XIV Encontro Anual da ABEM Belo Horizonte, 25 a 28 de outubro de 2005 Educação musical em ONGs: o processo pedagógico-musical visto como fato social total Magali Oliveira Kleber Universidade Estadual de Londrina – Uel/ Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS [email protected] Resumo. Esta pesquisa aborda as práticas musicais em Organizações Não Governamentais (ONGS), instituições emergentes dos movimentos sociais e tomadas como lócus de produção de novas formas de conhecimento A pesquisa no campo empírico, foi realizada de 2003 a 2004, em duas ONGS brasileiras: Associação Meninos do Morumbi (cidade de São Paulo) e o Projeto Villa-Lobinhos (cidade do Rio de Janeiro), vinculado à ONG VivaRio e busca compreender como se configuram esses espaços de educação musical, focalizando dois aspectos: 1) como as ONGs estudadas se constituíram como espaços legitimados para o ensino e aprendizagem musicais e 2) como é desenvolvido o processo pedagógicomusical. Ambas ONGs têm como eixo comum o objetivo de congregar, através da música, jovens adolescentes, atingidos pela desigualdade social. Assim, importa compreender o que, de que forma, porque, com quem os jovens aprendem música e como tudo isso está incidindo no processo de transformação sociocultural desses grupos e da própria sociedade. A metodologia qualitativa baseia-se em duas abordagens: o estudo de caso múltiplo e a etnometodologia. INTRODUÇÃO Esta comunicação de pesquisa aborda as práticas musicais desenvolvidas em projetos de base comunitária, institucionalizados como Organizações Não Governamentais – ONGs1 emergentes dos movimentos sociais brasileiros. São contextos onde se oferece uma educação musical de natureza informal para crianças e jovens adolescentes que, por sua condição social e econômica, estariam excluídos do acesso ao ensino formal de música. A dignidade humana e o exercício da cidadania plena são pontos enfatizados nas propostas da maioria das ONGs brasileiras e a cultura é considerada um importante meio de reconstrução da identidade sociocultural. As ONGs, cuja gênese vincula-se aos processos desencadeados pela sociedade civil, orbitam na dinâmica denominada Terceiro Setor e ocupam um espaço importante nas iniciativas que tratam de questões relacionadas à exclusão e desigualdade sociais 1 Segundo Rivera: “El concepto de ONG fué utilizado por vez primera en el año de 1950, en la Organización de las Naciones Unidas, para referirse a organizaciones internacionales, de carácter permanente y constituídas por particulares (de diferentes países) con objetivos no lucrativos. Una de las características centrales de estas organizaciones fué su autonomía e independencia respecto de los gobiernos de los países, su constitución no fué consecuencia de tratados intergubernamentales, sino más bien producto de la labor de intermediación y cooperación internacional. Cfr. ONU. Carta de las Naciones Unidas para la Cooperación y el Desarrollo, 1950. ONU, Nueva York, 1978…E, ainda, segundo Asong “la denominación ONG alude a una especial forma de organización de personas y medios dedicados a impulsar acciones coadyuvantes del desarrollo humano que, a estas alturas, exhibe un reconocimiento en varias legislaciones nacionales e incluso una determinada forma de participación en el sistema de Naciones Unidas y otros sistemas internacionales regionales (OEA, UNESCO, ECOSOC, Banco Mundial, etc.).” (ASONG, 1999, p.7). 2 e os desdobramentos dessas iniciativas estão incidindo em campos emergentes de trabalho, na educação, na cultura, enfim, nas diversas esferas e dimensões da sociedade. Trata-se de um espaço que carece de um acompanhamento no sentido prático e conceitual, dado ao seu caráter ainda ambíguo no que concerne à sua identidade ideológica. A música está entre as atividades de maior apelo para a realização de projetos sociais em ONGs, principalmente com jovens adolescentes. OBJETIVOS O objetivo central dessa pesquisa é compreender como se configura a prática musical no âmbito dos projetos sociais selecionados. Os objetivos específicos são: 1)como esses espaços foram se constituindo e se instituindo como espaços legitimados para se trabalhar com práticas musicais, inclusive com o ensino e aprendizagem musical e 2) como é o processo pedagógico-musical que se instaura nesses espaços.. FUNDAMENTAÇAO TEÓRICA As práticas musicais em ONGs são aqui entendidas como fenômenos sociais a partir do conceito cunhado por Mauss (2003) como “fato social total” em que não há rupturas nem antagonismos entre o social e individual, que propicia e, muitas vezes, impõe novas redes e práticas sociais. Não obstante, esse conceito tenha sido construído a partir de um estudo sobre “sociedades arcaicas”, pode ser tomado como atual para análise da complexidade das diferentes dimensões sociedade contemporânea, interligadas e interagindo simultaneamente nos seus diversos planos, quais seja, religioso, jurídico, morais, econômico, estéticos e morfológicos, manifestados nas representações sociais (Mauss, 2003, p.187). Esta perspectiva vem corroborar com a argumentação de Kraemer (2000) para quem a pedagogia da música, juntamente com a aquisição do conhecimento devem conduzir as ações de compreender e interpretar, descrever e esclarecer, conscientizar e transformar. Desta forma, as ONGs, produto dos movimentos sociais, são tomadas como lócus de performance e produção do conhecimento musical a partir do conceito de “práxis cognitiva” (Eyermann; Jamison, 1998, p. 24). Esta abordagem cognitiva foca a atenção sobre a construção de idéias provenientes dos movimentos socais e no papel dos movimentos intelectuais na articulação da identidade coletiva, como produtores de conhecimento e como forças sociais abrindo espaços para a produção de novas formas de conhecimento. Como práxis cognitiva a música e outras formas de atividade cultural 2 3 contribui para as idéias que os movimentos sociais oferecem e criam uma oposição na ordem já estabelecida na sociedade. O conceito acerca do “fazer musical” está amparado na asserção de John Blaking: “o fazer musical e o senso de musicalidade das pessoas são resultado da interação interpessoal ... [de] sons ordenados, simbolicamente, instituições sociais e uma seleção de capacidades cognitivas e sensório-motoras disponíveis do corpo humano” (Blacking 1992, p. 305). A partir desses pressupostos a música é entendida como uma prática social e culturalmente constituída (Shepherd e Wicke, 1999) e que, assim sendo, seu caráter não pode ser visto fora da noção de sociedade como algo à parte das formas simbólicas e culturais manifestadas pelas pessoas. METODOLOGIA A metodologia qualitativa na modalidade estudo de caso múltiplo foi adotada nessa pesquisa considerando que o seu campo o campo empírico localiza-se em dois cenários distintos, tratando-se de dois projetos sociais desenvolvidos por ONGS: Associação Meninos do Morumbi, São Paulo, capital e o Projeto Villa-Lobinhos, Rio de Janeiro, vinculado à ONG VivaRio. Esses espaços foram se constituindo e se instituindo como espaços legitimados para se trabalhar com práticas musicais, inclusive com o ensino e aprendizagem de música. São dois cenários diferenciados de ensino e aprendizagem musical que têm como eixo comum o objetivo de congregar jovens adolescentes, atingidos pela desigualdade social, em situação de exclusão ou restrição ao acesso de bens materiais e simbólicos, essenciais à construção de uma existência digna e ao exercício da cidadania plena. Trata-se de duas ONGs reconhecidas pelo trabalho que realizam na área de educação musical informal tendo um significativo destaque na mídia e no próprio segmento do Terceiro Setor. A Etnometodologia2 foi utilizada enquanto suporte conceitual para instrumentalizar o olhar para as práticas musicais enquanto um fenômeno social onde as atividades e circunstâncias práticas e o raciocínio sociológico prático são considerados temas de estudo empírico. Importa aqui atentar para como se constrói o conhecimento na dinâmica cotidiana dos atores sociais (Coulon, 1995, p. 16). 2 Harold Garfinkel (Studies in Ethnometodology, 1984) cunhou o termo etnometodologia para identificar a abordagem que trata de como os indivíduos se comunicam enquanto interagem, ocupando-se da maneira como os atores descrevem, criticam e idealizam situações específicas e dão sentido ao mundo social. A realidade, assim vista, não é estável e sim criada por situações específicas envolvendo comunicação interpessoal. A linguagem tem lugar privilegiado na investigação daquilo que é dito e do não dito na comunicação. Na linha do interacionismo simbólico inaugurado por Mead, também para a etnometodologia o foco da análise é a atividade humana por meio da qual os agentes elaboram linhas de conduta em situações concretas. Entretanto, se para Mead tanto os processos interativos que produzem e reproduzem as estruturas sociais como as estruturas em si são igualmente importantes no estudo da realidade social, para os interacionistas contemporâneos a própria realidade social é a interpretação contextual e indicial de signos e símbolos entre determinados agentes. 3 4 A Etnometodologia dá voz aos atores sociais para que estes relatem como é o processo de elaboração de seus pensamentos, busca de soluções, ou seja, como constroem o conhecimento prático. As ONGs são instituições que tem em sua gênese a flexibilidade burocrática, o que lhe deu características para absorver uma práxis que não cabia nas instituições formais. Assim os atores sociais dessa pesquisa tiveram voz na coleta de dados a partir de uma relação construída com a pesquisadora, viabilizada por conversas, bate-papos, participação observante, observação participante, entrevistas abertas. Assim, a coleta exigiu um tempo necessário para que essas relações se estabelecem, dando-se ênfase a uma abordagem microssociológica. A inserção nos dois cenários da pesquisa foi iniciada mediante visitas, observação direta e registros em áudio e vídeo. Trata-se de duas ONGs: Associação Meninos do Morumbi, localizada na cidade de São Paulo e outra Projeto Villa Lobinhos, vinculado à ONG Viva Rio, localizada na cidade do Rio de Janeiro. Em um primeiro momento, em 2002 e 2003, foram realizados, em ambos os Projetos, contatos propiciaram entrevistas com os coordenadores dos Projetos, professores, funcionários jovens adolescentes freqüentadores dos mesmos e pais que estavam presentes no momento das visitas realizadas. O principal objetivo desses primeiros contatos foi o de conhecer a macro estrutura das ONGs que possibilitasse uma descrição elaborada a partir das minhas impressões e, ainda, saber se os coordenadores dos respectivos projetos aceitariam a presença de uma pesquisadora, para realizar um trabalho acadêmicoinstitucional. As minhas primeiras inserções no campo me possibilitaram um exercício de natureza prática e conceitual que me apontaram caminhos a serem trilhados e providências a serem tomadas na etapa da coleta de dados Nessa etapa priorizei construir uma relação de confiança com os sujeitos da pesquisa e me tornar familiar no contexto. A cada dia, uma maior aproximação com o contexto foi dando-me mais liberdade para abordar as pessoas quer fosse com a câmera ou gravador colhendo depoimentos e entrevistas, quer fosse mediante uma conversa informal no pátio. Esse procedimento me permitiu uma maior clareza para fazer o recorte do foco na coleta de dados. DESCREVENDO AS ONGS A Associação Meninos do Morumbi, localizada no bairro Morumbi, é formada por mais de 3500 crianças e adolescentes moradores da cidade de São Paulo, além dos quase 80 funcionários. A maioria é moradora dos bairros mais próximos como Campo Limpo, Paraisópolis, Morumbi, Vila Sônia, Jardim Jaqueline, Real Parque, Caxingui, e Municipios de Taboão da Serra e Embu. Flávio Pimenta criou o grupo em 1996, quando aglutinou alguns jovens carentes que ficavam circulando pelo bairro com o objetivo de desenvolver uma prática musical como uma forma de criar alternativas às drogas e à delinqüência juvenil que, segundo ele, permeava o cotidiano daqueles jovens. 4 5 Atualmente a agenda dos Meninos do Morumbi é extensa e as apresentações se mesclam atividades em que o grupo toca, dança e canta arranjos de diversos gêneros da música afro-brasileira como o jongo, maracatu, funk, samba, maxixe, aguerê, entre outros, que são executados pela Banda Show e formam o eixo das atividades de ensino e aprendizagem musical. São várias as atividades que complementam o trabalho artístico em constante desenvolvimento, com uma equipe é formada por psicólogos, pedagogos, professores de música, informática, dança, teatro, canto, futebol, jiu-jitsu, além de monitores que dão assistência às aulas e infra-estrutura básica para as apresentações e atividades dos integrantes. A Ong VivaRio é sediada na cidade do Rio de Janeiro, com muitas ramificações em diversas atividades, entre elas, o Projeto Villa Lobinhos, coordenado pelo músico Turíbio Santos. A VivaRio é uma ONG que, segundo texto disponibilizado no site: “mobiliza indivíduos, associações e empresas para, juntos, construírem uma sociedade mais justa e democrática...nos últimos sete anos vem transformando necessidades sociais em oportunidades de ação, promovendo uma cultura de solidariedade e de paz” (www.vivario.org.br capturado em 06/03/2003). Hoje está presente em cerca de 350 favelas e comunidades pobres da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, investindo na educação, no desenvolvimento e na superação da violência. O Villa-Lobinhos, uma das ações desenvolvidas no âmbito da ONG VivaRio, é um projeto que promove a educação musical para jovens instrumentistas de famílias de baixa renda entre 12 e 20 anos de idade. São adolescentes de comunidades carentes e que, segundo a coordenação, estão expostos a condições precárias de existência material. Iniciou-se em janeiro de 2000, quando foi realizado no Museu Villa-Lobos o “Primeiro Encontro de Jovens Instrumentistas” que reuniu cerca de 100 crianças e adolescentes, de 8 a 18 anos de idade. Dos participantes foram selecionados 25 alunos que, de acordo com a coordenação, além de uma pré-disposição para a música possuem a vontade de se aprimorar no seu instrumento. Na sede do projeto, instalada na Gávea, bairro de classe média alta carioca, os alunos participam das aulas de percepção musical, prática instrumental, prática de conjunto e informática, entre outras atividades. Como bolsistas, recebem, ainda, vale-transporte e uma ajuda de custo para gastos pessoais. Foram considerados atores sociais em ambas ONGs, os participantes nas suas diferentes modalidades: alunos aprendizes, alunos monitores, professores, coordenadores, funcionários, artistas convidados. O ambiente de observação ampliou-se do espaço das ONGs para as comunidades dos alunos, salas de concertos, momentos de apresentações musicais, momentos de lazer, convivência domestica. Os depoimentos foram registrados em MD e transcritos. As atividades musicais que considerei importante foram registradas em MDV o que permitiu retomar o meu olhar - também considerado como um recorte da totalidade daquele momento. Foram coletados foram 30 depoimentos com os participantes da Associação Meninos 5 6 do Morumbi e 35 depoimentos com os participantes do Projeto Villa Lobinhos. As gravações em MDV somaram 40 horas de registros nas diferentes situações do cotidiano dos atores sociais, quer sejam performances musicais, bate-papos, aulas individuais e/ou coletivas. O período de observação e coleta abrangeu o tempo transcorrido entre 2003 e 2004. A análise de todo o material coletado encontra-se em fase de categorização e análise. RESULTADOS PARCIAIS A análise e interpretação que ancoram esse estudo pressupõem uma compreensão das práticas musicais enquanto articulações socioculturais cuja forma e conteúdo simbólicos que se refletem no fluxo e refluxo das representações socioculturais dos atores sociais em questão. As ONGs vêm se apresentando como uma significativa alternativa para trabalhos sócio-educacionais, em plena expansão quantitativa, dado às características que lhes permitem uma grande mobilidade de diferentes ordens mas lhes asseguram base institucional.A prática musical se apresenta como significativo vetor para se propor projetos sociais, caracterizando-se como um campo que carece de mapeamento e aprofundamento conceitual por parte dos educadores musicais. Os dados coletados deram pistas de como re-elaborar questões que me conduziram a um aprofundamento sobre o entendimento da natureza das ONGs estudadas e, conseqüentemente, das interações que ali acontecem. A análise iniciada já aponta para categorias a serem depuradas, como: a performance conduzindo os processos de ensino e aprendizagem musical individual e coletiva; importância do coletivo; os cuidados sociais permeando os processos de aprendizagem musical; o estigma da cor da pele, do lugar onde moram, da origem pobre, colados nas identidades dos alunos; oportunidades de escolhas; formas disciplinares explícitas e tácitas estabelecidas na dinâmica das relações sociais e refletidas nos processos didático-pedagógico e artístico; o repertório predominante nas práticas pedagógicas e nas apresentações, considerando sua relação com padrões socioculturais e com as práticas musicais presentes no cotidiano dos alunos. A utilização da oralidade e do processo de imitação como recurso didático-pedagógico, contrapondo-se ao valor da leitura musical como algo que confere o status de “ser músico”, emergem como pontos importantes nas narrativas dos alunos e professores relacionados com o processo pedagógico-musical e com a construção de suas identidades musicais. Outro ponto a ser considerado é a dinâmica na estrutura da comunicação entre as ONGs e os projetos sociais invocando a figura da rede, cujo desenho tende a ocupar lugar preponderante no imaginário da sociedade pós-industrial. Este conceito será analisado como um componente importante na dinâmica de um relacionamento horizontal enfatizando sua 6 7 natureza democrática e determinante na estruturação das ONGs, enquanto categoria institucional, de caráter fortemente interdisciplinar, ancorados nas perspectivas filiadas às várias correntes do chamado pensamento sistêmico e às teorias da complexidade. Assim, a presente pesquisa busca contribuir para a reflexão e a prática sobre papel da música no processo politizado dos movimentos e projetos sociais em ONGs, imersos na busca de uma verdadeira transformação social, aonde a desigualdade venha a ser , de fato, minimizada em favor uma sociedade mais humana. BIBLIOGRAFIA BIBLIOGRAFIA ABRAMOVAY, Miriam (et al.) Gangues, galeras, chegados e rappers: juventude, violência e cidadania nas cidades da periferia de Brasília.Rio de Janeiro: Garamond, 1999. ALBERTI, Verena. Ouvir contar: textos em História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV. 2004. ARROYO, Margarete.Representações sociais sobre práticas de ensino e aprendizagem musical: um estudo etnográfico entre congadeiros, professores e estudantes. Tese (doutorado). Porto Alegre: Programa de Pós-Graduação em Música, UFRGS, 1999. ASONG, Sergio Alarcón G. Perspectivas de las Organizaciones No Gubernamentales. 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