Gestão local e políticas
públicas: os desafios do
campo da segurança
Márcia Cristina Alves
N
o contexto atual, a revalorização
da dimensão local acompanha o processo de
democratização e descentralização das políticas
públicas. A necessidade de produzir respostas
para demandas microssociais, constituídas pela
diversidade e heterogeneidade dos problemas
que se formam nos territórios, exige mudança
nos modelos de gestão. Ao mesmo tempo,
conectar as respostas elaboradas nos territórios
com as mudanças na estrutura social é o grande
desafio das políticas locais. Ou seja, partindo de
intervenções locais e abordagens direcionadas,
buscam-se respostas que se configurem em
mudanças sociais.
O âmbito local está experimentando um
importante processo de reestruturação: a idéia
de desconcentração ou descentralização da prestação de serviços tem como meta o aumento da
acessibilidade dos usuários a serviços específicos, sem necessariamente ocorrer a descentralização da autoridade política central, que coordena
o processo de implementação e monitora as
ações das políticas e programas públicos.
Entretanto, elementos novos e, conseqüentemente, novos valores são agregados à
concepção da ação local, seja pela perspectiva
da atuação referenciada no território, seja pela
necessidade de atuar na emergência e resolver
problemas reais, permeados pela relação do
público com o serviço ofertado.
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Apresentam-se, a seguir, elementos fundamentais no desenho e na implementação de
políticas e programas do campo da segurança
pública, com foco na gestão local. A análise leva
em conta o contexto atual de alta fragmentação
social, com novas e diversas necessidades, em
que as demandas são cada vez mais heterogêneas, exigindo novas qualificações para os
serviços sociais e produzindo maior descentralização das funções estatais.
Governança e participação: elementos da
constituição de uma segurança cidadã
O conceito de segurança cidadã relaciona-se
à idéia de democracia, na medida em que surge
para instaurar novo paradigma de segurança
como bem coletivo e direito do cidadão. Além
de incluir a temática da participação comunitária
na agenda da segurança, o conceito associa-se à
noção de convivência segura e pacífica, baseada
em dimensões mais amplas do que a mera sobrevivência física, implicando formas de socialização
mais igualitárias. Outro aspecto importante do
conceito é a valorização da dimensão local, como
possibilidade de se constituírem laços sociais e
intervenções mais participativas no campo da
segurança pública (Informe sobre Desenvolvimento Humano, PNUD, 1994).
Diante dos desafios impostos pelo contexto
social atual, não é suficiente apenas redese-
nhar os programas para modelos de segurança
cidadã, sem reformular os modelos de gestão. A
demanda por uma “nova gestão pública do bem
estar” (BRUGUÉ; GOMÁ, 1998) opera no mínimo
em duas dimensões: a de uma administração mais
estratégica, com menos rigidez e mais descentralizada; e a de uma administração mais pluralista
e participativa, “mais permeável” (DUNLEAVY;
HOOD, 1995 apud GOMÁ, 2004).
O primeiro conceito, relacionado à dimensão de uma administração mais estratégica,
refere-se à idéia de governança, tratada aqui
como a politização do nível local (BRUGUÉ;
GOMÁ, 2004), que significa, em uma interpretação própria, um compromisso das instituições
em atender ao desafio de consolidar relações
inter e intra-institucionais, a fim de afrontar as
novas temáticas do contexto social e satisfazer
as expectativas da população local, produzindo
legitimidade para a ação política dos programas
e para a escolha das alternativas.
Assim os Conselhos Municipais são organismos fundamentais para a consolidação de um
modelo mais próximo da idéia de governança na
área de segurança pública. Essas instâncias, que
se configuram a nível municipal, podem funcionar
como uma importante arena de debates e de
proposições compartilhadas entre as instituições
de segurança, o Poder Executivo e a sociedade
civil, além de contribuírem para um planejamento
das respostas à violência e à criminalidade urbana,
mais próximo da realidade local.
Entretanto, dados atuais (Munic/2006) 1
apontam para uma direção pouco estável no
Brasil, em relação à implantação dos Conselhos
Municipais de Segurança. Dos 450 municípios
que compõem as regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE, apenas 86 possuem esta
instância local, ou seja, menos de 20% dos
maiores municípios do país.
A segunda idéia importante para o desenvolvimento de estratégias mais próximas dos
problemas é a de participação, que, neste
caso, associa-se à idéia anterior, pois se trata
de um pressuposto para a ação política e não
apenas da possibilidade de participar em instâncias delimitadas para este fim. Ou seja, a
participação da população local se faz no processo de formulação e instalação da política
ou do programa, consolidando-se em modelos
de planejamento participativos, sendo que
os Planos Locais de Segurança constituem
instrumentos importantes na elaboração das
respostas aos problemas.
Os planos municipais de Segurança Pública
organizam as demandas e, ao mesmo tempo,
agregam valor às soluções apresentadas, na
medida em que a solução é compartilhada.
Se pensarmos em resultados mais efetivos e
alterações do contexto social local, a produção
de respostas envolve a pactuação de resultados
com a comunidade local, que será beneficiada
pelas mudanças que possam ocorrer no cenário local.
Porém, no Brasil, apenas uma minoria de
municípios se preocupa com a elaboração de
planejamentos municipais na área de segurança,
pois, das mesmas regiões metropolitanas pesquisadas pelo IBGE (Munic/2006),2 somente
13% dos 450 municípios apresentaram Planos
Municipais de Segurança elaborados.
De fato, a pesquisa do IBGE alerta para uma
tendência no Brasil de se constituírem órgãos
municipais de segurança pública: 41% dos
450 municípios pesquisados possuem órgãos
gestores que fazem parte da administração
municipal. Para o total do Brasil, esta proporção diminui para 22%, mas também indica
uma perspectiva de crescimento deste tipo
de organização, voltada para institucionalização
de organismos burocráticos para a gestão local
da segurança.
Outro dado que fortalece esta hipótese é
o número crescente de Guardas Municipais,
presentes em 33% dos municípios das regiões
metropolitanas (Munic/2006).3 Associado a este
quadro, é curioso perceber que os mecanismos de financiamento próprio das políticas de
segurança pública, nos municípios, também
não foram incentivados; exemplo disso é o
baixíssimo número de municípios com orçamento próprio e Fundos Municipais para esta
área (vide tabela 26).
A partir dos dados, percebe-se uma tendência de aumento de órgãos locais de segurança
sem uma relação direta com a instituição de
instrumentos de planejamento das ações e instâncias participativas; ou seja, sem a dimensão
estratégica de uma administração voltada para
resultados mais efetivos e sem uma dimensão
da administração participativa, com o objetivo
de assegurar a produção de segurança pública
com qualidade e de fato descentralizada, que
sustente a ação local.
A preocupação em criar organismos locais
de segurança institucionaliza o problema, pois
o município assume para si a questão, mas
não acrescenta mecanismos de gestão do pro-
1 Disponível em: <http://www.
ibge.gov.br/home/estatística/
economia/perfilmunic/2006/
default.shtm>.
2 Disponível em: <http://www.
ibge.gov.br/home/estatística/
economia/perfilmunic/2006/
default.shtm>.
3 Disponível em: <http://www.
ibge.gov.br/home/estatística/
economia/perfilmunic/2006/
default.shtm>.
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blema do ponto de vista das soluções possíveis,
dos instrumentos e insumos disponíveis para
resolvê-los. Tem-se aí um problema de governabilidade, em que a dimensão da autonomia
municipal para resolver questões de segurança
está limitada e condicionada a pressupostos
federativos, pois a regulamentação dos órgãos
municipais de segurança encontra-se, na maioria
das vezes, submetida a regras gerais, federais
ou estaduais.
O que parece ser mais interessante, como
possibilidade de mudança na atuação dos
municípios no campo da segurança, é exatamente a perspectiva de uma administração
mais estratégica e participativa, invertendo a
ordem de prioridades no campo da gestão local
e voltando-se para uma ação mais planejada e
coordenada, em vez de priorizar uma administração burocrática.
Alguns elementos são fundamentais
para que os municípios possam pensar seus
modelos locais de segurança, a fim de constituírem programas e políticas que consigam
produzir mais que a institucionalização do
problema, construindo soluções compartilhadas para eles. A seguir, apresentam-se
alguns pontos que podem contribuir para o
debate e a formatação de ações locais mais
contextualizadas.
O território como elemento central das
políticas de segurança
A territorialidade torna-se uma variável
relevante a ser considerada no desenho e na
implementação de programas de segurança
pública, pois reconhecer o território como
dimensão significativa, na concepção da intervenção, pode romper com a segmentação
existente das políticas sociais e urbanas e
produzir resultados mais efetivos e duradouros.
Dirce Koga (2003) entende o território como
“um novo elemento catalisador de potenciais
e de reinvenção da cidadania”.
Portanto, o local – território – emerge como
lugar estratégico para as políticas públicas,
abrindo espaço para a introdução de novos conceitos e novas práticas de gestão caracterizadas
por maior participação dos beneficiários, mais
flexibilidade na operacionalização das intervenções, valorização do território como unidade da
ação e integração de redes locais.
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A importância da infra-estrutura social na
gestão local de segurança
A idéia de infra-estrutura social utilizada por
Richardson e Mumford (2002) engloba, como
formas de fortalecimento da comunidade, tanto os
serviços e estruturas públicas de proteção social
existentes quanto os vínculos entre os indivíduos
e organizações locais com estes serviços.
Ao estabelecerem o conceito de infra-estrutura social, as autoras incluem como regras e normas coletivamente compartilhadas: os serviços
e as facilidades existentes, tais como habitação,
educação, saúde, assistência à infância, meio
ambiente bem cuidado e transporte; e a organização social, identificada a partir da existência e
da qualidade das redes de amizade, da presença
de pequenos grupos informais e do desempenho
dos mecanismos de controle social.
As autoras afirmam que os controles sociais
informais são centrais na organização social, no
sentido de reprimir o surgimento de comportamentos socialmente desestruturantes ou de
incentivar comportamentos positivos.
Destaca-se a importância dos pequenos grupos informais no desempenho dos mecanismos
de controle social. O estudo dessas autoras aponta
para uma relação entre vandalismo, crimes e
comportamentos anti-sociais, associados a uma
crescente perda de autoridade dos representantes
do poder público. Esses fatores criam um ciclo
de degradação socioambiental e comprometem a
infra-estrutura social em todos os seus aspectos:
serviços, organização social e instalações públicas
e segurança. As autoras citam, ainda, o impacto da
mudança de traficantes para uma vizinhança como
fator de desorganização de uma comunidade.
O ciclo de degradação da infra-estrutura social
local é seguido por outros processos de desestabilização comunitária, como o desmonte das redes
sociais. Esse processo produz o crescimento da
desconfiança, o medo e a insegurança, diminuindo
os laços de solidariedade e vizinhança e desfazendo
os vínculos sociais.
O que se percebe é uma relação entre a
participação dos moradores, criando uma gestão
local intensiva na produção de infra-estrutura
social por meio da consolidação de sistemas
de controle social informal. Os grupos comunitários promovem as pontes entre os processos
micro e macro, favorecendo os vínculos sociais
e produzindo informações e serviços.
Prevenção social e repressão qualificada –
duas faces do mesmo campo
O debate atual sobre políticas de segurança
pública apresenta-se em algumas arenas, apontando para a dicotomia entre repressão e prevenção ao crime. A disputa entre estes dois
campos não revela nenhuma contribuição para
a construção de propostas concretas que visem
contribuir para a seleção de alternativas.
De fato, é recente no Brasil a preocupação com o desenho de ações voltadas para
as políticas de segurança que não se limitem
à ação policial, constituindo uma nova linha
de estudo que situe a segurança pública no
campo das Políticas Públicas e, mais ainda,
a associe às políticas sociais. Autores como
Azevedo (2001), Cerqueira e Lobão (2004) e
Sapori (2006) apontam para esta perspectiva e
destacam a importância de se pensar o campo
da segurança pública com efetivas formas de
intervenções sociais desenhadas e pensadas
por especialistas da área em conjunto com o
governo e a sociedade civil.
Utilizando mecanismos, como dados estatísticos, análises contextuais da ocorrência criminal,
identificação de fatos associados, produção de
informações resultantes de pesquisas e estudos,
com o objetivo de apontar tendências acerca
do fenômeno da criminalidade, é possível produzir uma antecipação da ação, ao que se pode
chamar de pró-atividade perante o surgimento
da criminalidade. Esta pró-atividade concilia
ações preventivas e ações repressivas, numa
perspectiva de atuação coordenada.
A demanda por modelos que inovem no
campo das políticas públicas de segurança,
contemplando a complexidade do fenômeno
da violência, os fatores multicausais da criminalidade e a compreensão das demandas
específicas e heterogêneas que se qualificam
no nível local, exige repensar a gestão local de
problemas de criminalidade e segurança de
forma mais estratégica.
Esse entendimento é essencial para articular
as demandas locais com as respostas gerais
pensadas para o enfrentamento e a solução dos
problemas, da violência urbana, nos levando a
uma nova visão do desenho e da implementação
das alternativas, que passam a agregar novas
dimensões como governança, participação,
territorialidade e infra-estrutura social.
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