“Minha Casa, Minha Vida” ignora o que PT e
movimentos já fizeram
Escrito por Pedro Fiori Arantes
01-Out-2009
Não é verdade que a esquerda apenas critica e não sabe o que propor. A história da luta
por moradia no Brasil já produziu diversos exemplos do que poderia ser uma política
habitacional diferente da que está sendo promovida pelo programa "Minha Casa, Minha
Vida" (MCMV). Isto é, intervenções realizadas com a participação dos movimentos
populares, que promoveram ações de reforma urbana, espaços com qualidade
arquitetônica e a progressiva desmercantilização da moradia. O próprio PT, em
inúmeras administrações municipais na década de 1990, colaborou para que políticas
habitacionais fossem parte da transformação urbana e social e não apenas um balcão de
negócios para os empresários da construção civil.
A experiência mais importante, sem dúvida, foi a da administração Luiza Erundina em
São Paulo, entre 1989 e 1992. Erundina, assistente social que atuava em favelas
apoiando os movimentos de luta por moradia, foi especialmente dedicada ao assunto,
junto com a nova equipe da Secretaria de Habitação, coordenada por Ermínia Maricato,
uma professora da USP e militante nas periferias da zona sul da cidade. Pela primeira
vez em São Paulo, a política habitacional não estava nas mãos do capital da construção
e do setor imobiliário.
Comentava-se à época que vivíamos aqui uma transformação nos moldes da Viena
Vermelha, dos anos 1920, cuja política habitacional socialista foi emblemática, com
seus inúmeros projetos integrados no tecido urbano, transformando a feição da cidade (o
mais famoso deles foi o Karl Marx Höff). A experiência paulistana foi importante não
apenas pela escala do seu principal programa (o Funaps-Comunitário), mas por ter
articulado, numa política pública de novo tipo, movimentos populares e suas assessorias
técnicas na gestão direta de fundos públicos para a implementação de projetos de
moradia. Foram iniciadas cerca de 100 obras, envolvendo 15 mil famílias. Mais da
metade delas, contudo, não teve como ser finalizada na gestão e sofreu nos anos Maluf e
Pitta, agonizando até serem concluídas quando o PT retornou à prefeitura, em 2001.
Os projetos da gestão Erundina foram um marco na história habitacional do Brasil pósBNH, tornando-se um paradigma dentro do "programa democrático-popular". Nas obras
em favelas, constituiu-se igualmente um novo padrão de intervenção, ao mesmo tempo
radical na eliminação das situações de risco e na construção de novas unidades
habitacionais, como também mais cuidadoso na requalificação de urbanizações mais
consolidadas. A promoção de novas edificações verticais de grande qualidade
arquitetônica associadas a urbanizações de favelas em áreas bem situadas, como forma
de manter as famílias no local, foi uma grande novidade – depois mobilizada de forma
marqueteira e picareta pelo governo Maluf, que utilizava os prédios do Cingapura como
outdoors em vias movimentadas para esconder as favelas intocadas que ficavam atrás.
Nas obras habitacionais geridas diretamente pelos movimentos, por sua vez, ocorrem
diversos avanços: o acesso a terrenos por meio de uma política pública de terras (ao
invés de uma política de mercado, como no MCMV); a participação das famílias nos
projetos (ao invés de projetos feitos por construtoras); unidades habitacionais maiores
(com cerca de 60m² em oposição às de 35-40m² do MCMV); materiais de melhor
qualidade, como blocos cerâmicos estruturais (ao invés de casas de concreto);
urbanizações mais cuidadosas, com espaços comunitários e praças; projetos que
procuravam integrar-se ao tecido urbano do entorno (ao invés de condomínios
murados); gestão direta da obra (ao invés de empreiteiras que lucram com o "negócio"
de fazer casas para os pobres); incubação de cooperativas e coletivos para atuarem após
a conclusão das obras, em padarias comunitárias, creches, cursos, bibliotecas e
equipamentos diversos construídos nos conjuntos. Enfim, um processo muito distinto da
política habitacional privatista implementada pelo MCMV.
Atualmente, talvez a experiência mais avançada em andamento na grande São Paulo, e
herdeira dessa história de lutas, esteja sendo levada a cabo pelo MST e por sua
assessoria técnica, a Usina. É o projeto Comuna Urbana Dom Helder Câmara, em
Jandira, iniciado na administração do prefeito Paulo Bururu (PT) e apoiado com
recursos subsidiados e a fundo perdido de diversas fontes (Ministério das Cidades,
FGTS, município e governo do estado). Trata-se do primeiro "assentamento urbano" do
MST, que se diferencia da forma de conjunto-habitacional por não ser um espaço
exclusivamente de moradia.
A Comuna Urbana tem como objetivo reintegrar aspectos da vida que foram
fragmentados na cidade capitalista. Por isso, em seu território são congregadas, além da
moradia (com 128 sobrados de 68m² por família), uma escola infantil e um berçário, um
anfiteatro, praças e quadra esportiva, um viveiro de mudas, uma padaria comunitária,
um núcleo de áudio-visual, um ateliê de costura, uma oficina de instrumentos musicais,
com espaço para a escola de samba da comunidade, a "Unidos da Lona Preta" –
conforme indica a planta abaixo.
A obra está atualmente em andamento, gerida diretamente pelas famílias, com
administradores eleitos por elas. No fim de semana, ocorrem atividades de mutirão e,
durante a semana, a obra é realizada por trabalhadores diretamente contratados pela
associação (sem intermediários) e um pequeno empreiteiro. E mais recentemente
contratou-se um grupo autogestionário composto por desempregados da comunidade,
que já começou a executar os telhados. A propriedade das casas e equipamentos
construídos não é individual, mas coletiva. Ninguém será "titulado" com a propriedade
do imóvel, pois, por decisão do movimento, o terreno continuará público e as famílias
terão concessão de direito real de uso coletivo – uma vez que a conquista é fruto da
iniciativa do grupo e não do indivíduo isolado.
Na Comuna Urbana, não se trata de fomentar uma ilha comunitária dissociada da
cidade, pois as atividades que ali se desenvolverão estão abertas para o entorno. Mais
que uma ilha, trata-se de um "farol" que indica a capacidade de organização dos
trabalhadores em definir territórios com qualidades muito distintas das que empreiteiras
e governos normalmente realizam, e também distintas dos processos de autoconstrução
e favelização das periferias. Um território como o da Comuna Urbana procura a
coerência entre a construção do espaço e a construção do poder popular, e torna-se, por
isso, uma experiência civilizatória em meio à barbárie, acenando para a classe
trabalhadora o que poderia ser uma outra cidade/sociedade.
Mas tudo isso está muito distante do MCMV. Dentro dos 3% de recursos que estão
destinados aos movimentos sociais, até podem surgir novas iniciativas como essa,
mesmo que suas assessorias técnicas estejam fragilizadas por anos de políticas
habitacionais inviáveis - e inviabilizadas constantemente. Mas o programa é montado
para que outro tipo de produção da cidade seja dominante: a dos grandes conjuntos ao
gosto das empreiteiras. Como dizia Paulo Maluf, justificando seu projeto ‘Cingapura’:
"para o favelado, o que vier é lucro". Lucro mesmo é para os que transformaram o
problema da moradia em um grande negócio.
Veja mais:
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Pedro Fiori Arantes, arquiteto, é coordenador da Usina, assessoria técnica de
movimentos populares em políticas urbanas e habitacionais.
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