Considerações sobre a crítica
de Maurice Merleau-Ponty à concepção
de linguagem de Henri Bergson
Vanessa de Oliveira Temporal
Doutoranda em Filosofia pela
UFSCar.
vanessatemporal@yahoo.
com.br
Palavras-chave
Bergson; Merleau-Ponty;
linguagem.
Resumo
Para Henri Bergson, a linguagem é caracterizada como função motora e à medida que se abstrai e perde esta dimensão de ferramenta
prática, ela deixa de ser útil à vida. No seu último livro, As Duas
Fontes da Moral e da Religião, o pré-determinado adquire um estatuto positivo com a figura do místico, ligando o indivíduo à totalidade da vida. Maurice Merleau-Ponty apresenta uma crítica a este
aspecto da filosofia bergsoniana ao afirmar que os atos humanos
não são simplesmente vitais e a ação puramente motriz. O homem
possui uma estrutura englobante de comportamento chamada “atitude categorial” (Goldstein) ou “função simbólica” (Cassirer). Antes
mesmo de defini-la em seu conteúdo, sabe-se que ela é de direito
coextensiva a todos os comportamentos humanos, que ela é aquilo
que se exprime em todas as nossas condutas, desde a sexualidade e
a afetividade até as funções intelectuais mais elaboradas, passando
pela percepção. Portanto, este aspecto propriamente estrutural do
comportamento simbólico possui uma implicação precisa: o ato
da linguagem não pode ser facilmente abstraído do restante da
percepção. Neste contexto, gostaríamos de analisar a passagem da
dimensão motora da linguagem para a representativa. Haveria um
nível pré-predicativo (não-motor e, ainda assim, representativo) na
filosofia de Bergson?
Considerações iniciais
O que acontece quando colocamos a questão das condições da verdade não mais a partir de seus pressupostos transcendentais, como
fazia Emmanuel Kant na Crítica da razão pura, mas a partir das regras que, da constituição do próprio corpo, determinam o sentido?
Trata-se de uma tabula rasa de um novo tipo, que exige a invenção
de uma maneira de falar filosófico para além dos conceitos e da
linguagem, compreendendo talvez, inclusive, os questionamentos
de inspiração transcendental. Cabe apresentar filosoficamente esta
posição de abandono e de renovação examinando os argumentos
críticos desenvolvidos por Henri Bergson e repensados por Maurice Merleau-Ponty. Os desdobramentos deste diálogo destacam o
aspecto vital da significação, a qual vinha sendo identificada pela
tradição como pertencente exclusivamente ao intelecto.
Em uma passagem do artigo “Linguagem e Experiência em
Merleau-Ponty” de Carlos Alberto Ribeiro de Moura, ao partir da
pergunta pela possibilidade da redução da filosofia à análise da
significação das palavras e proposições, o autor apresenta a resposta negativa de Merleau-Ponty e desenvolve os argumentos que
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opõe este último à “filosofia analítica”1. Entretanto, ao perguntar
pela origem da “certeza prévia de que a linguagem não traz consigo a fonte de seu sentido” (MOURA, 2001, p. 298), apesar de
Carlos Alberto recusar a interpretação de José Arthur Giannotti2,
segundo a qual “esse projeto fundacionista seria de matriz husserliana” (MOURA, 2001, p. 300), ainda assim, identifica “o projeto
de reportar a linguagem à experiência” como sendo especialmente
“pós-husserliano”, sendo que na Fenomenologia da Percepção, “a
linguagem ainda não tem nela mesma a fonte de sua significação,
exigindo, desde então, que nós nos reportemos a uma instância
pré-linguística para compreender a sua ‘possibilidade’” (MOURA,
2001, p. 301).
No entanto, a relação com Edmund Husserl, apesar de ser fundamental nesta obra, parece não ser exclusiva quando se trata da
linguagem, pois esta citação da obra de Merleau-Ponty deve-se,
marcadamente, à filosofia de Bergson, que afirma a inadequação
da linguagem para exprimir o Ser, estabelecendo, segundo Bento
Prado Júnior (1989, p. 63), um domínio “pré-predicativo” ou “pensamento de contato”. Assim, caberia uma apresentação da questão
da linguagem em Merleau-Ponty a partir das questões trazidas pela
filosofia de Bergson, na qual o primeiro identifica um problema, na
medida em que possui uma dificuldade intrínseca quanto ao método intuitivo, sobretudo quanto à possibilidade de sua aplicação
sem mistura à teoria de base racional. Esta dificuldade se coloca
em sua filosofia, pois Bergson parte da superação da distância que
a tradição entrepôs ao fenômeno, o que o levou à busca por uma
coincidência com o Ser. Sua obra se concentra em demonstrar e
combater este uso puramente lógico do pensamento na medida em
que abstrai e antropomorfiza a condição primordial do ser vivo.
Trata-se de um autor cuja teoria procura fundar uma interpretação
para além do texto, tendo em vista que qualquer refutação que
permaneça na análise conceitual corre o risco de cair na crítica já
prevista da abstração lógica. No Ensaio sobre os Dados Imediatos
da Consciência, por exemplo, Bergson critica o fato da tradição
filosófica não distinguir realidade física de realidade psicológica,
o que tende a causar certo estranhamento se pensarmos que, na
história da filosofia, o próprio Descartes formulou o problema da
relação entre alma e corpo e, portanto, distinguia realidade física
de realidade psicológica. Mas, aqui, podemos reconhecer a força
da crítica bergsoniana: assumir esta distinção entre alma e corpo
discursivamente não significa que a confusão entre os dois termos
tenha deixado de ser operada. Tal crítica configura um novo aspecto de análise: o que Bento Prado Júnior (1989, p. 42) chamou
1 Trata-se de uma abordagem geral da filosofia, cujo método, através da análise da linguagem, repousa sob um forte desenvolvimento técnico e filosófico da lógica. Seguindo
a tradição do empirismo anglo-saxão, já presente em John Locke, ela visa, por meio do
emprego da lógica, esclarecer o sentido dos enunciados, concebendo a filosofia como um
estudo das expressões verbais, abrindo “mão da pergunta pela legitimidade dos conceitos filosóficos” (MOURA, 2001, p. 295, grifo no original), em favor da argumentação,
utilizando procedimentos da lógica formal. O termo “filosofia analítica” se refere à nova
lógica contemporânea provinda dos trabalhos de Gottlob Frege e Bertrand Russerl no fim
do século XIX e início do XX. A análise lógica da linguagem procura colocar em evidência os erros de raciocínio que ela pode induzir.
2 Giannotti, J. A. Apresentação do mundo. São Paulo: Cia. das Letras, 1995, p. 188 e 190.
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de estilo psicanalítico de pensamento. Esta dimensão inconsciente
não possui um aparato biológico, mas sim, lingüístico. Há uma
estruturação nas palavras que projeta virtualidades de sentido, extrapolando o funcionamento exclusivamente motor do cérebro. A
linguagem também é caracterizada como função motora. À medida
que se abstrai, ela perde esta dimensão de ferramenta prática, deixando de ser útil à vida.
Para Merleau-Ponty, Bergson tem razão ao denunciar a busca da
tradição pelas essências através de abstração lógica, o que determina o sentido de antemão a permanecer no âmbito do desdobramento conceitual. Mas, ao propor uma coincidência com o Ser, Bergson
também prejulga o sentido, pois ainda se relaciona com o fenômeno do mesmo modo que a tradição, apenas se posicionando do
lado oposto ao pensamento que critica. Os dois extremos ignoram
a mediação. Merleau-Ponty se coloca, desta forma, crítico tanto da
posição de Bergson quanto da filosofia analítica:
Em um caso como no outro, a linguagem entra em cena seja
como “potência de erro”, aquilo que é apenas “anteparo” entre
nós e o tecido contínuo que nos liga às coisas, seja como uma
linguagem que se fecha sobre si mesma, fala apenas de si,
como linguagem que não fala de nada, logo que não dá acesso
a nada. Em um caso como no outro, a linguagem não fala do
mundo, e, por isso mesmo, estamos diante de dois “positivismos”, de dois “erros aparentados”: entre uma filosofia que se
situa no plano dos enunciados e deseja que nós nos fiemos
absolutamente às palavras e uma doutrina que ambiciona habitar no “silêncio das coisas” e quer que desconfiemos absolutamente da linguagem, há uma mesma ignorância: a cegueira
persistente em reconhecer que a linguagem é, antes de tudo,
mediação entre o sujeito, seu mundo e os outros (MOURA,
2001, p. 296, grifos no original).
Merleau-Ponty busca a linguagem que fale do mundo vivido, que
seja intrinsecamente relação com o não-verbal. Reconhece também
que a experiência no mundo vivido não se dá isolada da linguagem
e não há um silêncio primordial, sendo que a possibilidade deste
último é concebida apenas de modo retrospectivo. Assim, faz-se
necessário ater-se à linguagem enquanto mediação com a experiência. Por que a tradição era distância, Bergson se fez coincidência,
sem se dar conta que se colocava no pólo oposto e também operava uma abstração, a da linguagem, forma pela qual o Ser se apresenta ao homem, sempre com a mediação desta última.
Em Merleau-Ponty, há identificação da experiência no mundo
como fundamentalmente corporal, mas trata-se de uma “vivência-falada”, ou seja, os atos humanos estão diretamente comprometidos com o corpo, mas não seriam simplesmente vitais e a ação
puramente motriz3. O homem possui uma estrutura englobante
de comportamento chamada “atitude categorial” (Goldstein) ou
“função simbólica” (Cassirer). Antes mesmo de defini-la em seu
393
3 “Au delà de l’action biologique, il ne reste qu’une action mystique qui ne vise aucun
objet déterminé. Les actes proprement humains, – l’acte de la parole, du travail, l’acte de
se vêtir par exemple, – n’ont pas de signification propre. Ils se comprennent par référence aux intentions de la vie: le vêtement est um pelage artificiel, l’instrument remplace
un organe, le langage est un moyen d’adaptation au ‘solide inorganisé’”. (MERLEAU-PONTY, 1953, p. 176).
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conteúdo, sabe-se que ela é de direito coextensiva a todos os comportamentos humanos, que ela é aquilo que se exprime em todas as
nossas condutas, desde a sexualidade e a afetividade até as funções
intelectuais mais elaboradas, passando pela percepção. Quando tal
estrutura cede, como é o caso do célebre Schneider, então o quadro clínico é impressionante e quase infinito, à medida que afeta
a totalidade de nossos comportamentos lingüísticos, cognitivos,
sensíveis, motores ou afetivos. Portanto, este aspecto propriamente estrutural do comportamento simbólico possui uma implicação
precisa: o ato da linguagem não pode ser facilmente abstraído do
restante da percepção.
A fim de finalizar estas breves considerações iniciais, pode-se
acrescentar que esta crítica de Merleau-Ponty a Bergson apresenta
muitos aspectos de contato com a filosofia deste último. Propomos
uma aproximação dos autores através da questão específica do
sentido e sua caracterização vital, pois identificamos uma continuidade consciente da parte de Merleau-Ponty da questão da
linguagem, a qual, segundo este último, não haveria sido esgotada
por Bergson. “Teria sido belo que o mesmo olhar [de Bergson] para
as origens se aplicasse depois às paixões, aos acontecimentos, às
técnicas, ao direito, à linguagem, à literatura, para encontrar-lhes
o espiritual peculiar” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 211). Neste sentido, procuramos as influências bergsonianas no pensamento de
Merleau-Ponty, tendo sempre em vista que não se trata de apreender a questão em termos de verdadeiro/falso, mas sim, em termos
que nos auxiliem a compreender os dois autores a partir da seguinte passagem: “Somos ou não somos cartesianos? A pergunta não
tem muito sentido, visto que aqueles que rejeitam isto ou aquilo
em Descartes só o fazem por razões que devem muito a Descartes”
(MERLEAU-PONTY, 1991, p. 9). O mesmo questionamento poderia
ser empregado com relação à influência de Bergson no pensamento
de Merleau-Ponty, pois identificamos a influência do primeiro no
modo do segundo compor suas críticas.
A crítica de Henri Bergson à linguagem:
a questão da pré-determinação do sentido
A questão bergsoniana da linguagem parte de uma perspectiva
crítica em relação ao seu emprego pela tradição, a qual segue as
articulações próprias à estrutura verbal em detrimento de suas articulações com o mundo, o que conduz ao fato de que o simples
emprego das palavras condicione os posicionamentos metafísicos
a favor de uma teoria em específico, o associacionismo. Assim, a
questão se desenvolve de modo a evitar os desdobramentos desta
última. Mas,
394
Qual o erro capital do associacionismo? É o de ter posto todas
as lembranças no mesmo plano, ter desconhecido a distância
mais ou menos considerável que as separa do estado corporal
presente, ou seja, da ação. (...) Vale dizer que o associacionismo misturou e confundiu todos os planos de consciência
diferentes, obstinando-se em ver numa lembrança menos
completa apenas uma lembrança menos complexa, quando
em realidade trata-se de uma lembrança menos sonhada, isto
é, mais próxima da ação e por isso mesmo mais banal, mais
capaz de se modelar - como uma roupa de confecção - confor-
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me a novidade da situação presente. (BERGSON, 1999, p. 282,
grifos no original).
Colocar “todas as lembranças no mesmo plano” equivale a pretender que “todo estado psicológico seja uma espécie de átomo, um
elemento simples” (BERGSON, 1999, p. 157). Deste modo, a teoria
associacionista ignora que o estado puro é fruto de um exercício
de abstração e impossível de ser experimentado empiricamente.
Além disto, este estado puro estabelece uma “distância” entre as
“lembranças” e o “estado corporal presente”, deixando uma série
de questões importantes sem resposta: 1) Qual o critério que faz a
lembrança aderir à percepção que a evoca? 2) Qual a razão da associação obedecer ao padrão da semelhança ou contigüidade e não
alguma outra? 3) Qual o motivo de uma lembrança determinada ser
eleita entre milhares de lembranças também semelhantes ou contíguas à percepção atual? Assim, o associacionismo é uma teoria
incompleta, pois opera a partir dos critérios de simples e complexo,
limitando-se a um plano estritamente lógico. Através da crítica ao
caráter abstrato desta teoria, Bergson pode formular respostas as
questões acima, o que foi feito a partir da elucidação da existência
de uma estreita relação entre as ideias e a ação.
Do que foi visto acima, pode-se caracterizar a crítica bergsoniana à
linguagem como uma extensão da crítica à teoria associacionista:
Por mais que se disfarce a hipótese [ideias e lembranças como
elementos simples] sob uma linguagem tomada de empréstimo
à anatomia e à fisiologia, ela não é mais que a concepção
associacionista da vida do espírito; leva em conta apenas a
tendência constante da inteligência discursiva a separar todo
progresso em fases e a solidificar em seguida essas fases em
coisas; e, como ela nasceu, a priori, de uma espécie de preconceito metafísico, não consegue nem acompanhar o movimento
da consciência nem simplificar a explicação dos fatos (BERGSON, 1999, p. 145, grifos no original).
395
A anatomia e a fisiologia são ciências empíricas e descritivas que
se deparam constantemente com a articulação entre a estrutura do
mundo e o caráter subjetivo da observação, estando, portanto, mais
próximas de distinguir e exprimir as diferenças de natureza das diferenças de graus. O uso da linguagem verbal sempre toma parte de
antemão à teoria associacionista no que diz respeito ao tratamento
dispensado à natureza de seu objeto, ela irá sempre pressupor que
se trata de “coisas” dispostas no espaço e que podem ser apreendidas por meio de “fases”. Por isto o emprego do termo “preconceito
metafísico” recai justamente no fato da simples presença da linguagem acarretar escolhas inconscientes. O “movimento da consciência” e a simplificação da “explicação dos fatos” serão assim alheios
à linguagem, o que pode suscitar uma questão quanto à legitimidade em apreender a experiência a partir desta última.
Ao inserir o homem na cadeia evolutiva, através de uma análise
do desenvolvimento do sistema nervoso, Bergson nos apresenta a
posterioridade do intelecto em relação às funções vitais do organismo. Como é necessário vivermos em primeiro lugar, a ação eficaz
foi sempre garantida pelo organismo. Se a construção do sentido
dependesse da coleta prévia de informações, valer-se-ia de tempo
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precioso para a economia do organismo. Assim, anteriormente
ao contato do corpo com o fenômeno, o sentido da ação já está
definido, ainda que em âmbito pré-predicativo. Inconscientemente, o organismo vivo já apreende o espaço de modo heterogêneo,
segundo suas necessidades mais fundamentais. Identifica “abrigo”,
“inimigo”, “alimento”, etc. Quando passamos para o âmbito do intelecto, com a linguagem verbal, ocorre um funcionamento similar
para a construção do sentido. Previamente à leitura ou à audição
de um discurso, o ouvinte formula hipóteses com base nos elementos presentes ao redor do emissor ou presentes em sua memória.
Conforme o desenrolar do discurso, as hipóteses vão sendo postas
de lado ou confirmadas, de modo a sobrar apenas uma hipótese
final, a qual é tomada pelo ouvinte como sendo o sentido intencionado pelo emissor. Ocorre que, o simples emprego da linguagem
verbal favorece a formulação de algumas hipóteses e dificulta outras. Como é o caso da questão da natureza da consciência, ou da
defesa da liberdade. A linguagem tende à concepção da consciência
enquanto substância e ao determinismo da condição humana. Ela
tem, portanto e como vimos anteriormente, uma tendência ao associacionismo, tomando decisões metafísicas antes mesmo da análise
dos fenômenos. Desta forma, constitui-se a questão da pré-determinação do sentido, que tem sua base na prioridade que Bergson
atribui ao âmbito vital da percepção, atribuindo ao sentido um
comprometimento com a manutenção do ser vivo; mas que se desenvolve e se torna um problema filosófico na medida em que são
compostas teorias a partir da lógica interna à linguagem verbal.
A solução de Bergson para a pré-determinação do sentido se faz a
partir do estabelecimento de um âmbito alheio à linguagem4. Uma
teoria da significação que dará a base para uma psicanálise da
razão de Gaston Bachelard seria um passo em direção ao conhecimento e se faz necessária já em Bergson, na medida em que indivíduos com motivações psicológicas distintas atribuem significações
valorativamente discordantes a uma mesma palavra enquanto sinal
gráfico. Tal crítica configura o aspecto psicanalítico da análise,
ao qual nos referimos acima. Segundo Bento Prado Júnior (1989,
p. 42),: “Para além da tese, a análise vai buscar um conteúdo latente que não aflora à consciência tética. Essa raiz inconsciente é
tematizada e nela se encontram os devaneios de uma imaginação
irresponsável”5.
4 Cabe observar que esta solução compõe o horizonte de sua obra como um todo,
adquirindo variações conceituais conforme o problema analisado em cada uma delas.
Em Matéria e Memória, esta tentativa de esclarecer e eliminar sistemas interpretativos
prévios se dá a partir da criação da noção de imagem, que é a afirmação de uma união
positiva do homem com o mundo, superando de imediato o “nada existencial” da tradição filosófica. A escolha da noção de imagem leva em conta o fato de o homem olhar o
novo com hipóteses já elaboradas anteriormente a partir do passado. Despir-se de toda
interpretação, é esta a proposta do autor com a noção de imagem. A filosofia passa da
busca pelo sentido em direção ao apagamento dos sentidos atribuídos inconscientemente
à realidade pelo homem. Em A Evolução Criadora, a análise da noção do nada possibilita
um desenvolvimento desta crítica. Ao traduzir uma insatisfação humana em palavra, o
nada releva a tendência em ignorar a experiência imediata do real em favor da coerência
interna do pensamento lógico.
5 Na seguinte passagem de Os Signos, podemos encontrar este mesmo procedimento de
pensamento, o que demonstra um dos aspectos da influência de Bergson no pensamento
merleau-pontiano: “Mesmo nas ciências, um conjunto teórico superado pode ser reinte-
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Trata-se de uma ruptura com relação à tradição dialética da história da filosofia: a preocupação não está em elaborar uma tese em
oposição à outra. Embora Bergson assuma tal postura crítica em relação à tradição, sua filosofia não se constitui em uma positividade
oposta à vacuidade de uma tese oposta. “O bergsonismo propõe-se,
justamente, ultrapassar esta fase dialética da filosofia e desiste da
eterna e estéril oposição dos conceitos. Trata-se, pelo contrário, de
explicitar os pressupostos da tese criticada” (PRADO JR., 1989, p.
42, grifo no original).
É no âmbito do comprometimento do corpo com a vida que devemos buscar um critério para a atribuição de significação:
todo ser vivo, talvez mesmo todo órgão, todo tecido de um ser
vivo generaliza, quer dizer, classifica, uma vez que sabe colher
no meio em que está, nas substâncias ou nos objetos mais diversos, as partes ou os elementos que poderão satisfazer tal ou
tal de duas necessidades; negligencia o resto. Isola, portanto, a
característica que o interessa, vai direto para uma propriedade
comum; em outros termos, classifica e, por conseguinte, abstrai e generaliza (BERGSON, 2006, p. 58).
A citação coloca a generalização e a abstração – faculdades ligadas
na tradição filosófica ao raciocínio – claramente no âmbito comum
a todos os seres vivos, podendo ser inclusive apresentadas como
uma característica própria do vivo ao serem encontradas também
fora dos indivíduos, nos órgãos e nos tecidos. Este âmbito comum
sugere um novo domínio para estas faculdades: ao invés de serem
pensadas, elas são vividas, ou seja, naturalmente desempenhadas
pelo corpo. Desta forma, os mais diferentes objetos podem ser agrupados segundo as necessidades instintivas do homem, criando uma
ideia geral a partir desta classificação desempenhada. As ideias gerais são fundamentais para o estabelecimento da linguagem, a qual
tem em comum com elas a criação de gêneros abstraídos do tempo.
Nota-se que a palavra é caracterizada também a partir de sua significação fisiológica. Apesar de tocar o domínio do entendimento, seu
desempenho é análogo ao dos aparelhos motores:
o entendimento, imitando o trabalho da natureza, montou, ele
também, aparelhos-motores, desta vez artificiais, para fazê-los
responder, em número limitado, a uma quantidade ilimitada de
objetos individuais: o conjunto desses mecanismos é a palavra
articulada (BERGSON, 1999, p. 189).
A necessidade de abarcar o maior número possível de objetos individuais, constituindo uma grande quantidade de possibilidades
de reação do organismo vivo frente ao meio, coordena-se com a
parcialidade da consciência, que irá selecionar seus conteúdos a
partir do critério da utilidade. O que tornaria particular uma teoria
da cognição provinda das considerações a respeito da linguagem
enquanto cópia de um procedimento sensório-motor está na inversão das teorias tradicionais, segundo as quais o sentido seria uma
produção da leitura ou audição. Estando a linguagem comprometi-
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grado na linguagem daquele que o supera, continua significante, conserva a sua verdade” (MERLEAU-PONTY, 1991, p. 8).
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da primeiramente com a ação sobre os objetos, ela não pode deixar
a interpretação para um momento posterior ao contato, pois seria
ineficaz. O sentido deve ser realizado previamente em um contexto
pré-predicativo, de modo que o processo da leitura/audição é antecedido de uma hipótese que vai se confirmando ou desconstruindo
na medida em que fluem. Assim, a linguagem nunca se dá de maneira pura, mas, sempre envolta por um sistema interpretativo. Por
trás do sentido, sempre encontraremos um contexto espiritual.
Michel Foucault, em As Palavras e as Coisas, ao buscar as condições de possibilidade das ciências humanas, depara-se com uma
questão similar. O prefácio desta obra apresenta a tese de que sem
um “quadro” (critério prévio ordenador) não há a possibilidade de
se pensar o objeto. Por conta disso, é necessário evidenciar o campo
epistemológico (FOUCAULT, 2002, p XVIII) da experiência de ordem
e de seus modos de ser, ou seja, fora de qualquer critério referente a
um valor racional ou a formas objetivas, é preciso encontrar as condições de possibilidade dos conhecimentos e teorias já consolidadas.
A linguagem, lugar privilegiado enquanto permite a justaposição de
objetos, caracteriza-se justamente por seu não-lugar, avizinhando
coisas impossíveis de serem vizinhas no real. O resultado é a categorização e a enumeração. Mas, quais seriam os critérios que permitem a ordenação sobre a forma de um agrupamento nominal dos
seres? A solução é buscada, nem a priori nem empiricamente, no
fato de que não há semelhança ou diferença que não resulte de uma
operação precisa e da aplicação de um critério prévio. Este critério
é encontrado na intersecção da experiência do homem comum com
os cientistas e filósofos, na experiência nua da ordem e de seus modos de ser (técnicas, valores, hierarquia das práticas, trocas, percepção, linguagem, etc.). Assim, se para Bergson, o sentido prévio com
que abraçamos a realidade é regrado segundo as necessidades vitais
mais fundamentais, para Foucault a análise se encontra no âmbito
da cultura, cujos códigos fixam as ordens empíricas que o homem
terá de lidar e irá se encontrar. Apesar de operarem a partir de esferas distintas, ambos partem da necessidade de se evidenciar os
critérios não-racionais com que o homem ordena os primórdios de
sua experiência com o mundo. Esta é a busca de Bergson que procuramos evidenciar nestas breves considerações sobre a linguagem
e suas limitações enquanto instrumento instaurado posteriormente
ao contato direto com a realidade.
Já Merleau-Ponty procura inserir-se a meio caminho das duas concepções precedentes.
A análise de Maurice Merleau-Ponty à questão da linguagem:
a busca pela superação do pré-determinado
Vimos nas considerações iniciais que a crítica de Merleau-Ponty à
Bergson se deve ao fato deste último ignorar que a linguagem é,
antes de tudo, mediação. Cabe agora precisar a que tipo de mediação o autor se refere.
O pensamento, antes de tudo, coloca o mundo sensível ao fundo de
todo processo significante. Bergson nos conduz a esta tese ao enfocar o aspecto vital da significação, retrocedendo a questão do sentido ao contato imediato com os objetos. No entanto, não se pode
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negar que, de suas raízes corporais, a linguagem institui uma nova
ordem de comunicação que a percepção não poderia tirar dela
mesma. Resta, portanto, compreender como se produz a linguagem
a partir do sensível e o que ela cria de novo em relação a ele, visto
que o mundo inteligível não se sobrepõe ao mundo sensível, mas,
bem ao contrário, o primeiro só tem significado na medida em que
ele é determinado pela reflexibilidade já constitutiva das ligações
entre o corpo, os outros e o mundo.
Em O Visível e o Invisível, Merleau-Ponty deixa claro que a filosofia
não é um léxico, não se interessa pela significação das palavras. A
filosofia deve conduzir às coisas mesmas e à expressão destas últimas. Caso a tradição – e aqui o autor inclui a tentativa bergsoniana
da coincidência –, não tenha preservado esta clareza, traduzindo a
expressividade do Ser para seu âmbito, é preciso haver uma reforma, a qual é colocada em termos do prejulgamento do sentido:
Se é verdade que a filosofia, desde que se declara reflexão ou
coincidência, prejulga o que encontrará, torna-se-lhe necessário então recomeçar tudo de novo, rejeitar os instrumentos
adotados pela reflexão e pela intuição, instalar-se num local
em que estas ainda não se distinguem, em experiências que
não foram ainda “trabalhadas”, que nos ofereçam concomitante e confusamente o “sujeito” e o “objeto”, a existência e a
essência, e lhe dão, portanto, os meios de redefini-los (MERLEAU-PONTY, 2009, p. 127, grifo nosso).
399
Esta citação é fundamental para o estabelecimento de um diálogo
entre os dois autores em questão, pois ela apresenta de que modo
Merleau-Ponty se situa em relação à concepção da filosofia enquanto exercício de uma racionalidade ou ao projeto bergsoniano
da intuição, que se opõe a esta última e que é claramente citado
acima ao se referir à filosofia como “coincidência”. A questão a
ser superada tanto por uma postura quanto pela outra, é o fato da
filosofia prejulgar o que encontrará, portanto, faz aqui também
referência explícita ao problema bergsoniano da pré-determinação
do sentido. A solução está em “recomeçar tudo de novo”, “rejeitar
os instrumentos adotados pela reflexão e pela intuição”. Mas, como
recomeçar? Como adotar novos instrumentos?
A fim de um bom esclarecimento da questão do sentido e se ele
pode se dar de maneira não-determinada, não basta permanecermos nas obras de Bergson, porque para ele, a articulação entre vida
e linguagem é impossível de ser determinada em termos de racionalidade.Ela se dá em um nível anterior a esta última, no plano do
vivido pelo corpo. Será neste sentido que o autor procurará fora
da linguagem, situações não-verbais com interesse vital, como o
riso, tema de um de seus livros, e a gentileza, tema de uma aula em
seu período em Clermont Ferrand. O primeiro em favor de punir o
automatismo e o segundo em vista de uma integração a despeito de
uma sociedade baseada na divisão de tarefas.
Apesar de Bergson assegurar a apreensão do novo a partir de sua
teoria dos graus de tensão da consciência, a questão da pré-determinação persiste até seu último livro, As duas Fontes da Moral
e da Religião, onde Bergson propõe a noção de instinto virtual,
a função fabuladora e a valorização da figura do místico. Desta
forma, o pré-determinado adquire um estatuto positivo, ligando
Anais do seminário dos
estudantes de pós-graduação
em filosofia da UFSCar
2014
10a edição
ISSN (Digital): 2358-7334
ISSN (CD-ROM): 2177-0417
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o indivíduo à totalidade da vida. A ordem vital define o próprio
mundo segundo o qual a ação é sempre articulada à ideia, não à
ideia pensada, mas, vivida, a qual garante ao homem estar economicamente engrenado ao exterior, estando em condição de agir sobre ele para transformá-lo. Este caráter regulador da vida faz com
que ela desloque constantemente seu centro em função das novas
necessidades de ação. Mas, ainda que marcada pela possibilidade
de evolução, as ações humanas não apresentam um equivalente
intelectual sob a forma de uma representação. Neste contexto, gostaríamos de analisar a passagem da dimensão motora da linguagem
para a representativa. Haveria um nível pré-predicativo (não-motor
e, ainda assim, representativo) na filosofia de Bergson? Qual seria a
influência da linguagem em um nível inconsciente? A filosofia de
Merleau-Ponty, ao propor “recomeçar” resolve estas questões?
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Vanessa de Oliveira Temporal