O SENTIDO DA VIDA E O PROPÓSITO DE DEUS
Sagid Salles
Universidade Federal de Ouro Preto
Resumo: Este artigo trata de três objeções à teoria do propósito. Essa
teoria afirma que o único sentido que a nossa vida pode ter é satisfazer
um propósito que Deus nos atribuiu. A primeira objeção que
trabalharei afirma que seria incompatível com a bondade de Deus que
Ele nos punisse por não cumprirmos o seu propósito. A segunda
sugere que a oferta de um céu por cumprirmos o seu propósito seria
ofensiva, poderia ser encarada como exploração. Por fim, a última é a
acusação feita por Kurt Baier de que o próprio fato de Deus nos
atribuir um propósito seria ofensivo. Metz responde a essas três
acusações em seu artigo "Poderá o propósito de Deus ser a única fonte
de sentido para a vida?" acreditando escapar dessas acusações. Meu
objetivo é mostrar que, embora Metz escape das duas primeiras, sua
resposta ao argumento de Baier leva-o a ter que aceitar que Deus é
injusto.
Palavras-Chave: teoria do propósito; sentido da vida.
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Abstract: This paper deals with three objections to the purpose
theory. This is the theory according to which the only meaning our
lives can have is to satisfy a purpose given by God to us. The first
objection to be dealt with claims that punishing us for not fulfilling
His purpose is incompatible with God’s goodness. The second
suggests that it is offensive – an exploitation, really -- that God should
offer us heaven in return for fulfilling his purpose. The third is Kurt
Baier’s accusation that it is in itself offensive that God should ascribe
to us a purpose. Metz responds to these objections in his paper “Could
God’s Purpose be the Source of Life’s Meaning?” believing he can
discard them. I aim to show that although he can discard the first two,
the way he answers Baier’s argument forces him to accept that God is
unjust.
Key-words: purpose theory, meaning of life.
Introdução
Thaddeus Metz acredita que a principal afirmação de uma
teoria do sentido da vida centrada em Deus não é que “se Deus existe,
a vida tem sentido” mas que “a vida só tem sentido se Deus existir”.
Nota-se que a segunda afirmação é mais forte que a primeira. A
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afirmação “se Deus existe, então a vida tem sentido” não é interessante
para os defensores de teorias centradas em Deus à medida que ela é
perfeitamente compatível com a visão de que a vida teria sentido
mesmo se Deus não existisse. Ela diz apenas que, caso Deus exista, a
vida tem sentido, mas não que Deus é a única fonte de sentido para a
vida. Em contrapartida, a idéia de que Deus é a única fonte de sentido
possível para a vida est| claramente exposta na afirmação “a vida só
tem sentido se Deus existir”. Desse modo, o que os defensores desse
tipo de teoria devem mostrar não é apenas que a vida tem sentido caso
Deus exista, mas também que nenhuma resposta alternativa (que
afirme o sentido da vida independentemente da existência de Deus) é
possível 1. A teoria do propósito seria um exemplo de teoria centrada
em Deus. Ela afirma que a vida só tem sentido à medida que
satisfazemos um propósito atribuído a nós por Deus. Em seu artigo
“Poder| o propósito de Deus ser a fonte do sentido da vida?”(s/d) 2,
Metz argumenta que, embora a formulação mais plausível da teoria do
propósito escape às acusações de que ela implicaria absurdidades
1
William Lane Craig faz uma tentativa desse tipo em seu The absurdity of life without
God. Não me ocuparei dessa tarefa aqui. Parto do pressuposto de que isto é, no
mínimo, possível.
2
Os seguintes artigos são retirados de uma ontologia, ainda não publicada, sobre o
sentido da vida, intitulada Viver para quê? Ensaios sobre o sentido da vida. Lisboa:
Dinalivro. Esses artigos, quando mencionados de maneira indireta, serão
acompanhados da expressão “(s/d)” indicando que ainda não possuem data de
publicação. Estão a seguir: Metz, Thaddeus. “Poderá o propósito de Deus ser a única
fonte do sentido da vida?”; Baier, Kurt. “O sentido da vida”; Taylor, Richard. “O
sentido da vida”; Tolstoi, Leão. “Confissão”.
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lógicas, ela não seria compatível com a formulação mais plausível da
teoria centrada em Deus.
Não me ocuparei de sua tese principal aqui, qual seja, que a
teoria do propósito não é compatível com a formulação mais plausível
da teoria centrada em Deus. Meu objetivo neste texto diz respeito às
acusações de que a teoria do propósito implicaria a imoralidade de
Deus. Trabalharei três acusações desse tipo3. A primeira afirma que
seria incompatível com a bondade de Deus que Ele nos punisse por
não cumprirmos o seu propósito, a segunda afirma que a oferta de um
céu por cumprirmos o seu propósito seria ofensiva por poder ser
encarada como exploração. Por fim, a última é a acusação feita por
Baier em seu “O sentido da vida” (s/d) de que o próprio fato de Deus
nos atribuir um propósito seria ofensivo. Acredito que Metz escapa
das duas primeiras objeções. Entretanto, argumentarei que sua
resposta ao argumento de Baier leva-o a ter que aceitar que Deus seria
injusto.
Este texto será dividido em duas partes. Na primeira exporei a
teoria do propósito, as três objeções a ela, e como Metz escapa delas.
3
Metz expõe quatro objeções desse tipo. Entretanto, acredito que podem ser
resumidas em três. Isto porque as duas últimas objeções expostas por ele podem ser
trabalhadas conjuntamente, por fazerem parte do mesmo argumento de Baier. Vale
observar que seria perfeitamente possível trabalhar as quatro questões
separadamente, e se não faço isso é por dois motivos. O primeiro é que não acredito
ser necessário, pois a quarta objeção (exposta sob o título de “criação mal motivada”)
é uma extensão da terceira (“condescendência”). O segundo é que ao expô-las
juntamente ganharei em clareza facilitando o leitor a perceber o nexo entre as
acusações de Baier.
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Na segunda trabalharei o argumento de Baier mais detalhadamente
concluindo que, embora Metz consiga oferecer uma resposta a ele, sua
resposta implicaria injustiça de Deus.
A Teoria do Propósito
Metz define uma teoria centrada em Deus como aquela que
afirma que a vida de uma pessoa tem sentido unicamente à medida
que ela tiver uma relação adequada com Deus.4 A teoria do propósito
seria um exemplo de teoria centrada em Deus, afirmando que pelo
menos uma relação adequada a ter com Deus é satisfazer seu
propósito. Em outras palavras, a vida tem sentido unicamente à
medida que satisfizermos um propósito que Deus nos atribuiu. O
autor explicita as vantagens desse tipo de teoria de maneira clara e
direta no seguinte trecho:
A teoria do propósito é uma explicação à partida atraente do que
poderia dar sentido { vida. Explicita o que significaria “ter uma
razão para existir” ou “ter um objetivo na vida”. Acomoda-se ao fato
de “propósito” ser um dos sinônimos de “sentido”. Explica a
intuição de que o que confere sentido à vida de alguém é uma
questão objectiva, isto é, que o sentido não é meramente uma
questão de satisfazer quaisquer desejos que uma pessoa por acaso
tenha. Fornece um candidato plausível para o que poderá conferir
importância às nossas vidas, nomeadamente um ser sagrado.
Finalmente, adequa-se ao juízo de que a maior parte das pessoas (se
4
Metz toma a questão de saber o que pode dar sentido às nossas vidas como a
questão de saber o que há em nossas vidas que pode ser digno de grande estima.
Entretanto alega que os argumentos apresentados não dependem desta
caracterização, que pode ser controversa.
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não todas) são capazes de viver uma vida com sentido, mas que
nem todas vivem de facto uma vida com sentido.5
Embora a teoria do propósito carregue essas vantagens, ela
também carrega algumas sérias dificuldades. Uma das principais
dificuldades, como veremos mais tarde, é a acusação de que ela
implicaria a imoralidade de Deus. Também podem surgir dificuldades
quanto à relação desse tipo de teoria com doutrinas ateístas e
subjetivistas do sentido da vida. Falo um pouco sobre isso a seguir,
começando pelo ateísmo.
Pode ser tentador acreditar que o ateísmo é uma maneira de
negar a teoria do propósito. Entretanto, isso é falso. Negar a existência
de Deus, por si só, não é um meio de se opor a ela. Alguém pode
muito bem aceitar que Deus não existe e ao mesmo tempo que a vida
só teria sentido se ele existisse e tivesse um propósito para nós.
Portanto, a teoria do propósito não está comprometida com a
existência de Deus, ela se baseia em uma condicional, o que significa
que, caso Deus não exista, ela implicará que nossas vidas são
destituídas de sentido. Podemos, por exemplo, pensar como Tolstoi e
acreditar que não há valor que não seja aniquilado pela morte: não
importa quão boa sua vida seja, a morte chegará e o que restará é
apenas podridão e vermes. Nessa perspectiva, a única maneira de
Metz, Thaddeus. “Poderá o propósito de Deus ser a única fonte do sentido da vida?”
In: Viver para que? Ensaios sobre o sentido da vida. Murcho, Desidério (org.). Lisboa:
Dinalivro, no prelo. p.47.
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atribuir um sentido às nossas vidas seria a existência de um Deus
capaz de nos proporcionar imortalidade e um sentido objetivo.
Também não é certo até que ponto doutrinas como as de
Sartre e Taylor seriam ameaçadoras para os defensores da teoria do
propósito. Esses filósofos, embora neguem a existência de um sentido
objetivo para a vida, atribuem sentido subjetivo a ela. William Lane
Craig em seu artigo “The Absurdity of Life Without God” (1994),
argumenta explicitamente a favor da compatibilidade de declarações
como as de Sartre em seu “O existencialismo é um humanismo” com a
visão de que só Deus poderia dar um sentido objetivo à vida, isto é,
que só ele poderia dar-nos uma razão para viver que extrapole meras
questões de preferência. No artigo mencionado Sartre declara que:
Já que eliminamos Deus nosso senhor, alguém terá de inventar
valores. Temos de encarar as coisas como elas são. E, aliás, dizer
que nós inventamos os valores não significa outra coisa senão que a
vida não tem sentido a priori. (SARTRE, 1987, p. 21)
Richard Taylor, por sua vez, argumenta que a vida é uma
atividade repetitiva, cíclica, que nunca resulta em coisa alguma (2000).
Em um ponto de vista objetivo, nossas vidas são tão sem sentido
quanto a de Sísifo 6; mas nossa vida tem um sentido subjetivo, qual
seja, compulsão interna para fazer sempre o mesmo. É como se
6
Sísifo é um personagem da mitologia que foi condenado a passar a vida a rolar uma
pedra gigantesca ao cume de uma montanha. Entretanto, a pedra sempre caía e ele
tinha de carregá-la novamente. O que continuou pela eternidade.
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estivéssemos drogados para gostar de viver uma vida que,
objetivamente, não vale a pena. Perspectivas como essas, acredito, não
são incompatíveis com a teoria do propósito.
Obviamente pode-se objetar que as perspectivas de Taylor e
Sartre diferenciam-se da teoria do propósito à medida que o que eles
afirmam não é que a vida é destituída de sentido, mas apenas que ela
não possui um sentido objetivo (num mundo sem Deus). Estes
filósofos,
ao
atribuírem
independentemente
da
um
sentido
existência
de
subjetivo
Deus,
se
à
vida,
diferenciam
radicalmente dos defensores da teoria do propósito. Os defensores de
teorias centradas em Deus não defenderiam nenhum sentido para a
vida, nem mesmo subjetivo, onde Deus não exista. Dessa maneira,
poderíamos afirmar com segurança que perspectivas como as de
Sartre e Taylor são meios eficazes de negar as teorias centradas em
Deus. O problema que surge aí é até que ponto poderíamos considerar
satisfatório esse sentido subjetivo atribuído por eles à vida. Em outras
palavras, até que ponto podemos considerar um “sentido inventado”
(como propõe Sartre) real, ou ainda, até que ponto podemos nos
conformar que o único sentido da vida é uma compulsão interna para
realizar atividades sem sentido (como propõe Taylor)? O defensor da
teoria do propósito poderia perguntar até que ponto podemos
considerar essa asserção de sentido válida, isto é, por que não
diríamos que nesses casos a vida simplesmente não tem sentido?
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Não pretendo concluir que Sartre ou Taylor não poderiam
oferecer uma resposta a essa pergunta, minha intenção é apenas
deixar claro que não é certo em que medida essas perspectivas se
distanciam das teorias centradas em Deus. O que pretendo sugerir é
que existem maneiras mais simples de negar a teoria do propósito.
Uma primeira maneira seria argumentar na direção de mostrar que a
existência de um Deus com propósito implica a falta de sentido da
vida, ou seja, aceitar a condicional “se Deus tem um propósito para
nós, então nossa vida não tem sentido”. Outro modo seria apontar
contradições internas que desqualificassem a teoria do propósito.
Veremos objeções dos dois tipos neste texto, antes, contudo, devo
falar um pouco sobre as diferenças que podem surgir entre os
defensores da teoria do propósito.
Metz menciona quatro diferenças básicas que podem surgir
entre os defensores dessa teoria. Essas diferenças resultam de suas
concepções a) de Deus, b) do propósito de Deus, c) do modo como
Deus nos atribui tal propósito e d) quanto ao modo como iremos
cumpri-lo. Quanto à concepção de Deus, o filósofo aceita que Deus é
pelo menos um ser espiritual, todo poderoso, sumamente bom,
onisciente e fundamento do universo físico. Vale lembrar ainda que a
teoria do propósito é compatível tanto com concepções teístas (que
afirma Deus como pessoal e transcendente) como com concepções
deístas (Deus não é pessoal, é uma força, não digna de culto) e
panteístas (Deus esta em toda natureza, se identifica com ela). No que
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diz respeito ao conteúdo do propósito de Deus (b), Metz ressalta pelo
menos dois pontos de discordância entre os defensores dessa teoria. O
primeiro diz respeito ao próprio conteúdo do propósito, isto é, podese desenvolver diferentes respostas { pergunta “qual é o propósito de
Deus?”. O segundo pode ser expresso por uma pergunta que surge
quando tentamos delimitar o seu propósito, a pergunta seria “como
podemos conhecer o propósito de Deus?”. Pode-se objetar que devido
à impossibilidade ou extrema dificuldade de respondermos à segunda
pergunta, nós não poderíamos apontar uma resposta para a primeira.
E isso, por sua vez, seria um sério problema para a teoria do propósito.
Metz estava consciente dessa dificuldade, ele argumenta que ela, por
si só, não pode desqualificar a teoria do propósito, desde que
reconheçamos que a questão é passível de resposta racional. Nas
palavras do autor: “o utilitarismo tem sido largamente encarado como
um bom candidato a uma teoria moral, apesar da enorme dificuldade
de saber que ação produziria realmente os melhores resultados.”7
Ora,
se
essas
dificuldades
não
são
motivos
para
desqualificarmos o utilitarismo, então também não seriam suficientes
para desqualificarmos a teoria do propósito. As diferenças relativas ao
modo que Deus poderia atribuir-nos um propósito (c) dizem respeito
a questões do seguinte tipo: “Deus ordena que realizemos o seu
propósito?”, “Deus poderia nos punir por não realizarmos o seu
7
Metz, Thaddeus. Ibidem. p. 51.
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propósito?” (essas questões serão discutidas mais { frente). Por fim, a
maior parte dos defensores da teoria do propósito defendem que o
modo como devemos cumprir o propósito de Deus (d) é através do
livre arbítrio, embora seja possível alegar que estamos determinados a
cumpri-lo.
Com o que foi dito até aqui espero ter conseguido oferecer
uma ideia do que seria uma teoria do propósito e de suas variações, ou
seja, em que pontos seus defensores podem divergir. Passo para um
nível posterior da discussão agora, expondo três formas de objetar que
esta teoria implicaria a imoralidade de Deus. Essa crítica se baseia na
afirmação de que seria imoral Deus nos atribuir um propósito. Embora
Metz trabalhe quatro maneiras de objetar que Deus estaria sendo
imoral se nos atribuísse um propósito, não farei distinção entre as
duas últimas, tratá-las-ei conjuntamente por fazerem parte de um
mesmo argumento de Baier. A primeira acusação é que seria
desrespeitoso que Deus nos punisse com a danação eterna por não
cumprirmos o seu propósito, a segunda é que seria ofensivo que Ele
nos recompensasse para fazer o que Ele determinou. A última afirma
que o próprio fato de Deus nos atribuir um propósito seria ofensivo.
Argumentarei que Metz escapa das duas primeiras mostrando que o
defensor da teoria do propósito não precisa aceitá-las. Quanto à
última, argumentarei na próxima parte que Metz não escapa
realmente dela, pois sua saída o levaria a ter que aceitar que Deus é
injusto.
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As Críticas à Teoria do Propósito
A primeira objeção se baseia na noção bastante intuitiva de
que restringir as escolhas de alguém por meio de ameaças é imoral.
Ora, não seria justamente isso que Deus faz ao ameaçar nos punir com
a danação eterna caso escolhamos não cumprir o seu propósito? W. L.
Craig 8 argumenta que a certeza que temos diante da punição divina
deveria ser confortante, seria um consolo para os justos saber que as
pessoas ruins vão pagar pelo que fizeram, mesmo que escapem da
justiça dos homens, não escaparão da justiça de Deus. Além disso, a
punição divina seria o único motivo para fazer o bem em lugar do mal.
Há pelo menos dois problemas que tornam essa resposta difícil. O
primeiro é que dizer que a punição dos injustos serviria de consolo
para os justos parece implicar um certo desejo de vingança nos justos,
pode-se chamar desejo de justiça, mas de toda forma é algo que ocorre
através do prazer que os justos teriam em ver os injustos punidos. A
segunda dificuldade envolvida na concepção de Craig que é, no
mínimo, disputável que o único motivo que teríamos para fazer o bem
em lugar do mal é a punição divina, isso exigiria uma argumentação à
parte. De toda forma, acredito que Metz oferece uma saída mais
simples para o problema. Ele argumenta que, se não achamos
8
Podemos encontrar os argumentos em seu “The absurdity of life without God” (1994)
na pág 49. Nota-se, por exemplo, o seguinte trecho: “A second problem is that if God
does not exist and there is no immortality, then all the evil acts of men go unpunished
and all the sacrifices of good men go unrewarded”.
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desrespeitoso que o Estado castigue merecidamente quem viola leis
justas, então não teríamos motivo para achar a punição divina
desrespeitosa. Podemos encontrar esse argumento no seguinte trecho:
“Logo, se não seria desrespeitador que um estado fizesse ameaças no
contexto de um sistema penal retribuitivo, não seria desrespeitador
que Deus fizesse ameaças ao fazer o mesmo.” 9
Podemos
pensar
em
outros
exemplos
ainda.
Seria
desrespeitador um pai ameaçar castigar um filho caso ele fizesse algo
errado (por exemplo, pegar o carro sem permissão, ou bater no seu
irmão)? Se aceitamos que a resposta a essa pergunta é não, então não
temos motivos para aceitar que a punição divina seria desrespeitosa.
Todavia, há algo que essas analogias não captam, poderíamos dizer
que nenhum mal merece ser punido com a danação eterna, seria
desrespeitoso punir-nos eternamente, pois nenhum erro é tão grave
que mereça tal punição. Para resolver esse problema, afirma Metz, o
teórico do propósito deveria substituir a noção de punição eterna pela
de punição finita. O defensor da teoria do propósito não está
comprometido com a ideia de punição infinita, ele pode muito bem
aceitar que a punição que Deus nos impõe é finita.
A segunda acusação é que a própria oferta de um céu por
parte de Deus é desrespeitosa. Ela poderia ser encarada como
exploração. Do mesmo modo que é exploração oferecer comida a um
9
Metz, Thaddeus. Ibidem. p.54.
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faminto para que ele faça o que quisermos, é exploração oferecer um
céu para aqueles que fizerem a vontade de Deus, isto é, cumprirem o
seu propósito. Uma primeira saída para essa acusação seria negar que
Deus nos ofereça uma recompensa para que realizemos o seu
propósito. No entanto, Metz acredita que o defensor da teoria do
propósito poderia conciliar perfeitamente a recompensa da bemaventurança eterna com sua teoria. Se no exemplo anterior a
recompensa pareceu ofensiva é por que naquele caso a recompensa
envolveu prejuízo, dano, da pessoa recompensada. O filósofo
argumenta que não seria óbvio alegar exploração num caso em que
uma pessoa ofereça comida para um faminto em troca da manutenção
do seu agir racional ou de trabalho parcial numa cozinha de
alimentação de pobres. Se não consideramos que isso é exploração,
então não temos motivo para aceitar que seja exploração que Deus nos
recompense para realizarmos o seu fim, desde que seu fim não envolva
dano ou prejuízo. Podemos, por exemplo, imaginar que o propósito de
Deus seja que ajamos moralmente e sejamos felizes.
A terceira e última crítica trabalhada por Metz é a feita por
Baier, que argumenta em seu artigo “O sentido da vida” que o próprio
fato de Deus nos atribuir um propósito seria ofensivo. Sua tese mais
forte seria “se Deus tem um propósito para nós, então a vida não tem
sentido”. Baier pensava que “atribuir a um ser humano um propósito
nesta acepção não é neutro, nem sequer lisonjeiro: é ofensivo” (s/d, p.
31.). Seria ofensivo que Deus nos atribuísse um fim do mesmo modo
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que é ofensivo perguntar a um empregado “para que você serve?”. A
teoria do propósito encara o ser humano como se fosse um artefato
divino, um produto divino cuja função é realizar o propósito que seu
fabricante lhe destinou. Em resumo, é degradante para o ser humano
ser encarado como um mero meio para realizar o propósito de Deus.
Inicialmente, pode-se pensar que uma saída para essa questão é alegar
que o propósito de Deus é de nosso interesse. No entanto, isso não
responde à objeção de Baier à medida que o que ele coloca em questão
não é o conteúdo do propósito de Deus, mas o próprio ato de Ele
atribuir um propósito a nós. A maneira de escapar à objeção seria
mostrar que não é ofensivo que Deus nos atribua um propósito, isto é,
o fato de Ele ter um propósito para nós não significaria que Ele nos
trate meramente como meios.
Metz argumenta que não precisamos supor que o ato de
atribuir um propósito seja ofensivo. Em primeiro lugar poderíamos
imaginar que Deus nos atribui um propósito através de um pedido e
não de um mandamento. Não parece, afirma ele, que seria insultuoso
se Deus nos pedisse que fôssemos, fazendo uso de nosso livre arbítrio,
pessoas morais (ver pág 57). Não acredito que substituir um
mandamento por um pedido faça grande diferença aqui, pois, mesmo
aceitando que Deus nos fizesse um “pedido” a nossa condição seria a
mesma, isto é, seríamos meios para realizar o seu propósito.
Poderíamos pensar num exemplo em que uma mãe decide gerar um
filho com o propósito de que ele seja músico. Mesmo que a mãe não
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influenciasse na decisão de seu filho, não é certo que esta não seria
uma situação desrespeitosa. Metz estava ciente de dificuldades como
estas, como podemos ver no seguinte trecho: “Agir meramente
segundo a máxima de criar uma criança para ser um músico poderá
ser desrespeitador, ainda que a criança não seja de modo algum
manipulada para ser um músico nem ‘reduzida’ { sua aptidão
musical.”10
Metz estava ciente ainda de que “em contraste, não pareceria
desrespeitador fazer um bebê para promover um ser que estabelecerá
os seus próprios fins.”11
Em resumo, o argumento de Baier poderia ser expresso pelo
seguinte princípio: “é desrespeitador criar um ser racional para
qualquer propósito que não o de este realizar seus próprios
propósitos”.
Se Deus nos cria com propósitos tais como viver
moralmente, então Ele nos cria para um propósito que não é o de
realizar
nossos
próprios
propósitos.
Portanto,
Deus
agiria
desrespeitosamente e nada muda em nossa condição. Continuamos
como meios para a realização de seus fins.
A maneira que Metz encontrará para escapar das objeções de
Baier é contestar seu princípio. Ele afirma que “é claro que alguém que
criou uma pessoa para ter outro agente moral na terra estaria a tratar
10
Metz, Thaddeus. Ibidem. p. 58.
Metz, Thaddeus. Ibidem. p.58.
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esta pessoa como meio, mas não é óbvio que estaria a tratar
meramente como um meio” (s/d. p|g. 59). À medida que não temos
motivo para supor que Deus tenha nos coagido, manipulado,
interferido em nosso livre arbítrio ou qualquer coisa do tipo, não
temos também motivos para aceitar que fosse ofensivo ou insultuoso
que Ele nos atribuísse um propósito. Em outras palavras, Baier não
deixa claro por que o fato de Deus nos atribuir um propósito seria
ofensivo, nos colocaria em uma condição de artefatos divinos.
Se Metz tem sucesso em sua tentativa de escapar às objeções
tratadas aqui, então ele mostra que a teoria do propósito não precisa
implicar o absurdo de que Deus seja imoral. Nota-se que o substancial
da resposta de Metz a Baier não é que ele mostra que a teoria do
propósito não passa uma imagem degradante do homem, mas que ele
transfere o ônus da prova para Baier. Em outras palavras, é Baier quem
tem que dar sentido à afirmação de que a atribuição de um propósito
ao ser humano é degradante.
Na
próxima
parte
discutirei
mais
detalhadamente
o
argumento de Baier. Argumentarei que, embora seja possível pensar
em um caso em que a atribuição de um propósito por Deus a nós não
seja ofensiva, Metz teria que assumir também que Deus não é justo.
Concluirei que existe uma maneira de escapar da acusação de que
Deus seria injusto, mas essa maneira levaria o defensor da teoria do
propósito novamente a ter que assumir que o propósito divino é
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ofensivo, pois implicaria que Deus restringe nossa capacidade de
escolha para que sigamos o seu propósito.
Discussão do Argumento de Baier
Vimos que Metz argumentou que uma vez que não
precisamos supor que Deus não nos coaja ou manipule não é claro o
porquê dele estar nos tratando meramente como meios para atribuirnos um fim. Entretanto, o que Baier coloca em questão não é a justiça,
manipulação ou coação de Deus. Pensemos no seguinte exemplo: uma
mulher sempre quis ter um músico na família e decide gerar uma
criança devido a esse propósito. Todavia, a mãe jamais interfere na
escolha da criança, trata-a com respeito, carinho e amor por toda a
vida. Imaginemos também que a criança está à beira da morte (devido
a uma doença, etc.) e a mãe diz a ela “filho, te gerei com um propósito
de que foste músico”. Isso, definitivamente, não é nada agrad|vel. Mas
por que isso não seria agradável? Essa é uma situação desagradável
meramente porque atribuir um propósito a um ser racional é
ofensivo? O teórico do propósito poderia dizer que não, essa é uma
situação desagradável porque representa um caso em que uma mãe
fala a coisa errada na hora errada. Nós não esperamos que, na hora da
morte de seu filho, a mãe esteja preocupada com o propósito que ela
tinha para ele. É simplesmente por isso que essa situação é
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desagradável. Mas, poderia replicar Baier, se pensamos numa situação
onde a mãe não disse isso ao filho, então a única coisa que muda é que
seu filho não conhecerá o propósito que ela lhe atribuiu. A ofensa é a
mesma.
O defensor da teoria do propósito poderia responder a isso de
duas maneiras. Em primeiro lugar, ele pode dizer que no caso em que
a mãe não conta ao filho não há ofensa, pois a ofensa surge apenas do
fato de ela quebrar uma norma social que diz que, em casos como
este, a mãe não deveria estar preocupada com seus próprios interesses,
com o propósito que ela atribuiu ao filho. Em segundo lugar, ele pode
objetar que se a situação ainda parece ofensiva, mesmo depois de
supormos que a mãe não contou ao filho, é devido ao conteúdo do
propósito dela. Se o propósito dela fosse que o filho tivesse uma vida
moral e feliz, então a dificuldade não surgiria. No parágrafo seguinte
argumentarei que, embora essa resposta seja melhor que a primeira,
ela carrega um problema.
A segunda resposta é melhor que a primeira porque torna
mais evidente a ideia que nem todos os propósitos poderiam dar
sentido à nossa vida. Ela reconhece que no caso da música a atribuição
de um propósito poderia ser ofensivo, mas que podemos pensar em
propósitos cujo conteúdo não seja ofensivo e, uma vez que
demonstramos que o conteúdo não é ofensivo, não teríamos motivos
para supor que a atribuição de um propósito, por si só, seja ofensiva.
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No caso em que uma mãe tem um filho com o propósito de que ele
seja uma pessoa moral e feliz não há, aparentemente, ofensa (como
mostrei na parte anterior, Metz argumenta nessa direção). Podemos
dizer ainda que do mesmo modo que um pai não está degradando
seus filhos ao desejar que um aja moralmente em relação ao outro,
que um não prejudique o outro, já que ele os ama igualmente, Deus
não estaria nos degradando ao ter o mesmo propósito para nós. Ao
contrário, se Ele tem esse propósito para nós é justamente por
considerar cada um de nós como um fim e não como um meio.
Diríamos “Deus nos ama igualmente e por isso Ele deseja que sejamos
morais fazendo uso de nosso livre arbítrio, que não prejudiquemos
uns aos outros”. O que seria realmente ofensivo é Ele não desejar isso.
Acredito que essa possível saída de Metz encontra alguns
problemas. Primeiramente, desejo sustentar que se Metz tentasse
argumentar que o propósito de Deus é o mesmo para cada um de nós,
então ele teria que aceitar também que Deus é injusto. Pensemos no
seguinte, nós nascemos em diferentes circunstâncias, com diferentes
culturas, valores, etc. Mesmo entre dois vizinhos as diferenças de
circunstâncias saltam aos olhos, duas crianças vizinhas podem ter
diferentes pais, com diferentes tipos de educação, religião, crenças,
entre outros. Cada pai ensinará ao filho aquilo que acha correto. É
fácil perceber que fatores como esses podem influenciar bastante em
nossa formação. Se aceitarmos isso, e ao mesmo tempo aceitarmos
que o propósito de Deus é o mesmo para cada um de nós, então temos
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de aceitar também que nós largamos em diferentes situações rumo ao
seu cumprimento. Por exemplo, suponhamos que o propósito de Deus
para nós é que cada um seja moral e feliz. Nesse caso, eu que nasci em
uma casa razoavelmente boa com um pai e uma mãe que me deram
uma educação razoável e declaravam de tempo em tempo seu amor
por mim, terei de cumprir o seu propósito e serei julgado por isso,
correndo risco de receber uma punição finita. Do mesmo modo, uma
criança que nasce em uma favela dominada pelo tráfico, castigada pela
fome e violência, também será julgada à medida que cumprir ou não o
propósito divino.
Mas estaríamos nós nas mesmas condições? As circunstâncias
em que nascemos são igualmente favoráveis para o cumprimento
desse propósito comum que nos foi atribuído? Nota-se que não estou
contestando
que
seria
perfeitamente
possível
que
ambos
cumpríssemos o propósito de Deus ou até mesmo que a outra criança
cumprisse e eu não. Aceito essa possibilidade. O que eu pergunto é se
as diferentes situações em que nascemos são igualmente favoráveis ao
cumprimento desse propósito. Da mesma maneira que um corredor
que larga um metro à frente do outro estaria, em princípio, em uma
situação favorável em relação ao seu oponente, uma criança que nasce
em um contexto mais apropriado estaria em melhores condições de
cumprir o propósito divino que aquela nascida em um meio
desfavorável. Em outras palavras, o que eu pretendo sustentar é que à
medida que reconhecemos que pessoas nascem em diferentes
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contextos devemos reconhecer que existem contextos mais e menos
favoráveis para o cumprimento do propósito divino.
É claro que isso pode ser contestado, mas a maneira de
contestar
seria
alegar
que
nem
mesmo
em
circunstâncias
extremamente opostas haveria vantagem de uma pessoa em relação à
outra. Além disso, essa seria uma afirmação consideravelmente
contra-intuitiva, que exigiria demonstração (se é que é possível
demonstrar tal coisa). Assim, se eu estou correto, então a declaração
de que Deus teria o mesmo propósito para todos nós
12
não é
compatível com a declaração de que Ele é justo. Isto por que não seria
justo atribuir um propósito comum a todos os homens e ao mesmo
tempo colocá-los em contextos tão diferentes, uns mais e outros
menos favoráveis ao seu cumprimento. Deus nos atribuiu o mesmo
propósito, diríamos, mas deu a uns mais chance de cumpri-los que a
outros.
Neste ponto o teórico do propósito poderia dizer que Deus
nada tem a ver com as diferenças sociais citadas acima, que se elas
existem a culpa é nossa. De maneira mais clara, somos nós os únicos
causadores dos problemas mencionados acima. Entretanto, acredito
que essa resposta não seria suficiente por, pelo menos, dois motivos.
Em primeiro lugar, mesmo que assumíssemos a culpa pelo fato de
12
Não faz diferença aqui se falamos em um ou vários propósitos divinos, desde que
sejam os mesmos para todos.
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nossos descendentes nascerem em situações mais e menos favoráveis
para o cumprimento do propósito divino, isso não mudaria o fato de
Deus permitir que pessoas inocentes nascessem nessas diferentes
situações. Ora, quem está nascendo no momento não tem culpa pelo
que nós fizemos, não tem culpa alguma pela violência do lugar em que
nasceu. O caso é que Deus permite que essa criança pague pelos
nossos erros. Em segundo lugar, poderíamos mencionar os problemas
que não são de natureza social como, por exemplo, uma criança que
nasce com determinado problema físico do qual os pais não são
culpados. Essa criança, poderíamos dizer, dependendo da enfermidade
com a qual nasce, terá menos chance de cumprir o propósito divino
que aqueles que nascem perfeitamente saudáveis.
Ainda, dizer que essas crianças que, por alguma eventualidade
nasceram com deformidades, são abençoadas por receberem a chance
de cometer atos heróicos também não muda nada. Isso seria torná-los
privilegiados e, consequentemente, transferir o problema para o lado
das pessoas saudáveis. Em outras palavras, se dizemos que essas
crianças deficientes possuem mais chance de cumprir o propósito
divino que pessoas saudáveis, então temos de explicar por que as
últimas não estariam sendo prejudicadas, e assim retornamos ao
mesmo problema. E, por fim, também acredito que nada adiantaria
alegar que Deus “tem dois pesos e duas medidas”, ou seja, que Ele
julga cada um de acordo com a dificuldade encontrada ao longo da
vida. Pessoas que tiveram uma vida mais difícil teriam um julgamento
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mais brando que aquelas que tiveram uma vida com mais facilidades.
Aceitar essa hipótese não nos livra da acusação de que Deus nos deu o
mesmo propósito, porém diferentes chances de cumpri-lo. O que
muda aqui é apenas a forma como Ele nos julgará, mas o que está em
jogo não é isso e sim o fato de todas as pessoas receberem o mesmo
propósito e, no entanto, nascerem em situações diferentes em relação
ao seu cumprimento. Afinal, por que foi negado a uns a mesma chance
de cumprir o propósito divino que a outros? Por que eu não poderia
reivindicar o direito de ter a mesma chance de cumpri-lo que outros?
Se cumprir o propósito divino é uma coisa boa a ponto de poder ser
considerada como o único sentido da vida, então é uma falta grave
que uns tenham menos chance de cumpri-lo que outros.
Portanto, se eu estou certo, restaria uma única alternativa ao
defensor da teoria do propósito alegar que Deus atribuiu diferentes
propósitos para diferentes pessoas. Mas essa seria mesmo uma
alternativa viável? Desejo mostrar que não. Se o defensor da teoria do
propósito afirma que Deus atribui diferentes propósitos para
diferentes pessoas, cada qual de acordo com o contexto de cada um,
então ele não terá como escapar da objeção feita por Baier. Aceitar que
nascemos em um contexto adequado ao cumprimento do propósito
que Deus nos atribuiu é aceitar que nascemos em um contexto menos
adequado para o cumprimento de outros propósitos de igual valor.
Posso supor que existam propósitos de igual valor à medida que posso
supor que Deus não atribuiria um propósito de valor menor a uma
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outra pessoa (cujo propósito fosse diferente do meu). Em outras
palavras, o contexto em que nascemos seria mais adequado ao
cumprimento do propósito que Deus tem em mente para nós.
Ora, essa seria uma forma ofensiva de nos tratar como meios,
de interferir em nosso livre arbítrio ou nos manipular para que
realizemos o seu propósito. Por exemplo, suponhamos que uma
pessoa nasça com o propósito divino de ser um poderoso advogado
que trabalhará em causas sociais, esta pessoa nasce em uma família,
lugar, contexto apropriados a este fim e, caso acabe se decidindo por
outro, poderá encontrar sérias dificuldades. Ainda, não importa o
quão valoroso seja o propósito que Deus atribuiu a mim, ainda assim
posso julgar ofensivo Ele ter restringido a minha escolha no que diz
respeito ao cumprimento de vários outros fins de igual valor. Deus
planejaria nossa vida da maneira mais adequada possível para o
cumprimento do propósito dele. Isso seria uma maneira central de nos
tratar como meios, de nos manipular. Uma vez que o teórico do
propósito reconhece vários propósitos de igual valor (nomeadamente,
aqueles diferentes propósitos atribuídos às diferentes pessoas) não há
por que não alegarmos o direito de escolher qual buscar.
Conclusão
Embora Metz consiga mostrar um caso em que a atribuição de
um propósito a nós por parte de Deus, por si só, não seja ofensiva, ao
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fazer isso ele seria obrigado a assumir que Deus é injusto. Para escapar
da acusação de injustiça ele teria de supor que Deus atribui diferentes
propósitos às diferentes pessoas. Eu argumentei que não é possível
supor tal coisa sem implicar que Deus interfira em nosso livre arbítrio
ou restrinja nossa capacidade de escolha. Desse modo, minha
conclusão não foi que o fato de Deus nos atribuir um propósito seria
ofensivo por si mesmo, mas que envolveria uma forma central de
tratar os homens como meios, uma forma que Metz aceita como
ofensiva, que envolve a restrição da nossa escolha para que sigamos o
seu propósito.
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sentido da vida. Lisboa: Dinalivro; Murcho, Desidério (org.) (no
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