NÃO INCIDÊNCIA DO ICMS NA CONSTRUÇÃO CIVIL Schubert de Farias Machado Advogado em Fortaleza SUMÁRIO: 1. A posição dos Estados. 2.Invalidade do convênio ICMS 71/89. 2.1. Invalidade formal. 2.2. Invalidade material. 3. O preço do serviço e a base de cálculo do ISS. 4. Invasão de competência. 5. A jurisprudência. 6. Peculiaridade da questão no Distrito Federal. 7. A Lei Complementar 87/97. 8. Conclusão. 1. A posição dos Estados. Com a Constituição Federal de 1988, os Estados passaram a exigir o pagamento do diferencial de alíquotas do ICMS, nas operações interestaduais com os materiais adquiridos pelas empresas de construção civil. Fundamentaram a exigência no art.155, §2º, VII, "a" e VIII, da CF/88, por considerarem as empresas de construção civil contribuintes do ICMS e consumidoras finais dos produtos que adquirem para empregar nas obras. O Convênio ICMS nº 71, de 22.08.89, corporifica essa orientação, determinando: "Acordam os Estados signatários e o Distrito Federal em firmar entendimento de que nas operações interestaduais de bens e mercadorias destinados a empresas de construção civil, para fornecimento em obras contratadas que executem sob sua responsabilidade, e em que ajam, ainda que excepcionalmente, como contribuintes do imposto, aplica-se o disposto na letra "a" do inciso VII e, se for o caso, no inciso VIII, do §2º, do artigo 155, da Constituição Federal." WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR 2.Invalidade do convênio ICMS 71/89. Esse convênio, todavia, é desprovido de validade jurídica, tanto do ponto de vista formal, como do ponto de vista material, como se passa a demonstrar. 2.1. Invalidade formal. O art. 34, do ADCT da Constituição Federal de 1988, em seu § 8º, disse que na omissão do legislador complementar, os Estados poderiam, mediante convênio, viabilizar a instituição do ICMS, estabelecendo normas gerais a respeito desse imposto. Em seu § 5º, todavia, recepcionou toda a legislação anterior, não incompatível com o novo sistema constitucional tributário. Assim, aquela atribuição de competência aos Estados, para suprirem a omissão do legislador complementar, há de ser entendida em termos: só abrange o estritamente necessário à implantação do imposto sobre os serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, visto como no atinente à circulação de mercadorias já existia legislação perfeitamente compatível com a nova Constituição. Por isto mesmo temos sustentado a inconstitucionalidade do referido convênio, por não terem sido os Estados autorizados a tratar, mediante tal instrumento, de matéria concernente ao imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias. 2.2. Invalidade material O convênio em tela é inconstitucional também sob o aspecto material. As empresas de construção civil não eram contribuintes do ICM, como não o são do ICMS. (conf. Schubert Machado in Informativo Dinâmico IOB - out/89). A instituição deste ampliou o campo de incidência do imposto, que passou a abranger algumas prestações de serviços, mas não modificou a tributação das operações de circulação de mercadorias. Por isto é que o Professor IVES GANDRA DA SILVA MARTINS, tratando do fato gerador do ICMS, afirma que "... no concernente às operações relativas à circulação de mercadorias não houve alteração no novo texto,..." (Sistema tributário na Constituição de 1988, Saraiva, SP, 1989, pág.21O). WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR Deste modo, as operações típicas das empresas de construção civil permanecem sob mesmo regime jurídico. Submetem-se única e exclusivamente à tributação municipal pelo ISS. Não são tais empresas contribuintes do ICMS. E no que pertine ao tributo municipal, tem-se de ter em conta a lista de serviços de que trata a Lei Complementar nº 56, de 15.12.87, onde são relacionados, no item 32, os serviços de construção civil. Certamente não nos estamos referindo às situações em que a empresa de construção civil é também fabricante ou comerciante de materiais de construção. Por outro lado, as empresas de construção civil não são "consumidor final" dos materiais que utilizam em sua atividade fim. O rigor terminológico é aqui de notável importância, e impõe que se não esqueça a distinção entre consumo e insumo. Ocorre o consumo pela utilização de um bem para a satisfação de necessidade pessoal de alguém, que neste caso recebe o nome de consumidor. Já o insumo, por seu turno, acontece quando da utilização de um bem na produção de outros bens, ou na prestação de serviços. Tal utilização, que não satisfaz diretamente nenhuma necessidade, não configura um consumo, mas um insumo desse bem. A empresa de construção civil, salvo a situação excepcional antes referida, utiliza os bens que adquire na prestação de serviços. Não pode, pois, ser considerada como consumidor. Muito menos consumidor final, eis que o qualificativo final reforça a idéia de que se trata da última etapa na circulação econômica do bem, deixando fora de dúvida o significado acima adotado. É certo que uma empresa pode dedicar-se à construção civil e, simultaneamente, negociar com materiais de construção, ou até mesmo fabricá-los. Este, porém, não é o caso aqui estudado. Cogita-se, aqui, apenas dos casos em que a atividade de construção civil é a única desenvolvida pela empresa. Nestes casos, as mercadorias (materiais de construção) adquiridas são destinadas, exclusivamente, à prestação de serviços. WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR 3. O preço do serviço e a base de cálculo do ISS. O valor das mercadorias empregadas em suas obras pelas construtoras integra, de forma direta, o preço do serviço, embora não integre a base de cálculo do ISS, por força do estabelecido no art. 9º, § 2º, letra "a", do Decreto-lei nº 4O6/68, dispositivo que, mesmo não tendo tido sua redação expressamente adaptada pela Lei Complementar nº 56/87, posto que se reporta aos itens 19 e 2O da lista de serviços, há de ser interpretado como reportando-se aos itens 32, 33 e 34, da nova lista de serviços, aprovada pela mencionada Lei Complementar. O fato de que o valor das mercadorias, como afirmado acima, não integra a base de cálculo do ISS, não quer dizer que possa tal valor ser alcançado pelo ICMS. A operação está legalmente tratada como uma só, vale dizer, sujeita apenas a um tributo, que é o ISS. O § 1º, do art.8º, do Decreto-lei nº 4O6/68, é expresso a esse respeito. 4. Invasão de competência. A cobrança do ICMS feita às construtoras, mesmo limitada à diferença entre as alíquotas internas e interestaduais, consiste em evidente invasão de competência dos Estados sobre os Municípios. Não se pode admitir a interpretação de um dispositivo constitucional que leve a insuperável conflito com outro dispositivo da própria Constituição. A melhor interpretação é, induvidosamente, aquela que os harmoniza. A Constituição confere aos Municípios a competência para tributar os serviços de qualquer natureza (inclusive os de construção civil). Logo, não se pode admitir a interpretação de outro dispositivo da Constituição que implique invasão, pelos Estados, dessa competência. Além de configurar inadmissível invasão, pelos Estados, de competência tributária dos Municípios, a exigência do questionado diferencial de alíquota representa verdadeira distorção no sistema do imposto, que se fosse devido pelas empresas da construção civil teria de incidir sobre o valor agregado, posto que se estas fossem contribuintes, suportariam o imposto nas saídas, creditando-se do imposto relativo às entradas. WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR 5. A jurisprudência Os Tribunais de Justiça dos Estados adotaram posições divergentes sobre a questão. Em alguns prevaleceu a tese das empresas construtoras, sendo repudiada a cobrança do diferencial de alíquota do ICMS, sobre os materiais adquiridos para emprego na atividade de prestação de serviço de construção civil. Assim decidiram os Tribunais do Mato Grosso, Pernambuco e Ceará (Pleno do TJ-MT no MS nº 05-Capital, j.13.09.90; Pleno do TJ-PE no MS nº 2031-0/90-Recife, j.22.11.91 DJ Pe de 11.02.92, pág.05; e Pleno do TJ-CE no MS nº 2.751-Fortaleza, j.11.06.92). Em outros, saiu vitoriosa a tese do fisco, admitida a cobrança daquele diferencial, conforme decidiram o Tribunal do Distrito Federal e da Paraíba (Cons. Especial do TJ-DF no MS 2.857, DJU III de 27.04.94, pág.4.429 - Rep.IOB de Jurisp. n.11/94 p.207). O Superior Tribunal de Justiça, apreciou essa questão e tem decisões que apontam em sentidos opostos. A Segunda Turma do STJ, em Recurso Ordinário em Mandado de Segurança, confirma decisão do Tribunal do Distrito Federal, e adota o entendimento que admite a validade da cobrança do diferencial de alíquotas do ICMS, com base nos fundamentos que passamos a resumir: (a) "o art.34, § 8 º do ADCT/88 prevê a possibilidade de regular-se em Convênios Especiais a instituição do Imposto"; (b) "em face do art. 8 º, do DL 406/68, com a ressalva do n º 32, as empresas de construção civil foram consideradas contribuintes do ICM, sendo que hoje, são consideradas contribuintes do ICMS"; e (c) “as empresas de construção civil inscritas que são no cadastro de contribuintes, ao adquirirem mercadoria em outros Estados, o fazem na condição de comerciante, sendo, portanto, contribuintes do tributo” (d) não existe a apontada invasão da competência tributária do município, posto que, "no caso do DF sua competência abrange a legislação sobre a matéria tributária estadual e municipal, uma vez que o DF é ao mesmo tempo juridicamente um Estado e Município." (STJ 2 ª T., ac. un. no RMS n º 3.778-9-DF, DJU II de 14.08.95. pág.24.007 - Rep. IOB de Jurisp. 19/95 p.337)) A Primeira Turma do STJ, em Recurso Especial julgado em 25 de outubro de 1995, reforma decisão do Tribunal da Paraíba, adotando a tese oposta, e ao nosso ver mais acertada, segundo a qual: "Não é lícito aos Estados, modificar, através de convênios, o DL WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR 406/66, para - em operações interestaduais - submeter as empresas de construção civil ao tratamento previsto no Art. 155, VII, a da Constituição Federal." (REsp 62.589-PB, DJU II de 27.11.95 - pág.40.850 - Rep. IOB de Jurisp. 02/96 p.32). Do voto do eminente Relator Ministro Humberto Gomes de Barros, destacamos: "Isto significa: os serviços relacionados na Lista anexa ao DL 406/68 constituem fatos geradores do ISS - não do ICM. Os serviços das empreiteiras da construção civil estão previstos no Item 32 a Lista, assim: "Execução por administração, empreitada ou subempreitada, da construção civil, de obras hidráulicas e outras obras semelhantes e respectiva engenharia consultiva, inclusive serviços auxiliares ou complementares (exceto o fornecimento de mercadorias produzidas pelo prestador do serviço fora do local da prestação dos serviços, que fica sujeito ao ICMS)." A teor do Item 32, a atividade de construção civil é geratriz do ISS. O ICM incide, apenas, sobre o fornecimento de mercadorias fabricadas pelo construtor, fora do local onde se executa a edificação. Na hipótese destes autos, não se cuida em mercadoria fabricada pela construtora. Trata-se de material adquirido de terceiros, para aplicação nas obras em edificação. 6. Crítica à jurisprudência do STJ. Melhor é o entendimento da Primeira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por duas razões especiais, a saber: Reafirma a impossibilidade de um convênio firmado entre os Secretários de Fazenda dos Estados o que está disposto em leis recepcionadas com o carater de Lei Complementar, esclarecendo que a excepcional autorização constante do § 8º do art.34, do ADCT, não permite que os convênios tratem de matéria outra, além daquela estritamente necessária à implementação da nova abrangência do ICMS, qual seja, a prestação dos serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. E reconhece a condição das empresas de construção civil de não contribuintes do ICMS, sendo que "Na hipótese do prestador de serviços adquirir mercadorias de terceiros para emprego na obra, ficará WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR ele SUJEITO APENAS AO ISS." (BERNARDO RIBEIRO DE MORAES, Doutrina e Prática do Imposto Sobre Serviços, São Paulo, RT, 1975, pág.250). O entendimento adotado pela Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça está a merecer reparos, data vênia. Nenhum dos quatro argumentos, acima resumidos, pode prevalecer. O § 8º, do art. 34, do ADCT da Constituição Federal de 1988, não autorizava a celebração do convênio ICMS 71/89, como já foi neste estudo demonstrado. A ressalva do nº 32, da lista de serviços apenas diz respeito aos materiais produzidos pela empresa construtora fora do local da obra. Não aos que ela adquire para emprego na construção. Naqueles justifica-se a cobrança do ICMS para evitar que empresas de construção civil viessem a funcionar como verdadeiras indústrias de materiais de construção, os mais diversos, como cimento, ferragens, e tantos outros, com significativa evasão do imposto. A empresa dedicada à construção civil, que não é indústria de materiais de construção, é prestadora de serviços. Por isto é contribuinte do ISS. Não do ICMS. A construtora estar inscrita, por exigência das leis estaduais, no Cadastro de Contribuintes desse imposto é de todo irrelevante. Não é a inscrição que faz da empresa contribuinte. O fato de ser a empresa contribuinte é que torna obrigatória sua inscrição naquele cadastro. Mais frágil é ainda o argumento fundado em situação peculiar do Distrito Federal. Com ele vem o STJ confirmando decisões do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, que afirma inocorrer invasão, pelo Estado, de competência do Município, porque "no caso do DF sua competência abrange a legislação sobre a matéria tributária estadual e municipal, uma vez que o DF é ao mesmo tempo juridicamente Estado e Município. A condição singular do Distrito Federal na composição da Federação Brasileira, não lhe confere o direito de fazer incidir o ICMS sobre as operações sujeitas unicamente à incidência do ISS, contrariando dispositivos expressos da Lei Complementar que disciplina essa questão a nível nacional (DL-406). Além disto, se pudesse o Distrito Federal cobrar o imposto, no caso, exercitando a competência municipal, teria de cobrar ISS, e não ICMS, impostos cujas sistemáticas de apuração são inteiramente distintas. Não está o ISS sujeito ao princípio da não cumulatividade, e não tem, por isso, alíquotas diferenciadas entre as operações internas e interestaduais, sendo descabido falar-se em diferencial de alíquota nestas operações. WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR Finalmente, mesmo que se admitisse tal anomalia, aquele fundamento seria aplicável apenas nos casos oriundos do Distrito Federal. 7. A Lei Complementar 87/96 É de decisiva importância, finalmente, observar que a Lei Complementar 87, de 13 de setembro de 1996, determina a não incidência do ICMS sobre as "operações relativas a mercadorias que tenham sido ou que se destinem a ser utilizadas na prestação, pelo próprio autor da saída, de serviço de qualquer natureza definido em lei complementar como sujeito ao Imposto sobre Serviços, de competência dos Municípios, ressalvadas as hipóteses previstas em lei complementar; (art.3º, V). Para os que adotam a tese prevalente na Primeira Turma do STJ, a Lei Complementar nº 87/96 limitou-se a confirmar o regime jurídico em vigor, sem alteração substancial neste particular. Para os que, com a Segunda Turma daquele Egrégio Tribunal, entenderam que o Convênio ICMS 71/89 revogara o Decreto-lei nº 406, é induvidosa a conclusão de que a Lei Complementar 87/96 restabeleceu o regime daquele Decreto-lei, sendo certo, portanto, que as empresas de construção civil não são contribuintes do ICMS. Referida Lei Complementar, que poderia ter alterado o tratamento dessa matéria, a nosso ver confirmou o disciplinamento da Lei Complementar anterior, na medida que determina a não incidência do ICMS sobre as operações com os materiais de construção, quando utilizados na prestação do serviço de construção civil. 8. Considerações finais. Assim, é razoável esperarmos venha a ser uniformizada a jurisprudência, no SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA com a prevalência do entendimento adotado pela Primeira Turma, especialmente em razão do que vem de ser estabelecido pela Lei Complementar nº 87/96, que de qualquer sorte resolveu a questão, seja pela revogação do questionado convênio, para os que o consideravam válido, ou pela confirmação expressa do regime jurídico albergado pelo Decreto-lei nº 406, para os que entendiam desvalioso aquele convênio. WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR Considerando-se, por fim, que se trata de uma questão constitucional, a decisão definitiva do STJ, certamente comportará o apelo extremo para a Corte Maior, a quem cabe dar a última palavra em torno da interpretação da norma do art.155, § 2º, inciso VII, alínea "a", e inciso VIII da Constituição Federal. WWW.PROFESSORSABBAG.COM.BR