sistema de forma que exista um fio condutor único da política que garanta que
8
políticas locais, elaboradas de forma autônoma, estejam em harmonia com a política nacional.
Desta forma, o SNHIS se desdobra e se fundamenta na articulação e na integração entre os
planos, programas, ações habitacionais e recursos financeiros e humanos dos três níveis de
governo. O MCidades acredita que a obrigatoriedade de planos habitacionais nas três esferas
governamentais estabelecida na lei do SNHIS poderá ser capaz de definir o fio condutor da
articulação entre os governos, e que no processo de construção gradual do SNHIS, a
qualificação e o alinhamento de diretrizes e prioridades entre os governos podem se converter
em uma meta a ser alcançada pelos gestores do Sistema, atuando como uma espécie de
elemento de atração e polarização em torno da efetiva construção de uma política nacional
integrada (MCidades, 2009). Atualmente, 98% dos municípios brasileiros e todos os estados
já aderiram ao Sistema; entretanto, quase a metade dos municípios (49%) ainda não cumpriu
as condições legais – constituição de plano, fundo e conselho - exigidas para que se integrem
ao Sistema (MCidades, 2011).
A partir do ano de 2007, a SNH avançou na mobilização estratégica de estados e municípios
no intuito de aproximar a gestão federal das esferas subnacionais e estruturar formas
institucionalizadas de negociação e pactuação com estas esferas. Fazem parte desta iniciativa
o processo de negociação com estados e municípios para a distribuição dos recursos federais
do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), coordenado da Casa Civil da Presidência
da República e orientado pela SNH, e, também, a agenda de reuniões mensais, iniciada em
2007, mantida pela SNH com o Fórum Nacional de Secretários de Habitação e
Desenvolvimento Urbano (FNSHDU). Entretanto, ainda que tenha estabelecido a negociação
entre os entes tanto na gestão, quanto na distribuição dos recursos, o governo federal ainda
permanece com algum grau de concentração; o conselho gestor e o agente financeiro do
FGTS, a CEF, definem as regras de operação dos programas e detém o poder para autorização
definitiva, constituindo órgãos de controle majoritário do governo federal, mas não contam
com representação federativa em suas instâncias decisórias (Arretche, 2004).
A Política Habitacional no Estado de São Paulo
Enquanto a política habitacional federal teve uma atuação inexpressiva na década de 1990, no
Estado de São Paulo observou-se um extraordinário desempenho no mesmo período. O caso
de São Paulo é paradigmático entre os estados, pois, dentre os que buscaram uma estratégia
de institucionalização de um sistema estadual de habitação no final da década de 1980, este
foi o que mais conseguiu promover o fortalecimento e a autonomização da política
habitacional, chegando a ter, no final dos anos 2000, uma das maiores companhias
habitacionais do mundo, com orçamento maior do que o de muitos estados e municípios
brasileiros. Este processo contou com recursos estaduais e resultou, em linhas gerais, no
desenvolvimento de programas próprios e na expansão da oferta (Royer, 2007; Arretche,
1996; Gonçalves, 2009).
Criada em 1949 como uma autarquia com a denominação de Companhia Estadual de Casas
Populares (CECAP), a estrutura da administração indireta responsável pela política
habitacional no estado passou por diversos processos de transformação até chegar ao atual
estágio de desenvolvimento (Royer, 2007). Em 1981, o então governador Paulo Maluf, ainda
durante o Regime Militar, criou a Codespaulo, que tinha, além das funções da companhia
anterior (CECAP) de promoção da habitação no Estado, a função de “promover a
desconcentração do desenvolvimento industrial e urbano em São Paulo”, atuando também,
“como indutora do desenvolvimento regional (ao menos no planejamento)” (Royer, 2002).
Assim, após a pesquisa em 96 municípios, foi traçada uma meta de construção de 12.380
unidades em 25 municípios paulistas; entretanto, os investimentos e contratações feitos pelo
programa originaram dívidas que perduraram no governo seguinte.
9
Em 1983, após o primeiro ano de governo Montoro (o primeiro governo de gestão
democrática após a experiência autoritária), a enorme inadimplência da antiga companhia
com o Governo Federal (com unidades construídas pelo financiamento habitacional do BNH e
dívidas não saldadas no período acumulado) mostrou a necessidade de uma reformulação
interna, destinada a estabelecer uma nova organização administrativa, com a contratação de
novos técnicos e a valorização dos técnicos já atuantes nesta política. Em março de 1984, a
empresa foi transformada na Companhia de Desenvolvimento Habitacional do Estado de São
Paulo (CDH).
A Codespaulo operava com recursos advindos de transferências federais, mas com a crise do
sistema, somada à indisposição da convivência do regime democrático nos estados com o
autoritarismo do governo central, não era mais possível contar com os aportes federais para o
enfrentamento das necessidades habitacionais; assim a nova proposta da Companhia foi
operar com recursos orçamentários próprios. O Estado de São Paulo, entretanto, não dispunha
de nenhum mecanismo que permitisse segregar recursos da arrecadação para financiar
políticas públicas de habitação, nem receitas disponíveis para inclusão de despesas com tal
vulto em seu orçamento (Royer, 2007). Com esta meta de realizar e assumir a política
habitacional sem a dependência da transferência de recursos, o Estado de São Paulo passou a
reivindicar fontes de financiamento, propugnando por maior autonomia financeira e pela
desconcentração das competências tributárias. Tais teses, defendidas pelo Governo de São
Paulo, vão marcar o processo constituinte e dar origem aos instrumentos tributários que
possibilitaram o desenvolvimento acelerado da Companhia na segunda metade da década de
1980 (Royer, 2002).
Em 1988, com a aprovação da Constituição que garantia autonomia financeira para os
governos estaduais, o Estado de São Paulo pôde aprovar uma nova legislação tributária que
aumentava os recursos orçamentários com a elevação das alíquotas de impostos. Em
novembro de 1989, a Lei 6.556 instituiu um adicional de 1% ao Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços (ICMS) do estado, sendo que a receita resultante desta elevação da
alíquota seria destinada inteiramente ao financiamento, pela Caixa Econômica Estadual, de
programas habitacionais de interesse social, desenvolvidos e executados pela CDH. A
aprovação desta lei garantiu um vultoso aumento nos recursos destinados ao setor
habitacional do Estado de São Paulo: entre 1991 e 1996, de um total de U$ 2,6 bilhões dos
recursos para habitação, U$ 2 bilhões foram oriundos do ICMS (Royer, 2002, 2007). Com a
implementação desta nova fonte de recursos e outras mudanças estruturais e de conceito que
foram instituídas no período, a CDHU, como empresa pública, passou a administrar, em 1989,
o terceiro orçamento de investimentos entre as estatais paulistas, atrás apenas da Companhia
Energética de São Paulo (CESP) e do Companhia do Metropolitano de São Paulo (Metrô)
(Royer, 2002).
A adoção da alíquota do ICMS (fonte permanente, não-onerosa e vinculada de recursos para a
implementação de programas sociais de habitação) e a criação da CDH em 1984
(posteriormente transformada em CDHU, em 1989) representaram decisões segundo as quais
passariam a ser formulados programas estaduais cujas características seriam distintas daquelas
oferecidas pelas agências federais (Arretche, 1996). Após estabelecida uma volumosa e
estável fonte de recursos financeiros, tornou-se possível a orientação da política habitacional
para a produção em grande escala de unidades habitacionais no Estado. Houve também uma
significativa mudança na forma de gestão da política de habitação: todas as obras passaram a
ser licitadas e administradas pela CDHU. A política passou a ser centralizada no Governo do
Estado e, para ter acesso às unidades habitacionais oferecidas pelo programa estadual, as
prefeituras deveriam oferecer o terreno e a infra-estrutura urbana.
Com estas medidas, o Governo do Estado de São Paulo, assim como a maioria dos governos
estaduais na década de 1990, instituiu uma política habitacional com gestão centralizada,
10
usando o modelo adotado anteriormente pelo governo federal (Melo e Jucá Filho, 1990).
Nesta política, cabia aos municípios aderir aos programas formulados e implementados pelos
agentes estaduais e firmarem a parceria por meio da concessão de terrenos e/ou infraestrutura,
não cabendo aos governos locais nenhum poder decisório sobre o volume de recursos
investidos, a gestão do empreendimento e a distribuição das unidades habitacionais aos
beneficiários finais. Dessa forma, a política estadual deste período aproximou-se do modelo
de autoridade hierárquica de Wright (1988).
Nos primeiros anos da década de 2000, a atuação da CDHU foi marcada pela continuidade de
programas e ações formuladas na década anterior, ainda com o financiamento através dos
recursos advindos do ICMS, não ocorrendo mudanças institucionais do setor habitacional do
Estado de São Paulo no período. A partir de 2005, o governo estatual começou a estabelecer
uma divisão maior entre planejamento e produção habitacional, delimitando mais claramente
as funções institucionais dos órgaos envolvidos no setor. Atualmente, o Estado conta com
uma Secretaria de Habitação (SEHAB) na administração direta, com a Companhia de
Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), empresa vinculada
a esta Secretaria, e, mais recentemente, com a Casa Paulista - Agência Paulista de Habitação
Social, constituída como um novo braço da Secretaria da Habitação para viabilizar a operação
dos fundos habitacionais recém-instalados: o Fundo Paulista de Habitação de Interesse Social
(FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH).
Apenas em 2007, o Estado de São Paulo aderiu ao SNHIS (Lei Estadual 12.801/2008) e só
regulamentou esta adesão em dezembro de 2008 por meio do Decreto 53.823/2008, que
também insituiu o Conselho Estadual de Habitação (CEH), o Fundo Paulista de Habitação de
Interesse Social (FPHIS) e o Fundo Garantidor Habitacional (FGH). Em 2009, começou a
elaboração do Plano Estadual de Habitação (PEH-SP), que objetivou estabelecer estratégias e
metas para a eliminação progressiva das necessidades habitacionais, por meio de ações
conjugadas nas três esferas de governo. A elaboração deste Plano inaugurou um novo marco
nas relações intergovenamentais desenvolvidas entre o Governo do Estado de São Paulo e os
municípios de sua jurisdição. Até então, a política habitacional estadual era extremamente
centralizada no governo estadual, tanto em termos de formulação, quanto da própria
implementação.
No PEH, ainda não publicado na integralidade, já aparecem indícios de uma mudança de
postura do Governo Estadual, que passa a buscar para si um papel mais de coordenação e
formulação, delegando aos municípios o papel de implementadores e demandantes das
necessidades específicas de cada município. Enquanto, na década de 1990, o Governo do
Estado assumiu uma postura que parecia ignorar as reais necessidades dos municípios,
produzindo unidades habitacionais segundo os interesses políticos eleitorais, no final da
década de 2000 o planejamento habitacional do Estado assume outra postura, desenvolvendo
uma série de estudos e indicadores para determinar as especificidades das necessidades
habitacionais das diferentes regiões do Estado e desenvolvendo programas voltados para estas
características, além de uma tentativa de estabelecer um maior diálogo com os municípios.
Seguindo esta tendência de maior descentralização, o Governo do Estado de São Paulo está
promovendo a criação da Rede Estadual dos Planos Locais de Habitação (PLHIS) com a
intenção de criar um sistema de coordenação intergovenamental, no qual o governo estadual
ajudará os governos municipais a desenvolverem seus planos locais de habitação como
instrumento do planejamento municipal. Nesta rede, coordenada pelo governo estadual,
deseja-se também promover a troca de experiências entre os municípios sobre a elaboração de
instrumentos de planejamento locais e regionais, a fim de construir uma visão articulada e
compartilhada sobre os desafios e as estratégias de ação, estimulando o desenvolvimento das
relações intergovernamentais, tanto verticais quanto horizontais. Observa-se, então, que de
11
1990 a 2000, o modelo de relacionamento passou por uma transição do modelo centralizado
para o modelo de autoridade interdependente (WRIGHT, 1988).
Considerações finais
A trajetória da política habitacional, brevemente descrita neste trabalho, nos mostra que os
desenhos institucionais e políticas desenvolvidas dialogam com o percurso do Estado
brasileiro de forma mais ampla, uma vez que o desenho desta política pública no âmbito da
União parecer ter caminhado sempre alinhada com o desenho macro-institucional do Estado,
ou seja, acompanhando os movimentos de maior centralização ou descentralização do poder
na esfera federal. Percebe-se, também, que os arranjos institucionais implementados no
âmbito nacional têm impactos profundos no desenho institucional e na política pública
habitacional implementada pelos estados e municípios, mesmo que de forma desarticulada e
com pouca coordenação intergovernamental, como se deu em grande parte do período
estudado.
A literatura aponta que, sobretudo os estados mais dependentes de recursos federais para
executar a prestação de políticas e serviços sociais têm maior tendência a se pautarem pelas
orientações das políticas federais (Arretche, 2004; Gonçalves, 2009). Assim, o caso de São
Paulo é paradigmático, na medida em que conseguiu instituir um fluxo de recurso permanente
para o setor habitacional, podendo desenvolver uma política autônoma com a implementação
de linhas programáticas próprias e diversificadas. Ao mesmo tempo, este Estado tem maior
resistência à adesão das políticas desenvolvidas pelo governo federal, como podemos verificar
no caso da adesão e implementação tardia do programa mencionado e na resistência
observada em utilizar os indicadores desenvolvidos pelo governo federal, como o déficit
habitacional, ignorado no PEH-SP, mesmo sendo o indicador base utilizado em todos os
outros planos habitacionais do país. Contudo, ao admitir a adesão ao SNHIS, este Estado tem
buscado assumir seu papel de coordenação intergovernamental induzindo e fomentando os
municípios a desenvolverem tanto ações de adesão ao Sistema, como de ações de produção
habitacional, mesmo que com recursos federais e estaduais, além de induzir algumas práticas
de relações intermunicipais.
Entretanto, como destaca Gonçalves (2009), ainda não está claro, dentro do desenho do
SNHIS, qual é exatamente o papel dos governos estaduais. A autora destaca, contudo, que aos
estados não cabe exatamente um único papel ou uma única forma de atuação, pois nas regras
previstas, por um lado, observa-se que os estados são os coordenadores do sistema no nível
estadual e que devem formular políticas, diagnósticos e planos, e criar seus conselhos e
fundos. Tendo, assim, tanto um importante papel de executor direto da política habitacional,
como um importante papel de indutor de ações e de coordenação do desenvolvimento
institucional nos municípios dentro de sua jurisdição. Por outro lado, ainda segundo
Gonçalves (2009), o SNHIS também prevê financiamento direto da União para os municípios
e, nesses casos, a política cabe diretamente ao governo local e a relação entre município e
governo federal independe do estado, tendo a coordenação federal na política que assumir um
importante papel, dado que os arranjos institucionais atuais podem gerar inúmeras situações,
seja de cooperação, competição, vazio ou sobreposição.
A pesquisa demonstrou que, dos anos 1940 aos 1980, o modelo de autoridade hierárquica foi
predominante. Dos anos 1980 aos 1990, no nível federal, predominou a autoridade
interdependente. Já no plano estadual, em especial São Paulo, o modelo da década de 1980
refletia o nível federal; contudo, não completamente, comportamentos que refletiam a
competição e cooperação entre os entes federativos coexistiram paralelamente e
permaneceram por mais duas décadas. Em meados de 2000, no nível federal, o modelo
relacional espelhava o dos estados: da autoridade interdependente e os de competição
juntamente com o de coordenação. Essas teorias contribuem para explicitar e delinear os
12
movimentos da política habitacional brasileira, pois corresponderam às peculiaridades
existentes em cada época; entretanto, os modelos relacionados não são suficientes para
apontar a intensidade dessas características, ou seja, em que medida ou grau a centralização
ou descentralização e a participação ou autonomia fiscal, por exemplo, se apresentaram.
13
Anexos
Ano /
Período
Instituição
A partir
de 1946
FCP – Fundo da Casa
Popular
A partir
de 1964
BNH – Banco Nacional
de Habitação
SFH – Sistema
Financeiro de Habitação
1988
SEAC – Secretaria
Especial de Habitação e
Ação Comunitária
1995
A partir
de 2004
SEPURB – Secretaria de
Política Urbana
SEDU – Secretaria
Especial de
Desenvolvimento
Urbano
Ministério das Cidades
PNH – Plano Nacional
de Habitação
SNH – Sistema Nacional
de Habitação
SNHMM – Sistema
Nacional de Habitação
de Mercado
SNHIS – Sistema
Nacional de Habitação e
Interesse Social
Gestão
Centralizada / Fragmentada:
interação do governo federal
(política habitacional) e
governo estadual (arrecadação
de recurso)
Centralizada (criação de órgão
subnacionais - COHAB’s e
outros – para execução da
política definida na esfera
federal)
Descentralizada: maior
iniciativa aos estados e
municípios – transição para
autonomia de estados e
municípios
Modelo de
Relacionamento
intergovernamental
Hierárquica
Hierárquica
Interdependente
Descentralizada: ausência de
estratégia nacional / iniciativas
fragmentadas
Hierárquica
Descentralizada, democrática e
participativa; adesão dos entes
é voluntária
Hierárquica /
Cooperação e
Competição
Figura 1: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política
pública habitacional federal (de 1946 até o período atual)
Fonte: autoria própria
Ano /
Período
A partir
de 1946
(meados
de 1950 e
1960)
Instituição
Gestão
Modelo de
Relacionamento
intergovernamental
Entidades criadas por
governos estaduais e
categorias profissionais
Centralizada: aplicação da
política habitacional
estabelecida pela União;
arrecadação do recurso junto
ao governo federal
Hierárquica
14
A partir
de 1970
COHAB’s e outros
órgãos
A partir
de 1988
Criação de sistemas
estaduais
A partir
de 2008
Adesão ao SNHIS –
Sistema Nacional de
Habitação e Interesse
Social
Centralizada: subordinação ao
governo federal
(operacionalização do SFH)
Descentralizada: atuação não
definida dentro do SFHI;
política pulverizada; efeitos:
desigualdades regionais;
adesão voluntária ao SFHIS
Descentralizada, democrática e
participativa; Estado assume
uma postura de coordenação
intergovernamental em relação
aos municípios
Hierárquica
Interdependente /
Cooperação e
Competição
Hierárquica /
Cooperação e
Competição
Figura 2: Quadro síntese das instituições, modelos de gestão e de relações intergovernamentais na política
pública habitacional do Estado de São Paulo (de 1946 até o período atual)
Fonte: autoria própria
Referências Bibliográficas
ARRETCHE, Marta. Federalismo e Políticas Sociais no Brasil: Problemas de Coordenação e
Autonomia. São Paulo em Perspectiva, 2004.
ARRETCHE, Marta. Estado Federativo e Políticas Sociais: Determinantes da
Descentralização. Rio de Janeiro: Renavan; São Paulo: FAPESP, 2000.
ARRETCHE, Marta. Mitos da Descentralização: Mais Democracia e Eficiência nas Políticas
Públicas? In: Revista Brasileira de Ciências Sociais, n.31, pp.44-66, 1996.
ARRETCHE, Marta. Relações Federativas nas Políticas Sociais. Educ. Soc., Campinas, v. 23,
n. 80, setembro/2002, p. 25-48 25, 1999.
AZEVEDO, Sérgio. Desafios da Habitação Popular no Brasil: Políticas Recentes e
Tendências. IN CARDOSO, Adauto Lucio. Coleção Habitare - Habitação Social nas
Metrópoles Brasileiras - Uma Avaliação das Políticas Habitacionais em Belém, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no final do século XX. Porto
Alegre IPPUR / Observatório das Metrópoles: 2007.
BONDUKI, Nabil Georges. Habitat: as Práticas Bem-Sucedidas em Habitação, Meio
Ambiente e Gestão Urbana nas Cidades Brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 1996.
GONÇALVES, Renata da Rocha. Políticas Habitacionais na Federação Brasileira: Os Estados
em Busca de um Lugar. Dissertação de Mestrado Fundação Getúlio Vargas - SP, Brasil,
2009.
MCIDADES. Secretaria Nacional de Habitação e Consórcio PlanHab. Plano Nacional de
Habitação – Produto 2. Brasília: Ministério das Cidades, 2007.
MCIDADES. Secretaria Nacional de Habitação e Consórcio PlanHab. Plano Nacional de
Habitação: Ministério das Cidades, 2009.
MCIDADES. Secretaria Nacional de Habitação. Relatório de Gestão, 2011. Documento
interno.
MELO, Marcus André; JUCÁ FILHO, Antonio. Políticas Públicas para as Áreas Urbanas: O
Impacto da Crise Fiscal e das Transformações Institucionais. Anais do VII Encontro de
Estudos, 1990.
PIERSON, Paul. Fragmented Welfare States: Federal Institutions and the Development of
Social Policy. Governance: An International Journal of Policy and Administration, 8(4), 449–
478, 1995.
15
ROYER, Luciana de Oliveira. Mutirões Desenvolvidos pela Companhia de Desenvolvimento
Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU) no Município de São Paulo. In:
Habitação Social nas Metrópoles Brasileiras – Uma Avaliação das Políticas Habitacionais em
Belém, Belo Horizonte, Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo no Final do Século
XX. Organizador Adauto Lucio Cardoso. Porto Alegre: ANTAC, 2007 (Coleção Habitare).
ROYER, Luciana de Oliveira. Política Habitacional no Estado de São Paulo: Estudo sobre a
Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo - CDHU. São
Paulo: FAUUSP, 2002.
SANO, Hironobu. Articulação Horizontal no Federalismo Brasileiro: Os Conselhos de
Secretários Estaduais. São Paulo: Fundação Getulio Vargas - Escola de Administração de
Empresas de São Paulo, 2008.
SHIMBO, Lúcia Zanin. Habitação Social, Habitação de Mercado: A Confluência entre
Estado, Empresas Construtoras e Capital Financeiro. São Carlos: Escola de Engenharia de
São Carlos, 2010.
WRIGHT, D. S. Understanding Intergovernmental Relations. 3rd ed. California:
Books/ColePublishing Company, 1988.
i A política habitacional no Brasil só foi verdadeiramente estruturada em 1964 com a criação do Banco Nacional de Habitação (BNH). Em 1946, antes do BNH, houve a criação da Fundação Casa Popular (FCP) que propunha uma visão de política nacional de habitação, mas que, devido à falta de recursos e às regras de financiamento então estabelecidas, conseguiu desenvolver apenas a produção de pequeno número de unidades habitacionais populares, mas sem promover uma política estruturada de habitação. ii A Caixa Econômica Federal (CEF) tornou‐se o agente financeiro do SFH, absorvendo algumas das atribuições, pessoal e acervo do BNH. O Ministério do Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (MDU), que havia incorporado as funções do Ministério do Interior em 1985, foi transformado em Ministério da Habitação, Urbanismo e Desenvolvimento Urbano (MHU), ao qual também inicialmente se vinculou a CAIXA. Em 1988, o MHU foi transformado em Ministério da Habitação e do Bem‐Estar Social (MBES) ficando responsável pela política habitacional, mas desvinculado da política de saneamento que foi transferida para o Ministério da Saúde. O MBES foi extinto em 1989 e a CAIXA passou a ser vinculada ao Ministério da Fazenda, tendo a formulação da política habitacional sido atribuída novamente ao Ministério do Interior. Em 1990, foi criado o Ministério da Ação Social (MAS), posteriormente transformado em Ministério do Bem‐Estar Social, onde passaram a funcionar as Secretarias Nacionais de Habitação e Saneamento. No Governo Fernando Henrique Cardoso, a Secretaria Nacional da Habitação foi subordinada ao Ministério do Planejamento e Orçamento e foi instituída a Secretaria Especial de Desenvolvimento Urbano, vinculada à presidência da República, que se responsabilizou pelas instituições ligadas à política habitacional até 2003, quando foi criado o Ministério das Cidades, no qual foram alocadas a Secretaria Nacional de Habitação (Mcidades, 2007; Arretche, 2000; Cymbalista, 2005). iii A Constituição Brasileira de 1988 faz referência à habitação em cinco diferentes artigos, nos quais determina competências comuns à União, aos Estados e Municípios, como: “instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos” e “promover programas de construção de moradias e melhoria das condições habitacionais e de saneamento básico”. 16
Download

Relações Federativas no Brasil: Uma Análise da Política