Revista da SBEnBio - Número 7 - Outubro de 2014
V Enebio e II Erebio Regional 1
OS OBJETOS DAS CIÊNCIAS:
IMAGINAÇÕES EM UMA EXPERIÊNCIA DE ENSINO
Leandro Belinaso Guimarães (UFSC)
Aline Gevaerd Krelling (UFSC)
RESUMO
O texto relata uma experiência de ensino desenvolvida com alunos do curso de Pedagogia. O
foco foi pensar, com os estudantes, sobre a vida dos objetos que habitam um laboratório da
ciência. Além da descrição de suas presumidas funções, as aulas acionaram imaginativamente
outras vidas, formas e nomes para os objetos. Para tanto, nutriu-se de referências advindas dos
estudos culturais da ciência e de pesquisas no campo da educação que articulam imaginação,
infância, ciência, arte e cultura. O resultado foi a reinvenção, a recriação, a transformação,
através de desenhos, de objetos como pipeta, centrífuga, lupa. Nas experimentações, arte,
ciência e imaginação se encontraram e os objetos das ciências foram “transtornados”,
transformados em inutensílios, em poesia.
Palavras-chave: imaginação, arte, ensino de ciências, estudos culturais
...uma pedagogia imaginativa requer também dos educadores uma
reinvenção de si próprios, para que abram espaço e tempo em suas
vidas para as experiências da imaginação; Gilka Girardello, 2011, p.
81.
Esse ensaio é um relato de uma experiência de ensino desenvolvida com alunos de um
curso de Pedagogia. A disciplina articula à infância e ao ensino questões advindas das
ciências. Não vamos apresentar nosso plano de ensino, nem mesmo discutir os princípios
pedagógicos que o fundamenta. Preferimos abrir com esse artigo perguntas que se desdobram
de, apenas, um conjunto de aulas. Nelas, nosso esforço foi pensar, com os estudantes, sobre a
vida dos objetos que habitam um laboratório da ciência. Antes de começarmos contando a
vocês sobre como e o que movimentamos nas aulas, gostaríamos de tocar brevemente os
motivos que nos levaram a planejar tal temática para trabalharmos em nossa disciplina sobre
ciências, infância e ensino em um curso de Pedagogia.
Pensar sobre a vida dos objetos de laboratório não é algo inusitado, nem mesmo
inovador. Um ciclo de palestras ocorrido em algumas capitais brasileiras em 2012, sendo que
um dos principais conferencistas foi Bruno Latour, discutiu a “vida secreta dos objetos”, que
implicou, entre outras inúmeras questões, em vê-los como agenciadores de mundos. Estamos
muito acostumados, desde a Modernidade instalada através do pensamento cartesiano, no
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mundo ocidental, a pensar nos sujeitos como aqueles que atuam, pensam, constroem o mundo
e nos objetos como inertes, passivos, mercadorias fabricadas para o consumo e o deleite
humanos. As conferências desejavam instalar um problema nessa cisão e, sobretudo, em
deslocar o humano do seu costumeiro lugar de centralidade na fabricação do mundo.
Bruno Latour e Steve Woolgar (1997) nos mostraram, no instigante e ainda atual livro
“A vida de laboratório”, que tal espaço tem uma configuração particular por possuir aparelhos
nomeados, pelos autores, como “inscritores”. Nenhum fenômeno, argumentam os estudiosos
culturais da ciência, que se referiria a estes objetos poderia existir sem a presença dos
mesmos. Sem determinado aparelho, jamais um fenômeno (ou uma substância ou um
composto) poderia ser “inscrito” no mundo. Os objetos de laboratório não seriam, assim, um
simples meio de obtenção de algo, mas participantes ativos em sua “inscrição”, em sua
construção, em seu nascimento, em sua possibilidade de existência. Argumentam os autores:
“os fenômenos dependem do material, eles são totalmente constituídos pelos instrumentos
utilizados no laboratório” (p. 61).
Em nossas aulas na Pedagogia não pretendemos abrir essa discussão específica, mas
permitir aos futuros professores de crianças pensarem que os objetos nos laboratórios são
vivos e atuantes nos processos em que participam. Eles são protagonistas, tanto quanto os
cientistas, dos laboratórios que habitam. E, quem sabe, gostariam de ter outras funções, se
imaginarem em outros lugares, viajarem, fazerem novos amigos, terem outras vidas. Imaginar
tais possibilidades nos permitiu um encontro com a arte em nossas aulas.
E foi Mirian Celeste Martins e Gilsa Picosque (2012) quem nos ajudaram a pensar nos
objetos como propositores, como provocadores de pensamentos e de sensações. Dizem as
pesquisadoras que as crianças tem grande interesse pela vida, pelo desejo de brincar no aqui e
agora, no instante presente. E seria muito interessante, nas salas de aula, intervalar o cotidiano
pelo jogo e pela brincadeira, criando uma interação entre realidade e imaginação. As crianças
dão vida imaginativa aos objetos através das brincadeiras. E em nossas aulas nos aventuramos
por esta pista, sobretudo pensando na “ressignificação de objetos”, tal como proposto por
Roberta Ninin e Ligia Botelho (2012) a partir da obra artística de Artur Bispo do Rosário.
As autoras propõe um jogo que possibilite “encontros sensíveis e lúdicos com o
universo de criação de Artur Bispo do Rosário” (p.105), artista popular brasileiro conhecido
por transformar objetos cotidianos, ressignificando-os. Diagnosticado como esquizofrênico e
paranóico transitou por instituições psiquiátricas, onde em suas celas recriava um mundo com
as mãos. Qualquer material, fragmento, elemento da rotina hospitalar ganhava um novo
sentido sob sua imaginação. Ao dar novas vidas aos objetos que compunham o seu mundo,
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Bispo do Rosário reinventava sua própria vida, como expresso em suas palavras: “Dizem que
o que eu faço é Arte, mas é minha salvação na Terra.” (NININ e BOTELHO, 2012, p.106)
As discussões trazidas por Bruno Latour e Steve Woolgar, por Mirian Celeste Martins
e Gilsa Picosque, por Roberta Ninin e Ligia Botelho e, ainda, a arte de Artur Bispo do
Rosário, compuseram o mosaico de repertórios e de argumentos teóricos e práticos que nos
auxiliaram na construção das aulas sobre os objetos das ciências. Nesta disciplina, muito além
de nos prendermos aos conceitos ligados às ciências, temos operado com eles,
experimentando e criando em sala, com os futuros professores, práticas pedagógicas voltadas
às crianças. Práticas que despertem não só a imaginação infantil, mas principalmente a dos
próprios educadores em seu processo de formação.
As aulas: experimentações em jogo
Movimentados por este mosaico de referências, pensamos em um conjunto de
atividades que buscassem dar novas vidas, novos significados para os objetos que vivem nos
laboratórios. Acreditamos, assim como Roberta Ninin e Ligia Botelho (2012), que encontrar
outros significados para os objetos, outras funções, transforma-os em outra coisa. E para que
essa mudança ocorra é necessária a imaginação. Assim, experimentamos com nossos alunos
um exercício que culminou na criação de um livro de imagens. A imaginação foi pensada aqui
como “um espaço de liberdade e de decolagem em direção ao possível, quer realizável ou
não”. (GIRARDELLO, 2011, p.76)
Para chegarmos à transformação dos objetos da ciência iniciamos nossas atividades
com uma visita a um laboratório de aulas práticas de bioquímica, o qual não se enquadra no
perfil tradicional de um laboratório de ciência, repleto de vidrarias e modernos equipamentos,
um espaço asséptico e frio. Por ser um laboratório de ensino, a conformação do espaço era
mais amistosa e os equipamentos bastante antigos, algo que despertou a atenção dos alunos,
que estavam, em sua maioria, tendo contato com um laboratório científico pela primeira vez.
Apesar de algumas “velharias”, o espaço serviu adequadamente para a nossa proposta, pois
estava repleto de objetos relacionados ao fazer bioquímico.
Fomos recebidos pela Coordenadora do Curso de Licenciatura e Bacharelado em
Ciências Biológicas e professora da disciplina de Bioquímica, que nos contou um pouco sobre
como são desenvolvidas as pesquisas nessa área e nos mostrou alguns objetos e equipamentos
presentes no laboratório. Antes de iniciarmos a visita havíamos solicitado aos alunos um olhar
mais atento a estes objetos e que escolhessem um deles para fotografar. Curiosos com as
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novidades contidas neste lugar e na ânsia de registrar cada momento, os alunos fotografaram
incessantemente. Solicitamos, então, que escolhessem uma das imagens obtidas (um dos
registros dos objetos daquele laboratório) e a trouxessem na aula seguinte.
Em nossa segunda aula sobre esta temática, conversamos com os alunos sobre o
conceito de objetos propositores a partir do livro de Mirian Celeste Martins e Gilsa Picosque
(2012). Também apresentamos a eles algumas imagens de obras do artista Artur Bispo do
Rosário. Despertou-lhes a curiosidade o fato do artista ter produzido grande parte de suas
obras com objetos encontrados no manicômio (como era denominado tal lugar) onde morou
por muitos anos. Através de sua obra os objetos daquele hospital psiquiátrico ganharam novo
sentido e valor estético.
Após essa conversa, partimos para o trabalho com as imagens dos objetos da ciência
que foram fotografados na visita ao laboratório. Primeiramente, mostramos todas as imagens
escolhidas pelos alunos e, em seguida, solicitamos que, em duplas ou trios, escolhessem um
dos objetos representados nas fotografias e escrevessem uma descrição do mesmo. Após
terminarem seus textos, solicitamos que fizessem a leitura para todos de suas produções
escritas. Foi possível perceber como os alunos preocuparam-se em utilizar uma linguagem
técnica, científica, para descrever os objetos, valendo-se de muitos elementos presentes na
fala da professora que nos apresentou o laboratório.
Para finalizarmos este dia de atividade, assistimos a um vídeo da escola “Casa
Redonda” 1 – presente no livro coordenado por Maria Amélia Pinho Pereira (2013) –
intitulado “o corpo, a casa, o eu” e pedimos aos alunos que observassem os objetos utilizados
pelas crianças em suas brincadeiras, lançando como pergunta para reflexão: o que está sendo
ensinado de ciências com aqueles simples elementos cotidianos (caixas, panos, brinquedos,
água)?
Começamos nossa terceira e última aula sobre os objetos das ciências com uma
conversa sobre as impressões causadas pelo filme. Muitos alunos compartilharam-nas
conosco destacando: a brincadeira a partir de objetos simples, cotidianos, pouco tecnológicos,
parecendo antigos. Sobre seus usos destacaram que não se tratavam de objetos prontos, com
funções pré-determinadas, podendo ser utilizados/agrupados da forma que fosse conveniente
1
Trata-se de uma escola situada em Carapicuíba, região metropolitana de São Paulo, que também funciona como
um centro de estudos. Localizada em um amplo terreno com vasta vegetação, a escola aposta na brincadeira
como ordenadora do mundo da criança. Há um cuidado com a qualidade, diversificação e condições dos
materiais, objetos e espaços ofertados às brincadeiras. Na “Casa Redonda” o material didático mais valorizado é
a própria matéria, experimentada livremente pelas crianças. Agradecemos a Rodrigo Saballa pela indicação do
livro sobre esta instigante escola.
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às crianças. Além dos objetos, chamou a atenção deles a ausência de interferência de adultos e
da figura do professor na organização das atividades. Com estes relatos, conseguimos pontuar
algumas das questões que permearam nossas aulas, como o fato das crianças, em suas
brincadeiras de faz-de-conta, darem novas vidas aos objetos. A ausência da mediação adulta,
pode ser pensada a partir de Girardello (2011), como a necessidade de “haver um equilíbrio
entre a estruturação das atividades pelo adulto e a possibilidade de que as crianças possam
brincar sozinhas, livres de supervisão” (p.80-81).
Depois desta conversa iniciamos o nosso jogo de transformação dos objetos da
ciência. É importante destacar que todas as atividades desenvolvidas anteriormente foram
passos importantes para a construção deste jogo e entendimento do mesmo por parte dos
alunos. Primeiramente, mostramos aos alunos as imagens do livro “Isto não é”, de Alejandro
Magallanes (2008) 2. Pensando na pluralidade de significados que um objeto pode disparar,
pedimos para que cada dupla/trio formado na aula anterior transformasse o seu objeto, dando
nova vida a ele. Esta transformação deveria ser representada através de um desenho, para que
ao final compuséssemos coletivamente um livro. Essa foi a primeira rodada do nosso jogo.
Quando finalizaram essa etapa, explicamos a segunda rodada do jogo: as duplas/trios
deveriam trocar os seus desenhos e operar uma nova transformação, só que desta vez não
seriam mais os objetos de laboratório que seriam recriados, pois estes já tinham ganhado nova
vida, já eram outra coisa. Por fim, explicamos a nossa intenção de montar um livro de
desenhos e dividimos a turma em dois grupos: um ficou responsável pela capa e o outro pelo
texto de apresentação. Algumas imagens deste trabalho serão expostas a seguir para
pensarmos silenciosamente com elas as potencialidades de criarmos em sala de aula práticas
pedagógicas experimentais, artísticas e inventivas, como as que buscamos desenvolver
com/sobre os objetos das ciências.
As imagens criadas: os objetos e suas novas vidas
“Como proporcionar ao aluno processos criativos, aprimorando e fertilizando sua
capacidade de imaginar?”. (NININ e BOTELHO, 2012, p.105) Esta foi uma importante
pergunta que nos mobilizou na construção das nossas aulas e que buscamos colocá-la em
movimento a partir das atividades aqui apresentadas. Com essa proposta de ressignificação
dos objetos das ciências, buscamos fugir dos enunciados científicos paralisantes e possibilitar
2
Agradecemos à educadora ambiental Sara Alves dos Santos Carvalho a indicação do livro, que nos lembrou
uma pintura de René de Magritte analisada magistralmente por Michel Foucault (1988).
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aos alunos uma “ampliação de possibilidades para percebermos e produzirmos variações no
mundo”. (BRAGA e KASPER, 2013, p.40).
Ainda em diálogo com estas autoras que discorrem sobre a obra do artista Hélio Leite,
acreditamos que em nossas experimentações com os alunos os objetos das ciências foram
“transtornados”, transformados em inutensílios, em poesia. E nesse movimento, arte, ciência,
imaginação e ensino se encontraram, efetiva e afetivamente. Finalizamos o ensaio
apresentando algumas das recriações, reinvenções, dos objetos operados pelos nossos alunos
do curso de Pedagogia 3.
3
Os/as autores/as do nosso livro, produto final das nossas aulas sobre os objetos das ciências, são: Alessandra
Santos de Queiroz, Mauro Marques, Iolita Rodrigues, Claudia Gadotti João, Ana Karolina Botelho, Wania Leal,
Edir Giacomelli, Aline Becsi, Renata Maçaneiro, Lucas Kamers de Aguiar, Naiara Vianna, Patrícia Machado
Fistarol, Gabriela Carolina Luiz, Thuane Brito de Macedo. Agradecemos a todos a entrega à nossa proposição.
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Referências:
BRAGA, Jonathan; KASPER, Kátia. Formação, Experimentação, Invenção. Instrumento.
Juiz de Fora, v. 15, n. 1, 2013.
FOUCAULT, Michel. Isto não é um cachimbo. Tradução Jorge Coli. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1988.
GIRARDELLO, Gilka. Imaginação: arte e ciência na infância. Pro-Posições. Campinas, v.
22, n. 2, p. 75-92, maio/ago, 2011.
LATOUR, Bruno; WOOLGAR, Steve. A vida de laboratório: a produção dos fatos
científicos. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1997.
MAGALLANES, Alejandro. Isto não é. Tradução Heitor Ferraz Mello. São Paulo: Comboio
de cordas, 2008.
MARTINS, Celeste Mirian; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores
andarilhos na cultura. 2a. Edição. São Paulo: Intermeios, 2012.
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NININ, Roberta; BOTELHO, Ligia. Artur Bispo do Rosário e a ressignificação de objetos. In:
MARTINS, Celeste Mirian; PICOSQUE, Gisa. Mediação cultural para professores
andarilhos na cultura. 2a. Edição. São Paulo: Intermeios, 2012.
PEREIRA, Maria Amélia Pinho. Casa Redonda: uma experiência em educação. São Paulo:
Editora Livre, 2013.
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