FORMAÇÃO MÉDICA, RACIONALIDADE E EXPERIÊNCIA:
O DISCURSO MÉDICO E O ENSINO DA CLÍNICA
Alicia Regina Navarro Dias de Souza
Tese apresentada como requisito parcial
para obtenção do Grau de Doutor em
Ciências
da
Saúde
- Área de
Concentração em Psiquiatria, do Curso de
Pós-Graduação
em
Psiquiatria,
Psicanálise e Saúde Mental do Instituto de
Psiquiatria da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
Orientador:
Prof. Eustachio Portella Nunes Filho
TESE SUBMETIDA AO CORPO DOCENTE DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO COMO PARTE DOS REQUISITOS
NECESSÁRIOS À OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR EM CIÊNCIAS DA SAÚDE - ÁREA DE
CONCENTRAÇÃO EM PSIQUIATRIA.
BANCA EXAMINADORA:
Prof. Eustachio Portella Nunes Filho
(Presidente da Banca)
Prof. Rodolpho Paulo Rocco
Profa. Monica Rabello de Castro
Prof. Miguel Chalub
Prof. Marco Antonio Alves Brasil
Profa. Diana Maul de Carvalho
Prof. Pedro Gabriel Godinho Delgado
Rio de Janeiro, RJ - BRASIL
setembro de 1998
SOUZA, Alicia Regina Navarro Dias de
Formação médica, racionalidade e experiência: o discurso médico e o ensino da clínica.
Rio de Janeiro, UFRJ, IPUB, 1998.
xiv, 290 f.
Tese: Doutorado em Medicina (Psiquiatria)
2
1. Psicologia Médica
2. Formação médica
Racionalidade e experiência clínicas
5. Teses
I. Universidade Federal do Rio de Janeiro - IPUB.
II. Título
3.
Discurso
médico
4.
Para minha mãe.
Agradecimentos
Esta tese teve três interlocutores fundamentais. Prof. Eustachio Portella Nunes, meu
orientador, Dr. Horus Vital Brazil e Profa. Monica Rabello de Castro. Agradeço a eles a generosa
troca de idéias e a acolhida respeitosa, carinhosa e solidária que implicou, inclusive, o
compartilhar a ausência presente de minha mãe, Circe Navarro Vital Brazil, que orientou os
primeiros passos deste trabalho.
Aos alunos e professores que comigo se aventuraram nas Reflexões, em especial os
sujeitos da pesquisa, pela estimulante troca de palavras, pelo prazer na experiência
compartilhada.
Aos colegas do Serviço de Psicologia Médica e Saúde Mental/HUCFFº, em especial
Sergio, Lucia, Munira, Pedro Gabriel, Liana e Marco Antônio que resistem e insistem no inquieto
e desconfortável ofício que tentamos cotidianamente realizar. A eles não só por existirem, mas
também por terem por mim trabalhado enquanto eu desenvolvia este trabalho.
A meu filho Pablo e a Margarida, que sem sua tolerante, carinhosa e efetiva presença não
teria sido possível realizar este trabalho.
A amiga Sylvia e tia Carmen, cuja presença nestes últimos anos não tenho palavras para
agradecer.
A meu pai, Liana, Aglaé, Rosalia e todos da família pela comprensão, apoio e torcida.
As amigas Rachel, Luciana, Munira e Aurea, cujas trocas foram importantes nos
caminhos e descaminhos que construiram minhas escolhas.
A Elvira, Diana, Brasil, Sonia, Edelyn, Ione e Celia Therezinha pela disponibilidade amiga,
leitura atenta e sugestões realizadas.
A Marilia pela cuidadosa leitura de minha aventura na escrita.
A Katia e Suely, cuja inestimável ajuda possibilitou meu convívio tão íntimo e harmonioso
com meu computador.
A todos amigos, enfim, que ora suportaram minha ausência, ora meu monotema, ora
minhas aflições, pela paciência e carinho.
RESUMO
Esta tese pretende discutir a formação clinica, associando um método de pesquisa a
uma experiência pedagógica, ao reunir em um grupo de reflexão, organizado em torno do
questionamento da prática clínica, alunos na fase inicial do ciclo clínico, um professor de Clínica
Médica e um professor de Psicologia Médica.
Para situar, inicialmente, as coerções do discurso a que estão submetidos os sujeitos
em nossa pesquisa, apresentamos a racionalidade anátomo-clínica e o poder disciplinar que, na
análise de Foucault, informa e conforma o discurso do saber no sistema institucional da
medicina.
A investigação de argumentos no processo de apropriação do discurso médico, usando a
Teoria da Argumentação de Perelman, nos possibilitou melhor compreender a formação de uma
identidade profissional ao valorizarmos que é na linguagem e pela linguagem que o aluno estrutura
a experiência e constitui, para além de um olhar anátomo-clínico, uma perspectiva com a qual
exercerá a prática médica.
3
Pelo isolamento de temas na análise do discurso, nos referindo ao princípio dialógico de
Bakhtin, pudemos descobrir o valor operatório dos conceitos psicanalíticos para a interpretação
do sentido e chegar a interpretações que, sem pretenderem ser únicas ou exclusivas, enriquecem
a nossa crítica e podem influenciar a formação dos médicos em uma prática extremamente
complexa e difícil, mantendo a tensão doente/doença e se opondo à redução da prática clínica a
uma aplicação de um saber exclusivamente sobre a doença.
SUMMARY
This thesis intends to discuss the transmission of clinical knowledge to medical students,
at the time of the medical course when they are introduced to their practice in internal medicine. A
pedagogical experience in association to a method of research was created by the organization of
a discussion group, that brought together medical students and two professors, one of Internal
Medicine and another of Medical Psychology.
To distinguish relationships of communication from power relations, that submits the
subjects of our research by means of language or any other symbolic system, we used Foucault’s
analytic theory of disciplinary power that structures the transmission of medical knowledge. This
structure of power relations constitutes the discourse of knowledge in the institutional system of
medical practice and medical education based on an anatomic-clinical perspective, which tends to
be dominant in medical education reducing medical knowledge to knowledge about the disease.
By using Perelman’s theory of argumentation we searched for the different arguments in
the process of transmission of knowledge in the teaching of clinical practice, which led us to a
better understanding on the formation of a professional identity by the medical discourse. It is in
language and by language as an effective symbolic system that medical students organize
knowledge about their practice, and this knowledge becomes structured, in our critical
pedagogical experience, beyond an anatomic-clinical gaze and could acquire a new and more
inclusive perspective referred to the patient.
In the analysis of the discourse in our discussion group we isolated themes using the
dialogic principle of Bakhtin, and could apply the operational value of psychoanalytic concepts to
the interpretation and deconstruction of meanings. The resulting interpretations in our pedagogical
experience - which cannot be said unique or exclusive - shows how this experience can contribute
to a critical analysis in maintaining the tension and the production of knowledge between diseased
and disease, and can furthermore influence medical formation in a highly complex practice by its
opposition to any reductive thinking of an exclusive knowledge about pathology and disease.
SUMÁRIO
Introdução
1
1. A medicina moderna e a ordem do discurso
n A racionalidade anátomo-clínica
n O discurso médico numa prática institucionalizada
13
16
25
2. Psicanálise e medicina
n Sobre a interseção entre psicanálise e medicina
n Sobre o ensino da Psicologia Médica e a formação médica
n A transmissão na formação clínica
33
34
47
55
3. A razão argumentativa na análise de discurso
n As premissas da Nova Retórica
n Reflexão crítica e formação clínica
67
70
82
4. A pesquisa: a tensão estruturante doente/doença
n Contexto institucional
n Procedimentos metodológicos
n Os quatro temas
89
89
93
105
4
n
n
n
n
O sofrimento psíquico
O corpo erotizado
A identidade técnica
A experiência de sujeição
108
127
137
157
Considerações finais
Bibliografia
180
185
Anexos
n Programa da disciplina de escolha condicionada Reflexão sobre a Prática Médica
n Corpus de análise
199
200
202
INTRODUÇÃO
Quem se aventura na experiência de sofrimento inerente à doença, ao risco de perda da
saúde e da vida, ao limite da morte, se defronta com o desamparo inevitável da condição humana.
De imediato buscamos lidar com esse desamparo pelo alívio do sofrimento. O conhecimento
surge logo em cena, não raro como um Deus protético a nos salvar. E, na experiência de
sustentar a promessa de cura, aparecem graves e grandes problemas quando descobrimos que o
conhecimento não é todo-poderoso, o sujeito que o produz, ou dele lança mão, tampouco o é e o
desamparo, a angústia da incerteza são raramente suportáveis.
Não é preciso ser médico, estudante de medicina ou profissional da área da saúde para
saber de que experiência de desamparo, angústia, frustração e sofrimento estamos falando. Mas,
sem dúvi da, os profissionais que buscam conhecimento e exercem seu ofício nesse campo da
saúde se defrontam, cotidianamente, com essa promessa, muitas vezes insustentável, por
estarem inseridos nesse cenário de exigências impossíveis.
O campo da prática médica envolve a todos nós. Nos seus limites fascina e aterroriza e,
pelo menos, inquieta o suficiente para que tantos pensem sobre ele. Discursos e mais discursos
são produzidos sobre a saúde e a doença, a vida e a morte e suas experiências de enfrentamento
pelo homem, e neles, raramente, se excluem os médicos como atores desta cena.
No campo da produção de saber, filósofos, escritores, psicanalistas, antropólogos,
sociólogos e também médicos estão entre os autores desse mar de produção discursiva, de
argumentos e contra-argumentos, e se debatem numa retórica que, não podendo ser exaustiva,
pretende apreender os temas centrais associados à vida e à morte. As questões são tão
demasiadamente humanas, e por isso mesmo muito relevantes e candentes, que até se poderia
interrogar: quem é silenciado nessa produção discursiva? Como nos diz Foucault:
“nas inúmeras palavras pronunciadas pelos homens - sejam elas
racionais ou insensatas, demonstrativas ou poéticas - um sentido que
nos domina tomou corpo, conduz nossa cegueira, mas espera, na
obscuridade, nossa tomada de consciência, para vir à luz e pôr-se a falar.
Estamos historicamente consagrados à história, à paciente construção
de discursos sobre os discursos, à tarefa de ouvir o que já foi dito”
(FOUCAULT, 1977a, p.XIV-XV).
Para construir este discurso, uma tese de doutoramento, é preciso dizer de uma trajetória
na qual ouvi uma parte do que já foi dito, construí e reconstruí inquietações, compartilhei muitas
perplexidades, troquei algumas perguntas e encontrei poucas soluções.
*
*
*
Pensando sobre a minha experiência como médica, psicanalista, professora de
Psicologia Médica da Faculdade de Medicina/UFRJ, diria que venho experimentando um
5
crescente mal-estar - que aliás compartilho com alguns dos meus colegas - que se refere tanto à
atividade docente que realizamos com os alunos de graduação como à atividade docenteassistencial quando, ao sermos chamados pelos médicos que prestam assistência a pacientes
internados, participamos da prática médica como é exercida no Hospital Universitário Clementino
Fraga Filho (HUCFFº)/UFRJ.
Há cerca de 18 anos, parecerista1 praticamente das mesmas enfermarias de Clínica
Médica, observamos que, inicialmente, com bem maior freqüência, havia um misto de curiosidade
e apreensão nos encontros com estudantes e médicos que nos chamavam para discutir alguma
situação clínica. Não raro os médicos responsáveis pelas enfermarias que nos recebiam eram
professores ou médicos com tarefas docente-assistenciais, já com alguns anos de trabalho. Hoje
somos predominantemente chamados e recebidos pelos médicos residentes. Anteriormente,
quando chegávamos à enfermaria, de um modo geral, os médicos sabiam mais sobre seus
pacientes e, portanto, estavam mais sabidamente implicados na relação com estes, o que
também se refletia na apreensão e na curiosidade quanto ao que teríamos a dizer. Éramos vistos
como profissionais que detinham um conhecimento sobre os “mistérios da alma humana”;
representávamos, de certa forma, a presença do estranho, do insólito do qual médicos e
estudantes se aproximavam com curiosidade e receio. Nos últimos anos, parece que fomos
neutralizados na posição de especialistas. Especialistas em pacientes com “alteração de
comportamento”, "depressão", "ansiedade" - expressões freqüentemente usadas nos pedidos de
parecer - e, supostamente, especialistas em sofrimento quando, nos pareceres, nos solicitam um
"acompanhamento do paciente" após fazer referência a uma situação clínica que implica ameaça,
limitações, enfim, sofrimento. Somos predominantemente vistos como os psiquiatras de hospital
geral, os quais detêm um olhar sobre as reações de pacientes como algo em termos do normal e
do patológico, portanto, diagnósticos a fazer, tratamentos especializados a instituir. Mas,
sobretudo, registraríamos a redução de uma tensão produtiva nos nossos encontros com
estudantes e médicos na cena clínica. O mal-estar passou a ser outro: o nosso mal-estar, nos
levando inclusive a nos perguntar sobre a nossa participação nessa mudança.
Para ilustrar esse mal-estar, relataremos uma situação clínica, onde poderemos apreciar
as vicissitudes, os limites e as possibilidades de termos um diálogo produtivo numa prática
institucionalizada, a partir de uma demanda impossível de ser pensada no modelo médico estrito.
Um paciente de 14 anos apresentou um quadro de mielite transversa de origem infecciosa
e se encontrava internado no CTI há cerca de três semanas. De um estado gripal evoluiu
rapidamente para uma tetraplegia. Lúcido todo o tempo, no entanto, não podia falar por estar
traqueostomizado. Ao ser possível retirar a assistência ventilatória nos chamaram ao CTI. Como
de hábito conversamos com a equipe antes de nos dirigirmos ao paciente e, dessa vez, tivemos a
oportunidade de encontrar a equipe da rotina do CTI reunida ao redor de uma mesa discutindo
casos. Após relatar as informações acima a equipe acrescentou o prognóstico: não sabiam o
quanto o paciente poderia se recuperar do quadro neurológico. Ao perguntarmos o que havia sido
dito ao paciente sobre seu estado, a resposta foi “nada”. Rapidamente um outro médico
complementou a resposta dizendo que ali não se tem muito tempo para conversar com os
pacientes. Perguntados por que nos chamaram, dizem que, na verdade, todos os pacientes do
CTI precisariam de um atendimento nosso, embora eles não nos chamem, não sabem porquê.
Mas como esse paciente tem 14 anos, é muito jovem, a equipe ficou com “pena”. É importante
frisar que o diálogo não se passa de forma tão sintética e direta como apresentado aqui, pois se
assim fosse não ouviríamos muito mais do que o escrito no pedido de parecer. Perguntamos
mais uma vez por que não haviam conversado com o paciente, e a resposta é que essa é uma
atitude habitual da equipe. Eles não costumam conversar com os pacientes, nem mesmo
comunicar o que se passa clinicamente com eles.
1
Parecerista - denominação usada para designar o médico especialista que é chamado pelo
médico assistente a dar um parecer sobre um paciente internado em enfermaria clínica ou
cirúrgica sob sua responsabilidade.
6
A cânula de traqueostomia já era fina o suficiente de forma a permitir que se entendesse,
com algum esforço, o que o paciente falava. Começamos perguntando como ele se sentia. O
paciente nos olhava atentamente e nada dizia. Desdobramos a pergunta em perguntas que
podiam ser respondidas por apenas sim ou não. Você sente alguma dor? Algum desconforto? E o
paciente respondeu que não. Você sabe onde está? Sua família tem podido vir aqui? Quem tem
vindo vê-lo? Etc. O paciente foi nos respondendo e, após um certo tempo, as respostas não mais
se resumiam a sim ou não. Falou-nos de sua família, falou-nos da escola, do seu trabalho num
supermercado e ao falar dos amigos e do que gosta de fazer - jogar futebol, videogame - começou
a chorar. Acolhemos seu choro e em seguida dissemos que devia estar difícil para ele de repente
se ver num hospital, precisando de tantos cuidados, sem poder viver os seus dias como antes.
Pôde então perguntar. Perguntou quando ia sair dali. Falamos que breve ele deveria sair do CTI
para uma enfermaria e, não sabíamos bem, mas seria necessário ficar mais algum tempo no
hospital. Perguntou se podia comer. Começou a sorrir e a dizer o que tinha vontade de comer.
Sua dieta era restrita e não sabíamos exatamente o que era possível e o que havia de disponível.
A partir dessa demanda do paciente voltamos à equipe. Relatamos o que ouvíramos do paciente,
o que se passou no nosso diálogo. Eles ouviram atentamente. A impressão que tínhamos é de
que estávamos apresentando a pessoa do paciente a seus médicos, não no sentido de
apresentar uma história da pessoa do paciente mas, sobretudo, no sentido de poder mostrar que
o paciente, ao falar, não transmitia um estado de desespero inominável, tampouco fazia
exigências ou experimentava um ódio, que poderia ser dirigido à equipe, em função de seu
estado. O paciente, diríamos, não expressava uma demanda impossível. Conseguimos que um
médico viesse estar com ele, alimentá-lo, mas é importante que se diga havia uma preocupação
ligada ao risco de ele engasgar e aspirar.
Se tivéssemos chegado há pouco tempo nesse hospital geral universitário poderíamos
concluir apressadamente que, no CTI, a gravidade e a transitoriedade da relação médico-paciente,
restrita àquele contexto, parecem determinar uma função médica restrita a intervenções sobre um
corpo para salvar uma vida. A pouca idade do paciente talvez seja um dos poucos fatores que
legitimam a preocupação do médico que se volta para uma vida e uma morte significadas. O CTI
é, sem dúvida, um contexto da prática médica onde facilmente nos defrontamos com o preço a
pagar pelo progresso tecnológico e a instrumentalização do ato médico e, não raro, concordamos
que esse é um mal necessário.
Mas um médico de CTI não pode dedicar um pouco do seu tempo para conversar com um
paciente lúcido com quem ele convive há três semanas? E agora que ele, após um trabalho
médico, volta a poder falar, fato que não passa despercebido pela equipe, que então chama a
Psicologia Médica, somos nós que devemos conversar com o paciente? Qual é a função de um
médico junto a um paciente? Qual é a função de um profissional de Psicologia Médica junto aos
médicos e seus pacientes? Como compreender a demanda dos médicos dirigida ao profissional
de Psicologia Médica?
Poderiam argumentar que escolhemos uma situação médica muito adversa num contexto
de CTI. Até certo ponto é um bom argumento, o CTI tem particularidades, mas o que
experimentamos na nossa atividade docente-assistencial nas enfermarias de Clínica Médica,
como dissemos, não nos tranqüiliza, pois não está muito distante desse exemplo e traz o
mesmo questionamento da relação médico-paciente e da função do profissional de Psicologia
Médica.
Mas o objeto da Psicologia Médica não é o campo dinâmico da relação médico-paciente?
Não é sobre esse campo que precipuamente os seus profissionais detêm um conhecimento
específico, não podendo, é claro, negar a sua função como psiquiatras, quando também o são,
até porque freqüentemente são os mesmos a exercer essa função no hospital? E assim
considerando, o que nos foi possível fazer? Compreendemos que a falta de tempo dos médicos
do CTI ao longo de três semanas é uma racionalização. A negação da existência da pessoa do
paciente, reduzida a um corpo, que parece ter predominado até sermos chamados, está presente
de forma conflitiva, como a nossa presença testemunha. O sentimento de pena mobilizado pela
idade e situação clínica do paciente pôde ser experimentado, e redundou numa ação que é uma
busca de alívio para o conflito: caberia ao profissional de Psicologia Médica saber sobre o
sofrimento e lidar com o sofrimento do doente? E aos médicos o que caberia? Portadores de um
saber eficaz que salvou uma vida, mas a salvou para um projeto de vida muito provavelmente
7
limitado pelas seqüelas neurológicas, o que suscita pena em relação ao paciente, os médicos
estariam vivendo a angústia em relação à potência limitada desse conhecimento, angústia que só
pode ser vivida se a função médica tem seu sentido na resposta ao sofrimento de um doente, o
que indica um para além do valor de eficácia de um saber.
Podemos supor uma realização, no ato médico, restrita à aplicação de um conhecimento
sobre a doença, com a obtenção de resultados no nível estritamente biológico, corporal pois,
evidentemente, o exercício de um saber traz alguma realização narcísica, mas... e o paciente?
Foi silenciado e tornou-se para o médico uma existência quase virtual às custas de uma negação
tão eficiente? Sabemos que algumas pessoas podem, por razões de sua estrutura defensiva, ser
capazes de tão eficiente negação. Sabemos também que a prática clínica implica um sofrimento
que requer alguma estruturação defensiva por parte dos médicos. Sabemos que os grupos têm
uma dinâmica. Mas nada disso dá conta da presença de um determinismo de outra ordem, que
opera no discurso e no exercício da prática social da medicina. A prática médica é uma prática
social, onde médicos e pacientes se relacionam em um campo de significações e valores, o qual
exige a interpretação do sentido.
Voltando à cena da situação clínica, sentimos uma satisfação em poder promover um
encontro mesmo que singelo, pretendendo mostrar ao médico que o paciente não estava
desesperado, apesar de tudo que vem passando, ao nível do corpo e das relações com os
médicos e que, portanto, o médico não seria posto contra a parede, nem teria de dizer o
prognóstico pessimista. O paciente não estava revoltado com a equipe e, portanto, o médico não
ia ser alvo de uma agressão violenta, da qual talvez tivesse dificuldades para se defender, porque
apesar de parecerem conseguir negar eficientemente a pessoa do paciente, não raro os médicos
experimentam culpa pelos resultados insatisfatórios do tratamento e pela relação impessoal, de
pouco amparo e conforto para o paciente. Passamos, então, à ação, e avaliamos essa ação
como sendo limitada à singeleza de uma simples apresentação, pois não nos pareceu possível
explicitar a nossa compreensão do que se passava na relação médico-paciente, o que nos fez
sair de cena com o nosso mal-estar. Dois dias depois voltamos e uma outra equipe assumiu o
paciente que fora transferido para a enfermaria de Neurologia.
O que fizemos pelo paciente, na continuidade do atendimento na enfermaria até sua alta
hospitalar, nos parece, dependeu, mais essencialmente, de uma disponibilidade subjetiva. O que
não quer dizer que não tenhamos lançado mão de algum conhecimento, seja de psicopatologia,
psicofarmacologia ou psicanálise, que nos permitiu diagnosticar a ausência de uma reação
patológica por parte do paciente, a não necessidade de prescrever psicotrópicos e, também, a
não pretensão de uma intervenção psicoterápica sem que houvesse demanda para tal. Qual foi
nossa ação terapêutica? Permanecemos acompanhando o paciente, atentos à sua demanda de
uma psicoterapia de apoio, se importa nomear, a ele e à sua mãe, bastante presente na
enfermaria; e uma intermediação na comunicação entre médicos/paciente/família, sendo agora o
cenário a enfermaria de Neurologia, onde também os jovens neurologistas pouco conversavam
espontaneamente com eles. Enfim, com relação ao paciente e sua mãe não realizamos nada que
nos pareça fora da função de um médico, se podemos considerar a função psicoterápica presente
em qualquer relação que se pretenda terapêutica. Estaríamos então sendo convocados a realizar
uma dimensão da função médica? Como compreender a demanda dos médicos? Como os
médicos compreendem a sua função e a função de um profissional de Psicologia Médica? Como
não podemos situar a nossa questão no âmbito do verdadeiro ou falso, nem estamos à procura do
que seria o certo ou o errado, mas do razoável no exercício de uma prática na qual conflitam
valores, opiniões, que implicam inclusive uma ética, nos parece necessário investigar os
argumentos, a lógica dos valores no campo da prática clínica como ela se realiza num hospital
geral universitário.
Seria razoável pensar que, se convivêssemos diariamente com as equipes de rotina,
inclusive a do CTI, poderíamos ter um diálogo mais íntimo com os médicos. Isso propiciaria talvez
maior explicitação dos conflitos da relação dos médicos com os pacientes, o que poderia
repercutir nas suas possibilidades de exercer a função médica junto aos pacientes. Mas assim
estaríamos postulando a presença de um profissional de Psicologia Médica em cada enfermaria.
Há quem considere que essa deva ser a proposta de exercício de uma prática em Psicologia
Médica. Para nós não. A nós esta proposta implica uma psicologização indevida da prática
médica, pois essa não é uma demanda dos médicos nem dos pacientes, os principais atores
8
sociais dessa prática. Os pacientes querem ter seus médicos, querem ser vistos por eles como
pessoas, querem se sentir tratados, amparados e, às vezes, nem exigem muito no sentido de
serem compreendidos na sua singularidade. E os médicos o que querem e o que podem querer
os médicos?
Parece-nos que há algo que ultrapassa o campo da transferência, embora nele se
inscreva, a determinar a atitude dos médicos. Não há espaço de legitimidade para se discutir a
subjetividade, entendida como os sentimentos despertados na relação com o paciente, que
estariam presentes e interferindo na realização do ato médico e definindo o campo da
transferência. Aliás não há nem mesmo o reconhecimento e, por conseqüência, um espaço de
legitimidade para se discutir a clínica enquanto um campo intersubjetivo onde a subjetividade
opera pela interpretação.
Ao usarmos concepções como angústia, conflito, defesas, transferência/ resistência,
poderíamos optar por pretender realizar uma relação terapêutica com o paciente por uma prática
interpretativa de descoberta do recalcado; e com os médicos, dependendo de sua demanda
singular em cada situação clínica, faríamos o possível para esclarecer e informar uma posição
subjetiva. O campo da transferência se centraria na relação profissional de Psicologia
Médica/paciente e não na relação médico/paciente. Essa é uma proposta que, a nosso ver,
carreia mais problemas que soluções, pois implica uma psicologização da prática médica e o
aumento e institucionalização do conhecido fosso corpo/mente, médicos do corpo/médicos ou
profissionais da mente, etc.
Como profissionais da clínica, concordamos com Clavreul e vários outros psicanalistas,
que a clinica psicanalítica e a clinica médica, embora entrem muitas vezes em interseção, são
ofícios completamente opostos, assim como é inconciliável pretender desenvolver o ofício
psicanalítico na ordem médica. Os psicanalistas, profissionais de Psicologia Médica, deveriam,
portanto, voltar à sua profissão de base, médicos psiquiatras ou psicólogos, e exercer uma
prática compatível com a ordem médica? Ficamos pensando... E o mal-estar? E a crise da
prática médica?
Reformista, cooptada pela ordem médica, enfim sob o risco de ver-me seriamente
criticada pelos psicanalistas, mas não aceitando ser reduzida à função de psiquiatra especialista
e não podendo reduzir-me ao silêncio enquanto escuto um grito parado no ar, resolvi arriscar-me.
Não era marinheira de primeira viagem, afinal já havia coordenado um “grupo de arrisco” nomeação dada ao grupo por um médico que dele participou - quando trabalhei com profissionais
da equipe de saúde na reflexão da prática assistencial a pacientes com AIDS (SOUZA, 1989).
Mas quem, desta vez, se arriscaria comigo?
Na década de 90, a direção da Faculdade de Medicina lidera um processo de reforma
curricular, que será oportunamente mais detalhado, levando à maior participação de professores
de Psicologia Médica ao longo do curso médico, especialmente através de sua participação em
PCIs (Programa Curricular Interdepartamental) clínicos, em atividades conjuntas com professores
do Departamento de Clínica Médica.
Nesse momento e contexto institucionais, escolhemos, para a construção desta tese,
investigar uma contribuição possível à formação médica. Era possível redirecionar a pergunta a
partir do mal-estar: como compreender a demanda de estudantes de medicina? O que querem e o
que podem querer estudantes de medicina no aprendizado da clínica, orientados pelos seus
ideais do que seja ser médico e pelos modelos de identificação que seus professores oferecem
ao realizar a prática médica no hospital geral universitário HUCFFº?
*
*
*
Iniciaremos este trabalho com Foucault para falar da racionalidade da medicina moderna,
a racionalidade anátomo-clínica. A medicina moderna se esteia na racionalidade anátomo-clínica,
ou seja, ela explica pela fisiopatologia e pela anatomia patológica, referidas às ciências básicas,
os mecanismos patogênicos, revelando ao médico evidências nas quais ele se apóia como o
conhecimento possível a informar suas escolhas na clínica. Mas a prática clínica está para além
das evidências anátomo e fisiopatológicas, na medida em que a singularidade da expressão das
doenças por um corpo biológico, cujo "dono" também se expressa e, ao se expressar, também o
9
expressa e o transforma num corpo simbólico, está a solicitar do médico observação,
decodificação e interpretação.
Na atualidade, a epidemiologia clínica, reconhecendo a incerteza no exercício da clínica,
pretende fazer “uma ciência da arte médica” (SACKETT e cols, 1994). É no campo controverso
da “medicina baseada em evidência” (evidence-based medicine) que os médicos buscam resolver
a “discrepância clínica”, ou seja, a inconsistência entre observações de dois ou mais médicos ou
de um mesmo médico repetidas em dois momentos distintos, o que nos indica o limite da
objetividade na prática clínica. A nosso ver, a clínica traz ao médico a tensão
subjetividade/objetividade, singularidade/universalidade, doente/doença, as tensões inevitáveis
dentro das quais o difícil ato médico se produz, considerando-se a oposição inclusiva entre esses
pares antinômicos.
Em seguida, trabalharemos também com Foucault para pensar o discurso médico como
expressão da microfísica da equação saber/poder, tomando o discurso no seu nível estratégico e
polêmico numa prática institucional.
No 2º capítulo, a partir da psicanálise e de sua postulação central de um inconsciente
dinâmico, consideraremos a condição do sujeito do conhecimento/desconhecimento, ou seja, um
sujeito cindido na sua constituição, que não pode pretender nem o conhecimento do real em si,
nem mesmo que um campo de conhecimento possa constituir toda a verdade sobre uma
problemática. Um sujeito que é a cada instante fundado e refundado na intersubjetividade e na
história.
O psicanalista, profissional que na clínica convive com a incerteza e o desamparo, tem a
possibilidade indiciária de perceber gritos, sussurros que paredes pretendem encerrar, e os
facilita acontecer ao pé de uma parede aparentemente sem porta. Drummond, solidário na solidão
dos psicanalistas, pôde ouvir de um anjo a inexorabilidade de sua transgressão: “Vai, Carlos! ser
gauche na vida”.
É a partir dessa perspectiva que pretendemos fazer uma contribuição à formação e
prática médicas, à centralidade do ofício médico: a clínica. Associando um método de pesquisa a
uma experiência pedagógica no campo da psicanálise em extensão, escolhemos nos centrar no
aprendizado da clínica, no plano discursivo onde surgem as perplexidades e o questionamento a
partir das expectativas do desejo, sendo os sujeitos da pesquisa estudantes de medicina na sua
primeira fase do ciclo clínico, alguns professores de Clínica Médica e a pesquisadora, pela sua
implicação no desenho da pesquisa.
No 3º capítulo apresentaremos a Teoria da Argumentação ou a Nova Retórica de Chaïm
Perelman, que também nos respaldou e orientou na complexa discussão razão/emoção,
objetividade/subjetividade. Perelman, com sua teoria da argumentação, suas noções de auditório,
objetos de acordos referidos a premissas e sua tipologia de argumentos e técnicas
argumentativas, forneceu não só um instrumento para realizarmos a análise de discurso no seu
nível estratégico, mas também consubstanciou o referencial teórico-metodológico de nossa
pesquisa em articulação com a psicanálise e o pensamento crítico de Foucault.
No 4º capítulo apresentaremos a pesquisa realizada. Iniciaremos situando o contexto
institucional que possibilitou as experiências de ensino e pesquisa empreendidas, em seguida
detalharemos sua metodologia para, por fim, expormos a análise de discurso do material em
quatro subtemas relacionados ao tema central: a tensão doente/doença na reflexão de alunos e
médicos no exercício do ensino/aprendizagem da clínica.
No 5º e último capítulo, as conclusões parciais e temporárias que o trabalho acadêmico
nos exige.
A MEDICINA MODERNA E A ORDEM DO DISCURSO
“O desejo diz: ‘Eu não queria ter de entrar nesta ordem arriscada do
discurso; não queria ter de me haver com o que tem de categórico e
decisivo; gostaria que fosse ao meu redor como uma transparência
calma, profunda, indefinidamente aberta, em que os outros
respondessem à minha expectativa, e de onde as verdades se elevassem,
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uma a uma; eu não teria senão de me deixar levar, nela e por ela, como
um destroço feliz.’
E a instituição responde: ‘Você não tem porque temer começar; estamos
todos aí para lhe mostrar que o discurso está na ordem das leis; que há
muito tempo se cuida de sua aparição; que lhe foi preparado um lugar
que o honra mas o desarma; e que, se lhe ocorre ter algum poder, é de
nós, só de nós, que ele lhe advém."
Michel Foucault, A Ordem do Discurso
A produção de discursos numa sociedade é historicamente situada e, ainda, organizada
e controlada mediante procedimentos, como bem foram investigados por Foucault em sua obra A
Ordem do Discurso. Ao nos falar dos procedimentos - “os rituais da palavra, as sociedades de
discurso, os grupos doutrinários e as apropriações sociais” - que dizem respeito às condições de
funcionamento dos discursos, ou seja, às exigências impostas aos indivíduos que, portanto,
selecionam aqueles que têm acesso a um determinado discurso, Foucault nos diz que esses são
“os grandes procedimentos de sujeição do discurso” (FOUCAULT, 1996a, p.44).
O discurso médico, por exemplo, não pode ser dissociado da prática de “rituais da
palavra” que está a determinar, ao mesmo tempo, propriedades singulares e papéis
preestabelecidos para os sujeitos que falam. Nesse sentido, o ritual não só prescreve a
qualificação que devem possuir os indivíduos que falam, mas também define todo o conjunto de
signos que deve acompanhar o discurso como gestos, comportamentos e circunstâncias.
Estabelece, pode-se dizer, leis do discurso com relação ao fato mesmo da enunciação e ao
conteúdo e forma do enunciado. Por exemplo, numa situação de diálogo, só exerce o ato de
interrogar quem tem o poder de interrogar e, ainda, não poderá interrogar qualquer coisa. Os
“rituais da palavra” influenciam, ainda, a eficácia suposta das palavras em termos de seu efeito
sobre aqueles aos quais se dirigem. O ato de tomar a palavra não é, de fato, nem um ato livre
nem gratuito. Certas condições devem ser preenchidas para que determinado sujeito tenha o
direito de falar e de falar desta ou daquela maneira, deste ou daquele assunto, num determinado
contexto. E tão pouco é gratuito, pois toda a fala deve se apresentar como motivada, como
resposta a algo ou visando a certas finalidades.
Diferenciando o discurso dos médicos do discurso da medicina, destacaríamos, no
primeiro, seu aspecto de pertinência doutrinária, que coloca em questionamento, ao mesmo
tempo, o enunciado e o sujeito que fala, e um através do outro. O sujeito que fala é questionado
através e a partir do enunciado que ele profere. Já o discurso da medicina, enquanto “disciplina”
científica, teria procedimentos de controle discursivo referidos apenas à forma ou ao conteúdo do
enunciado e não ao sujeito que fala. Sistema anônimo à disposição de quem possa se servir dele,
o discurso da medicina não constitui tudo o que se pode dizer de verdadeiro sobre a doença, pois
a medicina como uma “disciplina” se define por “um domínio de objetos, um conjunto de
métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de
definições, de técnicas e de instrumentos” (FOUCAULT, 1996a, p.30). No entanto, Foucault
adverte que o sistema institucional da medicina e, ainda, qualquer sistema de ensino são
sistemas de sujeição do discurso, onde os quatro grandes procedimentos citados se encontram
articulados, justo para garantir a distribuição e apropriação dos discursos por certas categorias de
sujeitos. Como ele nos diz:
“O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra;
senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que
falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso;
senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus
poderes e seus saberes?” (FOUCAULT, 1996a, p.44-45)
Esses procedimentos articulados como um conjunto de relações de expressão, os quais
têm um poder determinativo, senão coercitivo, no diálogo, indicam o valor da retórica e da razão
argumentativa no estabelecimento dos grupos de discussão como está proposto em nossa
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pesquisa, possibilitando expor as perplexidades, as antinomias e os conflitos produzidos por um
saber sempre parcial, que denuncia a incompletude de qualquer discurso.
Para compreender as coerções do discurso a que estão submetidos os sujeitos em
nossa pesquisa valorizamos, também, dois momentos da obra de Foucault.
Em O Nascimento da Clínica, Foucault investiga a constituição da racionalidade
anátomo-clínica que possibilitou a construção do saber médico nas sociedades modernas, saber
que tem por objeto a doença ou o indivíduo como corpo doente. Esse saber informa e conforma o
discurso dos sujeitos da pesquisa na sua referência de adequação ao discurso da medicina
enquanto “disciplina” científica.
Num hospital de ensino, nosso campo de pesquisa, o saber médico com sua
racionalidade anátomo-clínica é transmitido numa economia discursiva que implica uma “polícia
de enunciados” e também um “controle de enunciações”. É a partir dos trabalhos de Foucault em
sua fase genealógica, em especial, Vigiar e Punir e História da Sexualidade I, que tentaremos
situar a produção discursiva que se dá em nosso campo de pesquisa, quando os sujeitos falam
não só conforme uma racionalidade dada por um saber mas também conforme “dispositivos
institucionais e estratégias discursivas”, que fazem funcionar “discursos múltiplos, entrecruzados,
sutilmente hierarquizados e todos estreitamente articulados em torno de um feixe de relações de
poder” (FOUCAULT, 1985, p.32).
A Racionalidade Anátomo-clínica
As histórias factuais da medicina, desde o século XVIII, vêem a clínica como “um puro e
simples exame do indivíduo”, sem se preocupar com a estrutura conceitual específica de cada
tempo, experiência e olhar médicos. Para Foucault, a “velhice da clínica” encobre e mascara a
complexidade da história e da constituição da experiência e métodos clínicos da medicina
moderna, querendo fazer crer que a “pureza da evidência clínica” sempre esteve lá no leito dos
doentes de onde, portanto, teria sido possível que “as verdades se elevassem uma a uma” uma
vez afastada a especulação dos sistemas e teorias, como se fosse possível o acesso à
experiência clínica fora da “ordem arriscada do discurso”.
Foucault se contrapõe assim à explicação das histórias factuais da medicina que
atribuem a mutação ocorrida em fins do século XVIII à transformação da medicina em uma ciência
empírica por simples aproximação progressiva entre o sujeito e o objeto do conhecimento
tornando, assim, seu conhecimento científico. Para o autor, a transformação não ocorreu porque,
enfim, a medicina moderna pôde encontrar seu objeto, mas se operou ao nível da relação entre
aquele que fala e aquilo de que se fala, quando a partir de uma mudança nos planos do visível e
do invisível, e sua relação com o enunciável, se operou uma reformulação no próprio saber,
expressa na mudança do discurso médico que passa a falar, numa nova linguagem, sobre um
outro domínio da experiência médica.
Em O Nascimento da Clínica, Foucault realiza uma investigação arqueológica sobre a
produção do conhecimento da medicina e a transformação operada na estrutura de sua
racionalidade e no domínio de sua experiência. Nessa investigação, a mutação ocorrida no saber
médico é articulada às práticas sociais, em especial, à reorganização do ensino, do exercício da
profissão médica e da instituição hospitalar. As práticas sociais foram relevantes na estruturação
de uma experiência médica coletiva, na qual ensino e assistência se conjugaram e os fatos
patológicos passaram a poder ser observados, ao mesmo tempo, na sua condição de
acontecimento singular e como parte de uma série no campo hospitalar. Essa reorganização se
associa ao desenvolvimento do método clínico, quando o olhar médico não se contenta mais em
constatar, mas busca descobrir. Em fins do século XVIII, na passagem da época clássica à
modernidade, o objeto do saber médico, a doença, sofre uma reconfiguração saindo do espaço de
representação, ideal, taxonômico, superficial, para o espaço concreto, objetivo, profundo do corpo
reificado do indivíduo doente. O “olhar em profundidade” que se realiza no conhecimento da
anatomia patológica se articula ao “olhar de superfície” da observação da doença, transpondo o
olhar médico do espaço ideal das categorias nosográficas da medicina classificatória, ou das
espécies, para a espessura e o volume do espaço corporal da medicina anátomo-clínica.
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No entanto,
“a clínica, olhar neutro sobre as manifestações, freqüências e cronologias,
preocupada em estabelecer parentesco entre os sintomas e compreender sua
linguagem, era, por sua estrutura, estranha a esta investigação dos corpos mudos
e atemporais; as causas ou as sedes a deixavam indiferente: história e não
geografia” (FOUCAULT, 1977a, p.143-144).
Para que a medicina estabelecesse sua racionalidade anátomo-clínica, a clínica precisou
encontrar “um novo modo de ler o tempo” e, também, a anatomia patológica, “novas linhas
geográficas”. Nesse sentido, operou-se uma “litigiosa estruturação”, não por serem as autópsias
proibidas pela religião e a moral como as histórias factuais da medicina nos fazem crer, mas pela
dificuldade de articulação de até então dois saberes: a clínica, essencialmente uma leitura
temporal de signos, como era compreendida e praticada em fins do século XVIII, e a anatomia
patológica.
Foi apenas com a anatomia de Bichat e a introdução de sua noção de tecido que foi
possível se chegar a um método analítico sobre as formas patológicas gerais acima das
repartições geográficas dos órgãos já realizada, há 40 anos, por Morgagni, maior expoente da
investigação anátomo-patológica no século XVIII. Assim, Bichat desvela na ordem do corpo a
ordem das superfícies, estabelecendo para as doenças um sistema de classes analíticas, onde o
tecido como elemento universal, com suas alterações, passa a ser o princípio de generalização
das espécies mórbidas. Partindo, portanto, de uma preocupação clínica de definir as “estruturas
do parentesco patológico”, aplicando o princípio diacrítico, de que só existe fato patológico
comparado, a uma dimensão bem mais complexa, que inclui a história patológica e as alterações
do cadáver, a noção de “classe” acabará sendo substituída pela de “sede”, estabelecendo-se o
valor de localização do fato patológico como “foco primitivo”, independente da noção de causa, o
que leva o olhar médico a buscar verticalmente correlações entre sintomas e lesão. Mas as
lesões no cadáver não permitiam distinguir o que se devia a traços da doença do que pertencia à
morte. Através da investigação de Bichat, facilitada pela organização hospitalar que propiciava a
realização de autópsia imediatamente à morte, essa questão é então trabalhada, quando ele
busca distinguir as manifestações contemporâneas da doença das que antecedem a morte.
Repartindo a vida, no tempo e no espaço corporal em “formas de morte a varejo”, Bichat integra a
morte conceitual e tecnicamente à doença e à vida, levando o pensamento médico a não mais
estar de costas para a morte em sua busca de eliminação da doença e restauração da vida, pois
“não é porque caiu doente que o homem morre; é fundamentalmente porque pode morrer que o
homem adoece” (FOUCAULT, 1977a, p.177).
Com o olhar anátomo-clínico, modificações se deram na apreensão do “corpo visível da
doença”, levando a semiologia a alterar sua leitura, pois “o signo não fala mais a linguagem
natural da doença; só toma forma e valor no interior das interrogações feitas pela investigação
médica” (FOUCAULT, 1977a, p.185). A semiologia pode, então, fazer surgir um signo onde
não há sintoma ou solicitar uma resposta quando a doença não fala de si mesma. Dessa forma
passa a ter um valor relevante um conjunto de técnicas que constitui uma “anatomia patológica
projetiva”, na busca de signos patognomônicos que remetem à lesão. O médico passa de uma
posição predominante de espectador do espetáculo da doença à posição de alguém que participa
na produção do que se mostra. No desenvolvimento dessas técnicas se incorporam o tato e
audição enriquecendo os recursos sensoriais na observação e surgem os primeiros instrumentos,
como o estetoscópio, cuja mediação técnica iniciam uma semiologia armada. Os sentidos
procuram contornar e superar o véu, que é a vida, a encobrir, paradoxalmente, a verdade sobre as
doenças. Pois, “a estrutura perceptiva e epistemológica que fundamenta a anatomia clínica, e
toda a medicina que dela deriva, é a da invisível visibilidade” (FOUCAULT, 1977a, p.190).
“...estranha característica do olhar médico [...] dirige-se ao que há de visível na doença,
mas a partir do doente, que oculta este visível, mostrando-o; conseqüentemente, para conhecer,
ele deve reconhecer”, diz Foucault ao nos falar do olhar médico na medicina das espécies
(1977a, p.8). Só nela?
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Na medicina das espécies, a singularidade, as “histórias particulares” eram creditadas
sobretudo aos “temperamentos” dos pacientes, podendo também se dever às influências do meio
ou às intervenções terapêuticas que imprimiam “variações qualitativas das qualidades essenciais
que caracterizam as doenças” (p.14). Portanto, na medicina da Idade Clássica, constituída
apenas pelo “olhar de superfície”, o conflito já se colocava:
"Médicos e doentes não estão implicados, de pleno direito, no espaço
racional da doença; são tolerados como confusões difíceis de evitar: o
paradoxal papel da medicina consiste, sobretudo, em neutralizá-los, em
manter entre eles o máximo de distância, para que a configuração ideal
da doença, no vazio que se abre entre um e outro, tome forma concreta,
livre, totalizada enfim em um quadro imóvel, simultâneo, sem espessura
nem segredo, em que o reconhecimento se abre por si mesmo à ordem
das essências" (FOUCAULT, 1977a, p.8).
Na medicina anátomo-clínica, a possibilidade de variação individual está integrada à
própria estrutura da doença, ao seu desenvolvimento na individualidade viva do doente e as
singularidades desempenham um papel relevante na leitura diferencial dos casos. Este “invisível
das modulações individuais” encontra em descrições qualitativas minuciosas, nuançadas, sua
possibilidade de visibilidade, que o descortino anatômico, com a morte, acabará de desvelar. A
linguagem médica passa a realizar um “trabalho que faz ver”. Foucault considera a linguagem e a
morte decisivas na possibilidade de um saber sobre o indivíduo, enquanto corpo doente. No
entanto, para o autor, na idade moderna:
"A experiência clínica - esta abertura, que é a primeira na história
ocidental, do indivíduo concreto à linguagem da racionalidade, este
acontecimento capital da relação do homem consigo mesmo e da
linguagem com as coisas - foi logo tomada como um confronto simples,
sem conceito, entre um olhar e um rosto, entre um golpe de vista e um
corpo mudo, espécie de contato anterior a todo discurso e livre dos
embaraços da linguagem, pelo qual dois indivíduos vivos estão
"enjaulados" em uma situação comum mas não recíproca" (FOUCAULT,
1977a, p.XIII).
Em O Nascimento da Clínica, obra de sua fase arqueológica, o campo de investigações
de Foucault é o “saber”, ou seja, a “formação discursiva”, cuja positividade é uma “prática
discursiva”, que encerra regras de formação dos objetos, dos modos enunciativos, dos conceitos,
dos temas e teorias. Os elementos assim formados se encontram num sistema de relações
menos estrito que na ciência. Embora o saber possa dar lugar à ciência, este não é seu destino
necessário. Em sua análise arqueológica, o saber está sempre referido a uma “prática
discursiva”, que o autor define como:
“um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no
tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma
determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística, as
condições de exercício da função enunciativa” (FOUCAULT, 1995a,
p.136).
O saber é, portanto, um domínio onde “o sujeito é necessariamente situado e
dependente” e nesse sentido, por exemplo, o saber da medicina clínica define para o sujeito do
discurso médico o conjunto das funções de observação, interrogação, decifração, registro,
decisão (Cf. FOUCAULT, 1995a, p.206-207).
Em sua investigação, Foucault descobre no discurso dos médicos, no século do XIX, a
coexistência de enunciados heterogêneos como, por exemplo, descrições qualitativas, narrações
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biográficas, interpretação e recorte dos signos, raciocínios por analogia, dedução, estimativas
estatísticas, verificações experimentais. A diversidade das modalidades enunciativas presentes
no discurso clínico são compreendidas, pelo autor, como manifestação de sua dispersão, cuja
articulação se dá num sistema de relações estabelecido pela especificidade de uma prática
discursiva.
Sobre a experiência histórica do nascimento da clínica e, portanto, do discurso clínico da
medicina moderna, deixemos Foucault concluir:
“a medicina clínica não deve ser tomada como o resultado de uma nova
técnica de observação – a da autópsia que era praticada desde muito
antes do século XIX; nem como o resultado da pesquisa das causas
patogênicas nas profundezas do organismo – Morgagni já o fazia nos
meados do século XVIII; nem como o efeito desta nova instituição que
era a clínica hospitalar – ela já existia há dezenas de anos na Áustria e na
Itália; nem como o resultado da introdução do conceito de tecido no Traité
de Membranes, de Bichat. Deve, sim, ser considerada como o
relacionamento, no discurso médico, de um certo número de elementos
distintos, dos quais uns se referiam ao status dos médicos, outros ao
lugar institucional e técnico de onde falavam, outros à sua posição como
sujeitos que percebem, observam, descrevem, ensinam, etc. Pode-se
dizer que esse relacionamento de elementos diferentes (alguns são
novos, outros, preexistentes) é efetuado pelo discurso clínico; é ele,
enquanto prática, que instaura entre eles todos um sistema de relações
que não é ‘realmente’ dado nem constituído a priori” (FOUCAULT, 1995a,
p.60).
O conjunto de descrições do discurso clínico não parou de se deslocar com os
progressos do conhecimento das ciências básicas que apóiam a clínica e “o médico, pouco a
pouco, deixou de ser o lugar de registro e de interpretação da informação, e porque, ao lado dele,
fora dele, constituíram-se massas documentárias, instrumentos de correlação e técnicas de
análise que ele tem, certamente, que utilizar, mas que modificam, em relação ao doente, sua
posição de sujeito observante” (FOUCAULT, 1995a, p.38). O estarmos "talvez” no “limiar de
uma nova medicina” aparece incidentemente nesse contexto da argumentação de Foucault2, o
que nos faz pensar na desvalorização da prática clínica como produção de conhecimento sobre
as doenças no contexto significativo da relação médico-paciente.
Como analisa Madel Luz (1988), o surgimento de uma racionalidade anátomo-clínica,
inscrita na racionalidade científica moderna mecanicista e organicista, levou a uma transformação
progressiva da medicina no sentido de um “deslocamento epistemológico” de uma arte de curar
indivíduos para uma disciplina das doenças, passando a configurar para o médico, na sua prática
clínica, uma tensão conflitiva entre o “artesão da cura” e o “cientista da doença”. O cientista da
doença está referido a um paradigma analítico que busca o universal através da objetivação da
doença. O artesão da cura está referido a um paradigma indiciário, que postula a exigência da
interpretação dos dados e a relevância dos fatos singulares na clínica, em referência a um
conhecimento construído pela acumulação de experiências singulares e particulares ao
diagnosticar e tratar inúmeros pacientes.
Esse paradigma indiciário é uma postulação de Ginzburg ao pretender contribuir para a
discussão da produção do conhecimento em ciências humanas, tentando ”sair dos incômodos da
contraposição entre racionalismo e irracionalismo” (GINZBURG, 1989, p.143). Para esse autor,
2
Por duas vezes surpreendemos a referência pouco explícita desse autor de estarmos “talvez” no
limiar de “uma nova experiência da doença” ou de “uma nova medicina”. Cf. Foucault, 1977a,
p.XIV e 1995a, p.38, respectivamente.
15
tal paradigma passou a ter expressão a partir do final do século XIX e ele nos mostra, inclusive,
como Freud foi reconhecidamente influenciado por ele, como nos ilustra uma passagem em O
Moisés de Michelangelo (1914). E o próprio Ginzburg nos fala da importância desse paradigma
na medicina:
“Ora, é claro que o grupo de disciplinas que chamamos de indiciárias
(incluída a medicina) não entra absolutamente nos critérios de
cientificidade deduzíveis do paradigma galileano. Trata-se, de fato, de
disciplinas eminentemente qualitativas, que têm por objeto casos,
situações e documentos individuais, enquanto individuais, e justamente
por isso alcançam resultados que têm uma margem ineliminável de
casualidade; basta pensar no peso das conjeturas (o próprio termo é de
origem divinatória) na medicina” (GINZBURG, 1989, p.156) (grifos do
autor).
A racionalidade anátomo-clínica, que organiza as diferenças dos “casos” individuais na
construção da doença enquanto modelo descritivo e explicativo, quando articula o olhar à
linguagem, “o olhar loquaz” que investiga e descobre, não pode excluir a questão da interpretação
dos sintomas e sua transformação ou não em signos de doença no raciocínio diagnóstico
realizado pelo médico na sua prática clínica.
Consideramos importante apontar o surgimento recente de um discurso sobre a clínica
que pretende fazer “uma ciência da arte médica” ao estabelecer uma racionalidade a partir da
articulação dos conhecimentos clínico e epidemiológico sobre as doenças.
A epidemiologia clínica, admitindo explicitamente que no exercício da clínica estão
presentes “a arte e a ciência”, e entendendo por arte “crenças, juízos, intuições”, pretende
formular “os princípios da apreciação crítica da evidência médica”. Ela reconhece “com
humildade” que não pretende substituir a arte da medicina, mas contribuir para o “maior rigor
científico” da prática clínica que, podendo ser “explicada e ensinada”, libertaria os estudantes e
médicos da “velha tirania da arte da medicina não transmissível” (SACKETT e cols., 1994,
p.12).
A “medicina baseada em evidência”, na condição de um conhecimento recente e de
apropriação controversa pelos clínicos, não se faz presente expressivamente em nossa pesquisa,
seja no discurso dos professores de Clínica Médica seja no dos alunos. No entanto, seu
desenvolvimento crescente e, sobretudo, sua pretensão de maior racionalidade no campo da
prática e discurso clínicos justificam, a nosso ver, sua referência. Sackett e colaboradores
(1994) apontam, baseados em vários estudos de diversos autores, o que eles denominam
“discrepância clínica”, ou seja a inconsistência entre observações quer de dois ou mais médicos
(inconsistência interobservador) quer de observações repetidas pelo mesmo médico
(inconsistência intraobservador). Esses estudos falam das ambigüidades e incompatibilidades no
julgamento clínico, revelando a “discrepância clínica” tanto a cerca de elementos da história
clínica como do exame físico, da interpretação de provas diagnósticas e, claro, do diagnóstico
formulado e da escolha da conduta terapêutica (Cf. p.38-48).
O crescimento exponencial do conhecimento na área médica, sua conseqüente
especialização e, ainda, o desenvolvimento acelerado da tecnologia, aumentam as exigências
para o médico na realização de suas escolhas e decisões em sua prática clínica. A “medicina
baseada em evidência”, pretendendo uma racionalização das decisões médicas, é uma tentativa
de resposta que, objetivando uma prática mais útil, eficiente, menos cara e pretensamente mais
científica, vem tendo uma penetração privilegiada, mas não sem controvérsias. Entre outros, há
um curioso conflito: alguns médicos estão saindo em defesa da arte médica. Estariam se
sentindo ameaçados de perder um ideal? Seriam a perda da autonomia de decisão e a questão
de ser reduzido a um mero técnico o que está em jogo? É curioso porque se, por um lado, a
criação de protocolos, rotinas diagnósticas e terapêuticas diminui a autonomia de decisão dos
médicos, por outro, alivia sua responsabilidade. E também é curioso porque afinal seria, entre
outros aspectos, apenas mais um movimento de normalização e homogeneização das ações
16
médicas e de seus atores, o que nos confronta com o fato de que os médicos desconhecem o
quanto já foram normalizados, o quanto já perderam de autonomia e liberdade de decisão.
O Discurso Médico numa Prática Institucionalizada
Ao investigar uma prática pedagógica referida ao ensino da clínica, discutindo situações
da prática médica num hospital de ensino, não podemos desconsiderar que não só um saber se
exerce, mas também um poder normaliza.
É em Vigiar e Punir que Foucault investiga e detalha os mecanismos disciplinares como
um conjunto de técnicas que visam a sujeição dos indivíduos de forma a que eles se tornem úteis
e obedientes, ou melhor, tanto mais úteis quanto mais são obedientes, e inversamente. Nessa
investigação, o objeto de estudo para Foucault é a tecnologia disciplinar. O hospital e a escola,
como a prisão, nas sociedades modernas, são, para Foucault, apenas exemplos, expressões
articuladas de práticas mais gerais que visam disciplinar os indivíduos e as populações. O
hospital como a escola são, portanto, parte do que Foucault grosso modo chama “uma sociedade
disciplinar”, cuja formação se deu através do desenvolvimento e extensão de mecanismos
disciplinares ao longo dos séculos XVII e XVIII, possibilitando que, a partir do início do século XIX,
o poder disciplinar passe a operar regularmente através de um:
“duplo modo: o da divisão binária e da marcação (louco-não louco;
perigoso-inofensivo; normal-anormal); e o da determinação coercitiva, da
repartição diferencial (quem é ele; onde deve estar; como caracterizá-lo,
como reconhecê-lo; como exercer sobre ele, de maneira individual, uma
vigilância constante, etc.)” (FOUCAULT, 1977b, p.176) (grifos nossos).
Na análise das práticas sociais do período histórico em que localiza o nascimento da
clínica e a constituição do saber médico moderno com sua racionalidade anátomo-clínica,
Foucault investiga as transformações pelas quais passaram os hospitais e as escolas médicas.
O hospital do século XVII, abrigo para a miséria e a morte próxima, um espaço administrativo e
político, aos poucos se articula em espaço terapêutico, mas apenas ao final do século XVIII,
passa a formar médicos e produzir conhecimento.
“O hospital bem ‘disciplinado’ constituirá o local adequado da ‘disciplina’
médica; esta poderá então perder seu caráter textual e encontrar suas
referências menos na tradição dos autores decisivos que num campo de
objetos perpetuamente oferecidos ao exame” (FOUCAULT, 1977b,
p.166).
O saber está sempre articulado ao poder, e na microfísica ou microprática de uma
instituição hospitalar e pedagógica vemos o saber médico se articulando ao poder disciplinar,
normalizador, cujo alvo não se limita aos pacientes, mas também aos estudantes e médicos,
cujas técnicas servem como instrumento essencial na realização de seus fins institucionais
determinados. Com “o jogo moderno das coerções sobre os corpos, os gestos, os
comportamentos” (FOUCAULT, 1977b, p.170), o poder disciplinar pretende a
homogeneização, a normalização e, nesse sentido, as diferenças individuais são, para ele, não
só pertinentes como úteis. Através do esquadrinhamento das diferenças individuais e de seu
controle efetua-se o “poder da Norma”.
Ao longo do século XVIII, na Alemanha, os médicos foram os primeiros indivíduos a
serem normalizados:
“Um fenômeno importante de normalização da prática e do saber
médicos. Procura-se deixar às universidades e sobretudo à própria
corporação dos médicos o encargo de decidir em que consistirá a
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formação médica e como serão atribuídos os diplomas. Aparece a idéia
de uma normalização do ensino médico e, sobretudo, de um controle,
pelo Estado, dos programas de ensino e da atribuição dos diplomas. A
medicina e o médico são, portanto, o primeiro objeto da normalização.
Antes de aplicar a noção de normal ao doente, se começa por aplicá-la ao
médico” (FOUCAULT, 1986, p.83) (grifos nossos).
Os instrumentos principais da tecnologia disciplinar são a vigilância hierárquica, a sanção
normalizadora e o exame. Detalharemos essas técnicas pois elas constituem um pressuposto
teórico que enriquecerá a análise do material de nossa pesquisa.
A vigilância hierárquica se constitui num jogo de olhares que se efetua na rede de
relações múltiplas e entrecruzadas, mesmo quando sua organização possui uma forma piramidal,
como num hospital de ensino, de forma que se instituem “fiscais perpetuamente fiscalizados”. Os
efeitos de poder da vigilância hierarquizada se realizam de forma integrada, ou seja, ela se insere
na essência da prática seja, por exemplo, do ensino ou da produção, como um mecanismo que,
tornando-se inerente a essa prática, multiplica sua eficiência.
O poder disciplinar estabelece um campo de “micropenalidades” que se refere à
inobservância ou inadequação com relação a regras, portanto, a desvios, enfim ao “campo
indefinido do não-conforme”. As sanções normalizadoras na investigação de Foucault incidem,
principalmente, sobre o uso do tempo (atrasos, ausências, interrupções das tarefas), sobre
aspectos do como se realiza a atividade (desatenção, negligência, falta de zelo), sobre a maneira
de ser (grosseria, desobediência), sobre os discursos (tagarelice, insolência), sobre o corpo
(atitudes “incorretas”, gestos não-conformes, sujeira) e sobre a sexualidade (imodéstia,
indecência) (Cf. FOUCAULT, 1977b, p.159-160).
Sobre a maneira de punir, para Foucault, as disciplinas inventaram um novo
funcionamento punitivo, através de cinco operações, que realiza o poder da Norma: relacionar os
atos, os desempenhos, os comportamentos singulares a um conjunto; diferenciar os indivíduos
em relação uns aos outros; medir em termos quantitativos e hierarquizar em termos de valor as
capacidades, o nível, a “natureza” dos indivíduos (a escola, em especial, desenvolveu
particularmente esse recurso); fazer funcionar, através dessa medida “valorizadora”, a coação de
uma conformidade a realizar; traçar o limite que definirá a diferença em relação a todas as
diferenças, a fronteira externa do anormal (Cf. FOUCAULT, 1977b, p.164).
“Através dessa microeconomia de uma penalidade perpétua, opera-se
uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos, de
sua natureza, de suas virtualidades, de seu nível ou valor.” (grifos
nossos) [...] “A penalidade perpétua que atravessa todos os pontos e
controla todos os instantes das instituições disciplinares compara,
diferencia, hierarquiza, homogeniza, exclui. Em uma palavra, ela
normaliza” (grifos do autor) (FOUCAULT, 1977b, p.162-163).
A terceira técnica que Foucault descreve é o exame. O exame, num hospital de ensino,
se refere tanto aos pacientes como aos profissionais que nele trabalham, em especial os alunos
num processo de ensino. Sendo um procedimento “altamente ritualizado, nele vêm-se reunir a
cerimônia do poder e a forma da experiência, a demonstração da força e o estabelecimento da
verdade” (FOUCAULT, 1977b, p.164-165).
Em relação ao paciente, a técnica do exame, através da anamnese, do exame físico, da
constituição do caso médico e de seu registro, além de possibilitar a constituição do indivíduo
como objeto descritível e analisável, ao mesmo tempo, através do acúmulo dos registros dos
vários casos, permite também a constituição de um sistema comparativo que facilita a descrição
de grupos, a caracterização de fatos coletivos, a estimativa dos desvios dos indivíduos entre si,
sua distribuição numa população. O exame capta o indivíduo doente numa “objetivação
limitadora” e o sujeita a verdades de um campo de saber que, ao mesmo tempo, ele ajuda a
construir. Dito de outra forma, o exame, num só mecanismo, possibilita a formação de um certo
tipo de saber e o exercício de uma certa forma de poder. Assim, é o exame que resolve “o
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problema dos hospitais, onde era preciso reconhecer os doentes, expulsar os simuladores,
acompanhar a evolução das doenças, verificar a eficácia dos tratamentos, descobrir os casos
análogos e os começos de epidemias” (FOUCAULT, 1977b, p.168).
Historicamente, foi através da maior freqüência e regularidade das “visitas” de médicos ao
espaço hospitalar que o hospital se tornou um espaço de observação médica permanente, através
da técnica do exame, quando acabou por se inverter a relação hierárquica entre os religiosos e os
médicos, passando estes ao primeiro plano, estabelecendo a subordinação daqueles, surgindo a
figura do enfermeiro.
Na atualidade, numa complexa rede de relações hierarquizadas num hospital de ensino,
podemos privilegiar o round como o ato ritualizado, onde se realiza o exame, sobretudo, de
estudantes, quando também professores, médicos e alunos produzem uma verdade sobre o caso
médico referido ao paciente. “A superposição das relações de poder e das de saber assume no
exame todo o seu brilho visível” (FOUCAULT, 1977b, p.165).
O indivíduo “fabricado” pelo poder disciplinar, alvo desse poder discreto, modesto mas, ao
mesmo tempo, profundamente indiscreto e contínuo, que, ao ter como objetivo tornar o indivíduo
dócil e obediente, toma o indivíduo como objeto e como instrumento de seu exercício, e, num
funcionamento capilar, leva a que: “Quem está submetido a um campo de visibilidade, e sabe
disso, [...] inscreve em si a relação de poder na qual ele desempenha simultaneamente os dois
papéis; torna-se o princípio de sua própria sujeição” (FOUCAULT, 1977b, p.179).
Como alerta Roberto Machado, a análise de Foucault é histórica e específica. Nem todo
poder individualiza, o poder disciplinar é uma forma específica de dominação e, ainda, é datado:
“A existência de um tipo de poder que pretende instaurar uma dissimetria
entre os termos de sua relação, no sentido em que se exerce o mais
possível anonimamente e deve ser sofrido individualmente é uma das
grandes diferenças entre o tipo de sociedade em que vivemos e as
sociedades que a precederam” (MACHADO, 1986, p.XX).
Para Foucault, em sua análise genealógica, as técnicas do poder disciplinar, em especial
o exame, configuram uma tecnologia específica de poder que ele chama “disciplina” que, a seu
ver, teve uma “importância decisiva” na “liberação epistemológica das ciências do indivíduo”,
“ciências ‘clínicas’ ”, enfim na “entrada do indivíduo no campo do saber” (FOUCAULT, 1977b,
p.169). A medicina clínica, a psiquiatria, a psicologia, a pedagogia são saberes que foram
possíveis a partir do momento em que o indivíduo é constituído “como efeito e objeto de poder,
como efeito e objeto de saber”. (FOUCAULT, 1977b, p.171).
A ordem médica, compreendida como o funcionamento de um saber/poder de uma
disciplina, implica, na sua dimensão discursiva e na prática, a recusa e desqualificação da
subjetividade e da singularidade do fato clínico como o aspecto insubmisso, ameaçador, do qual
se quer escapar, que está referido tanto às paixões na relação médico-paciente como à angústia
em relação aos limites de um saber científico que se pretende totalizante. E nós psicanalistas,
os “outros” tolerados pela ordem médica, estaríamos no seu interior para, estrategicamente
sujeitados e cooptados, na economia dos discursos que ela promove sustentada por seus
“interesses”, realizarmos a tarefa de contermos o transbordamento, o excesso e, numa solução
de compromisso, incitados a um discurso sobre o sofrimento da alma, mantermos o projeto lírico,
religioso, humanitário e normalizador da função médica?
Em nossa proposta pretendemos discutir um modelo de transmissão de conhecimento da
clínica que leve em conta do que se quer escapar na formação e práticas médicas. Do que se
quer escapar? Do sofrimento. Do sofrimento do paciente que é potencialmente o do médico. Mas
não só isso. Das decisões e escolhas que conflitam o médico pela imperfeição de seu saber, que
não pode ser permanentemente atribuído ao outro inominado, seja a medicina ou o sistema
público de saúde, cujas limitações também importam nos resultados de seu ato médico. Quando
os resultados, efeito de suas escolhas possíveis, não correspondem aos por ele, médico,
desejados, nem sempre ele pode virar as costas para não vê-los. E o risco é de vivenciar a culpa.
E como se escapa? As soluções individuais vão interagir com algo que está num outro nível, no
19
nível do coletivo, que é a negação da subjetividade e da singularidade no exercício de um saber,
na produção, na apropriação e no uso do conhecimento.
Como nos diz Foucault:
“É justamente no discurso que vêm a se articular poder e saber. [...] Os
discursos, como os silêncios, nem são submetidos de uma vez por todas
ao poder, nem opostos a ele. É preciso admitir um jogo complexo e
instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e
efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto
de partida de uma estratégia oposta. O discurso veicula e produz poder;
reforça-o mas também o mina, expõe, debilita e permite barrá-lo. Da
mesma forma, o silêncio e o segredo dão guarida ao poder, fixam suas
interdições; mas também afrouxam seus laços e dão margem a
tolerâncias mais ou menos obscuras” (FOUCAULT, 1985, p.95-96).
Conseguimos com nossa proposta pedagógica e de pesquisa referida ao pequeno teatro
do dia-a-dia ir além do que as instituições de saber e poder encobrem com seu discurso solene?
Cientes de que o poder, no seu aspecto positivo, também cria, engendra realidades, realidades
subjetivas e sociais, e não só interdita, será que conseguimos, como produção de saber e poder,
sustentar a dúvida produtiva possibilitando uma reflexão crítica com efeitos sobre a formação
profissional? Como nos diz Foucault, “a menor eclosão de verdade é condicionada politicamente"
. E não se podem esperar os efeitos do valor de verdade de uma simples prática médica nem de
um discurso teórico, por mais rigoroso que seja, sem contar com o contexto político institucional
onde esses saberes de uma prática teorizada se realizam.
A vontade de saber com seus interesses numa microfísica de uma instituição médica de
ensino encontra apoio no narcisismo dos médicos expresso coletivamente no seu desejo de
certeza e de onipotência, levando à prática a ser o que é, normalizada apesar do discurso parecer
sempre ser ambivalente em relação à tensão doente/doença. E a solução de compromisso ou o
"sintoma" está nos próprios médicos, quando apreendemos, em seu discurso, um ideal
romântico, apesar da desvalorização do ato na clínica como um ato simbólico e, em sua prática,
o exercício de uma prática normalizada sem romantismo.
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PSICANÁLISE E MEDICINA
“A fé com que ele [o paciente] enfrenta o efeito imediato de um
procedimento médico depende, de um lado de seu desejo de curar-se e,
de outro, da certeza de que deu os passos corretos nessa direção - isto é,
em seu respeito geral pela técnica médica - e, mais, do poder que atribui
à personalidade do médico e mesmo da simpatia puramente humana
nele despertada por este” .
Freud, Tratamento psíquico (ou mental) [1905]
A presença da dimensão psicossocial do homem no processo saúde/doença é
reconhecida e pensada de diferentes formas ao longo da história. O processo saúde/doença
implica a relação normal/patológico, que é questionada quando o pensamento crítico na
modernidade denuncia o reducionismo do modelo médico, que pretende diferenciar nitidamente o
normal do anormal usando categorias que estabelecem parâmetros de normalidade e postulando,
com um critério normativo, um ideal de higidez que desconsidera o homem inscrito em um
cenário dinâmico, social e histórico, produzindo seus efeitos.
No século XX, o desenvolvimento do conhecimento, tanto na área médico-biológica como
na área social, vem produzindo efeitos sobre a formação e a prática médicas. No entanto, a
hegemonia de um pensamento que mantém, implicitamente, o exercício de um poder, não pode
ser compreendida apenas como efeito do desenvolvimento das áreas de conhecimento envolvidas
na prática médica. Esse desenvolvimento se associa ao valor que diferentes saberes têm na
comunidade acadêmica, onde se reproduz e se difunde o conhecimento médico.
É o pensamento crítico que descobre um reducionismo no modelo médico que pretende
exercer um domínio sobre qualquer produção do psiquismo impondo, portanto, uma redução ao
dado anátomo-patológico como fundamento de qualquer saber sobre o indivíduo doente. Isso
resulta na manutenção de uma ilusão objetivista, impõe uma razão identificada com a
consciência excluindo o fato da significação e, ainda, exclui o sujeito do desejo inconsciente
desvalorizando a atividade interpretativa da subjetividade. Na medida em que possamos fazer uma
oposição inclusiva entre sujeito e objeto, a questão da subjetividade se associa ao pensamento
crítico para que esse se oponha a qualquer reducionismo e mantenha a tensão produtiva na
produção de conhecimento. Essa valorização da subjetividade implica o reconhecimento de um
determinismo psicossocial no processo saúde/doença, na prática médica e na formação dos
médicos.
Para a ciência médica, na sua prática de só considerar a realidade material em termos
anatômicos e fisiológicos, o problema da interação mente e corpo permanece, e a solução do
modelo médico é a fragmentação no conhecimento dos órgãos buscando uma eficácia na prática
que, se chega a resultados, não possibilita uma integração das diferentes disciplinas que
contribuem para o conhecimento do homem como ser biopsicossocial.
Sobre a Interseção entre Psicanálise e Medicina
Com o surgimento da psicanálise, em particular com os trabalhos de Freud sobre a
histeria, certos sintomas físicos relacionados à inervação voluntária e sensorial passam a ser
compreendidos como expressões simbólicas de conflitos emocionais. Isso se fez possível a partir
da descoberta do inconsciente dinâmico e dos mecanismos de repressão e conversão. A
psicanálise, confrontada com a psicopatologia da histeria, fala de um corpo simbólico, referindose ao problema da significação, ao dizer que "o histérico sofre de reminiscências". E a "cura pela
palavra" decorre desse fato, da simbolização expressa no corpo em sofrimento, em um corpo
erógeno, evidenciando que o psiquismo pode, como efeito de determinação inconsciente, afetar o
corpo, e não só no sintoma histérico. Outros psicanalistas, em especial Groddeck, Deutsch e
21
Ferenczi, prosseguiram na investigação de representações psíquicas de expressões somáticas,
através de estudos de caso.
Para a psicanálise o corpo não é o corpo da biologia. Para a medicina, enquanto prática
clínica, também não deveria ser, uma vez que uma redução organicista desconsidera
completamente a realidade psíquica, a realidade social e, portanto, o fato da significação. A
medicina tende a negar o corpo do simbólico e fragmenta o corpo nos órgãos que o compõem,
ficando referida a uma concepção ingênua do real - a uma racionalidade anátomo-clínica que, se
torna mais fácil a tarefa para os médicos, acarreta, por vezes, sofrimento aos pacientes e
dificuldades na realização do projeto terapêutico. Mas essa crítica que a psicanálise pode fazer
ao reducionismo do modelo médico não deve colocar a psicanálise contra a medicina. Como já
nos dizia Freud: "Toda a ciência é unilateral" e "é uma insensatez, na qual eu não tomaria parte,
lançarmos uma ciência contra outra"; no entanto, essa "característica" reducionista da medicina,
que a psicanálise denuncia, pode se transformar numa "censura [...] se passarmos da medicina
científica para a terapêutica prática" (FREUD, [1926] 1976, p. 262).
Freud, em sua conferência de 1904, ao defender “a causa da psicoterapia”, já havia
pontuado que a psicoterapia “é a forma mais antiga de terapia existente na medicina” e que,
mesmo diante de outros recursos terapêuticos, “esforços psicoterápicos jamais desapareceram
completamente da medicina”, basicamente pela existência da “fé expectante”, por parte do
paciente, e da simples “palavra de conforto”, quando médicos, até sem o saber de sua intenção e
mesmo de sua ação, praticam psicoterapia (Cf.268-269). É enfatizando a diferenciação entre
psicanálise e psicoterapias, que Freud coloca em jogo uma antítese usando as metáforas de
Leonardo da Vinci, que diferenciam escultura e pintura. A psicanálise funcionaria, como a
escultura, per via di levare, procurando desconstruir significados, deixando ao paciente o trabalho
de reconstrução em torno de sua verdade - a verdade parcial do desejo inconsciente -, enquanto
as psicoterapias, como na pintura, se fariam per via di porre, incluindo a sugestão da orientação
médica atenta para os efeitos de cura. Essa diferença pode ser associada, segundo Vital Brazil,
ao valor de eficácia da psicoterapia, que pode se dar no ato médico bem sucedido, ou ao valor de
verdade no discurso do ato psicanalítico, ao considerarmos essas práticas sempre se realizando
num campo de valores. Como escreve esse autor:
"A diferença entre psicanálise e psicoterapias, se põe, portanto, nas suas
respectivas práticas, como uma diferença qualitativa, constrangendo o
psicoterapeuta a exercer um poder, um poder curativo desde sempre
atribuido ao modelo médico associado à ambição de cura, e que lhe é
outorgado pela sociedade que exige dos seus membros participação na
força produtiva. O psicoterapeuta, prescrito o seu trabalho na demanda
social, deve pensar no fim de um processo que tem um sentido
nitidamente adaptativo, que não dissimula um jogo parcial de poder, de
atender a uma normalidade estatística do que é prevalente no valor de
como se deve ser em um determinado contexto sócio-cultural, retirando
da psicanálise o seu valor de verdade, necessariamente subversivo e
contestatório, e substituindo este valor de verdade por um valor de
eficácia, esclarecimento e influência" (VITAL BRAZIL, 1997, p.281) (grifos
do autor).
Em Sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud [1919] nos fala do “valor” da
psicanálise em relação à formação médica, embora não se restrinja a ela. Referindo-se à
existência de críticas que apontam a perspectiva “parcial” com que essa formação dirige os
alunos fundamentalmente ao estudo da anatomia, da física e da química, Freud destaca, como
conseqüências, não só a “falta de interesse pelos problemas mais absorventes da vida humana,
na saúde ou na doença”, como também a inabilidade do futuro médico no tratamento de
pacientes de forma que “até mesmo charlatães e ‘curandeiros’ terão mais efeito sobre esses
pacientes do que ele” (p.217-218). Freud chega a propor a existência de dois cursos: um
“introdutório”, “que trataria detalhadamente das relações entre a vida mental e a vida física - a
22
base de todos os tipos de psicoterapia -, descreveria as várias espécies de procedimentos
sugestivos” e os distinguiria da psicanálise propriamente dita; e um “curso para psiquiatras” que
teria a finalidade de fornecer a compreensão dos fatos observados pela psiquiatria essencialmente
descritiva (p.218). Freud ressalva os limites desse ensino que, através apenas de aulas teóricas,
só pode se pretender “dogmático e crítico” e conclui:
“o estudante de medicina jamais aprenderia a psicanálise propriamente
dita [...] Mas, para os objetivos que temos em vista, será suficiente que
ele aprenda algo sobre psicanálise e que aprenda algo a partir da
psicanálise” (FREUD, [1919] 1976, p.219-220) (grifos do autor).
Nas Conferências Introdutórias, Freud (1916 [1915]) nos fala do abismo entre as
operações de conhecimento na medicina e na psicanálise: o ver e o escutar. E se associamos o
ver à eficácia de uma ação sobre o real, que é passível de uma redução demonstrativa aos dados
sensoriais, e o valor de verdade no discurso ao escutar, que se dá na descoberta interpretativa
entre curso associativo e atenção flutuante, tornamos ainda mais precisa a diferença entre o ato
médico e o ato psicanalítico.
“Na formação médica os senhores estão acostumados a ver coisas.
Vêem uma preparação anatômica, o precipitado de uma reação química,
a contração de um músculo em conseqüência da estimulação de seus
nervos. Depois, pacientes são demonstrados perante os sentidos dos
senhores: os sintomas de suas doenças, as conseqüências dos
processos patológicos e, mesmo, em muitos casos, o agente da doença
isolado. [...] Assim, um professor de curso médico desempenha em
elevado grau o papel de guia e intérprete que os acompanha através de
um museu, enquanto os senhores conseguem um contato direto com os
objetos exibidos e se sentem convencidos da existência dos novos fatos
mediante a própria percepção de cada um.
Na psicanálise, ai de nós, tudo é diferente. Nada acontece em um
tratamento psicanalítico além de um intercâmbio de palavras entre o
paciente e o analista" (FREUD, [1916 [1915]] 1976, p.28-29).
Além da diferença entre os modos de conhecer e a questão do valor de verdade nas duas
práticas teorizadas, Freud denuncia o preconceito em relação ao valor da palavra, e nos remete à
diferença entre a cura pela palavra - a palavra realizando-se como ato na transferência - e a cura
na clínica médica, que se realiza como ação sobre o real sem necessariamente desconsiderar o
campo transferencial, quando em seqüencia nos fala:
“Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam
apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais
como aquelas vistas no cinema -, jamais deixam de expressar suas
dúvidas quanto a saber se ‘algo não pode ser feito pela doença, que não
seja simplesmente falar’. Essa, naturalmente, é uma linha de pensamento
ao mesmo tempo insensata e incoerente. Essas são as mesmas
pessoas que se mostram assim tão seguras de que os pacientes estão
‘simplesmente imaginando’ seus sintomas. As palavras, originalmente,
eram mágicas e até os dias atuais conservaram muito do seu antigo
poder mágico. Por meio de palavras uma pessoa pode tornar outra
jubilosamente feliz ou levá-la ao desespero, por palavras o professor
veicula seu conhecimento aos alunos, por palavras o orador conquista
seus ouvintes para si e influencia o julgamento e as decisões deles.
Palavras suscitam afetos e são, de modo geral, o meio de mútua
23
influência entre os homens. Assim, não depreciaremos o uso das
palavras na psicoterapia, e nos agradará ouvir as palavras trocadas entre
o analista e seu paciente” (FREUD, [1916 [1915]] 1976, p.29-30).
Se a psicanálise não se subordina à prova demonstrativa ou à verificação empírica, e tem
que ser considerada como um processo interminável por definição de princípio, uma vez que o
inconsciente é inesgotável e o conflito permanente, a questão da cura, sempre exigida pelo
modelo médico, vai nos referir a uma outra diferenciação entre o ato psicanalítico e a ação eficaz
da clínica. Desde Freud e a sua famosa frase que fala sobre a diferença entre os resultados da
prática médica, que pretende realizar a ambição de cura pela eliminação da doença, e a
referência aos resultados da psicanálise, que só pode aspirar a "transformar a angústia neurótica
em sofrimento humano comum", a psicanálise como uma prática social diferenciada não pode se
confundir com a prática da medicina. O psicanalista como "praticante da função simbólica",
mantendo o deslocamento do desejo inconsciente em relação a objetos substitutivos, objetos
simbólicos produzidos na história individual que singulariza o paciente, se diferencia do médico
constrangido a obter, no exercício do poder curativo, resultados que satisfaçam a demanda social
de manutenção da vida, referidos exclusivamente à doença. Como nos diz Vital Brazil:
“O psicanalista seria aquele que suporta a demanda sem atendê-la, que
mantém uma promessa insustentável até que ela se denuncie como
irrealizável, e a psicanálise não atende a nenhuma demanda que não seja
a demanda de análise, nem mesmo a demanda social de apresentação
de resultados, na qual o psicanalista estaria constrangido a buscar o
reconhecimento possível do valor social de sua prática, pretendendo ter
garantido o reconhecimento social do seu saber.
Já as psicoterapias exigiriam que o psicoterapeuta se engajasse na
intersubjetividade de uma relação que corresponde mais ao modelo
médico, isto é, que se define como terapêutica por antecipação a
qualquer ato [...] e que teria, portanto, um objetivo claramente definido de
remitir sintomas ou que responda à aplicabilidade de um critério de cura"
(VITAL BRAZIL, 1997, p.276-277) (grifos do autor).
A questão das relações entre a doença e a pessoa doente e entre esta e a ordem social
ganham destaque no século XX. Na década de 20, na Alemanha, emerge um discurso médico
antropológico, cujos representantes mais expressivos foram Weizsäcker, Schwartz e Krehl. Esse
discurso médico antropológico, usando o modelo compreensivo, articula a enfermidade
internamente com a história de vida do paciente, formulando-a como uma "patologia biográfica". A
enfermidade passa a ser considerada não só no plano da causa, onde ela é explicada pelo
discurso biológico, mas também no plano da significação, onde ela é compreendida como
experiência na temporalidade de uma existência. Movimento humanista, relacionado a
progressivas críticas à prática clínica pelo seu desinteresse na pessoa do doente, teve seus
suportes teóricos na filosofia alemã kantiana e neo-kantiana.
Na década de 30, surge uma contribuição, cuja expressão e difusão associada à
denominação Medicina Psicossomática, diferentemente da Medicina Antropológica, restringe-se à
postulação de uma causalidade psíquica. Em particular os trabalhos de Alexander e French,
psicanalistas do Instituto Psicanalítico de Chicago, propuseram a presença de "conflitos
básicos", "conflitos típicos" da úlcera duodenal, colite ulcerativa, asma brônquica,
neurodermatite, hipertensão essencial, artrite reumatóide e tireotoxicose - as sete doenças
conhecidas, a partir de então, como doenças psicossomáticas. Em nenhum momento, esses
autores interrogam o estatuto social da enfermidade somática. Alexander e Szasz (1962),
distinguindo a histeria da "neurose vegetativa" (organoneurose), consideram que:
"A neurose vegetativa... não expressa nenhum significado psicológico. O
sintoma vegetativo não é uma expressão substitutiva da emoção e sim
24
seu concomitante fisiológico (normal). ...Ao estar submetido a estímulos
emocionais contínuos provenientes de conflitos sem resolver, as
respostas vegetativas se tornam crônicas. Às vezes, podem conduzir a
fenômenos teciduais irreversíveis que originam sindromes orgânicas
definidas" (ALEXANDER e SZASZ em ALEXANDER e ROSS, 1978,
p.313).
A postulação de doenças psicossomáticas baseada na psicogênese de certos
transtornos orgânicos aprisiona-se no modelo explicativo-causal, o que contribuiu para a sua
aceitação e difusão no meio médico. No entanto, no meio psicanalítico, essa aceitação é mais
problemática, chegando mesmo a ser entendida como um reducionismo inaceitável.
Na estrutura etiológica da enfermidade passam a participar outras séries causais além da
causalidade linear biológica, quais sejam as causalidades de ordem psíquica e as de ordem
sociológica e antropológica em sentido estrito. Como escreve Joel Birman:
"A Medicina entra na região da interdisciplinaridade, adquirindo neste
campo de práticas o mesmo estatuto ambíguo, do ponto de vista
epistemológico, que em outros campos teóricos. Com efeito, este
conjunto de discursos não se refere ao mesmo objeto científico, mas a
uma pluralidade de objetos que encontram a sua delimitação e as suas
verdades nos saberes de origem: Psicologia, Sociologia, Antropologia,
Psicanálise e Biologia. Eles não se articulam na sua intimidade
conceitual, construindo um outro objeto para o saber médico, mas se
justapõem, tendo como referente empírico os indicadores da saúde e da
doença. Pluralidade discursiva, dispersão de novos objetos, eis o
contexto significativo da questão se a encaramos da perspectiva da
estrita lógica conceitual de cada um dos saberes referidos" (BIRMAN,
1980, p.25-26) (grifos do autor).
Na década de 50, o psicanalista húngaro Michael Balint desenvolve na Clínica Tavistock
os Seminários de treinamento e pesquisa sobre problemas psicológicos na prática da clínica
geral, numa tentativa de resposta à demanda social constituída por clínicos gerais que apontavam
a insuficiência da formação médica com relação à grande demanda de doentes funcionais. Balint,
considerando que "a droga mais freqüentemente utilizada na clínica geral era o próprio médico",
parte para uma proposta interdisciplinar de estudo da "farmacologia da substância médico",
empreendendo uma investigação-treinamento das possibilidades de aplicação da teoria
psicanalítica no campo dinâmico da relação médico-paciente. Com o objetivo de estudar e
desenvolver a função psicoterápica dos clínicos gerais em sua relação com seus pacientes - no
interjogo das "ofertas" dos pacientes e das "respostas" dos médicos - Balint centrava-se na
contratransferência dos médicos, ou seja, no "modo como o médico utiliza sua personalidade,
suas convicções, seus conhecimentos, seus padrões habituais de reação, etc." (BALINT, 1975,
p.255).
A reconstrução elaborada pelo grupo, nos seminários, sobre um determinado encontro
clínico poderia ser avaliada, compreensivamente, na evolução dessa relação clínica, em analogia
ao processo psicanalítico, validando a interpretação como se faz na seqüência das sessões
psicanalíticas. Nesse sentido, não é suficiente levar em conta apenas a evolução da doença, mas
o paciente como um todo nessa relação clínica com seu médico. Balint postula a patologia da
pessoa total ou a medicina da pessoa total, o que nos leva ao problema da interpretação na
atividade psicoterápica do médico clínico, a qual possibilitaria ao paciente "compreender-se a si
mesmo".
Balint diferencia "dois tipos de medicina": a medicina científica ou hospitalar, ensinada e
praticada na sua forma mais pura nos hospitais universitários, e a que ele denominou de prática
médica. A medicina da pessoa total seria aplicável à prática médica, sendo constituída por um
diferente tipo de objetividade científica e, nesse sentido, novos critérios deveriam ser
desenvolvidos. A medicina científica ou hospitalar deveria manter-se referida ao diagnóstico
25
preciso e à terapêutica nele baseada e validada pelo modelo do "experimento duplo cego"
(BALINT e BALINT, 1961, p.127).
Nesse contexto histórico surgem a Medicina Antropológica de Weizsäecker, a Medicina
Psicossomática de Alexander e French, os Dois Tipos de Medicina de Balint como, também, o
Modelo Clínico Situacional de Luchina (1982) e, entre nós, a Medicina da Pessoa de Perestrello
(1974). Desses modelos, sem dúvida, o que mais se difundiu foi o proposto por Michael Balint,
embora a Medicina Psicossomática ainda se faça presente na representação das "sete doenças
psicossomáticas".
Evidentemente, os saberes emergem, se difundem e se instituem em maior ou menor
grau, na medida em que respondem a certas demandas que se ordenam no espaço social,
determinando mudanças significativas nas práticas sociais nesse cenário sempre dinâmico.
No último pós-guerra, rompe-se um silêncio de um século com relação à Medicina Social.
A Medicina passa por um processo de mudança de seu lugar social, retomando "um espaço
político pertinente à moderna fase do Capitalismo" (BIRMAN, 1980, p.45). Surge, nessa época,
a Organização Mundial da Saúde, que não define a saúde negativamente, mas a define muito
além da "vida no silêncio dos órgãos" (LERICHE apud CANGUILHEM, 1978, p.67), numa
concepção muito mais ambiciosa:
"A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e
não consiste somente em uma ausência de doença ou enfermidade"
(OMS).
A saúde é, mais uma vez, mas de certa forma inédita, enfatizada não como um estado
dado pela natureza, mas sim um estado também construído pelos indivíduos socialmente. A
ênfase passa a ser colocada na promoção da saúde referida ao bem-estar social e à felicidade
humana, ganhando, portanto, a dimensão preventiva da medicina maior relevância estratégica em
relação à dimensão terapêutica.
É, então, somente na década de 50, que o pensamento psicanalítico se articula de forma
original ao pensamento médico, criando práticas específicas na instituição médica (BIRMAN,
1980, p.31). Como analisa Joel Birman:
"se as séries sociológica e psicanalítica mantiveram-se isoladas da
prática médica até este momento, elas são então ativamente
transformadas pela perspectiva da Medicina. O reencontro ultrapassa o
plano do fundamento arqueológico, se bem que nele apoiado,
possibilitando a homogeneidade discursiva em torno da problemática do
normal e do patológico, e atinge o plano de prática: regulação ativa dos
corpos e de suas inter-relações no espaço social" (BIRMAN, 1980, p.45).
No último pós-guerra, com as novas concepções de cidadania e saúde, passando a
saúde a ser um direito de todos e um dever do Estado, a questão da promoção da saúde e bemestar social emerge com maior destaque. A psiquiatria incorpora o discurso psicanalítico, por ela
transformado, e desenvolve a psiquiatria comunitária. Processa-se, então, uma reforma nas
instituições psiquiátricas no sentido de transformar o ambiente asilar em um meio terapêutico
que, nesse momento histórico, privilegia a "atuação sobre as microrredes das inter-relações
pessoais, atingindo diretamente a individualidade" (BIRMAN, 1980, p.78).
A psiquiatria trará, então, para a medicina o dispositivo das inter-relações, cuja expressão
mais clara se encontraria nas contribuições de Michael Balint. Com um valor de humanização da
prática médica geral, a psiquiatria, numa mudança de articulação com a medicina, passa a
instituir um discurso sobre a relação médico-paciente, a partir da década de 50, que atravessa os
tempos atuais dando mesmo a ilusão de que a medicina sempre foi, imutavelmente, uma prática
humanista.
A análise realizada por Joel Birman (1980) tem seu valor no sentido do questionamento
do uso de um saber psicanalítico ativamente transformado na prática social da medicina,
26
aprimorando e justificando o controle sobre os indivíduos e suas relações interpessoais, embora
tenhamos dúvidas quando ele postula que o "saber das inter-relações" historicamente chegou a
se transformar na "racionalidade hegemônica da medicina", deslocando a um plano secundário a
racionalidade anátomo-clínica (p.140). Se a psiquiatria, a partir da influência de uma psicanálise
diluída no seu valor crítico e subversivo, ampliou o poder médico, não só o instrumentando para
uma finalidade adaptativa dos indivíduos aos seus ambientes sociais, mas chegando a possibilitar
um "acesso abusivo às pessoas" que nada tem a ver com o projeto freudiano, ao mesmo tempo,
como o autor reconhece, ela trouxe um questionamento ao projeto ético e terapêutico da
medicina, limitando seus excessos pragmáticos reduzidos à "maquinária corporal" (p.73). É,
sem dúvida, reconhecendo esses dois perigos na inter-relação entre psicanálise e medicina, que
se pode trabalhar criticamente. Nesse sentido, concordamos com Birman que a relação médicopaciente assume configurações que não são só função das biografias de seus atores, mas,
também, função do "lugar social designado para o médico, o paciente e a enfermidade"
historicamente situados e não "essências trans-históricas como se ilude até hoje a visão
positivista do saber" (p.176).
Uma expressão do prestígio social da articulação dos discursos das ciências sociais
com o discurso médico foi o surgimento de Departamentos de Psicologia e Sociologia Médicas
nas instituições universitárias, a partir da década de 50. Esse processo se iniciou nos EUA e
rapidamente se difundiu a outros países. Na Faculdade de Medicina da UFRJ, onde realizamos
nossa pesquisa, a disciplina de Psicologia Médica foi introduzida pelo Prof. Danilo Perestrello,
ainda nos anos 50.
No entanto, como esses saberes se articulam numa prática particularizada? Desde 1980,
como professora da disciplina de Psicologia Médica do Departamento de Psiquiatria e Medicina
Legal e em atividades docente-assistenciais no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho,
nunca tive a oportunidade de me deparar com uma "História da Pessoa" - item da anamnese
instituído na folha padrão do prontuário médico - preenchida, exceto nos seus aspectos referidos
aos chamados "hábitos (fumo, álcool, tóxicos, anticoncepcionais)", padrões de "alimentação" e
características de "moradia". A título de ironia comentaríamos, ainda, que por vezes o espaço se
encontra totalmente em branco e, uma vez, foi assim preenchido: "nada de relevante". Sob a
epígrafe "História da Pessoa" encontramos o silêncio ou a rara explicitação registrada: "nada de
relevante".
Na medicina hospitalar, que se realiza sob o primado da racionalidade anátomo-clínica, a
subjetividade tende a sucumbir num discurso médico tecnicista, no qual a tecnologia triunfante,
que tem como valor privilegiado a eficácia da ação, se associa ao conhecimento científico referido
redutivamente ao biológico. Na medicina ambulatorial, que se constitui como um projeto médicosocial distinto do referido à medicina hospitalar, a subjetividade sucumbe num discurso médicosocial, cujo valor predominante é a promoção de saúde regida pelas noções sanitárias e
psicológicas colocadas numa prática pedagógico-assistencial, na qual a racionalidade anátomoclínica nem sempre se realiza. Os chamados doentes funcionais, que constituem uma parte
expressiva dessa clínica - 50% a 60% da clientela, segundo alguns autores (ALMEIDA, 1988) não deveriam representar um mero nonsense para a racionalidade médica. Alguns médicos,
privilegiando a racionalidade anátomo-fisiopatológica, investem nos corpos desses pacientes, e
buscam uma negatividade que, se referenciada à concepção de que a saúde é "a vida no silêncio
dos órgãos", evita a dúvida que o próprio grande clínico Leriche (1939) nos aponta: "Há em nós,
a cada instante, muito mais possibilidades fisiológicas do que a fisiologia nos faz crer. Mas é
preciso haver a doença para que elas nos sejam reveladas" (LERICHE apud CANGUILHEM,
1978, p.75). Dialeticamente, esses pacientes são uma expressão do processo de
medicalização na cultura. Após a Segunda Grande Guerra, com as novas concepções de
cidadania e direito à saúde, o Estado ampliou significativamente a rede assistencial ambulatorial
numa ideologia de promoção da saúde, implicando a dimensão psicossocial na prática médica.
Parece fundamental, portanto, que os médicos hesitem no seu pensamento reducionista
e passem a se interrogar sobre o que eles entendem por saúde e por sua ação terapêutica sobre
os pacientes.
27
Sobre o Ensino da Psicologia Médica e a Formação Médica
O campo da Psicologia Médica tem merecido críticas por parte de psicanalistas e
cientistas sociais, as quais resumiríamos dizendo que o discurso psicanalítico, nessa prática
social, teria sido cooptado pela ordem médica, perdendo, portanto, a marca que o referenciaria na
psicanálise (CLAVREUL, 1983 e BIRMAN, 1980) e, ao se centrar exclusivamente na
dimensão das relações interpessoais, seria um discurso “descontextualizado” histórico e
socialmente (RAMOS e cols., 1989), podendo mesmo ser reduzido, ainda, a uma “ideologia”
(BRAZ, 1994).
Situando o campo da Psicologia Médica, pois esse não tem uma homogeneidade
discursiva, parece-nos importante citar a investigação de Botega (1994) sobre o Ensino de
Psicologia Médica no Brasil que, em 1992, através de uma enquete postal dirigida às 78 escolas
médicas do país, obteve informações de 57 escolas, apontando que 93% dessas escolas
dispõem de uma ou mais disciplinas exclusivamente dedicadas ao ensino de Psicologia Médica.
É importante destacar que o referencial teórico predominante dessa disciplina é o
psicodinâmico/psicanalítico e que a equipe de docentes é geralmente formada por médicos
psiquiatras, com atuação em psicoterapia psicodinâmica. Ressalte-se, ainda, que em 53% delas
há “psicanalistas formados ou em formação”, em 49% há “psicoterapeutas de grupo” e em 11%
“psicoterapeutas de linha comportamental”. Psicólogos e médicos não psiquiatras participam da
equipe docente em 44% e 17% escolas, respectivamente.
Por parte dos médicos, poderíamos talvez dizer que a principal representação ligada a
esse discurso se refere a algo que falta aos médicos, mas cuja eficácia é duvidosa, não só em
relação a seus pacientes como também aos próprios médicos na compreensão da clínica. Isso
colabora para que, entre outras razões, os médicos quase não hesitem em convocar o
psicanalista como um especialista encarregado de exercer, junto aos pacientes, um
conhecimento e uma função que pouco ou nada teriam em comum com o conhecimento e a
função do médico. Fernandes escreve: “Para a maioria dos clínicos, a questão da relação com
seus clientes [...] mostra-se despossuída de qualquer conteúdo positivo ou intrínseco às aptidões
objetivamente exigidas para o cuidado dos doentes”. Seria, então, necessário “contrariar a
tradição de distância entre este debate e a prática médica, e levantar questões que atendam aos
interesses dos colegas e colaborem com sua atividade profissional”. Ao explicitar essas
questões, o autor interroga: “quais as possibilidades de inserção da RMP dentro do próprio
campo clínico [...] qual é a importância do sujeito na prática do médico?” (FERNANDES, 1993,
p.21-22).
Por parte dos psicanalistas professores que trabalham no campo institucionalizado da
Psicologia Médica, sua prática não é vista como menos problemática.
Coser (1986), a partir da questão sobre quem deveria tratar os pacientes da medicina
geral que padecem de transtornos psíquicos, os quais - como seu estudo o levou a concluir muitas vezes representam a expressão do recalcamento do psíquico enquanto campo, espaço,
domínio que então retorna como sintoma psicopatológico, não podendo mais ser ignorado (Cf.
p.87), levanta a questão da formação psicológica do médico. Considerando que “é no hiato entre
a medicina enquanto campo de conhecimento e campo de prática que aparecem as dificuldades”,
na medida em que no encontro médico-paciente não existe apenas a “demanda de cura da
doença enquanto entidade anatomofisiopatológica, mas além disso uma demanda de amor [...]
que remete o sujeito a mecanismos, formas e processos inconscientes” (p.68), Coser aponta o
grupo Balint como o modelo existente para reflexão a posteriori de uma prática na qual o médico
poderia levar em conta as outras “razões”, além das estabelecidas pela racionalidade anátomoclínica, implicadas nos fatos da clínica (Cf. p.65-93).
A partir do 3º ano, o aluno em sua primeira experiência de acompanhamento de
pacientes é, freqüentemente, solicitado por eles a dar uma palavra de reasseguramento, de alívio,
e como Coser observa na sua experiência docente:
“o estudante [...] defrontando-se com a potencialidade ‘curativa’ da
palavra médica” [...] assusta-se com a possibilidade de vir a dizer algo
28
que possa ser nocivo, e não terapêutico. [...] Iludidamente ele pensa que
esse temor lhe ocorre porque é um principiante que não sabe o que dizer
aos pacientes, e acha que a experiência lhe ensinará. [...] Às vezes
dominado por essa angústia e no seu esforço de minimizá-la, exagera na
dose e reativamente ridiculariza o próprio campo do psíquico: ‘isso é
coisa de psiquiatra’.” (COSER, 1986, p.75)
Com relação à formação de grupos
psicoterapia, é importante assinalar que
Departamento de Medicina Psicológica do
Londres, considera que a menor experiência
que tornam esse trabalho menos promissor
com estudantes de medicina visando ao ensino de
Balint (1975), baseado em sua experiência no
University College Hospital, na década de 60 em
de vida e o caráter obrigatório do ensino são fatores
do que o realizado com clínicos gerais (Cf. p.247-
248).
Também Sapir (1994), avaliando o grupo Balint no ensino de Psicologia Médica, nos diz
de sua experiência e dificuldades encontradas:
“Elas [inúmeras tentativas] nos ensinaram, entre outras coisas, que o
estudante em começo de formação, demasiado identificado com o
paciente, demasiado preocupado com o êxito de seus estudos teóricos
ou com problemas surgidos pelo final da adolescência, está inapto para
participar de um grupo Balint. É preciso que ele seja promovido a uma
responsabilidade, mesmo que limitada” (SAPIR, 1994, p.129).
Muniz e Chazan (1992) realizando o ensino de Psicologia Médica, nos três primeiros
anos do curso médico na Faculdade de Ciências Médicas/UERJ, privilegiam o uso de técnicas
grupais, ao lado de aulas expositivas, constituindo grupos de 15 a 20 alunos, tendo cada um a
coordenação de dois professores de Psicologia Médica. Na visão dos autores, esse espaço
pedagógico, também nomeado de “grupos de reflexão”, contribui para a elaboração de conflitos, e
mesmo crises, ao longo da formação médica, e para o encorajamento no sentido da aceitação e
da possibilidade de lidar com a dimensão emocional, a partir da experiência na relação professoraluno propiciada no grupo, com repercussões na relação estudante-paciente.
No 1º ano, as discussões no grupo pretendem promover a reflexão das vivências
emocionais relacionadas à entrada do estudante na Faculdade de Medicina e, também, a
experiência com o cadáver no aprendizado da anatomia e com o acompanhamento de um
paciente em sua trajetória ao procurar, pela primeira vez, o ambulatório do hospital universitário.
No 2º ano, os grupos alternam a discussão sobre entrevistas com pacientes e profissionais,
constituindo a parte prática do curso motivada pela investigação de temas, com a discussão de
temas teóricos a partir de textos previamente oferecidos. No 3º ano, momento em que os alunos
iniciam mais expressivamente sua prática clínica, são priorizadas as discussões de casos
clínicos através da apresentação de anamneses ou situações vividas pelos estudantes na relação
com os pacientes, estimulando-se a troca de experiências entre os alunos, valorizando-se a
História da Pessoa do paciente colhida pelos alunos. Os professores, coordenadores do grupo,
acrescentam sua experiência, enquanto alunos ou médicos já formados, junto a seus pacientes.
No relato dos alunos, focaliza-se a discussão, sobretudo, sobre os pacientes, deixando que “o
estudante fale, só se assim o desejar, de suas vivências”, pois os professores observaram que o
“assinalar as ansiedades do estudante” as intensifica, pela insegurança e vulnerabilidade à crítica
desse momento de formação.
Os autores destacam que, no 3º ano:
“as questões voltam-se mais para a identidade médica propriamente dita.
Que médico serei? Quero ser médico? Estas questões são reforçadas
pelas observações que fazem nas enfermarias, onde, por vezes,
repudiam práticas observadas. [...] Pacientes não ouvidos,
excessivamente examinados, discussões à beira do leito, pacientes
29
sendo tratados pelos seus diagnósticos (às vezes graves) em voz alta,
etc., tudo isso contribui para o desconforto sentido pelo estudante” (MUNIZ
e CHAZAN, 1992, p.41-42).
Reconhecem esses autores que o ensino, no 3º ano, constitui “o maior desafio”. Estando
os alunos, nesse momento, “efetivamente” em busca de “um modelo” para sua relação com o
paciente, como o professor de Psicologia Médica poderia estimulá-lo a “desenvolver uma
abordagem, uma escuta não usual de seu paciente?” (p.40). Valorizando a experiência na
relação professor-aluno no grupo, a realização da História da Pessoa com implicações no modo
de ouvir o paciente e as reuniões entre professores, nas quais são discutidas as dificuldades dos
coordenadores, principalmente, com “expressões de grande resistência dos grupos em aceitar
vivências emocionais dos pacientes ou dos próprios alunos ou do material teórico em si” (p.43),
os autores, trabalhando, vão construindo seu presente. Quanto ao futuro, esperam, sobretudo,
estender sua atividade de ensino, especialmente, ao Internato e, também, alcançar uma
integração com outras disciplinas do ensino médico, de forma a realizar seu objetivo, qual seja de
formação de médicos essencialmente voltados para a dimensão humana da medicina. Muniz e
Chazan nos fornecem assim seu relato de 13 anos de experiência de ensino de Psicologia
Médica numa “tentativa de procurar definir o lugar da Psicologia Médica na formação em
Medicina” (p.44).
Claudio Eizirik (1994), ao escrever especificamente sobre o ensino de Psicologia
Médica, com o qual está envolvido há mais de 20 anos, realizando “uma reflexão mais livre, a
partir de uma experiência vivida continuamente com estudantes de Medicina, professores da
Faculdade e pacientes”, observa que “não queremos ensinar e que os alunos não querem
aprender Psicologia Médica”. Concordamos com Eizirik, quando ele situa essa “afirmação
provocadora” como um sintoma do conflito de valores que, na formação e prática médicas, se
coloca entre “o objetivo e o subjetivo, entre o quantitativo e o qualitativo, um dos campos de
batalha preferidos da Psicologia Médica”. Nos últimos tempos, o desenvolvimento tecnológico
tem permitido uma instrumentalização do ato médico que associado à ilusão, muito presente em
certos meios pragmatistas e positivistas, de que os fatos falam por si sós, vem levando a uma
desvalorização mais intensa da atividade de interpretação dos sujeitos implicados na prática
clínica. A oposição subjetivo/objetivo é tomada como uma oposição exclusiva e o campo da
prática médica é reduzido a um conjunto de relações necessárias, de tal forma que o singular, o
contingente, o histórico, apesar de estarem sempre a instigar, não encontram facilmente um
espaço de reflexão.
Sua afirmação, no entanto, de que “não queremos ensinar e os alunos não querem
aprender, na medida em que nossa matéria se propõe a desvendar, reconhecer, estudar e propor
a discussão sobre o mundo interno, o mundo das fantasias inconscientes de nossos pacientes e
de nós mesmos, como médicos e como professores”, é mais problemática; e nos dá uma
oportunidade de discutir as vicissitudes do ensino da Psicologia Médica, na medida em que nele
está implicado o que podemos, informados pela psicanálise e autorizados por uma prática
discursiva, realizar na atividade docente-assistencial nesse contexto da formação e prática
médicas. Podemos perguntar se há essa demanda por parte de alunos e médicos e se há
possibilidade de respondê-la no exercício institucional de nossa prática. Podemos, ainda, nos
perguntar o que é possível ensinar teoricamente sobre psicanálise a estudantes de medicina.
Não menos problemática é a proposta de que nesse ensino se encontra “como que a
alma ou o espírito ou o núcleo central desse complexo fenômeno que denominamos de
identidade médica”. No entanto, o próprio autor, relatando o fascínio de um residente em relação
aos comentários sobre “razões e motivações que estão subjacentes ao processo de adoecer”
feitos por um experiente professor de Clínica Médica, se interroga: “quem ensina Psicologia
Médica de verdade? Nós ou eles?” Esse nos parece ser um aspecto muito importante, pois
entendendo a formação de uma identidade médica como reflexo de um discurso hegemônico
numa Faculdade de Medicina, aquele exercido por professores das especialidades clínicas e
cirúrgicas, em especial os de Clínica Médica, não cremos estar investidos numa “mesma tarefa”
e, portanto, pretendemos investigar as contradições, os impasses, as concordâncias que se dão
nessa tarefa quando a realizam conjuntamente um clínico e um psicanalista.
30
Eizirik, ao nos a
f lar da “atitude de nossos colegas de outras áreas”, inclusive alguns
professores de psiquiatria, com relação aos professores de Psicologia Médica, refere
experimentar uma “cortina de cordial polidez intransponível”, enquanto seus alunos encontram no
corpo docente “uma atitude generalizada de descaso e descrença na Psicologia Médica”, que se
expressa nas mensagens recebidas pelos alunos sobre a representação desse discurso como
“frivolidade”, “inutilidade”, frescura” e “blá blá blá”. O artigo de Eizirik é, sem dúvida, um
testemunho franco e corajoso do mal-estar do psicanalista professor de Psicologia Médica.
Zaidhaft (1997), escrevendo sobre sua experiência como professor de Psicologia Médica
há 17 anos, também elegendo dar seu “depoimento o mais livremente possível”, levanta as
seguintes perguntas:
“o que vem a ser psicologia médica? é uma especialidade médica como
outra qualquer? uma especialidade psicológica? uma psicologia de cunho
médico, científico? uma psicologia para tratar da medicina? não seria
apenas questão de bom senso? virtude que vem - ou não - do berço? isto
pode ser ensinado? coisa de país sub-desenvolvido que se extingüirá
com o avanço da psiquiatria “científica”? [...] quais os limites de minha
função, a razão mesmo de sua existência, meus objetivos, meu objeto,
quais as repercussões futuras do que ensino (ensino?)" (ZAIDHAFT,
1997, p.71).
Já nos avisando que quem puder respondê-las merecerá o Prêmio Nobel, ele nos diz, no
entanto, algo central sobre o ofício do profissional nesse campo institucionalizado: “a construção
de nossa identidade profissional está sempre por se fazer”, estando o profissional
permanentemente a se perguntar a cada interconsulta “qual a demanda do profissional que pede
o parecer”, “que lugar ocupo em cada caso atendido”, de forma que “cada caso é como se fosse
o primeiro” assim como “cada aula é um novo desafio” (p.71-72).
Zaidhaft preocupado, sobretudo, com a “abolição da escuta em favor do olhar médico”
que, numa busca equivocada de evidências empíricas para uma construção explicativo-causal,
pode não só desvalorizar a palavra de sofrimento do doente, mas colocá-la num outro registro,
que não é mais o da escuta de uma verdade histórico vivencial, traz dois exemplos expressivos
do que considera o efeito da "(de)formação médica" (p.82). O "interesse" de uma residente em
Cirurgia pelos estudos que estabelecem associações entre "a eclosão de câncer e eventos da
vida, depressão, luto, etc.", que a levou a interrogar a paciente e a solicitar a investigação de um
profissional de Psicologia Médica, sobre "as razões psicológicas que a fizeram produzir um
tumor". E a expressão utilizada por um profissional "psi" que, solicitado a realizar o diagnóstico
diferencial numa paciente que apresentava sintomatologia sugestiva de crises convulsivas,
concluiu tratar-se de um "quadro somatoforme" e, entre outros aspectos, registrou no prontuário
"como provável motivo do quadro": "apresentou perda do pai há um mês" (Cf. p.73-78).
Considerando os textos de Eizirik (1994), Zaidhaft (1997) e Muniz e Chazan (1992),
professores de Psicologia Médica de três instituições públicas de ensino médico de nosso país,
poderíamos dizer que há uma crise nesse campo onde o professor se confronta com os alunos
quase cooptados por um pragmatismo, que exclui qualquer outro valor que não o da eficácia da
ação e desconsidera o valor de verdade no discurso, como desconsidera o valor da palavra.
A Transmissão na Formação Clínica
A formação médica, lugar de reprodução do saber e lugar privilegiado de reprodução da
prática médica, foi por nós escolhida para trabalhar as contradições a que nos vimos referindo. A
formação médica passa, além da aquisição de conteúdos e habilidades técnicas, pela apreensão
do cenário social onde se desenrola a prática assistencial institucionalizada e pela busca de uma
identificação do aluno com o seu professor. É sobretudo nas atividades práticas em ambulatórios
31
e enfermarias, sob responsabilidade das várias disciplinas clínicas e cirúrgicas, que o aluno, de
maneira implícita e sem nenhuma clareza de consciência, vai construindo sua identidade
profissional no que concerne aos valores sociais de uma prática com suas implicações no modo
de vivenciar e realizar essa prática. Alguma coisa acontece para transformar o olhar e a escuta
curiosa, dócil e inquieta, de tão jovens estudantes dos primeiros anos em uma busca obstinada
de aquisição de conhecimento e habilidades técnicas, como se o único significado fosse curar,
controlar ou reduzir sintomaticamente as manifestações das doenças.
A medicina, para os quase médicos, não parece ser, de forma predominante, pensada
como uma prática social onde tudo ganha sentido, mas sim como uma prática de sentido único,
qual seja, uma oportunidade de exercício de um saber como poder que cura, controla ou reduz as
manifestações das doenças, cujos sucessos maiores ou menores são unicamente dependentes
do estágio de desenvolvimento de um conhecimento técnico, passível de ser aprendido nos
últimos artigos publicados e no trabalho com profissionais mais experientes, onde as dúvidas e
incertezas se redimem e a angústia do desconhecimento tem seu horizonte de finitude. A
especialização do conhecimento médico colabora, evidentemente, para o sonho do domínio total
de um determinado campo e para a atomização da prática médica, cada vez mais reduzida a uma
intervenção imediata de uma técnica sobre um pedaço de corpo, como se nada fosse mediado
pela relação entre os sujeitos sociais dessa prática. Essa prática restritiva e reducionista, que
deforma a formação médica, não se sustenta nem mesmo na medicina hospitalar, onde se realiza
mais amplamente a racionalidade anátomo-clínica, que pretende dispensar outras formas de
racionalidade e nega a “razão argumentativa” (PERELMAN, 1996a) que se confronta, no campo
da prática clínica, com a incerteza na decisão.
O exercício da clínica não dispensa a razão argumentativa. Ela se faz presente seja
quando as provas lógicas ou empíricas, que fundamentam o discurso da medicina, mostram seus
limites em relação a decisões clínicas que se impõem em casos singulares, seja, last but not
least, quando o médico, em seu discurso dirigido ao paciente, precisa argumentar em busca de
sua adesão para os procedimentos de investigação ou de terapêutica propostos. O campo
específico de nossa pesquisa não propiciará uma investigação mais ampla da lógica
argumentativa no exercício da clínica, na medida em que os sujeitos de nossa pesquisa não
estão diretamente implicados na tomada de decisões nas situações clínicas apresentadas. No
entanto, a apreciação dessas situações trazidas pelos alunos sujeitos da pesquisa - que estão a
meio caminho de uma identidade profissional, poderíamos dizer a meio caminho entre médicos e
pacientes num processo de apropriação do discurso médico - pode evidenciar a presença
simultânea de razões diversas no exercício da clínica. É que a clínica, embora apoiada na lógica
científica positivista, está a exigir soluções que não podem estar referidas apenas ao modelo
matemático baseado na clara distinção entre verdadeiro/falso, mas que se colocam também no
âmbito do modelo jurídico, do duvidoso que impõe a decisão e a escolha justificadas na
argumentação, estando o trabalho do médico a criar jurisprudência em relação aos procedimentos
terapêuticos.
Parece-nos bastante aplicável ao campo da clínica o que nos diz Motta Pessanha sobre
a teoria da argumentação de Perelman, a filosofia e as ciências humanas:
“...diante de diferentes argumentos dotados de força diversa, a função do
intelectual é julgar, não como matemático, mas como juiz: arbitrar com a
responsabilidade do árbitro que jamais se defronta com a alternativa
absolutamente certo ou absolutamente errado, mas com construções
argumentativas diferentes, muitas vezes litigantes, e cuja força deve
comparar, sopesar, ponderar. E como não há instância última de
julgamento, a filosofia e as ciências humanas inevitavelmente
permanecem como processos abertos à revisão, à acolhida de novas
provas, novos depoimentos, novas arbitragens” (MOTTA PESSANHA em
CARVALHO, 1989, p.238).
32
A presença de diversas lógicas e razões justificadas pela argumentação no exercício da
clínica, demonstrando a função de julgamento na decisão, pode ser exemplificada no seguinte
fragmento de uma discussão retirada de nossa prática docente-assistencial:
Uma adolescente de 15 anos, após quatro anos de evolução de uma retocolite ulcerativa,
encontra, após um ano de procura, diagnóstico e tratamento. Quase dois meses de internação, o
tratamento clínico não resulta suficiente, como sugerem sobretudo ou evidenciam a
retosigmoidoscopia, a urocistografia, o clister opaco - o olhar anátomo-clínico. A indicação
cirúrgica, ou melhor, a escolha entre uma colostomia provisória ou definitiva se coloca em
discussão. A indicação cirúrgica é consensual. Os cirurgiões proctologistas são favoráveis à
colostomia definitiva, enfatizando as lesões vistas no trato distal do cólon. Os clínicos
experimentam a dúvida, mostrando alguma hesitação que é seguida do reconhecimento de um
saber supostamente maior por parte dos especialistas. O profissional de Psicologia Médica, a
partir da comunicação do clínico, compartilha com ele sua dúvida, ampliando-a e tentando dar-lhe
maior legitimidade. O clínico conclui que ele, na condição de médico-residente, não pode dizer
dessa sua dúvida ao especialista cirurgião. Pensamos, então, que poderíamos dizê-la a um
professor de clínica médica e este aos cirurgiões. O professor clínico optou por "dar uma chance
à paciente, que tem 15 anos, não tem uma patologia maligna e, depois, tem uma doença que,
sabe-se, tem um componente emocional importante". A paciente é, então, submetida a uma
colostomia provisória. Segue em tratamento clínico. Passa-se um mês, repetem-se os exames
invasivos. A melhora apresentada nas lesões do cólon são apreciadas como menores do que se
esperava. Disso resulta uma alteração no tratamento clínico. A pergunta, presente desde o início
do processo clínico, mais uma vez, se faz expressar: amputa-se o trato distal do cólon ou insistese no tratamento clínico acompanhando a evolução? Dessa vez, ao perguntarmos ao médico
responsável pela paciente e, portanto, pela equipe clínica que a trata, que elementos seriam
considerados para se chegar a essa conduta, escutamos uma rara reflexão: "é uma decisão
ética, porque não temos nenhum estudo de caso controle que nos diga qual a conduta definitiva".
Abriu-se a possibilidade para um outro olhar em profundidade, não o olhar do corpo anátomopatológico, mas aquele que aponta para a disponibilidade subjetiva vivenciada na relação do
médico com sua paciente na complexa rede de relações institucionais. Em função das
significações produzidas em uma história singular, isto é, na contingência do campo onde se
realiza o julgamento clínico, decide-se a conduta médica.
E, assim, dá-se o caminho da clínica. O conhecimento e o desconhecimento dos
sujeitos operam numa prática que não admite adiamento de decisão, obrigando os médicos a
realizarem escolhas na incerteza que, pela racionalidade dos argumentos, podem aceitar o
duvidoso nos limites da razão, sem elidir o risco do engano e do erro, chegando à definição de
procedimentos quase sempre com conseqüências definitivas.
Cada um por si e Deus contra todos, título original da obra de Herzog sobre Kaspar
Hauser, nos faz pensar na prática médica, em que a pressuposição de que ela sempre foi e é
orientada por uma ética humanística, certamente, teria de ser arduamente argumentada. Quantos
de nós não poderíamos supor momentos fugidios de intensa angústia, quando rapidamente
procuramos palavras para significá-la, ao nos vermos envolvidos com a experiência do adoecer e
do curar. Médicos presididos por uma razão instrumental, tratando doentes como objetos da
natureza que, sem dúvida, seus corpos também o são, em busca de prever, predizer e controlar
as doenças, cujo conhecimento tem trazido benefícios inegáveis, ao desconhecer os limites
dessa razão instrumental, realizam uma ação considerada eficaz, que nos coloca claramente um
risco ligado à ética instrumental do pragmatismo, como nos aponta Jurandir Freire Costa:
“é que ela [a ética instrumental] facilmente pode resvalar do sujeito
definido taticamente como objeto de intervenção instrumental para um
sujeito que ganha o estatuto de objeto, e ponto final. E por quê? Porque a
moral do objeto é a moral absolutamente invasiva, pervasiva da nossa
cultura. A tentativa de nos definir como objetos de circulação, seja em
cadeias de lucro, seja em cadeias imaginárias de produção de desejo, é
uma constante. O funcionamento do objeto é muito pregnante no
imaginário social” (COSTA em FIGUEIREDO e SILVA, 1996, p.33).
33
O discurso da medicina leva os médicos, como seus agentes, a transformar sujeitos em
meros objetos da natureza nesse pensamento pragmático e reducionista. Os psicanalistas
implicados na formação dos médicos, poderiam influenciar na transmissão do discurso médico
denunciando esse modelo redutivista, problematizando e enriquecendo a prática da medicina de
forma a não reproduzir um céptico dar de ombros na consideração da complexidade do fenômeno
do adoecer, que resulta em médicos, psicanalistas e pacientes "cada um por si e Deus contra
todos".
A medicina científica moderna, elegendo a doença como seu objeto, constrói um
discurso que determina e constitui o médico, impondo limites no exercício de sua prática. Como
nos diz Lebrun: “O discurso médico é em efeito um pouco como uma língua que não nos
permitirá ouvir senão o que ela autoriza enunciar” (1993, p.42). No entanto, isso não livra
necessariamente o médico, enquanto sujeito no seu encontro com outro sujeito, o paciente, de
sofrer o impacto do sofrimento que esse segundo sujeito enuncia. As palavras trocadas nesse
encontro não estariam assim limitadas a apenas comunicar, mas nos referem ao valor de
significância do discurso, valorizando a atividade interpretativa da subjetividade e colocando,
assim, o conflito que se dá na prática clínica. Pois, o discurso da medicina, como nos diz
Clavreul, acaba “constituindo o que faz seu objeto (a doença) como sujeito de seu discurso", e
"apaga a posição do enunciador do discurso que é a do próprio doente no enunciado do
sofrimento, e a do médico na retomada desse enunciado no discurso médico”; o que o permite
concluir, enfatizando a exclusão do sujeito, que para a medicina científica positivista “a relação
‘médico-doente’ é substituída pela relação ‘instituição médica-doença’ ” (CLAVREUL, 1983,
p.49-50).
Sem dúvida, é na relação dialética doença/doente que o médico pode vivenciar alguma
contradição, pois se ele, ao exercer a clínica, só se constitui como médico pela existência de um
paciente, ao mesmo tempo, ele está referido ao conflito que, negando a razão dialética que o
constitui, o coloca entre se identificar com o doente no seu sofrimento ou se identificar com a
instituição e o discurso da medicina. A medicina é uma prática social, que exige mais do que a
simples aplicação de um saber sobre a doença, e temos que considerar a Psicologia Médica,
como o campo institucionalizado de uma prática docente-assistencial de psicanalistas numa
Faculdade de Medicina, como uma oportunidade de enfatizar o sujeito da doença, o paciente,
como um sujeito desejante irredutível à dimensão de um conhecimento conceitual sobre a
doença, um sujeito que nos apresenta a dimensão transferencial no campo dinâmico da relação
médico-paciente, a qual encontra seus modelos teóricos calcados na psicanálise, em especial os
propostos por Balint, Perestrello, e Luchina.
A práxis social na qual estamos situados nos determina, e é através da linguagem que
caracteriza a comunidade semiótica onde estamos inseridos, que poderemos estudar os limites
da interação de distintos discursos, como o psicanalítico e o médico, na discussão da
transmissão na formação clínica. Poderíamos dizer, com a psicanálise, que o discurso médico
cujo objeto é a doença realiza a exclusão do sujeito - médico e paciente - pois o sujeito, muito
além de um agente da sua própria fala, se constitui na palavra que ele enuncia sempre
provisoriamente num vir-a-ser, sempre no campo intersubjetivo onde se realiza a enunciação.
Enquanto sujeitos, o paciente é indissociável de seu sintoma, de sua história, e o médico, nas
palavras que enuncia para dizer alguma coisa a seu paciente a partir de seu conhecimento sobre
a doença, tenta negar qualquer vivência conflitiva para agir diretamente sobre o “corpo da doença”.
Para a psicanálise, o conflito é permanente e a autonomia e a independência da razão,
postuladas no Iluminismo, são ilusões objetivistas da ciência positivista. O sujeito, diferenciado
do Eu pronominal, é um "sujeito pretendido" (VITAL BRAZIL, 1988), sujeito do
conhecimento/desconhecimento, que aparece como emergente na razão dialógica de um campo
intersubjetivo. Nessa perspectiva psicanalítica, o advento do sujeito do conhecimento, irredutível à
dimensão da consciência, se dá na linguagem, associado a uma alienação primária, que é
alienação do próprio corpo, implicando o desconhecimento, ao admitirmos o valor operatório do
conceito de inconsciente na interpretação do sentido.
Ao valorizarmos a contribuição de Bakhtin (1981), que produz uma teoria da enunciação
que se efetiva na interação social, na dialógica, estamos nos situando em relação a essa
34
complexidade da relação sujeito/linguagem, na sobredeterminação do sujeito pelos valores sócioideológicos da linguagem.
“A verdadeira substância da língua não é constituída por um sistema
abstrato de formas lingüísticas nem pela enunciação monológica isolada,
nem pelo ato psicofisiológico de sua produção, mas pelo fenômeno social
da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações.
A interação verbal constitui assim a realidade fundamental da língua”
(BAKHTIN, 1981, p.123) (grifos do autor).
Para Bakhtin e, poderíamos dizer, para Blikstein (1985) e todos os autores que defendem
a centralidade da linguagem, “os sujeitos não ‘adquirem’ sua língua materna; é nela e por meio
dela que ocorre o primeiro despertar da consciência” (BAKHTIN, 1981, 108). A enunciação é o
produto da interação de pelo menos dois indivíduos socialmente organizados. Referida sempre a
um interlocutor, mesmo a um interlocutor potencial, a enunciação é sempre “função” desse
interlocutor. Toda a enunciação está referida a um certo “horizonte social” definido, que determina
a criação ideológica do grupo social assim como da época a qual este pertence, um horizonte
contemporâneo de uma certa literatura, de uma ciência, de uma moral e de um direito. Bakhtin
nos introduz a dialógica, considerando que a enunciação monológica é “uma abstração de tipo
‘natural’ ”.
“Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita, é uma
resposta a alguma coisa e é construída como tal. Não passa de um elo
da cadeia dos atos de fala. Toda inscrição prolonga aquelas que a
precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas
da compreensão, antecipa-as. [...] Uma inscrição, como toda enunciação
monológica, é produzida para ser compreendida, é orientada para uma
leitura no contexto da vida científica ou da realidade literária do momento,
isto é, no contexto do processo ideológico do qual ela é parte integrante”
(BAKHTIN, 1981, p.98).
Compreendendo a fala com seu valor de ato social, ela é um ponto de encontro entre
indivíduo e sociedade, um ponto de tensão. A fala é, portanto, “o produto da interação do locutor e
do ouvinte” e, nesse sentido, ainda que ela não pertença totalmente ao locutor, “cabe-lhe contudo
uma boa metade” (BAKHTIN, 1981, p.112-113).
Assim como toda enunciação é de natureza social, a palavra também é um signo
ideológico para Bakhtin. Para o falante nativo, as palavras que ele pronuncia ou escuta não são
para ele um item do dicionário, no sentido de um signo imutável, sempre idêntico a si mesmo,
mas sim um signo variável e flexível, parte de enunciações apresentadas em contextos precisos,
quer sejam suas ou de outros locutores de sua comunidade lingüística. A palavra, portanto, é
polissêmica havendo “tantas significações possíveis quantos contextos possíveis” (BAKHTIN,
1981, p.106). A unicidade da palavra, dada não só por sua composição fonética como também
por uma unicidade inerente a todas as suas significações, se relaciona dialeticamente com sua
polissemia. “A multiplicidade das significações é o índice que faz de uma palavra uma palavra”
(BAKHTIN, 1981, p.130).
Cada enunciação completa contém um sentido definido e único, que Bakhtin chama de
“tema”, que é determinado não só pelas formas lingüísticas, mas também pelos elementos nãoverbais da situação concreta, histórica, na qual a enunciação é produzida. “O tema da enunciação
é na verdade, assim como a própria enunciação, individual e não reiterável. [...] O tema é uma
reação da consciência em devir ao ser em devir” (BAKHTIN, 1981, p.128-129). O tema que as
enunciações concretas nos trazem está presente na história viva dos grupos. A compreensão de
um tema de uma enunciação, é sempre um processo ativo, uma réplica no diálogo social, só
podendo, portanto, se dar contextualmente.
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Para Bakhtin é fundamental distinguir tema e significação e compreender sua interrelação dialética. Cada enunciação concreta possui um tema “não reiterável” e uma significação
dada pelos vários elementos que são “reiteráveis e idênticos” presentes na enunciação. A
enunciação, portanto, é passível de ser analisada através das significações, de aspectos da
língua tais como suas formas morfológicas e sintáxicas, entoação expressiva, etc... Só que, para
Bakhtin, a significação só se realiza no tema. “A significação não quer dizer nada em si mesma,
ela é apenas um potencial, uma possibilidade de significar no interior de um tema concreto”
(BAKHTIN, 1981, p.131) de uma enunciação, de uma interação verbal historicamente situada.
Para Bakhtin, o fenômeno lingüístico para o falante nativo não é o sistema normativo da língua,
que é uma “abstração científica”, mas sim a enunciação e, portanto, a significação da palavra
como elemento da enunciação que põe em questão o sujeito e não pode se restringir à
investigação da palavra dicionarizada. Sendo assim, toda palavra, como elemento de uma dada
enunciação, tem uma significação e um acento apreciativo, e a pluralidade de acentos é o que
confere vida à palavra, produzindo e atestando seu caráter polissêmico. Toda enunciação tem
uma orientação apreciativa e está referida, portanto, a um juízo de valor.
A linguagem é uma prática social que constitui e revela os recursos que os sujeitos usam
para elaborar, construir o seu conhecimento, a sua visão de mundo. A linguagem se articula à
experiência vivida de modo essencial e não como uma estrutura acessória à vivência. Não é
possível pensar o ensino da Psicologia Médica como um saber que se somaria a outro, mas sim
como um conhecimento que vai problematizar outro saber dialogicamente e a razão presente é,
sobretudo, argumentativa. E a possibilidade de problematização se dá pela existência de uma
prática clínica, pois os saberes de origem têm objetos distintos e essa pluralidade discursiva não
se articula no sentido de uma lógica estritamente conceitual. Não é casual que esse campo,
usualmente chamado de Psicologia Médica, tenha nascido de uma tentativa pioneira de Balint,
numa busca de reflexão conjunta sobre a prática médica realizada por um psicanalista e clínicos
gerais, isto é, na interseção entre saberes que se diferenciam por suas respectivas práticas.
Foucault faz uma observação interessante sobre o discurso científico e literário a partir do
século XVII e “a função do autor”: no primeiro, ela se enfraqueceu e, no segundo, ela se reforçou.
Ora, médicos iludidos como homens de uma prática científica não podem pretender “a função de
autor”, mas apenas se tornarem conhecedores competentes de um “sistema anônimo” - a
medicina enquanto disciplina - cuja aplicação no caso singular, no cotidiano de uma prática
personalizada, mesmo que institucionalizada, convoca o sujeito como função da intersubjetividade
e implica o conflito das escolhas responsáveis sobretudo para os médicos que, por sua vez, lidam
também com dificuldade com as possíveis escolhas responsáveis dos pacientes.
Nesse sentido é importante citar a busca do trabalho interdisciplinar de médicos e
professores de literatura na formação médica, a partir da década de 70, no sentido de sensibilizar
os estudantes de medicina à dimensão narrativa, problematizando “a função de autor” na prática
médica.
Atualmente cerca de um terço das escolas médicas dos Estados Unidos têm em seus
currículos cursos de literatura e medicina, a maioria sendo oferecida nos anos pré-clínicos, como
parte do currículo obrigatório ou como módulo eletivo, em geral, integrando o ensino de
humanities que contempla estudos em filosofia, história, direito, religião, etc. (CHARON e cols.,
1995).
Com o estudo da literatura pretende-se desenvolver a “competência narrativa”, aumentar a
tolerância à incerteza da prática clínica e propiciar a atenção empática a pacientes. Por
competência narrativa os autores enfatizam a capacidade de adotar outras perspectivas, de seguir
o encadeamento de histórias complexas, por vezes caóticas, tolerar ambigüidade e reconhecer
os múltiplos, freqüentemente contraditórios, significados dos acontecimentos vivenciados pelas
pessoas. Participam como professores doutores em literatura e doutores em medicina,
fortemente interessados na contribuição da literatura à prática clínica, sendo esse trabalho
conjunto, na opinião dos autores, a estratégia ideal para todas as iniciativas no ensino de
humanities no curso médico (HUNTER e cols., 1995).
Os autores consideram como um dos elementos mais importantes, ausente nos cursos
de graduação de literatura assim como nas outras disciplinas do curso médico, a exploração
explícita das associações e respostas emocionais dos leitores suscitadas pela leitura de textos
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literários. A partir do texto, propicia-se que os estudantes discutam percepções, crenças e
valores.
Essa iniciativa se aproxima de nossa proposta, na qual pretendemos discutir um modelo
de transmissão de conhecimento na formação médica que leve em conta estarmos numa prática
como participantes, exercendo a função crítica em um outro nível que não o de desconsiderar
diferentes valores, incluindo o valor de eficácia que a prática clínica descobre para si mesma
como não sendo o único valor do próprio discurso que enuncia.
Entre nós, em 1987, Zaidhaft e Spitz introduziram o uso de textos literários na avaliação
dos alunos na disciplina de Psicologia Médica. Selecionaram textos das obras A morte de Ivan
Ilitch de Leon Tolstoi e Uma morte muito suave de Simone de Beauvoir que nos falam da
experiência do adoecimento, da proximidade ou da antecipação da morte e das relações vivdas
entre enfermo, familiares e médicos. Analisando a experiência pedagógica, os professores
sublinham a originalidade, a criatividade nas respostas dos alunos, que não teriam se limitado a
escrever “simplesmente o que imaginaram que o professor gostaria de ler” (p.149).
Tendo em mente seu auditório, Zaidhaft (1990) explicita “as questões inevitáveis: o que
tudo isso tem a ver com Medicina? Filmes, romances, respostas originais?” (p.149). Para o
autor, a possibilidade de narrativas sobre como os médicos são vistos por pacientes e seus
familiares, como as decisões médicas repercutem e “podem determinar o rumo” da vida e da
morte de uma pessoa teriam o objetivo de contribuir para a reflexão crítica dos alunos sobre sua
prática e de preservar a sensibilidade, a capacidade de perceber a si próprios e a seus pacientes
como seres humanos (Cf. ZAIDHAFT, 1990, 143-149).
A RAZÃO ARGUMENTATIVA
NA ANÁLISE DO DISCURSO
“Por mais que o discurso seja aparentemente bem pouca coisa, as
interdições que o atingem revelam logo, rapidamente, sua ligação com o
desejo e o poder. Nisto não há nada de espantoso, visto que o discurso como a psicanálise nos mostrou - não é simplesmente aquilo que
manifesta (ou oculta) o desejo; é, também, aquilo que é o objeto do
desejo; e visto que - isto a história não cessa de nos ensinar - o discurso
não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos
queremos apoderar.”
Michel Foucault, A Ordem do Discurso
Foucault, ao falar do que ele considera “procedimentos de controle e de delimitação do
discurso” que “concernem, sem dúvida, a parte do discurso que põe em jogo o poder e o desejo”
(1996a, p.21), nos aponta três grandes sistemas de exclusão: a palavra proibida, a segregação
da loucura e a vontade de verdade, dando primazia ao último que, como ele destaca, vem
“atravessando” os dois primeiros que se tornam cada vez “mais incertos”. É quando, sobretudo,
Foucault nos fala da vontade de verdade que podemos aproximá-lo da psicanálise e da teoria da
argumentação de Perelman.
Foucault distingue dois níveis ao nos falar da oposição do verdadeiro e do falso. No
primeiro considera que uma proposição, no interior de um discurso, pode ser passível de uma
distinção “não arbitrária, nem modificável, nem institucional, nem violenta”. No entanto, num outro
nível, que ele assinala como regendo historicamente o que ele denomina nossa “vontade de
verdade” ou “vontade de saber”, Foucault considera essa oposição entre o verdadeiro e o falso
como “um sistema histórico, institucionalmente constrangedor” (1996a, p.14).
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Foucault situa no século V a.C. o estabelecimento de uma constituição histórica dessa
separação, que “deu sem dúvida sua forma geral à nossa vontade de saber, mas não cessou,
contudo, de se deslocar”, quando, em suas palavras:
“a verdade a mais elevada já não residia mais no que era o discurso, ou
no que ele fazia, mas residia no que ele dizia: chegou um dia em que a
verdade se deslocou do ato ritualizado, eficaz e justo, de enunciação, para
o próprio enunciado: para seu sentido, sua forma, seu objeto, sua relação
a sua referência” (FOUCAULT, 1996a, p.15) (grifos do autor).
E como assinala Foucault nessa referência à verdade retórica, à verdade como relevância
no discurso, descoberta na singularidade do contexto, “tudo se passa como se, a partir da grande
divisão platônica, a vontade de verdade tivesse sua própria história, que não é a das verdades
que constrangem” (1996a, p.17). E o autor conclui:
“E, contudo, é dela sem dúvida que menos se fala. Como se para nós a
vontade de verdade e suas peripécias fossem mascaradas pela própria
verdade em seu desenrolar necessário. E a razão disso é, talvez, esta: é
que se o discurso verdadeiro não é mais, com efeito, desde os gregos,
aquele que responde ao desejo ou aquele que exerce o poder, na vontade
de verdade, na vontade de dizer esse discurso verdadeiro, o que está em
jogo, senão o desejo e o poder? O discurso verdadeiro, que a
necessidade de sua forma liberta do desejo e liberta do poder, não pode
reconhecer a vontade de verdade que o atravessa; e a vontade de
verdade, essa que se impõe a nós há bastante tempo, é tal que a verdade
que ela quer não pode deixar de mascará-la” (1996a, p.19-20).
Perelman ao reabilitar a retórica, cujo pioneirismo é unanimemente reconhecido, retoma a
argumentação “dialética” de Aristóteles, cuja desvalorização em relação ao raciocínio por
demonstração analítica só pode ser compreendida no contexto da história. A distinção proposta
por Aristóteles entre esses dois modos básicos de raciocinar não encerra qualquer
hierarquização. Diz respeito, fundamentalmente, ao fato de que no silogismo analítico parte-se de
uma proposição evidente, cuja demonstração leva à conclusão verdadeira, enquanto no silogismo
dialético parte-se de uma premissa provável, que possibilita conclusões apenas verossímeis. Para
Aristóteles, as proposições evidentes são aquelas que por si mesmas garantem a própria
certeza, sendo que as premissas prováveis são as que enunciam opiniões aceitas por todos, pela
maioria ou pelos sábios (Cf. 1996a, p.XI-XII).
Acreditando que “o estudo do opinável”, do silogismo dialético, nos Tópicos de
Aristóteles ganha maior sentido no contexto da retórica, cuja idéia essencial, já presente nas
antigas teorias, é a de que a argumentação só se desenvolve em função de um auditório,
Perelman desenvolverá uma Nova Retórica, privilegiando o estudo da argumentação filosófica, já
que para seu auditório presumido, a sugestão, a pressão ou o interesse não têm maior
ascendência. No entanto, se dizendo “um lógico desejoso de compreender o mecanismo do
pensamento” e não “um mestre de eloqüência cioso de formar praticantes”, Perelman investiga
vários textos, analisando inclusive os meios de prova utilizados pelas ciências humanas, e
conclui por uma afinidade das estruturas argumentativas dos textos filosóficos às discussões
cotidianas.
Como nos lembra Perelman:
“...enquanto nossa civilização, caracterizada por sua extrema
engenhosidade nas técnicas destinadas a atuar sobre as coisas,
esqueceu completamente a teoria da argumentação, da ação sobre os
espíritos por meio do discurso, esta era considerada pelos gregos, com o
nome de retórica, a τ ε χ ν η [tecné] por excelência” (1996a, p.9).
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Perelman opõe-se à distinção tradicional entre a “ação sobre o entendimento” e a “ação
sobre a vontade”, por considerar um “erro” conceber o homem como que constituído de
faculdades separadas e por acreditar que essa distinção leva ao impasse, no sentido de não
admitir que uma ação fundada na escolha possa ter uma justificação racional. Assim, considera
como “um caso particular”, embora reconheça toda a sua importância, o processo argumentativo
onde “a prova da verdade ou da probabilidade de uma tese pode ser administrada no interior de
um campo formal, científica ou tecnicamente circunscrito, de comum acordo, por todos os
interlocutores” (1996a, p.52). E nos campos que escapam ao cálculo, onde nem a experiência
nem a dedução lógica podem fornecer a solução de um problema, a argumentação tenderá a
provocar uma ação que resulta de uma escolha deliberada entre vários possíveis, sem que haja
acordo prévio sobre um critério que permita hierarquizar as soluções. Perelman, estabelecendo
assim a questão do preferível, nos permite promover a aproximação da psicanálise à teoria da
argumentação, uma vez que esse preferível, escapando ao contexto da prova, é o que mostra,
depois da ação realizada, a determinação do desejo inconsciente na escolha. A prova retórica
jamais é totalmente necessária e, portanto, aquele que dá sua adesão às conclusões de uma
argumentação o faz por um ato de decisão, mas não inteiramente redutível à determinação da
consciência; um ato que envolve o seu desejo e que o envolve e pelo qual é responsável, não
permitindo a exclusão do sujeito, como função da intersubjetividade, e do valor da diferença entre
enunciação e enunciado.
As Premissas da Nova Retórica
Lógico e filósofo por formação, além de doutor em direito, Perelman se dedicou à
pesquisa de uma “lógica dos julgamentos de valor”, discordando da limitação imposta à idéia de
razão na tradição cartesiana pretendendo, assim, um alargamento da concepção de razão, de
modo a resgatar a racionalidade no campo dos empreendimentos humanos, no qual intervém
nossa faculdade de raciocinar e de provar, que escapam ao domínio da certeza, do rigor e do
cálculo. Escreve Perelman:
“A própria natureza da deliberação e da argumentação se opõe à
necessidade e à evidência, pois não se delibera quando a solução é
necessária e não se argumenta contra a evidência. O campo da
argumentação é o do verossímil, do plausível, do provável” (1996a, p.1).
A teoria da argumentação de Perelman tem como objeto o estudo das técnicas ou
recursos discursivos que permitem provocar ou aumentar a adesão dos espíritos às teses que se
lhes são apresentadas. Todo discurso, oral ou escrito, se dirige a um auditório, e é em função do
auditório a que se dirige o orador que sua argumentação se desenvolve. Perelman distingue os
auditórios em função de quem o orador quer influenciar com sua argumentação. Nesse sentido, o
auditório não se define pelas pessoas com quem concretamente o orador dialoga. Na medida em
que o auditório é sempre um auditório presumido, isto é, uma construção do orador, o orador só
se dirige ao auditório considerado universal quando pretende que seus argumentos sejam aceitos
por todos os seres dotados de razão e, ao dirigir-se a um auditório especializado, elabora
argumentos que crê serem aceitos por aqueles que caracterizam esse determinado auditório
particular.
Ciente de que a “qualidade dos espíritos” na adesão a certos argumentos confere “uma
garantia do seu valor”, o autor pesquisou argumentações apresentadas por filósofos em seus
tratados, advogados em seus arrazoados, juízes em suas sentenças, políticos em seus
discursos, publicitários em seus jornais, etc. E Perelman conclui que “as mesmas técnicas de
argumentação se encontram em todos os níveis, tanto no da discussão ao redor da mesa familiar
como no do debate num meio muito especializado” (1996a, p.8). A partir dessa sua pesquisa
em textos escritos, Perelman elabora uma tipologia de acordos em relação às premissas, ou
seja, o que é aceito como ponto de partida para o desenvolvimento da argumentação, e elabora,
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também, uma tipologia de técnicas argumentativas, ou seja, um conjunto de processos de
ligação e de dissociação entre elementos do discurso que são utilizados, ao longo da
argumentação, de forma a que se realize sua finalidade qual seja a de transferir a adesão
concedida às premissas para as conclusões.
Perelman, ao analisar os objetos de acordo que podem servir de premissas numa
argumentação, distingue dois tipos de acordo, em função do papel que desempenham no
processo argumentativo. O primeiro diz respeito a tudo que versa sobre o real - fatos, verdades e
presunções - e que se caracteriza por pretender ter validade para o auditório universal. O outro
tipo de acordo versa sobre o preferível e sua validade está sempre referida a um auditório
particular.
Na argumentação, a noção de fato indica um gênero de acordos que está referido ao
auditório universal, portanto é determinado pelo modo como é concebido esse auditório. Para
Perelman, só estamos em presença de um fato se podemos postular a seu respeito um acordo
universal não controverso, sendo a atitude dos ouvintes o único critério que permite conferir a
alguma coisa o estatuto de fato. “A adesão ao fato não será, para o indivíduo, senão uma reação
subjetiva a algo que se impõe a todos” (1996a, p.75). Mas nenhum enunciado goza de um
estatuto definitivo de fato, pois depende de um acordo que é passível sempre de ser questionado.
O acordo, a adesão em relação a um fato não só não necessita justificação, como também não
pode depender de argumentação, pois isso implicaria a perda do estatuto de fato. Dentre os fatos
podemos ter fatos de observação, fatos supostos, fatos convencionais e fatos possíveis ou
prováveis.
As verdades, para Perelman, têm as mesmas características dos fatos na
argumentação, só que, diferentemente destes, transcendem a experiência e se referem a
sistemas como teorias científicas, concepções filosóficas ou religiosas. As presunções, terceira
categoria de objetos de acordo que versam sobre o real, se referem, portanto, também ao acordo
do auditório universal mas, ao contrário dos fatos e verdades, sua adesão não é máxima e
espera-se que ela seja reforçada. Portanto, ao lado de fatos e verdades, habitualmente nos
baseamos em presunções que, no mais das vezes, estão associadas àquilo que normalmente se
produz e sobre o que é razoável pressupor. Por exemplo, são presunções de uso corrente: a
presunção de que a qualidade de um ato revela a qualidade da pessoa que o realizou; a
presunção de credulidade natural que nos faz, num primeiro momento, admitir como verdadeiro
tudo o que nos é dito, salvo quando se tenha motivos para desconfiar, etc. Perelman destaca
como uma presunção de caráter mais geral, admitida por todos os auditórios, a existência para
cada categoria de fatos, notadamente para cada categoria de comportamentos, de um aspecto
considerado normal que, funcionando como uma presunção, serve de base para nosso raciocínio.
Essa “presunção do normal” raramente pode ser reduzida a características determinadas pela
distribuição estatística, embora ela esteja sempre referida a um grupo de referência, o qual quase
nunca é explicitamente designado. No entanto, não só as presunções ligadas ao normal são
objeto de acordo, mas também o grupo de referência no qual se baseiam.
A segunda categoria de objetos de acordo, que versa sobre o preferível, pretende apenas
a adesão de auditórios particulares e é constituída pelos valores, hierarquias e os lugares do
preferível. Perelman, portanto, distingue os argumentos que dizem respeito ao real, conhecido ou
presumido, daqueles que afirmam o que é preferível - os juízos de valor.
Os valores como objetos de acordo possibilitam uma comunhão sobre modos
particulares de agir entre os membros de um determinado grupo. Na argumentação, recorre-se
aos valores para levar alguém a fazer certas escolhas em lugar de outras e, principalmente, para
justificar essas escolhas de maneira a torná-las aceitáveis e aprovadas por outrem. Numa
discussão não é possível recusar a presença de valores; pode-se desqualificar um valor,
subordiná-lo a outros ou mesmo buscar que se admitam outros valores. Por vezes, inseridos num
sistema de crenças o qual se pretende valorizado pelo auditório universal, alguns valores podem,
assim, ser tratados como fatos ou verdades. Ao longo da argumentação, por vezes, não se chega
a reconhecer que se trata de objetos de acordo que não podem pretender a adesão do auditório
universal. Perelman argumenta que os valores considerados universais ou absolutos, tais como o
Verdadeiro, o Bem, o Belo, o Absoluto, só podem ter essa pretensão de acordo universal
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conquanto não lhe sejam especificados conteúdos. Se tentarmos precisá-los, já não
encontraremos senão a adesão de auditórios particulares.
Para Perelman, os valores se fazem presentes em todas as argumentações.
“Nos raciocínios de ordem científica, eles são geralmente restringidos à
origem da formação dos conceitos e das regras que constituem o
sistema em questão e ao termo do raciocínio, na medida em que este
visa ao valor de verdade. O desenvolvimento do raciocínio é, tanto quanto
possível, isento deles; essa purificação atinge o auge nas ciências
formais. Mas nos campos jurídico, político, filosófico os valores intervêm
como base de argumentação ao longo de todo o desenvolvimento”
(1996a, p.84).
As hierarquias de valores são, para Perelman, mais importantes do que os valores na
estrutura da argumentação, pois o que caracteriza cada auditório é menos os valores que admite
do que o modo como os hierarquiza. Na argumentação, a hierarquização dos valores se coloca
particularmente explícita quando valores aceitos são incompatíveis numa dada situação e,
portanto, a hierarquização apontará aquele que decidimos sacrificar.
Os lugares do preferível, na proposta de Perelman, são as premissas mais gerais que
permitem fundar valores e hierarquias. São, portanto, os primeiros acordos no campo do
preferível, dos quais todos os outros poderiam ser deduzidos ou justificados. Geralmente se
encontram subentendidos e são eles que intervêm para justificar a maioria de nossas escolhas.
Não pretendendo ser exaustivo e baseando-se na importância na prática argumentativa que
revelam certos lugares, Perelman destaca: lugares da quantidade, da qualidade, da ordem, do
existente, da essência, da pessoa. Os lugares da quantidade afirmam a superioridade daquilo que
é proveitoso ao maior número, daquilo que é mais durável, mais estável e daquilo que é útil nas
situações mais variadas. Os lugares da qualidade se opõem aos da quantidade dando preferência
ao que é único, singular, raro. Além desses lugares mais freqüentes, Perelman ainda destaca os
lugares da ordem, que afirmam a superioridade da causa sobre o efeito, do anterior sobre o
posterior; os lugares do existente, que conferem superioridade ao que é em comparação ao
apenas possível; os lugares da essência, que dão preferência ao que melhor representaria a
essência e os lugares da pessoa, que afirmam a superioridade a tudo que está ligado a pessoas
em comparação ao que diz respeito às coisas ou aos outros seres.
Para Perelman, analisar esquemas argumentativos ou a estrutura de argumentos isolados
é sempre construir uma hipótese mais ou menos provável, não só pelo caráter ambíguo da
linguagem natural, mas também pelas motivações de uma argumentação não serem quase nunca
explicitadas. Além disso, um mesmo enunciado pode traduzir diferentes esquemas
argumentativos que podem atuar simultaneamente sobre os vários ouvintes ou até mesmo sobre
um mesmo ouvinte. Apenas um trabalho de explicitação daria ao orador, como aos ouvintes, a
consciência sobre os esquemas intelectuais que utilizam ou a cuja ação estão sujeitos.
A tipologia de esquemas argumentativos elaborada por Perelman é por ele considerada
“lugares da argumentação” e, portanto, apenas o acordo sobre o valor que esses lugares
encerram pode justificar a sua aplicação a casos particulares. Nessa tipologia, que não pretende
ser única nem exaustiva, Perelman distingue os argumentos quase-lógicos, os argumentos
baseados na estrutura do real e os argumentos que visam a fundar a estrutura do real.
Os argumentos quase -lógicos são aqueles que lembram, pela sua estrutura, os
raciocínios formais, lógicos ou matemáticos e, nesse sentido, retiram sua força argumentativa,
retórica, especialmente do prestígio desses modos de raciocínio, não contestados porque
considerados rigorosos por grande parte dos auditórios. Perelman procura evidenciar o esquema
formal que serve de modelo à construção de vários argumentos quase-lógicos e sugere que é
importante explicitar as operações de redução que permitem inserir os dados, uma vez tornados
comparáveis, semelhantes e homogêneos, nesse esquema argumentativo, pois é sobre a redução
que poderá se dar a controvérsia. As reduções exigidas são de duas naturezas. Uma refere-se
aos termos do discurso que são tratados como entidades homogêneas e, como não se trata de
signos unívocos da linguagem lógico-matemática mas sim signos polissêmicos da linguagem
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natural, não há, portanto, garantia de consenso. A outra redução diz respeito à própria estrutura
do argumento que, assemelhada a relações lógicas ou matemáticas, põe em questão ligações
necessárias entre temas ou proposições que serão ou não objeto de acordo.
Dentre os argumentos que apelam para estruturas lógicas, destacamos a
incompatibilidade, que se assemelha à contradição formal, e caracteriza-se por duas teses entre
as quais é preciso escolher, a não ser que se renuncie a ambas, em uma dada circunstância.
Seu risco é a exposição ao ridículo, nunca ao absurdo. A incompatibilidade é sempre relativa a
circunstâncias contingentes.
Já os argumentos baseados na estrutura do real retiram sua força retórica dessa
própria estrutura, valendo-se dela para estabelecer uma solidariedade entre juízos admitidos e
outros que se quer fazer admitir. É importante ressaltar que, para Perelman, não se trata de uma
“descrição objetiva do real, mas da maneira pela qual se apresentam as opiniões a ele
concernentes” (1996a, p.298). Essas opiniões podem ser tratadas na argumentação como fatos,
verdades ou presunções. A maior parte desses argumentos se referem a ligações de sucessão
ou de coexistência. Ligações de sucessão ligam um fenômeno a suas causas ou conseqüências
e ligações de coexistência unem, por exemplo, uma pessoa a seus atos, um grupo aos
indivíduos que dele fazem parte e, em geral, uma essência a suas manifestações.
O argumento pragmático, aquele que permite apreciar um ato ou acontecimento
consoante suas conseqüências favoráveis ou desfavoráveis, está situado no âmbito das ligações
de sucessão. Destacamos esse argumento porque dada a sua importância na argumentação,
segundo Perelman, certos autores o consideraram como o único esquema argumentativo da
lógica dos juízos de valor.
Quanto aos argumentos que se baseiam em ligações de coexistência, Perelman assim
os denomina para diferenciá-los das ligações de sucessão onde a ordem temporal é essencial.
No entanto, não se trata primariamente de uma relação de simultaneidade, mas sim de “uma
solidariedade entre duas realidades sendo uma mais fundamental, mais explicativa do que a
outra”, cujo “protótipo”, para o autor, são as relações existentes entre a pessoa e seus atos
(1996a, p.333-334).
Na argumentação, a idéia de pessoa introduz um elemento de estabilidade por oposição
aos atos, manifestações transitórias, variadas e mutáveis, embora essa estabilidade nunca esteja
totalmente assegurada. A correlação entre a pessoa e seus atos, parcialmente solidários e
parcialmente independentes, é que possibilita a utilização freqüente de argumentos baseados
nessa relação de coexistência. Tanto os atos repercutem na concepção que se tem de uma
pessoa, podendo reformulá-la, como essa concepção pode ser utilizada como premissa para
avaliação de um de seus atos. Nesse caso, quando a pessoa serve como contexto para a
interpretação do ato, geralmente lança-se mão da noção de intenção. Quando existe uma
incompatibilidade entre o que se pensa de uma pessoa e a apreciação de um de seus atos
busca-se utilizar “técnicas de refreamento ou ruptura opostas à interação ato-pessoa”.
Dentre as relações entre ato e pessoa, encontra-se o discurso como ato do orador,
interação característica da argumentação, opostamente à demonstração, já que o papel do orador
se torna mais relevante “à medida em que a linguagem utilizada se afasta da univocidade, à
medida que o contexto, as intenções e os fins adquirem importância” (1996a, p.361). A pessoa
do orador é o contexto mais relevante para a apreciação do sentido e do alcance de suas
afirmações, mesmo quando são reproduzidas citações de outros autores, pois não há simples
transferência de valores, mas reinterpretação num novo contexto.
Dentre outras ligações de coexistência que resultam da transposição da relação atopessoa, Perelman destaca a interação entre ato e essência. “A noção de essência, elaborada em
filosofia, é não obstante familiar ao pensamento do senso comum, e suas relações com tudo
quanto a expressa são concebidas com base no modelo da relação da pessoa com seus atos”
(1996a, p.372-373). Essência, portanto, pode ser uma noção vaga ou precisa, mas introduz um
recurso a uma certa estabilidade “que exprime o modo normal como as coisas se apresentam”
(1996a, p.373), possibilitando reportar certos acontecimentos como manifestações de uma
estrutura. Duas noções são correlativas à noção de essência: as de “falta” e de “abuso”, que
correspondem no plano do conhecimento à noção de “deformação”. A utilização das noções de
falta ou abuso na argumentação geralmente sugere o desejo de preservar a essência, que não
42
estaria em questão. A falta é característica da argumentação sobre valores, sobre o que deve ser
feito, pois é definida em referência a uma norma, quer se trate do normal ou do ideal.
Dentre os argumentos que se baseiam na ligação de coexistência ato-pessoa destaca-se
o argumento de autoridade, cujo alcance é totalmente determinado pelo prestígio de uma pessoa
ou de um grupo de forma que seus atos ou juízos podem ser utilizados como meio de prova a
favor de uma tese. Essa utilização é muito freqüente e Perelman considera sua participação
“essencial em todos os domínios em que não se dispõe de um procedimento admitido para o
estabelecimento dos fatos e das verdades” (1987b, p.256). As autoridades passíveis de serem
invocadas são variáveis e não se restringem a autoridades designadas pelo nome ou a
determinados grupos como “os cientistas”, “os filósofos”, “os médicos”. A autoridade pode se
constituir pelo “parecer unânime” ou “a opinião comum” e, até mesmo, pode ser impessoal como,
por exemplo, “a física”, “a religião”, “a Bíblia”. Em se tratando de pessoas, freqüentemente sua
autoridade é reconhecida por um auditório especializado. Quando há conflito entre autoridades,
surge a questão dos fundamentos e, atualmente, a competência tem sido o fundamento mais
alegado em favor da autoridade.
O argumento de autoridade, no mais das vezes e como todo argumento, não constitui a
única prova e pode ser contestado, inclusive quanto ao valor de seu uso numa dada
argumentação. No entanto, pode ser utilizado de maneira abusiva, quando se concede a ele um
valor coercitivo, como se as autoridades invocadas fossem infalíveis. Nesse sentido, muito se
criticou o argumento de autoridade quando, em verdade, era a autoridade daqueles a quem se
fazia apelo o alvo da contestação. Mais importante, no entanto, é que esse argumento é o modo
de raciocínio retórico que mais intensamente foi atacado. Como nos diz Perelman:
“Atacaram o argumento de autoridade em nome da verdade. E isso
porque, na medida em que toda proposição é considerada verdadeira ou
falsa, o argumento de autoridade já não encontra lugar legítimo em nosso
arsenal intelectual. Mas será sempre esse o caso? Poderíamos reduzir
todos os problemas de direito, por exemplo, a problemas científicos, nos
quais se trata apenas de verdade? (1996a, p.349)
Analogicamente fazemos nossa a questão de Perelman: poderíamos reduzir todos os
problemas da medicina, mais especificamente da clínica, a problemas científicos, nos quais se
trata apenas de verdade? Não seria “uma ilusão deplorável” crer que os professores de medicina,
ao realizarem e ensinarem a clínica, “se ocupam unicamente com a verdade” sobre as doenças e
que o sofrimento do doente, inscrito no campo intersubjetivo da relação médico-paciente, não
importa nas apreciações e difíceis escolhas dos médicos no processo diagnóstico e terapêutico?
Por fim, os argumentos que fundam a estrutura do real tratam de ligações que se
fundamentam pelo recurso ao caso particular, que inclui o exemplo, a ilustração e o modelo, ou
pelo recurso à analogia. Na argumentação, o recurso ao caso particular desempenha funções
diversas conquanto esse seja utilizado como um exemplo, uma ilustração ou um modelo.
A argumentação pelo exemplo permite uma generalização, uma regra que o uso do
exemplo serve para fundamentar, mas que, no entanto, poderá ser posta em dúvida, o que faz
Perelman ressalvar que não está tratando do problema filosófico da indução. Nem sempre a
descrição de um caso particular pode ser considerada um exemplo, mesmo quando o orador diz
ser essa sua intenção explícita. Muitas vezes não se chega à enunciação de nenhuma regra,
mas sim a uma conclusão igualmente particular. O caso invalidante, ou o exemplo em contrário,
tem um papel fundamental na argumentação, impedindo uma generalização indevida, restringindo
o seu alcance, apontando a direção em que somente a generalização é permitida. O caso
invalidante pode também ter a função, na argumentação, de colocar uma regra em evidência.
Quando vários exemplos são utilizados, Perelman chama a atenção para a interação entre eles,
ou seja, um novo exemplo pode modificar o significado dos exemplos anteriores no sentido de
melhor especificar o ponto de vista sob o qual os fatos anteriores devem ser apreciados. O fato de
se recorrer à argumentação pelo exemplo implica, pelo próprio fato de a ela se recorrer, um certo
desacordo sobre a regra que o exemplo é convocado a fundamentar e, ao mesmo tempo, um
acordo prévio sobre a própria possibilidade de uma generalização a partir de casos particulares.
43
A diferença entre exemplo e ilustração é sutil, porém relevante. Se o exemplo tem como
função fundamentar a regra, a ilustração reforça a adesão a uma regra conhecida e aceita. Nesse
sentido, a ilustração serve para esclarecer o enunciado geral, mostrar seu interesse através das
várias aplicações possíveis e, sobretudo, promover a presença da regra na consciência dos
ouvintes, quando a ilustração é escolhida pela repercussão afetiva que pode ter. Na
argumentação, a ilustração inadequada não tem o mesmo efeito do caso invalidante, pois uma
vez que a regra não está em questão, a ilustração inadequada repercute sobre aquele que a
fornece, como um desconhecimento ou uma incompreensão da regra que a ilustração pretenderia
corroborar.
Para Perelman, “um homem, um meio, uma época serão caracterizados pelos modelos
que se propõem e pela maneira pela qual os concebem” (1996a, p.414). A argumentação pelo
modelo ou antimodelo é utilizada quando se pretende estimular ou evitar uma ação inspirada num
comportamento particular. Isso não quer dizer que a técnica argumentativa seja vinculada a uma
dada situação social ou a determinados valores, o que é claramente evidenciado pela
possibilidade da “indiferença ao modelo” servir como modelo na argumentação.
Uma segunda possibilidade de ligações que fundamentam o real, investigada por
Perelman, se dá através do raciocínio por analogia, do qual se destaca a metáfora considerada
por ele uma “analogia condensada”. Perelman postula que a analogia é uma “semelhança de
relações” entre dois pares de termos. Denomina de “foro” o par que geralmente é mais conhecido
e serve de ponto de apoio para o raciocínio que busca esclarecer, precisar ou avaliar o outro par,
por ele chamado de “tema”, sobre o qual repousa a conclusão. Para haver a analogia o “tema” e o
“foro” devem pertencer a domínios heterogêneos, ou seja “a especificidade da analogia reside no
confronto de estruturas semelhantes embora pertencentes a áreas diferentes” (1996a, p. 447).
A metáfora sendo “resultante da fusão de um elemento do foro com um elemento do tema”
(1996a, p. 453), ao deixar no não-dito dois elementos, leva a que apenas o contexto possa
permitir uma escolha entre as várias analogias que podem se fazer presentes simultaneamente e
se influenciar mutuamente. Para o autor, “a conivência entre orador e ouvinte sempre é apenas
parcial; nenhum dos dois tem, o mais das vezes, uma idéia precisa da gênese de uma expressão
metafórica. A força desta provém ao mesmo tempo da familiaridade com ela e do conhecimento
bastante impreciso da analogia que está em sua origem” (1996a, p.463). A riqueza e a
ambiguidade de uma metáfora, dada pelo fato de poder corresponder simultaneamente a mais de
uma analogia, “fecunda o pensamento”, exercendo um efeito poderoso em nossa imaginação e
emotividade. O papel da analogia nos domínios que escapam ao controle da experiência não se
restringe ao seu valor heurístico comumente aceito, “andaimes de uma casa em construção que
são retirados quando o edifício está terminado” (PERELMAN, 1987a, p.208), pois a
justificação da preferência conferida a uma dada analogia em detrimento de uma outra, por
exemplo no contexto filosófico, deverá levar a se falar de “ ‘verdade metafórica’, aquela que
exprime o real da maneira mais adequada” (1987a, p.210).
Reflexão Crítica e Formação Clínica
Para Foucault, as instituições escolares, como os hospitais, na sociedade disciplinar
moderna, são “blocos” nos quais as capacidades técnicas, o jogo das comunicações e as
relações de poder estão ajustados uns aos outros, constituindo um sistema regulado. O que
Foucault chama de capacidades técnicas é “o domínio das coisas, da técnica finalizada, do
trabalho e da transformação do real”. Já as relações de comunicação constituem o domínio “dos
signos, da comunicação, da reciprocidade e da fabricação do sentido”. E o da relações de poder
é o campo “da dominação dos meios de coação, de desigualdade e de ação dos homens sobre
os homens” (Cf. FOUCAULT, 1995b, p. 240-242). As relações de poder se articulam com as
capacidades técnicas e as relações de comunicação nesses “blocos” com diferentes
proeminências. Num hospital de ensino, temos tanto a proeminência das atividades finalizadas
referida à capacidade técnica, quando enfocamos o exercício do trabalho assistencial, quanto a
proeminência das relações de comunicação, típica das instituições de ensino, quando
privilegiamos o trabalho pedagógico.
44
O que caracteriza as relações de poder para esse autor é “um modo de ação de alguns
sobre outros” no sentido de que “o poder só existe em ato” e, ainda, não se efetua numa ação
direta e imediata sobre os outros, mas é “uma ação sobre a ação”, quer sejam ações eventuais,
futuras ou presentes. Para Foucault, “o poder só se exerce sobre sujeitos ‘livres’, enquanto ‘livres’
- entendendo-se por isso sujeitos individuais ou coletivos que têm diante de si um campo de
possibilidades onde diversas condutas, diversas reações e diversos modos de comportamento
podem acontecer” (FOUCAULT, 1995b, p.244). “O outro” sobre o qual uma ação se exerce
numa relação de poder é, portanto, alguém que necessariamente precisa ser reconhecido como
sujeito de ação e não mero pólo de passividade. (Cf. 242-245)
O exercício do poder é, portanto:
“um conjunto de ações sobre ações possíveis; ele opera sobre o campo
de possibilidade onde se inscreve o comportamento dos sujeitos ativos;
ele incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil, amplia ou limita, torna
mais ou menos provável; no limite ele coage ou impede absolutamente,
mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos, e
o quanto eles agem ou são suscetíveis de agir” (FOUCAULT, 1995b, p.
243).
Os sujeitos da pesquisa não estão ali para falar a verdade sobre si mesmos, mas falam a
partir da verdade parcial do desejo inconsciente. No entanto, as falas dos participantes do grupo
não foram objeto de interpretação nesse nível de decifração, pois nos encontramos num contexto
pedagógico que, embora peculiar, não possibilita nem comporta esse tipo de análise. Esse
reconhecimento, no entanto, é importante porque, tanto ao propormos a experiência pedagógica
como ao realizarmos a análise de seu material discursivo, após seu registro visando à pesquisa,
nos situamos entre o individual e o coletivo, ou seja, buscamos não colocar esses dois níveis em
oposição exclusiva ao admitirmos os efeitos de determinação da história singular, do discurso e
das práticas sociais sobre o sujeito e na constituição do sujeito.
Estamos em busca da particularidade do saber desses sujeitos sociais - estudantes de
medicina, professores de Clínica Médica e psicanalistas professores de Psicologia Médica - que
aderem à discussão da prática clínica coordenada por um psicanalista, de onde emerge como
tema central a tensão doente/doença no exercício de aprendizes da clínica. E daí o nosso
recorte de temas emergentes nas enunciações com Bakhtin que também considera o sujeito
determinado pelos valores sócio-ideológicos da linguagem, cuja razão dialógica situa o sujeito da
enunciação no contexto social e histórico.
Ao investigarmos esse saber que põe em tensão conhecimento e opinião, em cuja
produção procuramos evidenciar as estratégias argumentativas, consideramos as possibilidades
de transmissão e resistência desse “saber dominado”3, cuja desqualificação está presente nos
três discursos de nossa pesquisa, embora através de marcas distintas, tanto pelo lugar
institucional e técnico quanto pelo status que estudantes, clínicos gerais e psicanalistas detêm
na ordem médica em funcionamento num hospital universitário. E ao considerarmos sua
desqualificação no domínio do discurso clínico podemos interrogar, com Foucault:
“Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber vocês querem
‘menorizar’ quando dizem: ‘Eu que formulo este discurso, enuncio um
3
Por “saber dominado” Foucault (1986), ao se referir ao “saber das pessoas”, cita “os saberes do
psiquiatrizado, do doente, do enfermeiro, do médico paralelo e marginal em relação ao saber
médico, do deliqüente, etc.” (p.170). Parece-nos possível considerar o saber que se produz na
estrutura dialógica de nossa pesquisa como um saber que tende a ser dominado, subordinado,
desqualificado pelo saber médico.
45
discurso científico e sou um cientista?’ Qual vanguarda teórico-política
vocês querem entronizar para separá-la de todas as numerosas
circulantes e descontínuas formas de saber?” (FOUCAULT, 1986, p.
172).
E como nos diz ainda Foucault:
“a partir do momento que há relação de poder, há uma possibilidade de
resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre
modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma
estratégia precisa. [...] Para resistir é preciso que a resistência seja como
o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como
ele, venha ‘de baixo’ e se distribua estrategicamente” (FOUCAULT, 1986,
p.241).
Os sujeitos de nossa pesquisa “necessariamente situados e dependentes” em relação ao
domínio do saber médico e às relações de poder em seu funcionamento capilar, ao darem seu
“consentimento” a essa proposta “eletiva” e ao desenvolverem os temas analisados em nossa
pesquisa, se situam, nos parece, como atores de um certo embate dentre as “formas de
resistência” a “uma técnica, uma forma de poder”. Essa forma de poder de que nos fala Foucault
“aplica-se à vida cotidiana imediata que categoriza o indivíduo, marca-o com sua própria
individualidade, liga-o à sua própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos
reconhecer e que os outros têm que reconhecer nele” (FOUCAULT, 1995b, p.235).
Em nossa pesquisa o que está em questão, a partir da fala dos alunos, é a “identidade”
de paciente e a “identidade” de médico, produzidas pelo saber/poder médicos e reproduzidas pela
formação médica, quando os alunos na experiência de aprendizado da clínica se defrontam com
a tensão doente/doença no exercício e na apreciação do ato médico.
A amplificação da voz de pacientes pelos alunos, como indica nossa análise da
pesquisa, em especial no 4º tema, talvez se deva a uma identificação na experiência conflitiva de
sujeição. Os alunos, sujeitos de nossa pesquisa, num processo de formação que implica a
ambivalência do medo e do desejo na apropriação do saber/poder médicos, vivenciam o conflito
entre “afirmar o direito de ser diferente” e, ao mesmo tempo, ser alguém que se “liga à sua própria
identidade de um modo coercitivo”, em busca de um reconhecimento, no caso a identidade
profissional de médico, tal como é definida pela instituição. E o paciente “sujeito a alguém pelo
controle e dependência” experimenta conflitos, cujas formas de resistência à ordem médica,
estudadas por Herzog (1987), nos indicam que o que o paciente “reivindica, nesta contestação,
é a possibilidade de emitir sobre si mesmo uma fala singular” (p.129).4 O paciente “sujeito a
alguém pelo controle e dependência” na relação médico-paciente e o estudante da mesma forma
na relação professor-aluno mas, sobretudo, sujeito a estar “preso à sua identidade por uma
consciência ou auto-conhecimento”, no caso, a identidade profissional em formação, se
encontram aproximados numa experiência conflitiva de sujeição.
Dentre os aspectos mais específicos dessas lutas contemporâneas que configuram
formas de resistência a uma forma de poder, Foucault destaca serem elas batalhas contra “o
governo da individualização”, “contra os privilégios do saber” ou melhor “os efeitos de poder
relacionados ao saber” e, ainda, que “giram em torno da questão: quem somos nós?” (Cf.
FOUCAULT, 1995b, p. 234-235).
A oposição ao poder da medicina sobre a população - a "medicalização" da cultura - é
uma das lutas que se desenvolveram nos últimos anos, e Foucault ao citá-la como exemplo
explicita que a crítica à profissão médica não se dá “essencialmente por ser um empreendimento
4
Sobre as formas de resistência ver Herzog (1987), p.114 à 129. Dentre outros estudos, com
referenciais teóricos diferentes, sobre formas de resistência de pacientes ao poder médico,
podemos citar Ribeiro da Silva (1976).
46
lucrativo, porém, porque exerce, um poder sem controle, sobre os corpos das pessoas, sua
saúde, sua vida e morte” (FOUCAULT, 1995b, p. 234). Para esse autor, um dos aspectos da
crise atual da medicina é o risco associado, não à ignorância, mas ao desenvolvimento do
conhecimento, das tecnologias e do poder político.
“o verdadeiro problema é o que eu chamaria, não de iatrogenia, mas de
iatrogenia positiva: os efeitos medicamente nocivos que se devem, não a
erros de diagnóstico ou à ingestão casual de medicamentos, mas à
própria ação da intervenção médica no que ela tem de racionalmente
fundada. [...] Não é mais o não-saber que é perigoso, mas o próprio
saber. E o saber é perigoso não somente por suas conseqüências
imediatas ao nível do indivíduo ou de grupos de indivíduos mas ao nível
da própria história. Esta é uma das características fundamentais da crise
atual” (FOUCAULT, 1974, 1ª Conferência).
Não analisamos aqui a postulação de Foucault sobre o biopoder ou a biohistória que
enfatiza o papel regulador exercido pela medicina sobre a população, a espécie e sua articulação
com a racionalidade política, por estar fora do escopo de nosso estudo. 5
O discurso ou as opiniões que teriam sido desqualificados como incompetentes,
insuficientemente elaborados ou ingênuos, colocados abaixo do nível de "cientificidade", que
Foucault chama de "saber das pessoas", não é de forma alguma um saber comum, um bom
senso mas, ao contrário, "é um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de
unaminidade e que só deve sua força à dimensão que o opõe a todos aqueles que o circundam"
(FOUCAULT, 1986, p.170). Esse saber é um saber que informa o pensamento crítico que não
põe em exclusão opinião e conhecimento, enriquecendo um saber da prática que reúne doente e
doença, que nos diz que a doença não pode ser uma abstração desligada de uma prática
terapêutica, desligada da dimensão do vivido em uma prática que incide sobre um corpo doente, e
que se reconhece operando em um campo de significações. Citando Foucault:
“Poder-se-ia dizer que existe um estranho paradoxo em querer agrupar
em uma mesma categoria de saber dominado os conteúdos do
conhecimento histórico, meticuloso, erudito, exato e estes saberes locais,
singulares, estes saberes das pessoas que são saberes sem senso
comum e que foram deixados de lado, quando não foram efetivamente e
explicitamente subordinados. Parece-me que, de fato, foi este
acoplamento entre o saber sem vida da erudição e o saber desqualificado
pela hierarquia dos conhecimentos e das ciências que deu à crítica
destes últimos anos sua força essencial” (FOUCAULT, 1986, p.170).
Situando, mais uma vez, que é a prática clínica que leva o médico a vivenciar a tensão
doente/doença na produção do ato médico, pretendemos a seguir, com a análise do material
produzido em nossa pesquisa, apresentar uma contribuição possível à formação médica quando,
ao promover um espaço que privilegia o ato de fala do estudante na sua experiência de
aprendizado na clínica, facilitamos que ele se ponha à escuta de seu desejo de ser médico e
possa refletir criticamente sobre uma prática que o poder médico instituído pretende limitar,
redutivamente, aos pressupostos anátomo-patológicos da doença.
A PESQUISA:
A TENSÃO ESTRUTURANTE DOENTE/DOENÇA
5
Sobre biopoder ver Foucault (1985) cap. V e (1997) p.213-235.
47
Contexto Institucional
O campo desta pesquisa está referido à Faculdade de Medicina - UFRJ. Esta escola
médica é uma instituição complexa, associada a hospitais e laboratórios, onde se desenvolvem
atividades de ensino, assistência e pesquisa.
A estrutura curricular do curso médico é organizada através do sistema de créditos, mas
a Faculdade de Medicina sugere “planos de estudos” que considera a “seqüência mais
recomendável das Disciplinas ou PCIs (Programa Curricular Interdepartamental)” (UFRJ, 1997,
p.24) para os vários períodos programados ao longo dos 6 anos, ou 12 semestres, que
configuram a duração mínima do curso. É importante destacar que a grande maioria dos alunos
percorre os planos de estudos sugeridos, realizando o curso médico de forma expressivamente
homogênea no que tange à estrutura curricular de cada período, geralmente concluindo o curso
nos 12 semestres previstos.
O curso médico, nos seus dois primeiros anos, compreende fundamentalmente
disciplinas básicas sob a responsabilidade dos Departamentos pertencentes aos Institutos de
Ciências Biomédicas, de Microbiologia, de Biofísica e de Biologia - unidades ou órgãos
suplementares que, como a Faculdade de Medicina, pertencem ao Centro de Ciências da Saúde UFRJ.
A partir do terceiro ano, o curso médico é essencialmente constituído por disciplinas que
integram o ciclo profissional oferecidas pelos dez departamentos da Faculdade de Medicina cujas
atividades incluem o treinamento em serviço que se desenvolve principalmente no complexo
hospitalar da UFRJ, em especial no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho, mas também
no Instituto de Pediatria e Puericultura Martagão Gesteira, Maternidade Escola, Instituto de
Ginecologia e Instituto de Psiquiatria. Nessas disciplinas do ciclo profissional é que os alunos
desenvolvem mais expressivamente a competência clínica e cirúrgica, quando interagem com
pacientes tendo como docentes médicos que exercem a profissão.
A Faculdade de Medicina empreendeu uma reforma curricular ao longo da década de 90.
Conforme o documento “Proposta de Mudança Curricular” elaborado pela direção da Faculdade,
em 1991, esta proposta encerra:
“proposições concretas de maior integração entre os ciclos básico e
profissional do curso médico, de flexibilização curricular, de
interdisciplinaridade na geração e na transmissão do saber, de adoção de
práticas pedagógicas que confiram maior autonomia e preparo científico
aos estudantes, a fim de que possa haver uma futura adaptação ao
desenvolvimento exponencial do conhecimento e da tecnologia.”
Os objetivos gerais do curso médico foram reafimados e consistem em:
“O curso médico de graduação visa à formação de profissionais que:
- estejam habilitados a prevenir, diagnosticar e tratar as doenças
prevalentes da população; - sejam capazes de estabelecer boa relação
com os pacientes e com os demais integrantes da equipe de saúde;
desenvolvam conduta ética adequada; - tenham pensamento crítico,
saibam raciocinar cientificamente e adquiram capacidade de autoinstrução; - estejam aptos a desenvolver-se com aproveitamento em
cursos de especialização, mestrado ou doutorado” (UFRJ, 1997, p.24).
Em 1991, na primeira etapa da implantação da reforma, estabeleceu-se o currículo pleno
composto pelas disciplinas obrigatórias do currículo mínimo e pelas disciplinas complementares
de escolha condicionada. O objetivo era uma maior flexibilização do currículo e um aumento da
participação ativa do alunado, que passou a poder escolher as disciplinas de escolha
48
condicionada ou “eletivas”, como são mais conhecidas, de acordo com seus interesses, tendo
apenas de ser atendida a exigência quantitativa de 16 créditos nessas disciplinas - 5% do total ao final do curso médico.
A flexibilização do currículo através da criação de disciplinas eletivas propiciou a alunos e
professores a oportunidade de desenvolvimento de novas propostas pedagógicas, quer no seu
conteúdo, quer na sua metodologia. Essas disciplinas foram sendo criadas conforme “princípios
básicos” explicitados no documento “Proposta de Mudança Curricular”, quais sejam, “sua
relevância para a formação do médico [...] a interdisciplinaridade, a prioridade para o treinamento
em serviço com pequenos grupos de alunos e possibilidade de incorporação futura no currículo
obrigatório.”
Em 1994, a Faculdade de Medicina iniciou a implantação da reforma curricular no que diz
respeito às mudanças do currículo mínimo ou obrigatório, norteada por quatro aspectos
fundamentais já pontuados no documento “Proposta de Mudança Curricular”:
“antecipação do treinamento prático junto aos serviços de saúde;
ampliação e priorização do ensino nas áreas de conhecimento
relacionadas às condições de maior prevalência e importância; mudança
de metodologia que viabiliza participação mais ativa do estudante no
processo de aprendizagem, com ampliação de carga horária prática por
aluno; inserção de conteúdos relacionados às áreas de Psicologia
Médica, Ética e Medicina Preventiva em diferentes disciplinas ao longo de
vários períodos do curso.”
Conforme referimos na Introdução deste trabalho, a maior participação de professores de
Psicologia Médica no curso médico, proposta pela reforma curricular empreendida ao longo da
década de 90, consistiu numa importante motivação na realização de nossa pesquisa.
Como professora da disciplina obrigatória de Psicologia Médica (5º período), a cada início
de semestre, vivemos o desafio renovado de pretender um diálogo produtivo com os alunos. Todo
semestre há sempre algumas vozes a nos dizer: “isso é tudo subjetivo”... “é uma questão de bom
senso”... “os médicos não têm tempo para ouvir os pacientes”... “sempre ouvi que na Psicologia
Médica é tudo viagem”... E o desafio se mostra quase intransponível em relação àqueles que, no
início do curso, nos transmitem um bem-estar, um sentimento de certeza, uma convicção de que
não há ali nada de realmente importante a ser aprendido ou a ser discutido conosco. Por outro
lado, na avaliação do curso realizada ao fim do semestre, não raro alguns alunos se dizem
“surpreendidos” no sentido do curso ter superado suas expectativas e, também, há sempre
alguns que sugerem a continuidade do curso.
Em 1991, com a implantação das disciplinas eletivas pela Faculdade de Medicina, criouse, então, uma oportunidade de valorizar essa demanda de alguns alunos de continuidade do
curso, demanda que vinha especialmente associada à experiência de assunção de pacientes que
estava por vir. Nesse sentido propusemos a disciplina eletiva Reflexão sobre a prática médica,
que consiste num grupo de reflexão, que se aproxima da forma de seminário, instituído como
“atividade prática”, sem pretensão de fornecer conteúdos teóricos pré-estabelecidos, coordenado
por nós com a colaboração de um professor do Departamento de Clínica Médica, centrado na
experiência clínica dos alunos, nas situações por eles vividas na relação com o paciente, sua
família e a equipe de saúde (ver Anexo, p.200-201).
Oferecida desde 1992, ao longo de cinco semestres, observamos que a demanda à
disciplina Reflexão sobre a Prática Médica se restringia basicamente a alunos do 6º e 7º
períodos, apesar de nela poderem se inscrever alunos de quaisquer períodos a partir do 6º
período. Na estrutura curricular, os alunos de 8º e 9º períodos cursam disciplinas referidas a
especialidades médicas, quando não estão implicados na experiência de assunção de pacientes,
diferentemente dos estudantes de 6º e 7º períodos. Já os alunos de 10º, 11º e 12º períodos se
encontram no Internato, que se organiza de forma rotatória nas consideradas quatro grandes
áreas (Clínica Médica, Cirurgia, Pediatria e Gineco-Obstetrícia) e, como internos, eles
desenvolvem uma experiência clínica intensa em enfermarias e ambulatórios.
49
No 2º semestre de 1995, quando realizamos nossa pesquisa de campo, os alunos
sujeitos da pesquisa se encontravam cumprindo o currículo obrigatório prévio à reforma curricular,
pois esta não os atingiu com relação ao currículo obrigatório.
Para os alunos sujeitos da pesquisa, portanto, a Faculdade de Medicina é um espaço
onde o aluno encontra formalmente definido o modo de adquirir conhecimento sobre as
dimensões psicológicas e sociais do processo saúde/doença nas disciplinas obrigatórias:
Mecanismos Básicos de Saúde e Doença (4º período), Psicologia Médica (5º período) e Medicina
Preventiva I e II (5º e 6º períodos). Em 1992, a partir das propostas de reformulação curricular da
direção desta faculdade, cuja primeira etapa já estava implantada, esse espaço sofreu uma
expansão com a introdução das disciplinas eletivas: Atenção Primária à Saúde (2º, 3º ou 4º
período), Reflexão sobre a Prática Médica (a partir do 6º período), Introdução à Psicanálise (a
partir do 8º período), História da Medicina e Saber Médico, Corpo e Sociedade (ambas a partir do
2º período).
Procedimentos metodológicos
Esta pesquisa foi realizada na Faculdade de Medicina/UFRJ e tem como sujeitos 14
estudantes do 6º e 7º períodos do curso médico, três professores do Departamento de Clínica
Médica e a pesquisadora, professora do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal. Os
alunos de 6º e 7º períodos, sujeitos da pesquisa, se encontram curricularmente em atividades de
treinamento, principalmente, no Hospital Universitário Clementino Fraga Filho/UFRJ, passando a
maior parte do tempo em suas enfermarias clínicas, onde se desenvolve a parte prática das
disciplinas Medicina Clínica II e III, o que propicia a experiência clínica que é objeto de discussão
em nossa pesquisa. Os sujeitos da pesquisa reuniram-se em torno da proposta da disciplina
“eletiva” Reflexão sobre a Prática Médica, tendo sido realizados 15 seminários, com freqüência
semanal, com duração de 1 hora e 30 minutos cada seminário, ao longo do 2º semestre de 1995.
No primeiro seminário solicitamos aos participantes o seu consentimento para a gravação das
discussões, o que nos foi concedido, tendo sido explicitado o nosso interesse de pesquisa em
relação à contribuição de professores de Psicologia Médica à formação médica. O registro do 2º
ao 15º seminários resultou em 17 horas de gravação.
Para a apresentação do corpus de análise da pesquisa, criamos códigos de ocultação
dos nomes dos sujeitos da pesquisa e das pessoas por eles citadas. Para os sujeitos da
pesquisa utilizamos letras maiúsculas para identificar o grupo ao qual o sujeito pertence e um
número a seguir para diferenciar os locutores de um mesmo grupo. Foram classificados os
seguintes grupos:
M6 - alunos do 6º período do curso médico
M7 - alunos do 7º período do curso médico
CM - professor de Clínica Médica
PSM - professor de Psicologia Médica
Com relação aos alunos, chama a atenção a participação expressiva de 9 dentre os 14
que estiveram presentes e, ainda, o fato de haver a presença de estudantes não necessariamente
condicionada à inscrição formal na disciplina, o que não chega a ser um fato excepcional nessa
disciplina. Gostaríamos de acrescentar que todos os M6 são homens e dentre os M7, três são
homens (M7-3, M7-6 e M7-11) e as demais são mulheres (M7-1, M7-2, M7-4, M7-5, M7-7, M7-8,
M7-9, M7-10).
REFLEXÃO SOBRE A PRÁTICA MÉDICA
Grade de participação - 2º semestre/1995
1º
2º
3º
4º
5º
6º
7º
8º
9º
10º
11º
12º
13º
14º
15º
50
PSM
CM-1
CM-2
CM-3
X
X
+M6-1
*M6-2
º M6-3
+M7-1
+M7-2
+M7-3
+M7-4
*M7-5
*M7-6
*M7-7
*M7-8
*M7-9
*M7-10
*M7-11
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
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X
X
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X
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X
X
X
X
X
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X
X
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X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
PSM - professor de Psicologia Médica
CM-1, CM-2, CM-3 - professores de Clínica Médica
M6 - alunos do 6º período
M7 - alunos do 7º período
( + matriculados na disciplina oficialmente)
( º trancou a matrícula na disciplina)
( * participaram sem compromisso curricular)
No 2º semestre de 1995, quando realizamos a pesquisa, tivemos a participação de três
professores de Clínica Médica alternadamente, fato que aponta para dificuldades de adesão a
essa proposta. No entanto, é importante ressaltar que, em nossa experiência global de trabalho
conjunto com professores do Departamentos de Clínica Médica nessa disciplina “eletiva”, a regra
tem sido a permanência de um mesmo professor colaborador durante todo o semestre e até por
mais de um semestre, ainda que com algumas faltas. A justificativa dos professores em relação à
sua dificuldade em manter o compromisso com essa atividade é sempre a priorização de outras
atividades que surgem sem programação antecipada na dinâmica de uma instituição hospitalar de
ensino. No 2º semestre de 1995, no 2º seminário, CM-1 manda nos avisar de sua impossibilidade
de estar presente por quatro semanas. Diante dessa excepcionalidade, convidamos CM-2, como
substituto temporário, até podermos resolver diretamente com CM-1 a continuidade ou não de sua
participação. Quando do retorno de CM-1, no 6º seminário, conversamos com ele a respeito do
impacto negativo que sua ausência causou no grupo e decidimos - PSM e CM-2 - sua
substituição por CM-3, já que CM-2 havia aceito ser apenas um substituto eventual. Dessa forma,
os seminários 2º, 3º e 13º foram realizados sem a presença de um professor colaborador, como
apontado na grade de participação dos seminários apresentada. Apesar da justificativa para as
ausências, por parte dos três professores desse semestre, ter sempre sido a priorização de
outras atividades que lhes são mais habituais, não podemos deixar de assinalar que a decisão de
gravar o material com fins de pesquisa nesse semestre pode ter contribuído para maiores
dificuldades.
Em relação aos professores, acreditamos ser de importância acrescentar as seguintes
informações:
X
X
X
X
51
CM-1 - homem, graduado em medicina em 1975, concluiu pós-graduação em uma especialidade
no exterior, e realiza prática privada.
CM-2 - homem, graduado em medicina em 1983, concluiu mestrado em Clínica Médica, e não
realiza prática privada.
CM-3 - mulher, graduada em medicina em 1974, concluiu mestrado em Clínica Médica, e não
realiza prática privada.
PSM - mulher, graduada em medicina em 1977, concluiu mestrado em Psiquiatria, e realiza
prática privada.
Elaboramos, também, um código para ocultação dos nomes dos sujeitos citados nas
falas.
Com relação aos pacientes, as expressões Seu ou Dona foram utilizadas quando os
pacientes eram habitualmente referidos com um pronome de tratamento antes de seu nome. O
sexo do paciente, quando seu nome não era precedido por pronome, fica claro pelo relato. Não
foram alterados quaisquer dados em relação aos pacientes, uma vez que julgamos só ser
possível a identificação pelo próprio, por seus familiares ou pelas pessoas diretamente envolvidas
em seu tratamento, e ainda assim atenuada pelo tempo decorrido entre a realização e a
divulgação da pesquisa através da tese. Os dados clínicos e de identificação dos pacientes não
foram alterados, apenas um ou outro dado foi omitido, quando se referia a características muito
peculiares da pessoa do paciente, que poderiam facilitar a identificação por outros que não o
próprio, seus familiares ou profissionais diretamente envolvidos em sua assistência. Ao todo
foram referidos pelo nome 29 pacientes. Exemplos: Seu W, Dona M, C, etc.
Os profissionais referidos no material foram identificados através de um símbolo indicando
a categoria profissional, seguido do gênero e de um número de acordo com sua ordem de
aparição num dado seminário, para permitir a identificação das referências ao mesmo profissional
no contexto de um mesmo seminário.
Os médicos e professores foram identificados com o mesmo símbolo, uma vez que ou
estão em atividade docente, ou funcionam igualmente como modelo de identificação para os
alunos, sendo que eventuais diferenças significativas podem ser depreendidas do próprio relato.
Dessa forma acreditamos estar evitando uma caracterização por demais precisa, e
desnecessária, já que os alunos, por várias vezes, consideram, indistintamente, estes médicos
como professores, além de preservar os profissionais de uma maior probabilidade de
identificação. Foram citados cerca de 45 professores de cinco Departamentos - Clinica Médica,
Medicina Preventiva, Ginecologia e Obstetrícia, Psiquiatria e Medicina Legal e Cirurgia - e
aproximadamente 15 médicos. Exemplos: & H1, & M3, etc.
Os 17 médicos residentes, no entanto, foram mantidos numa categoria à parte, pois nos
pareceu que os alunos mantêm com eles uma relação diferenciada comparada à que mantêm
com os demais médicos e professores. No dizer do grupo, os residentes são “internos com
CRM”, e, os internos, são “residentes sem CRM” ou ainda “residentoblastos”. Exemplos:
ξ M4, etc.
ξ H1,
Foram ainda citados pelo menos cinco médicos que não trabalham na Faculdade de
Medicina. Dentre os profissionais de enfermagem, três foram citados nominalmente. Um
funcionário administrativo teve seu nome algumas vezes referido.
Com relação aos alunos, 20 colegas dos sujeitos da pesquisa foram citados. Exemplos:
@H1, @M3, etc.
Criamos, ainda, a categoria de Outros constituída por amigos ou familiares dos alunos
sujeitos da pesquisa e amigos ou familiares de pacientes. Dessa forma contemplamos todo o
universo das pessoas nominalmente citadas.
Seguem abaixo os símbolos utilizados:
&
ξ
µ
Professores ou médicos em função docente
Médicos residentes
Médicos que não trabalham na UFRJ
52
ª
1
@
=
Enfermeiros
Funcionários administrativos
Alunos
Outros
Ao realizarmos a revisão do material transcrito das fitas de áudio, optamos por adotar nas
nossas transcrições apenas três normas que marcam a oralidade do discurso e que,
praticamente, se impõem:
- o uso de reticências para indicar a quebra ou desvio temático dentro de uma fala e, também,
para assinalar o fim de uma fala quando esta é interrompida por uma outra;
- a utilização de parênteses para eventuais comentários descritivos do transcritor e observações
sobre o contexto realizadas pelo pesquisador elucidativas em relação às falas;
- o uso de certas contrações, muito presentes no discurso oral, como “tá, tou, pra, pro, né, pera,
ó...”
Como reconhecem os especialistas, tendo em vista as especificidades da fala em relação
à escrita, editar materiais gravados de linguagem oral não é tarefa simples nem fácil.
“Não existe a melhor transcrição. Todas são mais ou menos boas. O
essencial é que o analista saiba quais os seus objetivos e não deixe de
assinalar o que lhe convém. De um modo geral, a transcrição deve ser
limpa e legível, sem sobrecarga de símbolos complicados”
(MARCUSCHI, 1991, p.9). (grifos do autor)
As discussões do grupo foram gravadas e as falas constituem nosso material para a
análise do discurso, no duplo sentido de análise, das estratégias argumentativas utilizadas pelos
interlocutores, e de uma análise fundamentada no valor operatório dos conceitos psicanalíticos.
A demanda espontânea por essa disciplina eletiva nos diz alguma coisa sobre a
possibilidade de adesão de alunos, em função do momento de sua formação, a uma proposta que
visa à reflexão da relação médico/paciente como um campo dinâmico numa práxis social.
Pensamos que essa demanda de estudantes de 6º e 7º períodos se associa à sua experiência
de desamparo pelo confronto com o sofrimento e a morte de seus primeiros pacientes associada
a um saber reconhecidamente mais limitado que possuem. Eles se encontram praticamente no
início do ciclo profissional e constituem o grau mais inferior na hierarquia da equipe médica de
uma enfermaria clínica e, portanto, ainda muito vulneráveis às incertezas e às situações
angustiantes da prática clínica.
Esses alunos ao integrarem pela primeira vez uma equipe de saúde estão assim
convocados a participar do exercício da função médica, que não depende apenas dos
conhecimentos calcados na racionalidade anátomo-clinica, mas também de uma série de valores
que atravessam e constituem a prática médica, permitindo que os médicos se reconheçam como
pertencendo a um grupo social. Como nos diz Bakhtin, aproximando-se de Perelman, “o mundo
interior e a reflexão de cada indivíduo têm um auditório social próprio bem estabelecido, em cuja
atmosfera se constroem suas deduções interiores, suas motivações, apreciações, etc.”
(BAKHTIN, 1981, p.112-113) (grifo do autor).
Esse momento da formação médica é reconhecido por vários autores como uma fase de
maior intensidade conflitiva. Associado a isso, o fato de o curso ser uma escolha espontânea de
alunos para uma disciplina eletiva constitui uma oportunidade privilegiada para esta pesquisa
centrada na argumentação.
Perelman nos fala das condições para a “formação de uma comunidade efetiva dos
espíritos” (PERELMAN, 1996a, p.17-19) quando se pretende o diálogo, a argumentação. Não
só é necessário uma linguagem em comum e a possibilidade dada pelas próprias normas da vida
social, como é também preciso haver o desejo referido a o que e com quem se pretende discutir,
além do apreço pela adesão do interlocutor, pelo seu consentimento. Algumas dessas condições
estão presentes no contexto de nossa pesquisa, mas importa ressaltar que a alternância de três
professores da Clínica Médica assim como a “visita” (presença irregular, eventual) de seis alunos
53
nos apontam para dificuldades de adesão. A proposta do professor de Psicologia Médica assim
como a adesão de alunos e de professores de Clínica Médica para discutirmos conjuntamente a
clínica não constitui, a princípio, nenhum dos participantes como possuidor da “palavra do
Evangelho”, o que significa dizer que os professores implicados não estão tão investidos da
autoridade de quem diz o indiscutível, como em contextos mais habituais, embora a
hierarquização se faça, obviamente, presente no grupo. Escolhemos realizar a investigação
sistemática nesse grupo de reflexão, na medida em que o grupo é um espaço onde se dá a
oportunidade de reunir sistematicamente professores e alunos, dialetizando, em muitos
momentos, o instituído ao colocá-lo em jogo com o instituinte, criando-se condições para o
discurso vivo de uma prática compartilhada, construindo-se uma práxis.
A participação conjunta de professores de Psicologia Médica e Clínica Médica em
painéis sobre temas que envolvem o exercício da clínica ou na discussão de anamneses de
alunos vem sendo realizada no transcorrer de disciplinas obrigatórias. No entanto, é uma outra
coisa a adesão a uma proposta que implica reuniões semanais durante todo um semestre, sem
temas pré-fixados, nas quais se pretende, com a bússola dos conhecimentos médico e
psicanalítico, lidar com o desafio de discutir problemas que alunos experimentam no inesperado
de sua aventura clínica. Para participar dessa proposta, nos parece ser preciso uma certa
destituição narcísica pois, como mostram os alunos, não é a mera “afinidade” ou o “interesse”
pela psiquiatria o que gera e sustenta essa adesão. É a inquietação com o “descaso” pelos
pacientes, com a quase ausência de reconhecimento dos seus direitos como cidadãos, é a
“frieza” dos médicos, é a eficácia relativa da ação médica numa prática social, é a perplexidade
diante da certeza com que certas soluções são ditas necessárias e portanto indiscutíveis, é o ter
que “se acostumar” a tantas coisas, são as respostas que eles encontram a algumas de suas
perguntas, são, enfim, as suas falas que, em outros contextos, não podem ser ditas e nem
mesmo pensadas.
A proposta encerra, de alguma forma, a possibilidade de cada participante ser
reconhecido na sua singularidade nessa experiência compartilhada. Isso nos parece importante
se compreendemos que a possibilidade de se reconhecer a singularidade do paciente e de sua
relação com o estudante ou médico é o cerne do discurso da Psicologia Médica. Pretender que
futuros médicos reconheçam a dimensão do sujeito, em cada paciente e em si mesmo, como
organizadora do encontro clínico, sem que isso se passe na relação professor-aluno durante a
formação médica seria mesmo um paradoxo.
Nesse sentido, estamos falando, a partir da psicanálise, de uma experiência que se
passa no campo da formação médica, isto é, no campo da educação. Ao valorizarmos que o
médico não é mais o mestre de sua medicina mas sim um agente do discurso médico, é a partir
da experiência conflitiva de alunos, envolvendo inclusive seus ideais em relação ao exercício
profissional, que podemos investigar a possibilidade de uma experiência pedagógica se pondo
além da mera formação de técnicos presidida pelo valor de eficácia.
Pretendemos, ao desenhar esta pesquisa, investigar os limites e as possibilidades de
produção de novas significações numa prática institucionalizada de psicanalistas no campo da
Psicologia Médica, quando buscamos numa dialógica construir um intertexto com alunos e
professores de Clinica Médica, cientes que dialeticamente:
“a escola arbitra sobre o educando fazendo-o objeto passivo do
conhecimento e não o lugar do desejo, da curiosidade livre mobilizando
um processo educacional. A escola institui uma autoridade que nega a
sua dúvida e o seu desconhecimento e está presa ao dever de transmitir
a eficácia de um saber. Como sujeito da certeza, o professor faz uma
aliança com o poder, desconhecendo a relação alteritária e a dimensão
do inconsciente. Na sua atividade a lei preside, a norma espreita e as
regras racionalizadas produzem socialmente uma relação de submissão,
de desigualdade e não de mútua determinação” (VITAL BRAZIL, C. 1990).
A nosso ver, todos os sujeitos implicados na pesquisa pertencem a um mesmo grupo
semiótico no sentido não só de fazerem parte de uma mesma comunidade lingüística mas,
54
também, de uma mesma classe social e, sobretudo, por ambos os professores terem formação
médica, e os alunos estarem num processo de apropriação do discurso médico. No entanto,
apesar das identidades existem diferenças. Poderíamos dizer, com Bakhtin, que as classes
sociais não recobrem exatamente os grupos semióticos. E, ainda, com Perelman que, para um
orador, cada ouvinte pertence, simultaneamente, a diferentes auditórios. No contexto de nossa
pesquisa, as diferenças estariam, sobretudo, no fato de termos professores e alunos, de um dos
professores ser um psicanalista e o outro ser um clínico geral e, entre os alunos, de uns serem
calouros e outros veteranos, já que alguns pertencem ao 6º e outros ao 7º período do curso
médico. Podemos assim considerar três discursos presentes, em uma relação dialógica, em
nossa pesquisa: o de alunos de medicina em uma primeira fase do ciclo profissional, o de um
professor de Clínica Médica e o do pesquisador, que se diferencia do outro professor por ser um
psicanalista, professor de Psicologia Médica.
Trabalharemos, sobretudo, com a organização retórica do discurso, revelando estratégias
argumentativas e possibilitando a interpretação do sentido produzido no contexto concreto de
nossa pesquisa, a partir da Nova Retórica. Assim como para Bakhtin a enunciação é sempre
“função” de um interlocutor, mesmo um interlocutor potencial, e está sempre referida a um certo
“auditório social”, para Perelman também o discurso, na sua forma e conteúdo, é função de um
auditório, um auditório presumido pelo orador, definido como “o conjunto daqueles que o orador
quer influenciar com sua argumentação” (PERELMAN, 1996a, p.22).
Ao reconhecermos a contribuição de Bakhtin e Perelman, apesar desses autores não
fazerem referência explícita à psicanálise, estaremos, através da dialogia na teoria da enunciação
de Bakhtin e da concepção perelmaniana de orador e discurso inerentemente ligados à de
auditório, aproximando esses dois filósofos da psicanálise, na medida em que o que está em jogo
é o sujeito, como função da intersubjetividade, e o sentido, exposto à interpretação, se
produzindo no trabalho discursivo. Para a psicanálise todo ato de linguagem implica um sujeito
não só falante como desejante e, como nos dizem Kristeva e Rudelic-Fernandez, “o estudo da
enunciação é, hoje em dia, o ponto de encontro privilegiado entre a lingüística, as teorias da
linguagem e a psicanálise” (KRISTEVA e RUDELIC-FERNANDEZ em KAUFMANN, 1996,
p.670).
Nossa pesquisa está voltada para o discurso do médico e não para o discurso da
medicina entendido como o discurso de uma disciplina. 6 Nesse diálogo entre professores e
alunos, o que está em jogo centralmente é a formação da função médica no exercício da clínica.
Estamos interessados em investigar a formação dessa identidade médica, na qual professores de
Clínica Médica e Psicologia Médica estão envolvidos com essa tarefa a partir das falas dos
alunos sobre sua experiência clínica, que envolve pacientes e familiares, internos, residentes,
médicos não-professores, professores de medicina, enfermeiros, assistentes sociais, enfim todos
os membros de uma equipe de saúde de um hospital universitário. Cada um dos participantes
confronta suas hipóteses e pressuposições com as réplicas provocadas por sua fala, por sua
ação. O confronto entre os ideais de cada um dos participantes e a práxis está permanentemente
em questão nas discussões. As semelhanças e diferenças entre os participantes desse grupo
semiótico se expressam nos acordos desse auditório especializado, nas premissas e nos
argumentos com suas réplicas de maior ou menor intensidade de adesão ou mesmo de não
adesão.
A pesquisa se centra no discurso dos alunos enquanto revelador dos conflitos
experimentados no processo de apropriação do discurso médico. Estamos assim sendo
coerentes com a própria metodologia proposta para a disciplina eletiva, que constituiu o campo de
nossa pesquisa, na qual os alunos trazem as situações conflitivas, os temas relacionados à sua
experiência clínica, alvo de incerteza, dúvida e angústia para eles. Analisaremos, através dos
argumentos e réplicas, o discurso dos dois professores e o dos alunos em suas semelhanças e
diferenças na ação pedagógica, buscando identificar aspectos que facilitam ou dificultam réplicas
de adesão entre professores e entre professores e alunos. Cada professor e cada aluno têm suas
hipóteses em relação à função médica, ao ato médico, à formação e à prática médicas, enfim ao
6
Cf. distinção feita neste trabalho no capítulo “A medicina moderna e a ordem do discurso”, p.14.
55
que seja ser médico em nosso atual contexto histórico e social. Cada professor, no entanto,
argumenta e age conforme suas hipóteses sobre os alunos, ou melhor sobre o que supõe
pensarem os alunos e o outro professor. Os alunos também têm suas hipóteses - e em função
delas argumentam - sobre cada um dos professores. Tais hipóteses estão relacionadas,
sobretudo, às disciplinas que eles lecionam, aos papéis institucionais que eles exercem.
Teremos, portanto, também a oportunidade de investigar a demanda expressa em pressuposições
de alunos e professores de Clínica Médica referidas ao professor de Psicologia Médica que, no
grupo, ocupa um lugar central, em termos do campo transferencial.
OS QUATROS TEMAS
“Lutar com as palavras
é a luta mais vã,
no entanto lutamos
mal surge a manhã.”
Carlos Drummond de Andrade
Valorizar a discussão de casos clínicos nos parece relevante, pois coloca uma questão,
a nosso ver, central na formação da identidade médica. Concordamos com Byron Good7, quando
ele diz que as atividades de apresentação oral e escrita sobre pacientes realizadas pelos alunos
são “práticas formativas”, que não descrevem meramente a realidade, mas constituem formas de
construí-la: a construção do paciente como caso clínico, como um projeto médico - informações
apreciadas como relevantes para a elaboração do diagnóstico e das decisões terapêuticas (Cf.
GOOD, 1994, p.76-83)
Os alunos do 5º período iniciam a apresentação oral e escrita de casos clínicos
realizando anamneses e exames físicos os quais são apresentados, rotineiramente, aos
instrutores, professores de Clínica Médica, para serem avaliados. Nos 6º e 7º períodos, nos quais
se encontram os alunos sujeitos da pesquisa, eles passam a escrever nos prontuários suas
anamneses, exames físicos mas, sobretudo, as evoluções clínicas diárias. Começam, também,
a participar dos rounds da enfermaria e, mais eventualmente, de sessões clínicas dos postos ou
serviços, onde os internos e residentes são os principais relatores de casos clínicos.
Desnecessário dizer que nas apresentações habituais de casos clínicos, a pessoa do
paciente é essencialmente um lugar “geográfico” que sedia a doença e não um lugar enunciativo
ou de um agente narrativo.
As apresentações orais e escritas são, portanto, fundamentais, tanto na construção da
identidade médica do aluno, quanto na construção da “identidade” do paciente como caso médico
ou como objeto do olhar e do discurso médicos. A medicina constrói, assim, os seus objetos
como objetos de conhecimento na formação dos médicos, que informam a direção de um olhar
que pressupõe o que deve ser visto. Estas apresentações narrativas geram efeitos importantes:
estruturam o diálogo com o paciente em todo o processo clínico, da anamnese à alta, e
estruturam, também, o diálogo entre os alunos e outros estudantes ou profissionais da equipe de
saúde. E, evidentemente, esse diálogo, na hierarquia de uma instituição médica de ensino,
determina que os alunos, ao serem alvo de um controle disciplinar, aprendam falas, gestos
prescritos e proscritos.
7
Byron Good é antropólogo e conduziu extensa pesquisa sobre a formação médica na Harvard
Medical School, cujas conclusões a que tivemos acesso se encontram publicadas em GOOD, B.
(1994, p.65-87) e GOOD, B. e GOOD, M. (1993, p.81-107).
56
Assim, no âmbito de nossa pesquisa, a apresentação de um caso clínico se coloca
dialogicamente em relação aos outros modos de apresentação de casos em contextos mais
habituais durante a formação médica. É um sistema dialógico complexo porque o aluno, ao
apresentar o caso, tem como interlocutores o professor de Psicologia Médica (PSM), o professor
de Clínica Médica (CM-1, 2 ou 3) e os outros alunos; mas para além dos interlocutores sempre
presentes há os auditores presumidos que, como destinatários, são presenças imanentes e que,
portanto, se fazem presentes nos três discursos, que diferenciamos nesse grupo. Há ainda os
personagens do “mundo médico” - os pacientes, os familiares, os interlocutores do round, os
outros profissionais da equipe de saúde - freqüentemente citados nas falas, e os personagens do
mundo pessoal do aluno.
No contexto de nossa pesquisa foram objeto de discussão vários casos clínicos, sendo
que alguns, por privilegiarem a discussão diagnóstica, como veremos no 1º e 4º temas, se
aproximam mais e, portanto, dialogam de forma mais expressiva com o gênero narrativo cuja
estrutura convencional é uma tradição relevante na produção e transmissão do conhecimento
médico, conforme foi estudado por Hunter (1991).8 No 2º e 3º temas, os casos clínicos são
relatados sob a forma de fragmentos de situações clínicas, na medida em que objetivam a
ilustração de alguma questão do processo clínico que importa aos alunos.
Os temas, compreendidos como “ápices multideterminados” conforme o conceito de
Bakhtin, foram isolados em nossa análise, determinando uma perspectiva de interpretação que,
não pretendendo ser única, oferece a todos que a lerem a possibilidade de produção de um novo
texto, não verdadeiro ou falso, mas mais ou menos enriquecedor da leitura, colocando-se em jogo
a questão da equação pessoal na disponibilidade interpretativa de qualquer subjetividade, como
nos postula a psicanálise e a teoria da argumentação de Perelman. 9
O SOFRIMENTO PSÍQUICO
Extratos de análise retirados dos 2º, 8º e 9º seminários
Corpus: p.202-218; p.258-265; e p.266-273
O contexto
Esse primeiro tema se relaciona com o sofrimento psíquico, sua nomeação e apreciação
por estudantes no contexto do hospital geral, quando privilegiaremos a discussão sobre dois
casos clínicos: Seu W e Dona M.
Os alunos iniciaram o 8º seminário falando sobre “alunos com comportamento diferente”,
tendo se dado uma discussão controversa envolvendo o normal e o patológico em saúde mental e
o saber e o poder médicos. O estudante de medicina é formado, como todos os outros, numa
rede de relações de um poder disciplinar, no entanto, acreditamos que, por estar num processo
de apropriação de um saber que traz em si a questão da normalização, ele experimenta de uma
forma mais aguda, na instabilidade de seu momento de formação, a ambivalência do medo e do
desejo por esse poder que advém de um saber. Dessa forma, estão em jogo, não só o valor de
seu comportamento, com implicações na avaliação de seus professores e no seu reconhecimento
pelo grupo profissional por ele almejado, mas também, no limite, a questão de sua normalidade.
8
Kathryn Hunter, professora de teoria literária, trabalhando na University of Rochester School of
Medicine and Dentistry, no campo de literatura e medicina, realizou na década de 80 uma
pesquisa etnográfica sobre o uso da narrativa na produção e transmissão do conhecimento
médico.
9
As categorias da tipologia de acordos referentes a premissas e das técnicas argumentativas
conforme a Nova Retórica de Perelman (1996a) serão assinaladas em negrito ao longo da análise
apresentada neste capítulo.
57
Houve, desde o início desse 8º seminário, uma demanda por parte dos alunos em relação
aos professores, em especial à PSM, para que distinguissem nitidamente o normal do anormal,
até que CM-3, próxima à hora de deixar a discussão, resolve dar um diagnóstico com relação ao
aluno mais referido pelo grupo, e sua escolha recai sobre uma hipótese de diagnóstico
neurológico. PSM aponta, então, que o “evitar o diagnóstico psiquiátrico” não se dá apenas por
parte dos professores médicos em relação a alunos, mas também por parte dos alunos do grupo
em relação a pacientes, reintroduzindo o caso de Seu W a título de ilustração. No entanto, os
alunos não concordam que o caso de Seu W seja uma ilustração dessa regra, e reinicia-se a
controvérsia entre os alunos e PSM, cujo início se deu no 2º seminário, por conta da hipótese
diagnóstica de uma síndrome mental orgânica, levantada pela equipe médica responsável, ter
sido corroborada por PSM.
Seu W, um senhor de 72 anos, hipertenso, diabético, internado numa enfermaria de
Clínica Médica há mais de um mês, sendo investigado quanto ao sítio primário de um tumor
maligno, cuja metástase óssea na coluna vertebral produz dores que o restringem ao leito, foi
avaliado pela equipe responsável como apresentando “demência e labilidade emocional” o que
gerou uma prescrição de psicofármacos. Os alunos, em especial M6-1 e M6-2 que o
acompanham na enfermaria, mobilizados com a prolongada investigação diagnóstica que não
havia ainda possibilitado medidas terapêuticas, trazem o caso ao grupo, no 1º seminário, por
considerarem que “sonhou, já está tomando Haldol”. Do ponto de vista dos alunos, ao medicalizar
uma expressão de sofrimento do paciente, a equipe teria imputado a ele um diagnóstico
psiquiátrico, cuja medicação teria o efeito não só de acalmá-lo, mas calá-lo num sofrimento que
envolvia um protesto justo, tranqüilizando assim a equipe e, ainda, os outros pacientes, que
tinham seu sono perturbado pela expressão de sofrimento desse paciente. Como a pesquisadora
é, também, a parecerista responsável pelo posto clínico onde se encontrava o paciente internado,
esta foi pessoalmente à enfermaria avaliar o paciente junto com a equipe, inclusive M6-1 e M6-2,
a partir da demanda desses alunos. PSM considerou possível a hipótese de uma síndrome
mental orgânica, no caso uma demência vascular, embora tenha ponderado que o uso de Tylex
na dose empregada e a ansiedade do paciente por sua condição clínica e pelo tempo de
internação prolongado sem resultados terapêuticos deveriam estar importando nas manifestações
psicopatológicas de Seu W. Concordou com a iniciativa da equipe médica quanto ao uso de
Haldol em baixas doses, que trouxera alívio sintomático ao paciente, já que esta informava que o
paciente havia apresentado efeito paradoxal ao Diazepam.
No 2º seminário, em grande parte dedicado à discussão desse aspecto do caso de Seu
W, os alunos não concordam com essa hipótese diagnóstica, ponderando vários fatores que
estariam concorrendo para o sofrimento do paciente e, ao final desse seminário, PSM levanta
uma hipótese para compreender a reação dos alunos, mas essa discussão retorna no 8º
seminário. PSM, então, levanta outra hipótese, qual seja, o “evitar o diagnóstico psiquiátrico” pelo
quanto ele imputaria de dor ao paciente em função da “desqualificação”, do “estigma social” de
um diagnóstico psiquiátrico. Nesse momento do 8º seminário, a questão do diagnóstico
psiquiátrico passa a estar referida a pacientes. Dá-se então a controvérsia entre os alunos e
PSM, que parece ter ficado parcialmente resolvida, com a adesão de M6-1 e M7-4 à essa
hipótese de PSM, quando se inicia a discussão de um outro caso, Dona M, mas deve-se registrar
que M6-2, M7-1, M7-2, M7-3 e M7-7 haviam se mantido em silêncio. Após o 1º fragmento do caso
de Dona M, a discussão do caso de Seu W retorna. É importante destacar que Seu W já havia
tido alta quando realizamos o 8º seminário, sendo o móvel da discussão a compreensão da
apreciação dos alunos.
O caso da Dona M surge, então, como uma tentativa de diminuir a tensão conflitiva do
grupo, deslocando o conflito temporariamente para fora, para a cena da enfermaria, quando M7-7
vai buscar a coesão do grupo supondo uma adesão à sua apreciação do caso.
E o que se passa em nível argumentativo? Surge a enunciação de M7-7 “Até a propósito
... é muito continuidade disso do que a gente conversou hoje ... uma paciente que foi minha na
Hemato que é Dona M”, introduzindo o caso clínico de Dona M como um recurso ao caso
particular, onde temos um exemplo que se busca para fundamentar uma regra sobre a qual há
um certo desacordo, senão não se recorreria ao exemplo. Podemos considerar o caso da Dona M
como um novo exemplo, que sendo capaz de interagir com os anteriores, “permite especificar o
58
ponto de vista sob o qual os fatos anteriores deveriam ser considerados” (PERELMAN, 1996a,
p.404). Ao mesmo tempo, nesse contexto argumentativo, ao se aceitar discutir o caso particular,
há um acordo prévio referido à possibilidade de, a partir do recurso ao caso particular, se chegar a
uma generalização, no caso, a uma regra (PERELMAN, 1996a, p.399). A regra é a
desvalorização do sofrimento psíquico, “o pouco caso que se faz” nas palavras de M7-7, no 9º
seminário, ao dizer porque introduziu o caso Dona M no 8º seminário.
No diálogo sobre Dona M...
M7-7, a aluna que relata o caso, não está mais na enfermaria de Hematologia, onde a
paciente novamente se encontra internada. É importante destacar que a mobilização afetiva que a
relação com Dona M pôde despertar justifica o interesse de M7-7, o que está para além da
organização institucional das atividades. O mesmo pode ser dito de M6-1 em relação ao Seu W
que, no entanto, não tendo “administrado” tão bem seu tempo, leva “uma bronca” da R3, que tem
função de staff da enfermaria e de instrutora dos alunos, como podemos apreciar nesse
fragmento do 2º seminário:
M6-1 “Eu tomei uma bronca hoje de manhã, porque ontem eu não fiz a evolução... Olha o que
eu fiz ontem: eu evoluí esse cara aí eu falei assim: “exame físico não realizado”, no
prontuário. (RISOS) Eu sabia que eu não podia fazer isso. Aí tomei uma bronca, hoje, da ξM1.
Ela chegou pra mim hoje e falou: “não fez, manda alguém fazer, avisa, mas não põe no
prontuário”. Eu: “tudo bem, desculpe”. Porque estava todo mundo olhando pra mim como se
eu fosse um criminoso. Eu não imaginava que aquele negócio...
M7-6 Porque escrever no prontuário que o exame não foi realizado, parece que ninguém olhou o
paciente naquele dia.
[...]
M7-5 Uma das razões porque ele ‘tá internado aqui é porque ele tem que ser examinado toda
hora, entendeu? Por isso é que não pode...
M7-6 Tem que acompanhar ele.
M6-1 Sim, mas eu botei: “lamento, mas eu não...” (RISOS) Eu lamento não ter podido realizar. Eu
tinha que ir pra aula. Eu não sou o interno, eu não fico lá o dia inteiro. (RISOS) Eu lamento muito
não ter realizado, eu sei disso. Você acha que eu acho que não precisa fazer. (RISOS)
PSM Em tempo: não houve tempo pra realizar o exame físico. Mas por que não deu tempo, você
ficou conversando com o doente?
M6-1 Eu acho que eu perco tempo demais conversando. Não é que eu perco tempo. A minha
administração... O W, por exemplo, eu já tenho o maior plá com ele, entendeu, eu já consigo...
M7-1 Você ‘tá com dois pacientes?
M6-1 Pois é, esse é o meu problema. Eu mudei de leito com o W. Eu estava com o W, aí o
M6-2 passou a ser do W, porque a instrutora anterior ela rodava os alunos de dez em dez dias.
M7-2 É, esse é o esquema.
M6-1 Então eu rodei mas fiquei preso... Não porque eu fiquei preso, eu me interessei pelo caso
do W.
M7-6 Claro, isso acontece.
M6-1 E ‘tou interessado até hoje.
M7-2 Sempre acontece isso.”
O “esquema”, a critério do instrutor, que privilegia o conhecimento da doença em
detrimento da relação com o doente, roda os alunos de leito, por exemplo de dez em dez dias,
numa mesma enfermaria, não considerando que o aluno pode rodar “com” o paciente, como diz
M6-1. A presunção entre médicos de que se adquire maior experiência e conhecimento clínicos
quanto maior o número de doenças que se tem para diagnosticar e tratar - é conhecido o enfado
do qual se queixam vários médicos quando têm de tratar vários doentes com uma mesma
doença, em especial, em ambulatório de Clínica Médica - é o que, nos parece, fundamenta “o
esquema”, propiciando a uma norma que, no caso, pode se estabelecer sem ser necessária a
59
sua discussão, pois essa não ocorreu no âmbito do departamento de Clínica Médica sendo,
portanto, uma escolha de alguns instrutores.
“a passagem do que se faz ao que é preciso fazer, do normal à norma,
parece, para muitos, ser natural. Apenas o lugar da quantidade autoriza
essa assimilação, essa passagem do normal, que expressa uma
freqüência, um aspecto quantitativo das coisas, à norma que afirma que
tal freqüência é favorável e que cumpre conformar-se a ela” (PERELMAN,
1996a, p. 99) (grifos nossos).
Voltando ao 8º seminário, a M7-7 e Dona M, esta havia retornado do CTI, onde foi tratada
durante um mês em razão de uma sepsis, logo após o 2º ciclo de quimioterapia para leucemia
linfóide aguda diagnosticada recentemente, em sua primeira internação, quando M7-7 era a aluna
de seu leito.
M7-7 “...Estou na Pneumo. Aí fui ver a Dona M. Levei um susto. É uma paciente que mudou
completamente a fisionomia, eu não tinha visto ela quase no CTI, e apática, ela era uma pessoa
extremamente comunicativa, assim, em choque, eu acho, fiquei chocada.
PSM Em choque que você quer dizer ou chocada?
M7-7 Chocada, mau. E eu mais ainda. (RI)
PSM E você chocada também.
M7-7 Fui para casa, sonhei aquelas coisas todas. Hoje eu voltei lá, e igual, sabe. E ela
respondeu a mim, não está respondendo ao médico, ao residente, sabe, e comigo ela tentou
sorrir, e eu fiquei bem mexida com isso tudo, fiquei lá um tempão, depois fui conversar com o
residente. ... A gente começou a conversar e ele era o único residente que ela gostava um pouco
mais, ele falou assim: “ela nem respondeu a mim, ela não quis falar comigo”. A gente foi falando,
falando e ele falou assim: “é, porque eu não tenho coragem de continuar esse tratamento nessa
paciente, porque eu acho que é muito sofrimento, mesmo que ela saia dessa é muito sofrimento”.
Aí eu: “ah é”? Ele: “é, não tenho, mas está todo mundo querendo continuar”. O papo foi indo, ele
falou assim: “é, porque eu acho que a Dona M está deprimida”. Eu falei assim: “eu não acho, eu
tenho certeza que ela está muito deprimida, está muito triste”. “Ah, você acha?” Mas ele não
estava em nenhum momento mostrando que ele estava com certeza disso, ele estava muito
inseguro, parecia que ele estava falando uma coisa assim para mim que eu ía cair em cima dele.
PSM Deixa eu fazer uma pergunta: insegurança de conhecimento ou insegurança de ser legítimo
ele afirmar que ela está em depressão?”
PSM, ao fazer essa pergunta, enfatiza a questão dos valores na prática médica, que
importam na apreciação das reações dos pacientes e dos colegas, inclusive na realização ou não
de um diagnóstico psiquiátrico, muito mais vulnerável ao campo de significações e valores em
jogo nas situações clínicas num hospital geral do que outros diagnósticos. Isso gera um certo
impacto no grupo, até que M6-1 coloca a questão: “O que seria ser legítimo?” Uma regra é,
então, enunciada por PSM: “Em certas situações médicas, certos médicos ou estudantes têm
dificuldade de achar legítimo e, portanto, comunicar ao colega ... um sintoma ou um diagnóstico
ou nem uma coisa nem outra, uma expressão que diga do sofrimento emocional do paciente. ...
‘Você está falando disso com tantas outras coisas tão mais sérias: sepsis, câncer, CTI...’ ” As
réplicas de adesão se dão por parte de M6-1, M7-1, e M7-7, que nos diz:
M7-7 “Acho que foi exatamente isso que aconteceu, porque eu acho que ele se sentiu no direito
de falar para mim ... eu senti que ele chegou em mim porque ele sabia que eu tinha uma visão
diferente em relação a isso. Aí ele falou assim: “é, porque engraçado né, eu falei isso no round...”
- e olha que a Hemato é um grupo, que eu já falei aqui, que é fantástico na relação com o
paciente, nas piores patologias, nos piores esquemas de tratamento, os mais agressivos, os
mais traumáticos, eles conseguem dar um apoio, sabe, familiar, pessoal, incrível - ele, no round,
com a Dona M na frente, ele falou assim: “olha, eu acho que essa paciente está deprimida”. E
ele falou assim: “Na hora que eu falei isso no round, me ridicularizaram”.
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PSM Por isso que eu fiz a pergunta.
M7-7 “Na hora que eu falei isso no round me ridicularizaram”. Eu falei: “ai, que absurdo!” Aí
falaram - que absurdo - que isso aí é uma questão - essa foi a palavra que ele usou - ridícula. Eu
falei: “ridícula como?!”
PSM Vocês estão entendendo bem? O absurdo é terem ridicularizado. Eu não estou dizendo que
a paciente está deprimida ou não está, eu não sei.
M7-7 É a abordagem. Imagina! Ele falou assim: “ela acabou de chegar, ela ‘tá com mil
problemas orgânicos - ele falou que eles falaram - mil problemas orgânicos e remédios, ela deve
estar dopada”. Eu falei: “mas independente de ser problema orgânico, independente dela ter
tomado mil sedativos, essa paciente passou um mês no CTI! Você acha que uma pessoa...,
você não pode estar..., não sei se deprimida a ponto de você dar um Prozac, não sei, mas
alguma coisa, mas é uma paciente lógico que tem um componente emocional.”
Para Perelman, o ridículo desempenha na argumentação um papel análogo ao do
absurdo na demonstração e, nesse sentido, ele é a principal arma na argumentação. Uma
afirmação é ridícula quando entra em conflito, sem justificação, com uma opinião aceita, uma
regra habitualmente admitida. O orador pode até afrontar o ridículo, o que constitui para esse
autor uma prova de que a argumentação, diferentemente da demonstração, jamais é coerciva (Cf.
PERELMAN, 1996a, p.233-238). A “visão diferente” de M7-7, que possibilita o diálogo nos
termos relatados com o residente, é a presunção da legitimidade referida aos afetos de médicos
e pacientes em relação. M7-7, sensibilizada com Dona M e, também, com o residente, apresenta
a situação clínica no grupo pressupondo um acordo com seus interlocutores. Mas a pergunta de
PSM: “insegurança de conhecimento ou insegurança de ser legítimo ele afirmar que ela está em
depressão?” causou um efeito surpresa, desconsertando M7-7. Poderíamos supor o receio ao
ridículo pelo quanto a hierarquia de valores hegemônica, supostamente presente no round, possa
estar presente no grupo?
A questão da hierarquia de valores na prática médica, que sacrifica o valor qualitativo do
único, do singular, do precário, é habitualmente considerada sem conseqüências. Não se leva em
conta, por exemplo, que o médico residente poderia interromper o tratamento se essa decisão
fosse principalmente dele ou ele tivesse a última palavra, o que não é o caso, mas seria passível
de ocorrer, mesmo nessa estrutura hospitalar, como ilustram inclusive outros casos de nosso
material. E a paciente? Não poderíamos cogitar a possibilidade dela vir a interromper o tratamento
ou... Dona M voltou para o 3º ciclo de quimioterapia, como nos mostra o último fragmento sobre o
seu caso em nosso material. Mas essas questões, só agora levantadas, nos remetem ao
argumento pragmático que tem uma importância direta para a ação e cuja força retórica na
argumentação é lembrada por Perelman ao nos dizer que “certos autores quiseram ver nele o
esquema único da lógica dos juízos de valor. Para apreciar um acontecimento, cumpre reportarse a seus efeitos” (PERELMAN, 1996a, p.303). Mas esses efeitos estariam na escala do caso
individual e seu desprestígio, não raro, é argumentado contrapondo-se ao lugar da qualidade o
lugar da quantidade. O argumento pragmático habitual aparece na fala de M7-7:
“... Mas aquele paciente no CTI, que eles ‘tão tendo que armar um novo protocolo, que eles estão
discutindo, e percebendo que a partir da Dona M esse protocolo tem que ser mudado, eles não
têm tempo de pensar que ela possa estar extremamente deprimida.”
A questão do tempo é uma racionalização muito freqüente que reflete e refrata a
hierarquia de valores do mundo médico. Como nos diz Perelman: “O que caracteriza cada
auditório é menos os valores que admite do que o modo como os hierarquiza” (1996a, p.92). O
lugar da quantidade se confronta ao da qualidade: o trabalho com relação ao protocolo que
será útil a vários pacientes, o uso do tempo de forma a pensar questões diagnósticas ou
terapêuticas em relação a um maior número de pacientes tornado um conjunto homogêneo em
torno de uma categoria diagnóstica. A reação de Dona M, do residente, de M7-7, o valor do
qualitativo, do precário, do singular é, então, amplificado através de um argumento a fortiori:
61
M7-7 “... Eu falei assim: “é engraçado, então põe a mãe deles - eu falei isso mesmo - põe a mãe
deles um mês no CTI e faz um round aqui embaixo e fala que ela não vai estar deprimida. Ele vai
estar deprimido junto com ela.”
A possibilidade de enunciação dos sentimentos de perplexidade e angústia de M7-7
presentes em sua fala - “levei um susto”, “fiquei chocada”, “sonhei” - a discussão dos argumentos
colocando os diversos valores em jogo, legitima a questão colocada por M7-7 sobre a “depressão”
de Dona M, possibilita alguma elaboração e, portanto, a diferenciação entre a aluna e a paciente
também “chocada”, gerando efeitos em sua ação junto à Dona M, o que é melhor explicitado no
2º fragmento do caso, que abre o 9º seminário. Podemos supor que o médico residente, podendo
nomear o que estava se passando em sua relação com a paciente em termos apenas de um
diagnóstico exclusivamente referido ao estado da paciente - “depressão” -, em função das regras
na apresentação e discussão dos casos que importam nos acordos de um auditório
especializado, ficou mais limitado aos seus próprios recursos e a comunicações informais com
aqueles que, a seu ver, têm “uma visão diferente”.
No 9º seminário, em função da presença de CM-2 e de alguns alunos que não estavam
presentes no 8º seminário, M7-7 reapresenta o caso clínico, iniciando pelos dados anamnésticos,
a busca por atendimento médico, o diagnóstico, a evolução na primeira internação e a sua
apreciação sobre a pessoa da paciente e sua família. Sobre a internação atual, M7-7 destaca os
sintomas neurológicos, volta a falar do diálogo com o residente nos mesmos termos, pergunta a
CM-2 sobre as conseqüências da entubação, sobre a escara que Dona M apresenta e, após
relatar os quatro encontros, onde M7-7 buscou “ver qual era a reação dela”, ela própria conclui
sobre sua questão referida à hipótese de “depressão”:
M7-7 “...Tudo começou porque eu fui vê-la, porque eu não tive coragem de ir ao CTI vê-la. Aí, eu
fui vê-la na Hemato ... era outra pessoa fisicamente - eu nunca tinha visto paciente pós-CTI,
falam que muda muito, né - mas era outra pessoa, que eu reconheci através da irmã, que estava
e que era muito parecida com a Dona M que eu conheci e não aquela pessoa. E a Dona M
estava completamente apática, não respondia a ninguém, é, ela estava com uma tetraparesia,
estava deitada, totalmente restrita, e o que eu achei interessante que quando cheguei lá ... e todo
mundo foi falando: “ela não está respondendo, ela não está bem, não está nada bem” - ela tinha
chegado dois dias antes do CTI - e quando eu entrei eu vi que ela se manifestou de alguma
maneira pra mim, sabe, ela deu um olhar assim, eu cheguei perto, ela fez uma expressão que eu
vi que tinha comunicação, aí eu: ‘tá bem, Dona M?” Ela fechou o olho assim, sabe? Tipo: “não,
não ‘tou bem”. Depois, quando chegou o médico ou a enfermeira perguntou alguma coisa pra ela
- alguém, não sei quem foi que nesse dia chegou - ela não estava nem aí.”
[...]
M7-7 “...Quando eu voltei segunda-feira lá, eu entro na enfermaria, e ela ‘tá encostada, assim, já
está levantada, e quando eu entro: “Dona M!!” da porta assim. Aí ela falou assim: “M7-7” (FALA
SUSSURRANDO SEU PRÓPRIO NOME, IMITANDO A PACIENTE RESPONDENDO). Falou, sabe?
M7-2 Ela falou baixinho?
M7-7 Não, com a mímica: “M7-7” (SUSSURRANDO). Aí eu entrei, eu fiquei super emocionada
assim: “como é que a senhora ‘tá?” Fiz a maior festa. “A senhora ‘tá melhor, ‘tá ótima.” Aí ela fez
assim de que ‘tava melhor, sabe. Aí eu fiquei 40 minutos com ela, segurando a mão dela,
sentada assim, sabe: “‘tá sentindo dor?” E ela não estava me respondendo. Aí eu falei: “o que
que houve? A senhora está com dificuldade de falar? Aí ela: “é” (SUSSURRANDO). Aí eu: “por que
‘tá doendo?” Ela: “não” (SUSSURRANDO). Aí eu soube que era por causa da entubação mesmo.”
E M7-7 conclui:
M7-7 Dona M ‘tá melhorando a cada dia. Ela tem uma força, sem brincadeira, conversei com
ela: “você ‘tá com medo ainda? Como é que foi?” Ela não me responde, ela não faz frases. “Você
‘tá com medo ainda?” Ela fez que sim. “Mas você está com muita força, Dona M, ou não está?
Está com força?” Fez que estava. “Você quer sair logo daqui?” “Quero”.(BALBUCIANDO) Do jeito
que ela era.
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O desejo de certeza, a aspiração de se trabalhar apenas com categorias universais, o
que na clínica significaria poder resumir sempre os sinais e sintomas numa síndrome já
conhecida, aparece na expressão de M7-7 “eu nunca tinha visto paciente pós-CTI”, como se
houvesse essa entidade, e reaparece na fala de CM-2 ao tentar dar conta da pergunta de M7-7
sobre a possível entidade nosológica “polineuropatia devido a doença grave”.
M7-7 “...tinham pedido um parecer da Neuro pra ela. Estava pedindo assim: como apatia e
tetraparesia, e que a paciente tinha ficado no CTI durante 30 dias, tendo feito uso de curare e
micozan, pode ser?
CM -2 Midazolam.
M7-7 Midazolam. É o que?
CM -2 Benzodiazepínico de ação rápida. Dormonid.
M7-7 Ah, Dormonid. Então era esse o parecer, era esse o pedido. E o parecer é que ela ‘tava
com uma polineuropatia devido a doença grave. E que eu não achei nos livros.
PSM Não achou?
M7-7 Não achei. Por doença grave, não. Aí eu perguntei pros residentes e eles falaram que era
pelo traumatismo, pela questão do estado de sepsis, que ninguém sabia me explicar. Não sabia
nem se era reversível ou se não era. Você já ouviu falar disso?
CM -2 Especificamente dessa doença - polineuropatia por doença grave - certamente deve ser
uma coisa multifatorial, deve ter carências vitamínicas nisso, paciente que fica no CTI um mês
com aquela dieta de CTI, deve ter carência vitamínica, deve ter algum componente talvez
paraneoplásico da neoplasia dela de base, deve ter talvez algum componente de trauma. Deve
ser multifatorial. Polineuropatia de doente grave, não existe essa entidade nosológica.”
O ato falho, poder-se-ia dizer, de CM-2 ao trocar doença por doente, fala da complexidade
da clínica que nem sempre pode ser reduzida facilmente à taxonomia.
O poder disciplinar de que nos fala Foucault nas instituições modernas, dentre as quais o
hospital é exemplar, aparece, por exemplo, no relato do encontro entre a assistente social, a
aluna e a paciente:
M7-7 “...fiquei 40 minutos lá, eu até..., uma assistente social perguntou o que eu queria de
comida, pensou que eu fosse a acompanhante dela... (RISOS) Aí eu fiquei lá o maior tempão com
ela, e ela já ‘tava assim, sabe, pressionando a minha mão.
PSM Por que você achou que ela achou que você era acompanhante dela?
M6-2 Você não ‘tava de branco.
M7-7 Não! Eu ‘tava de branco, de casaco. Eu falei: “não, eu sou estudante”. Ela: “ah não, porque
você ‘tava com tanto carinho que eu achei que você fosse acompanhante”.
PSM Ah, foi a atitude de carinho.
M7-7 É.
PSM Vocês vêem como existem códigos implícitos na vida institucional. Para a moça da
alimentação gente de equipe de saúde não fica...
M7-4 Não tem carinho.
PSM ...com muito carinho. (JÁ RESPONDENDO A M7-4 QUE FALA AO MESMO TEMPO ) Com muito
carinho.
M7-7 Mas é porque não tem muito tempo também de ficar sentado ali dando a mão.
PSM A questão do tempo também.
M7-7 É. E da relação também. Só tive essa relação com ela porque ela foi minha paciente
durante um mês, né. Então... E era outra paciente.
PSM Uma paciente que solicitou de você, mobilizou...
M7-7 É ela me mobilizou desde o início.
PSM ...uma relação particular, aliás as relações são sempre particulares mesmo, singulares.”
O conflito entre pertencer ao grupo social de estudantes de medicina, futuros médicos,
cujo reconhecimento se dá através das falas, atitudes e gestos e responder à dimensão
transferencial na relação com a paciente se expressa. M7-7 justifica seus colegas médicos ou
profissionais da equipe de saúde que “não têm muito tempo de ficar sentado ali dando a mão”. No
entanto, não consegue se justificar razoavelmente - esteve acompanhando um mês a paciente,
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mas mobilizou-se desde o início; a paciente era uma outra pessoa, mas mesmo assim merece
40 minutos do seu tempo - pois o encontro com uma outra “fiscal” a confronta com sua falha na
auto-vigilância no contexto das relações instituídas. Como nos diz Foucault, no poder disciplinar
somos “fiscais perpetuamente fiscalizados” (1977b, p.158).
No diálogo sobre Seu W...
Após a apresentação, a título de exemplo, do caso de Dona M, a controvérsia entre
PSM e os alunos, em especial, M6-1 e M6-2 se esclarece:
PSM “...eu achei muito expressivo que saíram (DO 2º SEMINÁRIO ) vários de vocês dizendo: “então
eu deliro, então eu sonho, então eu alucino, então eu sou doido”. Eu digo: gente, a gente não
pode falar de maluquice - foi logo na primeira aula, na segunda aula - eu não posso falar de
maluquice que eles dizem que também são malucos, que coisa curiosa. Sabe?
M7-7 É verdade.
M6-2 Sabe o que eu acho daquele caso? Eu acho que a gente questionou isso sabe por quê?
Porque a gente achava, eu acho, que era o contrário. A minha revolta era a seguinte: então a
gente vai justificar com um quadro neurológico a depressão por ele ‘tar deitado há 50 dias, essa
era a minha revolta, na época.
PSM Ah! Você ficou com medo que eu, que você até escolheu para fazer disciplina de Reflexão
comigo, fosse reducionista, fosse virar para vocês e dizer: “olha gente, tudo que vocês estão
sofrendo junto com o doente, pelo que ele está manifestando ...
M6-2 ...fosse uma metástase.
PSM ...se reduz, se resume em três palavrinhas: síndrome mental orgânica.
M6-1 Foi isso que eu quis dizer pra você.
PSM Ia ser uma decepção na entrada da área do curso! É isso?
M6-2 É isso.
M6-1 Eu ‘tava protegendo, eu também ‘tava falando no sentido de proteger, exatamente...
M6-2 A questão do sentimento.”
Só nesse 8º seminário compreendi que a minha preocupação, como parecerista e
professora, de dizer da pertinência da hipótese diagnóstica e da prescrição farmacológica foi
compreendida pelos alunos como corroborando um trabalho médico que “simplificou” o sofrimento
do paciente e o próprio trabalho médico, o que acredito pode ser melhor compreendido se
levarmos em conta que pouco se fez terapeuticamente por esse paciente e isso constituía a
principal angústia e, portanto, demanda dos alunos, como do paciente. O paciente saiu de alta,
após 50 dias de internação, sem a caracterização e localização do tumor primário, com uma
orientação de realizar radioterapia em outro hospital público. Os diversos aspectos de seu caso
clínico foram trazidos ao grupo em vários seminários. No interjogo dos papéis institucionais,
convivendo com o sofrimento e limitações de várias naturezas, apesar de os alunos, por vezes,
terem dificuldade de aceitar certos limites em função de seu desejo e de seu desconhecimento,
são eles que, quando se dispõem, estão mais expostos ao convívio compartilhado com o doente
e seu sofrimento. E como “curar quando possível, aliviar freqüentemente, consolar sempre” não
parece ser uma máxima freqüentemente compartilhada pelos médicos, numa visão irônica, que
articula a fragmentação da profissão médica em suas especialidades e a organização do trabalho
médico com seus papéis institucionais compartimentados num hospital de ensino, os alunos se
dizem “os minipsiquiatras”. Se a desvalorização do sofrimento psíquico é a regra, aqueles que
com ele se importam podem ser apreciados como “os bobalhões da corte”, principalmente nesse
momento quando, a posteriori, compreendemos que nossa atuação deixou um vazio em relação à
expectativa do desejo dos alunos. Ao fim da discussão sobre Seu W no 2º seminário:
M6-2 “Ah! Isso aí foi legal. Ah, isso aí eu não contei. Pô, ele me pediu pra ligar - no dia eu até te
falei, lembra? (DIRIGINDO-SE A M6-1) No início do dia - antes de eu comentar o caso contigo
(DIRIGINDO-SE A M6-1) - eu acho que foi o que me motivou a falar essa história, ele falou assim:
“olha, liga...” - no dia antes da biópsia, da biópsia da coluna - ele falou: “pô, deixa eu falar, quero
64
falar com a minha esposa hoje, eu ‘tou preocupado com o negócio da biópsia, e quero pedir pra
ela trazer roupa e tal. Liga pra minha casa, anota o telefone, por favor, doutor, liga”. Aí eu falei,
pô, eu não posso ligar assim, vou pedir autorização, aí fui pedir. Aí ela falou: “não, é labilidade
emocional, não precisa ligar pra família não, deixa aí”. Aí, fui eu que...
PSM Foi a preocupação de vocês inicial aqui, vocês viram o grupo como ficou preocupado
quando eu comecei a...
M6-1 Não era labilidade emocional coisíssima nenhuma.
M7-2 Óbvio que não. O cara vai fazer uma biópsia, entendeu. É supernatural que...
M6-2 Ela falou: “se precisar mais tarde a gente pede pra...”
PSM Eu acho importante vocês entenderem o seguinte: quando eu entrei com a questão do
diagnóstico, se há uma síndrome mental orgânica, é porque isso tem uma importância no
raciocínio clínico, entende?
M7-2 (FALA AO MESMO TEMPO QUE PSM) Eu sei, mas qualquer pessoa que vai fazer uma cirurgia,
uma biópsia, fica assim.
PSM Agora, não é - isso que eu acho que é fundamental, que é o cerne pra mim, inclusive,
desse curso - você fazer diagnóstico, você encontrar organicidade em sintomas, não é botar uma
pedra em cima, entende? E nada mais do que o paciente diz, e ainda a família, tem qualquer
sentido. Afinal de contas vocês estão convivendo diariamente com essas pessoas, participando
de um processo clínico terapêutico, você ‘tá ali pra tratar alguém.
M7-6 A gente vê assim, às vezes interno, residente falando assim: “ah, essa enfermaria ‘tá
chata”. Porque ele já deu todos os diagnósticos, ‘tá terminando os tratamentos e eles falam que
a enfermaria ‘tá chata, como se fosse sei lá...
M6-2 A busca é pela doença, não é pela cura do doente.
M6-1 Exatamente, professora. É isso aí. ‘Tou revoltado.
M7-2 Mas olha só, PSM, uma coisa que eu fico preocupada...
PSM Isso aí é muito sério.
M7-2 Porque eu no começo era muito emotiva também, lembra?
M7-6 É.
M7-2 Eu não podia ver ninguém sentindo dor, que eu chorava não sei o que tal. Aí, agora, outro
dia, eu ‘tava na M6, a paciente morreu, eu ‘tava fazendo aquele negócio do ambu lá, ela morreu,
e eu..., não mudou a minha alteração. Depois eu fiquei me questionando, eu não era assim
quando eu entrei na faculdade, entendeu, eu me emocionava muito fácil, entendeu, e agora ‘tá
morrendo e eu ‘tou! Entendeu?
M6-2 Você hoje tem o estudo, né?
M7-1 Você acostuma.
M6-2 Isso é normal.
M7-2 Então eu ‘tou com medo de mudar a minha mentalidade, e passar...
M7-6 E passar a ficar assim.
M7-2 Será que eu vou ficar assim: só vendo doença, só querendo saber se é o vírus tal ou esse
ou esse ou esse, entendeu?
M7-1 Eu acho que a própria equipe faz a gente mudar. Porque você chega e fala: “ah...” Eu ‘tou
na Nefro agora, e todos os pacientes são crônicos, daí você chega e fala assim: “ah, o paciente
‘tá com algum...” - porque os pacientes da Nefro tem alguns que tem umas alterações
neurológicas, então: “ah, o paciente ‘tá se queixando disso”. “Ah, isso aí é da uremia dele”, eles
sempre falam “não, isso aí é do problema dele”. Não param pra conversar, não param pra ver o
que que ele tem, se a dor é por isso mesmo se a dor não é, entendeu? Não, não deve ser por
isso mesmo. Como é crônico, tudo que ele tem eles botam no mesmo quadro.
M7-2 Ou então: “ela chora muito”. Olha o que falam pra mim: “ela chora muito”, a minha paciente.
E não quer mais saber.
M6-1 Eu tenho medo de alguém da equipe que é superior a mim chegar pra mim e dizer: “ó, pára
de conversar aí e vamos começar a fazer exame físico, vamos começar a evoluir o doente”.
M7-1 É verdade. Eu também tenho.
M7-6 É cobrado que a gente não tenha muito envolvimento.
M7-2 É cobrado sim. Eu fui falar assim: puxa mas ela ‘tá aqui há dois meses e ninguém resolve
nada. Aí começa: “Não porque na Doença de Crohn parará...” Ninguém me escuta, entendeu?
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M6-2 Mas é cobrado, é cobrado de uma forma tão linda, que para a maioria das pessoas isso
não é. Porque todo mundo senta cara e conversa e fala: “pô, mas tem que escutar o paciente”.
Todos eles falam:
M7-6 Mas aí é blá, blá, blá.
M6-2 “Você tem que escutar o paciente, você tem que..., não, o paciente é fundamental. O M6,
você é o M6, você é aquele cara que tem o contato”. Mas na hora de discutir contigo ele não quer
saber o que o paciente falou não, mas ele bate o discurso. O discurso é este, o discurso é
bonito.
M6-1 É como se fosse uma parte da formação isolada, entendeu. Nessa fase que vocês sabem
menos clínica, menos medicina...
M7-2 Pois é. Quando chegar no Internato você não vai mais conversar com ninguém.
M6-1 Você vai ser aquela figura que vai estabelecer uma relação melhor, que vai falar: “oi e aí
meu amigo...”
M7-2 É uma função, é uma função. Quando eu chegar no Internato eu vou ter outra função.
M6-2 É toda a discriminação da tarefa do hospital. Nós somos os minipsiquiatras.
PSM Minipsiquiatras!
M6-1 Nós somos os bobalhões da corte.
M6-2 Todo mundo aqui: “pô, não quero conversar contigo não, mas pô tem o M6”.
O 11º seminário, tem início com os alunos convocando M7-7 para contar o recente gesto
de Dona M que, ao internar-se para o 3º ciclo de quimioterapia, pediu que a chamassem e
entregou-lhe um presente pelo Dia dos Médicos. Nessa ocasião, em 25 de outubro, morre Seu
W, em sua casa, de embolia pulmonar. M6-2 telefonou-lhe para saber notícias em dezembro,
quando os seminários já haviam terminado. M6-1 e M6-2 relatam o fato em seus trabalhos de
conclusão da disciplina.
O CORPO EROTIZADO
Extrato de análise retirado do 6º seminário
Corpus: p.243-257
O contexto
Falava-se do lugar da Psicologia Médica na assistência, quando em especial M7-4 e M75 discordavam quanto à pertinência da solicitação de parecer para dois pacientes de sua
enfermaria - Seu A, capoeirista, diabético que corria o risco de uma amputação dos dedos do pé
e Dona Y, obesa com 140 kg. A controvérsia dos alunos ilustra uma questão cotidiana num
hospital geral quanto à solicitação do trabalho de profissionais de Psicologia Médica. Na
discussão do grupo, argumentos sobre a intensidade do sofrimento decorrente da condição
clínica ou de procedimentos terapêuticos ou, ainda, sobre a presença de uma suposta
psicopatologia - portanto, argumentos centrados no doente - se opõem a argumentos referidos à
dificuldade do médico de entrar em contato com o sofrimento de seu paciente, de valorizar suas
palavras, provendo um cuidado não só referido à doença - argumentos, portanto, centrados na
função do médico e suas motivações ao solicitar a Psicologia Médica. A colocação de PSM, que
aponta para a existência de uma relação entre médicos e pacientes cujas dificuldades são objeto
da Psicologia Médica, é seguida por falas de M7-5, M6-1 e M6-2 em acordo sobre a existência de
dificuldades dos profissionais na assistência a seus doentes, quando então M6-2 introduz sua
experiência recente de realizar o primeiro toque retal.
No diálogo sobre a experiência do toque retal...
O acordo inicial e a controvérsia
Apesar de haver um acordo inicial em relação ao “diagnóstico” de que estudantes e
profissionais têm dificuldades na relação com seus pacientes, o que propicia M6-2 “dar um
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exemplo claro de nossa falta de acompanhamento”, quando M6-2 começa a falar de sua angústia
relacionada à homossexualidade, que a experiência de realização do primeiro toque retal em seu
paciente mobilizou, surge, de imediato, uma controvérsia. A controvérsia básica parece estar
relacionada ao direito de M6-2 de atribuir outros sentidos à experiência do toque retal que não
apenas um sentido técnico, e isso ser legítimo nesse contexto. O valor do exame como
procedimento de investigação diagnóstica e a hipótese diagnóstica implícita de um câncer de
próstata no caso singular não se encontram em discussão. Também o valor da aprendizagem
desse exame pelos estudantes e o valor de tal exame ser realizado “de rotina” em homens acima
de 45, 50 anos, em função da importância do diagnóstico precoce do câncer de próstata e de sua
prevalência, são referidos ao longo da discussão e não são objeto de controvérsia. A controvérsia
se resolve quando os participantes do grupo chegam a um acordo que se expressa na presunção
de que o toque retal não é realizado com a freqüência devida em consonância às normas
técnicas: a escolha de realizar ou não o toque retal não é determinada apenas por verdades
médicas, mas também por significados inscritos na cultura e na história individual, passando a
experiência de M6-2 a ser ressignificada como uma ilustração do comportamento freqüente de
estudantes e médicos expressos no grupo.
A dinâmica e as estratégias argumentativas
M6-2 enuncia através do argumento de autoridade de uma mulher - a R3 (que
sabemos, por discussões anteriores, ser a autoridade máxima em sua enfermaria) - um
argumento que contribuiu para sua decisão de realizar o exame “por fazer parte da sua formação
médica”. A pertinência do exame para o paciente e a necessidade de aprendizado desse exame
por parte dos estudantes são argumentos pragmáticos com ênfase na relação meio-fim
explicitamente apontados por M6-2, M6-1 e M7-2:
M6-2 ...“o meu paciente... resolveram fazer um toque retal nele... um paciente que tem câncer,
chegou lá emagrecido 20 quilos em seis meses”
M6-1 “Faz parte do exame físico.”
M7-2 “Homem a partir de 40 anos tem que fazer.”
No entanto, M6-2, em parte, não queria fazer o exame, ou melhor, viveu a dificuldade em
função da significação homossexual veiculada no gesto. Inicialmente aponta que soube de “uma
historinha homossexual” do paciente. M6-1, M7-6 e CM-1 apontam que a referência à
homossexualidade diz respeito tanto ao paciente como a ele nesse contexto. No entanto, M6-1 e
M7-6, alunos homens, apontam a questão da homossexualidade, em solidariedade a M6-2, dando
sua adesão a M6-2 que introduz a questão. Já CM-1 e as alunas mulheres M7-2 e M7-4 tentam
desqualificar M6-2.
CM-1 inicialmente usa como argumento de autoridade “a incompetência do
competente”, caso curioso, como nos diz Perelman, em que a força do argumento se dá através
de uma pretensa incompreensão ou ignorância. CM-1 ao perguntar à M6-2: “Foi feito em você ou
no cara?” “Deprimido por quê?” expressa como: “A incompetência do competente pode servir de
critério para desqualificar todos aqueles que não temos razão alguma de acreditar mais
competentes do que aquele que se confessou incompetente” (PERELMAN, 1996a, p.352).
PSM, referida ao acordo do grupo de discutir as dificuldades dos
estudantes/profissionais, usa de seu prestígio de autoridade para qualificar a expressão e o
entendimento do conflito de M6-2. Amplia-se o espaço para as ansiedades com relação à
homossexualidade reaparecerem na fala dos alunos homens do grupo.
M7-6 “Rolou um clima.”
M6-2 ...“pode ser até, até um machismo... eu ficava tocando e olhando a cara do cara, olhinho
dele brilhando assim. ... E eu me senti invadindo o cara assim com o dedo.”
As alunas mulheres M7-2 e M7-4 se opõem à M6-2 e, na sua tentativa de desqualificação
e conseqüente redução a uma dificuldade singular de M6-2, M7-2 repete razões técnicas e M7-4
se oferece como modelo iniciando um argumento quase -lógico:
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M7-2 “Que isso, gente. Isso faz parte da prática médica. ... qualquer homem acima de 40 anos
tem que fazer toque retal.”
M7-4 “Espera aí. O primeiro toque que eu dei numa mulher, eu não fiquei pensando que se ela
era homossexual, se eu era...”
M7-4 só pôde trazer sua experiência num argumento de comparação, a partir da
consideração de si e de M6-2 como partes iguais de um todo - os estudantes de medicina sendo a igualdade uma redução que só é possível a partir da negação da diferença sexual: a
reação do aluno de medicina de qualquer sexo realizando exame dos órgãos genitais ou áreas
erógenas do corpo de um paciente de mesmo sexo.
CM-1, em adesão à M7-4, contribui para o argumento quase-lógico ao comparar as
experiências de M6-2 relativas ao primeiro toque vaginal e ao primeiro toque retal, promovendo
mais uma redução: a reação deve ser igual com pacientes de sexos diferentes.
CM -1 “Você ficou tão mobilizado quando fez toque vaginal quanto quando fez toque retal?”
M6-2 “Pô, na hora eu fiquei meio bolado. Se eu fiquei tão mobilizado quanto? Não, não. ... Foi
tranqüilo.”
M7-4 “Ah, então, esclareceu. O problema é trabalhar este seu problema.”
M7-4 conclui, assim, o argumento quase-lógico.
Como nos diz Perelman ao falar do uso de uma argumentação quase-lógica, uma das
possibilidades em jogo é contrapô-la a um discurso considerado passional se prevalecendo do
prestígio de um raciocínio rigoroso. No entanto, a argumentação quase-lógica só se realiza a
partir de reduções que permitem inserir os termos do discurso num esquema formal, que serve de
molde, de modo a transformá-los em termos comparáveis, semelhantes, homogêneos e é justo
sobre essa redução que poderá incidir a controvérsia (PERELMAN, 1996a, p.219-221).
M6-2 se utiliza, então, de um argumento de autoridade, como nos diz Perelman, a
autoridade da “opinião comum” ou a do “grande número”, ao procurar saber o que pensa “a galera
da enfermaria” (colegas homens) de forma a reverter o até então “seu problema” em um problema
“normal” e, com isso, a posição de desqualificação em que se encontrava. A estratégia de M6-2
sensibiliza CM-1, que desloca a crítica, “a falha”, para a “formação” dos alunos e para “nossa
medicina”, mudando sua estratégia argumentativa do argumento ad personam para o
argumento pelo modelo numa tentativa didática de fundar o real.
CM-1 deixa assim a posição de crítica e desqualificação em relação à M6-2 que, a nosso
ver, exemplifica uma tentativa de normalização de um desvio temido na formação de um médico,
qual seja uma intensidade de erotização da relação médico-paciente com conseqüências na
realização da função médica. CM-1 passa, então, a explicar o que se passou na experiência de
M6-2 e o que deve se passar em experiências como essa quando se tem uma “postura mais
profissional”. Nesse momento, CM-1 apresenta o corpo do paciente como um corpo biológico
deserotizado, o suposto corpo ideal com que se encontrarão os estudantes de medicina ao
completarem esta “fase de transição de uma postura mais juvenil para uma postura mais
profissional.” O corpo do paciente como um objeto construído pela medicina, não só preexistente
no conhecimento, mas também construído na formação dos médicos.
CM -1 ...“O toque retal, eu acho que vocês precisam encarar isso da mesma forma que vocês
estão palpando um fígado...olhando outros orifícios tipo ouvido, boca, nariz, etc. Quer dizer, você
não ‘tava invadindo o cara, e nem o fato do cara ser homossexual, ele certamente não estava
com olhos brilhando. [...] É como você pensar que o toque vaginal é um momento de prazer da
mulher. [...] Não é nada disso. O fato do cara ser homossexual, ele não tem prazer de receber
um dedo no, no reto.”
M6-2 Não foi bem assim.
CM -1 Então isso - não, eu sei - porque às vezes essa fantasia passa na cabeça...
PSM Passou na cabeça.
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CM -1 ...do estudante de Medicina, da maioria dos estudantes de medicina, não é só com você.
... você mesmo falou que perguntou pra galera, e você certamente não contou aqui as piadas que
devem ter surgido disso etc., etc., que eu já até imagino.
M6-2 O pessoal perguntou: ‘teve coragem?’ Nego perguntou se eu tive coragem.
CM -1 Não sei se é um ato de coragem não.
M6-2 Não, hoje, eu acho que já estou mais apto a tocar novamente. Até porque eu fiquei feliz...
Eu fiquei até tranqüilo pro meu próximo toque, porque eu consegui reconhecer todas as estruturas
que me foram propostas antes do toque.”
Sem dúvida a fala de CM-1 foi um reconhecimento decisivo no sentido de término de
argumentos ad personam por parte de vários dos participantes do grupo em relação à M6-2.
M6-2 afrontou o ridículo ao confessar uma experiência que é contra uma norma: a investigação e
a conseqüente manipulação do corpo do paciente pelo médico é um meio cujos fins são
justificados por um valor absoluto se pensarmos no valor da preservação da saúde e da vida. No
entanto, dificilmente os valores absolutos mantêm esse estatuto quando estamos em situações
concretas, contingentes, históricas, em que outros valores entram em jogo a decidir escolhas. No
caso, não podemos negar a relativização do fim em si, em se tratando de um estudante numa
primeira experiência nesse procedimento e sua razoável incerteza com relação a sua
possibilidade de consecução da finalidade do exame para o paciente. Nada sabemos do que foi
dito ao paciente sobre esse exame. Há referências por parte do aluno M6-2 de seu aprendizado
com o residente em relação ao exame como procedimento, mas não há referências de um
aprendizado desse mesmo aluno com relação à comunicação da equipe médica com o paciente
sobre o ato de realização desse exame. O contexto de relação da equipe com o paciente, no qual
o aluno se insere, é significativamente apreciado também pelo aluno. A experiência cotidiana
nesse hospital nos informa, com freqüência, de dificuldades dos médicos e estudantes de
informarem seus pacientes de diagnósticos de doenças incuráveis. Estamos diante de uma
situação clínica de provável diagnóstico de câncer e da necessidade de toque retal como um dos
procedimentos diagnósticos. Se supomos que, na avaliação do aluno, esse paciente não
mereceu da equipe uma atenção respeitosa, podemos imaginar que isso possa ter contribuído
para aumentar a experiência de sofrimento, numa relação de poder, onde M6-2 não relata nenhum
dito do paciente, mas nos diz do olhar do paciente que, para ele, não passou despercebido:
CM -1 ...“ele certamente não estava com os olhos brilhando, não é?
M6-2 Podia ‘tar chorando.”
Acolhida a angústia introduzida por M6-2, ela circula no grupo:
CM -1 “Quando você pára para pensar, justamente está aí uma clara falha da nossa Medicina:
você tem os doentes internados, que estão no hospital e não tem toque retal, não tem exame
neurológico feito de rotina, não tem exame articular feito de rotina. Então, isso são exames que
deveriam ser - e exame de mama e fundo de olho - isso deveria ser feito, porque isso é feito em
um monte de lugares, inclusive em alguns hospitais em São Paulo se exige que o residente, o
interno, quer dizer, que você faça o exame clínico completo do doente.
[...]
M6-2 ...Antes, o residente que ia fazer o toque me chamou e falou: “você vai olhar isso, isso,
isso e isso, isso, isso. Tenta ver.” Pô, eu consegui - acho - relacionar tudo que me foi proposto,
mas, agora com certeza...
PSM Como se isto tivesse dado um sentido...
M6-2 É deu um sentido. Eu acho que se eu tivesse botado o dedo ali e não tivesse entendido
nada, eu teria ficado pior.
PSM Deu um sentido a este gesto e distinguiu de um gesto apenas...
M6-2 Promíscuo.
PSM ...sexual. Olha: promíscuo!? Sexual. Olha como entra...
M6-2 Promíscuo. Eu joguei todo o meu, todo o meu preconceito em cima.
M7-4 Eu acho que o problema mais sério é porque, tipo assim, eu nunca fiz um toque retal aqui,
na Faculdade, num homem. Mas eu acho que o problema é que, é chato, porque é uma situação
difícil pra aprender, porque pro paciente é constrangedor: chega um grupo, você vai aprender a
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palpar o fígado, tá, vai o grupo todo mundo palpa, agora o toque retal é uma, acho que exige
um...
M7-5 Da mesma forma que você não faz exame ginecológico...
M6-1 Um preparo maior.”
A lembrança da “rotina” de um “exame físico completo” por CM-1 e do “grupo” de alunos
no aprendizado da semiotécnica por M7-4 são a expressão de um desejo que implica na
despersonalização do gesto, evitando a angústia de um estudante/médico autor de um toque retal
num dado paciente, bem evidenciada no sentido “promíscuo” introduzido por M6-2.
A questão da intensidade da erotização na relação é colocada por M6-2 num contexto
onde a questão de gênero havia sido destacada por PSM e a questão da autoridade médica por
CM-1:
M6-2 “E você pode levar a coisa pra um outro lado que é... Você fala assim: você faz um exame
físico, como médico, profissional, num paciente, ausculta, faz tudo, e aí você fica, você perde
esse seu profissionalismo na hora do toque. Isso é uma forma de ver a coisa. Você se sente
embaraçado. Agora, outra forma de ver que eu acho é a seguinte: quando você vai fazer o toque,
você se vê como profissional, e ao contrário, você banaliza, pô, o exame físico de uma paciente.
Será que também não é tão complicado, se você for avaliar a moral que ‘tá te levando a
questionar um toque, você pegar e abrir a blusa da paciente, botar o seu esteto? Isso você faz.”
CM-1 insiste que essas questões trazidas pelos alunos apontam para uma falha em sua
formação, no sentido do ensino de uma postura profissional. M7-5, então, ilustra com uma
situação onde um médico realiza o toque retal e o grupo conclui, enfim, a presunção:
M7-5 “Eu acho que não é só estudante, não. No ambulatório uma vez eu vi isso, uma situação
ridícula, não sei se era um residente ou era médico já, ele constrangido de fazer um toque no
paciente, e porque era ambulatório, maior movimentação e tal, e acho que não era especialidade
dele - ele era dermatologista e ia fazer o toque no cara, um negócio que não tinha nada a ver com
a especialidade dele - então, ele virou assim: “ô, seu fulano - sem saber como se comportar com
o paciente - senhor fulano vira aí, a gente vai ter que fazer uma contramão agora”. (RISOS)
CM -1 Não é à toa que o toque retal não é feito de rotina nas enfermarias. Uma das coisas, não é
uma coincidência, uma das coisas é, é justamente talvez uma dificuldade cultural e a outra coisa
é o achar que não é necessário fazer. Porque, se as pessoas achassem que é tão necessário
quanto tirar a pressão arterial no seu exame físico, talvez seja até mais necessário, porque a
pressão arterial a enfermeira tira e você olha na papeleta, as pessoas no fundo não acham que o
exame retal é necessário. Por que acham isso, juntam as coisas todas culturais, etc. etc. etc.,
não sei, não é o momento, mas isso é uma postura de século passado...
M7-4 Ah, mas tem coisas que tem dificuldade.
CM -1 ...no sentido de que não é necessário um toque retal. Imagina! O câncer do colo retal ele é
um dos mais prevalentes. E o retal especificamente, do colo retal, é um dos maiores percentuais
que existe, e você, e você não toca.
M6-1 Isso é uma realidade.
CM -1 Isso é uma realidade.”
Em seguida, PSM introduz a outra verdade de que falava o grupo: o corpo erógeno.
Valoriza a fala de M6-2 com relação ao risco que a negação da sexualidade pode levar: a
“banalização”, a “vulgarização” do exame físico, cuja “moral” é o desrespeito ao paciente com
conseqüências para a relação médico-paciente.
O efeito da fala de PSM se faz sentir em especial em CM-1, que passa a falar, com maior
liberdade, das fantasias e da sexualidade entre estudantes, médicos e pacientes. A instância de
repressão se desloca para a Faculdade de Enfermagem - a “Anna Nery”, quando CM-1 pode então
fazer uma crítica quanto ao seu excesso.
Na análise desse 2º tema - o corpo erotizado - podemos apreciar como o relato de uma
experiência referida ao corpo simbólico no exercício de um saber sobre o corpo biológico pôde
ser compreendido como um “desvio”, um comportamento “não-conforme”, não só por um professor
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de Clínica Médica como também por alunos. Na estratégia argumentativa utilizada, a presença de
argumentos ad personam pode então ser compreendida: o problema não está no ato, mas na
experiência que é posta em discurso, o que gera uma desqualificação que incide sobre a pessoa
que realiza a enunciação e não sobre o ato. O professor de Clínica Médica ao representar mais
legitimamente o discurso hegemônico, o que se relaciona à sua experiência de comprometimento
com a formação de uma identidade profissional, lidera o momento da discussão, no qual uma
sanção normalizadora está em jogo através de argumentos ad personam, mas alguns alunos se
associam a ele, outros não, mostrando também a instabilidade, a mobilidade, a dinâmica enfim
das relações de poder numa microprática, quando o poder não só “diz não”, não só reprime, mas
opera nas suas dimensões positiva e negativa, que atravessam a teia de relações engendrando
realidades. Assim, o que num primeiro momento foi controversamente tomado como um
comportamento “não-conforme” passou a ser um recurso ao caso particular, uma ilustração, que
esteia uma regularidade já estabelecida, embora não facilmente aceita, qual seja a não realização
do procedimento na freqüência indicada pelas normas técnicas.
A IDENTIDADE TÉCNICA
Extrato de análise retirado do 5º seminário
Corpus: p.221-242
O contexto
Falava-se, a partir da experiência no ambulatório, de situações onde os alunos se viam de
alguma forma envolvidos com a “responsabilidade” da comunicação do diagnóstico de câncer ao
paciente. Percebe-se um efeito de surpresa na fala dos alunos, sugerindo a negação da morte,
que é repetidamente confrontada nos vários relatos, nas várias situações vividas. Dos diversos
exemplos citados, destacamos o que nos pareceu mais expressivo na ilustração de um momento
reconhecidamente difícil para alunos, pacientes e médicos, exemplos da trágica vulnerabilidade
diante dos impasses da clínica, das defesas mobilizadas e das difíceis escolhas.
M7-4 “A gente ‘tá fazendo ambulatório de Pneumo, aí aconteceu uma coisa dessa comigo e com
a @M1, a gente ‘tá no ambulatório do &H4. Chegou um paciente, quer dizer a primeira vez dele
a gente que fez, e aí foi pedido - tinha um RX com uma massa - foi pedido a broncofibro
(BRONCOFIBROSCOPIA), pesquisa de células, e aí tinha células malignas, e ele já veio com o
laudo na mão. Aí a gente atendeu ele, né, porque a gente sempre atende sozinho, e foi a gente
que atendeu a primeira vez. Depois vai discutir com o &H4. E a gente: “&H4, e agora?” Aí ele,
aí o &H4: “e agora ele vai ser encaminhado pro ambulatório de Onco-pneumo”. A gente: “e agora
o que que a gente faz!?” Aí o &H4: “não, ‘pera aí”. E o paciente viu que a gente, eu e a @M1,
que a gente ‘tava assim nervosa, sem saber o que fazer, né.
PSM Essa conversa se passou dentro da sala?
M7-4 Não, dentro da sala não. Fora, mas ele via que eu às vezes olhava pra @M1, ela olhava pra
mim. Ele viu que a gente ‘tava constrangida sem saber o que falar. Aí o &H4 chamou o filho
dele...
PSM Constrangidas não, embananadas.
M7-4 É embananadas, completamente embananadas. Aí o &H4 chamou o filho dele e aí o
senhor falou assim: “ora, @M1 e M7-4, vocês não precisam ficar assim nervosas, eu sei que eu
‘tou com câncer”.
PSM Os pacientes ajudam, né?
CM -2 Ele deu a notícia pra vocês.” (RISOS)
A reação não esperada do paciente, que rompeu com a presunção do que seja o
normal da reação de pacientes na iminência de receber o diagnóstico de um câncer num
contexto de um hospital público é o fato mais enfatizado no relato, apontando para a
singularidade do paciente e da relação estudante ou médico-paciente. A resposta do paciente
contrasta com a resposta do professor a quem os alunos pediram explicitamente ajuda. A
71
primeira resposta do professor, que não satisfaz os alunos, indica a despersonalização dos
cuidados e a burocratização da assistência, relacionada à forma de organização do trabalho
médico, no caso docente-assistencial, onde o professor supervisor está no caso fora do campo
intersubjetivo da relação médico-paciente: “e agora ele vai ser encaminhado pro ambulatório de
Onco-pneumo.” Mas esse ato do professor não leva a uma reação em que poderíamos pressupor
uma crítica ao professor, implicando uma perda na expectativa dos alunos de atendimento à sua
demanda, o que nos é compreensível se pensarmos que os alunos já se encontram situados num
campo de relações complexo. As alunas, então, insistem, sublinhando sua condição de sujeito,
implicitamente referidos à relação com um outro, o paciente : “e agora o que que a gente faz!?”
O professor então compreende que a demanda das alunas está referida ao campo intersubjetivo
da relação médico-paciente, quando sugere que elas aguardem, enquanto ele, sem a presença
delas, falaria com o filho do paciente. A tensão doente/doença, estruturante do ato médico,
intensamente vivida por estar em jogo uma morte anunciada, é desfeita de forma inusitada pela
possibilidade singular do paciente na relação com as alunas “constrangidas, embananadas”,
propiciando o compartilhar da difícil verdade, produzindo-se o desfecho da situação.
A valorização da diferença reafirmando a relação singular, que implica a criatividade do
aluno ou médico na relação assistencial, as trocas simbólicas, que acontecem nessa estrutura
de relações pedagógica no aqui agora do grupo, são o percurso possível, num campo onde o
verdadeiro e o falso, o certo e o errado só nos dizem de um desejo de certezas que, no caso,
levaria à construção de estereótipos - o paciente com câncer; o médico como aquele que tudo
sabe e o paciente ser passivo, impotente - como se tudo pudesse estar dito e escrito em
manuais. Mas voltemos à cena do 5º seminário, no ponto em que havíamos interrompido, quando
PSM através de outra ilustração reafirma o compartilhar por parte de pacientes do valor da
relação médico-paciente e de suas dificuldades.
PSM “Vocês sabem que isso me lembra um paciente da Santa Casa quando eu era estudante,
que dizia assim: “nós não podemos desanimar os médicos”. Sempre que você chegava ele
procurava te dizer que ‘tava bem e tudo, “porque nós não podemos desanimar os médicos, sabe
doutora”. Então, realmente, há pacientes que têm uma possibilidade de ajudar aos estudantes ou
médicos, mesmo quando eles estão numa situação tão difícil e dolorosa, e aí a gente vê também
como que as pessoas reagem de formas diferentes. Não necessariamente reagem como a gente
imagina que alguém reagiria, esse alguém tem muito a ver conosco, né, porque não existe este
alguém em tese, como que alguém reage a um diagnóstico de câncer? Cada um é um, tem lá a
sua história. Aí a gente vê o quanto que a gente imagina, e dá poder a nossa imaginação, acha
que o que a gente imagina realmente vai acontecer. É bom porque a realidade nos surpreende, as
pessoas nos surpreendem, esse paciente, por exemplo, resolveu o problema pra vocês. O &H4
já ia falar com o filho dele?
M7-4 É, o &H4 tinha chamado o filho dele pra conversar, só que nisso ficou eu e a @M1 com o
paciente que era a questão, a pessoa em jogo, sem saber o que fazer, entende.
PSM E o &H4 também não conhecia o paciente, porque ‘tava supervisionando vocês?
M7-4 Exatamente.
PSM Não tinha um contato prévio com o paciente.
M7-4 Exatamente. Sei lá, acho que num caso assim quem ia ter que dar era, sei lá, a gente, sei
lá.
PSM As pessoas mais ligadas ao paciente eram vocês mesmas.
M7-4 É. Foi horrível. Foram minutos assim de total tensão.
PSM É uma situação difícil mesmo. Vocês vão pro ambulatório, vão pras enfermarias, mas
não..., paradoxalmente vocês não imaginam muito que isso vai acontecer com vocês. De repente
acontece.”
A discussão do grupo segue em relação a dar ou não “plantão fora” das unidades
hospitalares da Faculdade. Nesse momento, os alunos alternam a angústia relacionada à culpa
referida a ações inexperientes que possam trazer dano aos pacientes, e a angústia de adoecer e
morrer em conseqüência do exercício da prática médica, através, por exemplo, da contaminação
pelo HIV. Os alunos se sentem “desprotegidos” e a experiência de desamparo é temporariamente
acalmada por CM-2 que, respondendo à intensidade da demanda, usa do argumento de
autoridade para realizar uma orientação.
72
CM -2 “Olha só, concordo contigo. Acho que a hora - vocês ‘tão todos no 6º período (vários
corrigem: 7º) 7º período - eu acho que a hora, não é hora pra vocês darem plantão fora. Todo
mundo que me pergunta do M6: “eu devo trabalhar no pronto-socorro do Souza, do Andaraí?” Eu
digo que não. Vocês não estão preparados para darem plantão. Vocês estarão preparados depois
que vocês tiverem sido treinados o suficiente, para serem jogados a..., né? Quando é que é isso?
Eu acho que é a partir do 8º período pelo menos, que você já terminou a Clínica Médica, pelo
menos já terminou toda a Clínica Médica. Acho que tem que sair sim, acho que não pode ficar só
aqui na ilha da fantasia, tem que sair sim, mas tem que sair no momento certo. Sair antes, você
além de estar colocando a vida do doente em risco, você também ‘tá aprendendo errado. E a pior
coisa que tem é aprender errado. Você fazer a coisa errada mas você sabendo o que é certo,
é uma coisa. Sabe, eu ‘tou fazendo isso aqui errado porque eu não tenho isso, não tenho aquilo,
‘tou fazendo o melhor possível. Mas eu sei qual é o ideal. Outra coisa é você ver o errado e
achar que isso é o certo, que isso é o normal de todos os lugares. Então eu acho que você,
que ela ‘tá correta, não é hora de dar plantão não.”
Ao afirmar que a aquisição de conhecimento e o treinamento obtidos até, no mínimo, a
conclusão das disciplinas de Clínica Médica possibilitam o aluno distinguir “o certo”, “o normal”,
“o ideal” do “errado”, CM-2 lança mão de um argumento baseado na estrutura do real,
introduzindo em relação ao ato médico e à prática médica a noção de um ideal, que para
Perelman é uma ligação de coexistência entre essência e suas manifestações, que exprime
o modo normal como as coisas se apresentam, e tem como noções correlativas as noções de
“falta” e “abuso”. (Cf. PERELMAN, 1996a, p. 372-377)
CM-2 se utiliza também de uma metáfora, “ilha da fantasia”, um tipo de argumento que
fundamenta a estrutura do real, analogia condensada no dizer de Perelman, onde se dá a
fusão de um termo do “foro” a um termo do “tema”, termos esses que não devem ser
considerados subentendidos e “apenas o contexto permitiria uma escolha, raramente desprovida
de toda ambigüidade e de toda indeterminação”. (PERELMAN, 1996a, p. 455)
Os pares “dever de casa/vida real”, “dentro/fora”, “seguro/ desprotegido” já vinham sendo
utilizados pelos alunos ao falarem da presunção de um contraste entre a experiência médica de
estudantes nas unidades hospitalares da Faculdade e no sistema público de saúde em geral.
A idéia de “essência”, de um ideal referido à formação profissional realizável pela escola
médica e a recomendação sensata de CM-2 são aceitas pelos alunos, mas uma outra dimensão
de seu desamparo não pode ser atendida, dado que há uma outra “essência” em jogo, que os
alunos enunciam com o “acidente”. O inesperado, o incontrolável e o trágico da condição humana.
Os limites da “ilha” não garantem a fantasia de imortalidade, não protegem da angústia de
desamparo vivida pelos alunos confrontados com sua vulnerabilidade humana. As fronteiras da
“ilha” nem mesmo garantem, de forma indubitável, o aprendizado do certo, como se verá na
controvérsia mais a frente, mas a “falta” só está sendo objeto de discussão, e não a “essência”,
porque espera-se que algo se possa fazer, nesse momento inclusive, através do dizer.
A angústia dos alunos tem sua expressão máxima quando do relato da morte do irmão
de uma aluna, num pronto-socorro de um hospital público universitário, em conseqüência de um
acidente de carro, quando no dizer do grupo:
“Ela na situação da vida real vendo o dever de casa ... vendo os estudantes olhando pro irmão
dela como ela olhava pros pacientes ... aquele olhar de curiosidade ... E ela quase largou a
Faculdade ... E ela viu ... que não adianta nada fazer nada disso, que mesmo estudando todo
mundo não salvaram o irmão dela.”
A questão da identificação com o paciente e de uma certa estruturação defensiva, que
permita a diferenciação da dor do outro sem uma negação da vulnerabilidade e da mortalidade, de
forma a não cortar o laço de identificação com o paciente, é apontada por PSM e seguida da
pergunta tema, que se fará presente durante todo o restante dessa reunião do grupo:
M7-2 “E, PSM, será que essa frieza que muitos médicos criam, será que é pra isso? ... Parece
que, conforme as pessoas vão ascendendo na profissão, interno, residente, staff, não sei o
73
que lá, parece que vão ficando mais assim técnico, assim preocupados com os órgãos,
lembra que eu te falei isso, não estão mais preocupados com o paciente em si . Será que é
uma defesa, você não quer se envolver sentimentalmente com uma vida que pode estar
acabando? Ou então... Porque a maioria dos médicos são tão frios, não sei o que, não ligam
pro estado emocional do paciente, ficam mais preocupados se o rim dele ‘tá funcionando,
se o fígado não sei que, entendeu? Será que vai acontecer isso com a gente? É essa a minha
preocupação. Eu não quero ficar assim.
M7-3 Se você vai ficar fria também.
M7-2 Pois é. Eu vou ficar fria também? Ah! (INTERJEIÇÃO NO SENTIDO DE DESCASO , COMO SE
ESTIVESSE DIZENDO: E NÃO VOU NEM ESQUENTAR COM ISSO !) Entendeu?
M6-2 Frígida.
M6-1 É tudo relacionado. (RISOS)
PSM O que vocês acham?
M7-2 Eu acho, eu não quero ficar, então eu acho que não, eu... Mas a maioria dos alunos que
não ‘tão aqui participando destas aulas...”
Da frieza, como defesa em relação à morte, enunciada como uma razão primeira por M72, passa-se rapidamente à frieza com relação à vida, mas não sem conflito, como veremos na
controvérsia logo a seguir. Como dizem os alunos: “fria ... frígida, é tudo relacionado”.
É só a partir do contexto que podemos surpreender o sentido analógico da expressão
“frígida” que confere força argumentativa através do uso de uma metáfora. A metáfora da
sexualidade “fria/frígida” nos remete a indiferença/impotência e nos faz pensar na força de
determinação inconsciente na histeria, quando a oposição de satisfação como resposta ao desejo
de um outro leva à frustração vivida no encontro, a impossibilidade de um prazer compartilhado.
Como a psicanálise nos mostra, a estruturação de defesas com relação ao sofrimento
não é uma escolha consciente. Estariam os alunos expressando também isso através da
metáfora “fria/frígida”?
Diante da presunção, aceita como premissa, da “frieza da maioria dos médicos”,
estruturada coletivamente numa identidade eminentemente “técnica” referida ao profissional que
detém um conhecimento e realiza uma ação exclusivamente voltados para a doença, M7-2
expressa ainda a opinião de que o que caracterizaria os alunos desse grupo, diferentemente da
maioria, seria o fato de eles não só reconhecerem mas, sobretudo, valorizarem a dimensão
simbólica de uma prática que envolve o sofrimento de pacientes, estudantes e médicos, o que os
tornaria sensíveis à demanda de sofrimento dos pacientes, com conseqüências na sua ação junto
a eles.
M7-2 expressa o desejo, a suposição de uma homogeneidade dentre os participantes do
grupo, que seria uma garantia de não existência de maiores conflitos no grupo. No entanto, logo a
seguir teremos um embate, quando os alunos buscam as diversas razões que se apresentarão
vinculadas às difíceis escolhas que se operam na prática médica, movidos pela dúvida do que se
passa e se passará com cada um, ou seja, quem são como estudantes e quem serão como
médicos.
Duas controvérsias: “Meu Nome é Ninguém”
Uma mãe em início de trabalho de parto à procura de uma maternidade para parir.
Até então a discussão evoluía num clima marcadamente de solidariedade, afinal, todos
tinham sua experiência de angústia e dor ancorada em exemplos da prática médica para contar.
A controvérsia mais expressiva dessa reunião surge quando, após terem aceito a questão
enunciada por M7-2, havendo um acordo portanto sobre a presunção de que a maioria dos
estudantes e médicos ficam frios no decorrer de sua formação ou prática profissional, a presença
no grupo de alunos calouros e veteranos - os M6 e os M7 - possibilita um exemplo em que M7-4
“já ‘tava muito mais fria” do que M6-1 e M6-2, em função das situações já vividas pelo maior
tempo de formação, num mesmo contexto de aprendizado - a prática em plantões de Obstetrícia
na unidade hospitalar da universidade.
74
A controvérsia escolhida é importante não só pela relevância do tema - a presunção da
frieza dos médicos e a busca de suas razões e suas conseqüências, mas porque ela incide
sobre o processo da formação da identidade profissional numa complexa rede de relações. A
primeira razão apresentada, de que os médicos se defendem da angústia relacionada à morte, o
que os coloca como seres também vulneráveis diante do sofrimento imposto pela natureza, é logo
cotejada por uma segunda razão, qual seja, a do sofrimento imposto pelos homens aos outros
homens, no caso, a dor do abandono infligida à paciente, a “frieza” conflitiva de M7-4, em plena
“ilha da fantasia”. Inevitável lembrarmos de Freud a nos dizer:
“O sofrimento nos ameaça a partir de três direções: de nosso próprio
corpo, condenado à decadência e à dissolução, e que nem mesmo pode
dispensar o sofrimento e a ansiedade como sinais de advertência; do
mundo externo, que pode voltar-se contra nós com forças de destruição
esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de nossos relacionamentos
com os outros homens. O sofrimento que provém dessa última fonte
talvez nos seja mais penoso do que qualquer outro. Tendemos a encarálo como uma espécie de acréscimo gratuito, embora ele não possa ser
menos fatidicamente inevitável do que o sofrimento oriundo de outras
fontes” (FREUD, [1930[1929]] 1976, p.95).
M7-4 “Eu acho que você se acostuma.
M7-2 Se acostuma, isso é verdade.
(OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE)
M7-4 Eu acho, eu faço estágio na Maternidade Escola. Eu acho que as primeiras vezes que eu vi
um, um natimorto, sabe, ou um abortamento ou, sabe, um neném prematuro, muito prematuro
nascer inviável.
M6-1 Ou uma mãe ter que ir embora porque não tem vaga. (RISOS)
M7-4 Ou uma mãe ter que ir embora... Exatamente, eles (REFERINDO-SE A M6-1 E M6-2) viram
isso, uma mãe ter que ir embora porque não tem vaga, eles ‘tavam rodando na matéria eletiva, eu
já ‘tava lá há muito tempo...
PSM Uma mãe que está prestes a parir?
M6-2 E a gente é que tinha que mandar a mãe embora.
PSM Vocês viram o vídeo “Meu nome é ninguém”?
M6-1 É igualzinho.
M6-2 Passa direto lá na Maternidade.
PSM Não é cinema, é realidade.
M6-1 É realidade.
M6-2 E é de dez anos atrás. (REFERINDO-SE AO TEMPO DO VÍDEO )
M7-4 No começo eu ficava com isso, eles viram. No começo, quando tinha que mandar uma
paciente embora... A chefe do plantão, um dia, chegou pra mim e disse: “M7-4, você não pode
ficar internando paciente assim, porque se você interna uma paciente com 2cm no único leito que
tem e aí chega uma com 8cm e aí, vai ficar aonde, no chão?” Ela chegou pra mim e falou isso.
Então, quando..., teve uma vez que a gente mandou, né, uma paciente embora, eles ficaram
assim revoltados...
M6-1 Porque às vezes ainda tem leito.
M7-4 Mas você tem que controlar os leitos, porque se você não controla, realmente é horrível,
mas o que que você vai fazer? Entende? Tem que ter isso. Eles ficaram assim revoltados e eu
acho que eu já ‘tava muito mais fria. Eu acho que...
PSM E manda embora numa boa, quer dizer, numa boa, eu quero dizer o seguinte: sem saber
para onde vai?
M6-2 A gente orienta pra vários lugares e manda procurar. (RI)
PSM E manda a paciente procurar?
M7-4 E mais, não tem como...
PSM Não tem uma assistente social que telefone?
M6-2 Não. De noite?!
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M7-4 Não. A Maternidade Escola não tem assistente social...
M6-1 Nem ambulância.”
Os alunos discordam quanto a escolha de mandar ir embora uma paciente em início de
trabalho de parto (2cm de dilatação), reservando o único leito disponível para uma possível
paciente em franco trabalho de parto (8cm de dilatação) que poderia vir a chegar nesse plantão.
M7-4, orgulhosa de sua experiência obstétrica como acadêmica, desejosa de
reconhecimento pelos pares e com prazer de ser veterana no grupo, é porta voz do discurso dos
médicos da cena do plantão na maternidade, fazendo seu o argumento pragmático que decidiu
uma ação.
O argumento pragmático transfere para a causa o valor das conseqüências. No caso
duas conseqüências se contrapõem. Na consideração de uma paciente com 8cm de dilatação,
cuja existência, se não hipotética, não permitiria escolha, pois imporia a imediata realização do
parto pelos médicos, e como nos diz Perelman “não se delibera quando a solução é necessária e
não se argumenta contra a evidência”, é o valor que é transferido para a causa da ação ou o
motivo da escolha. Mas a paciente com 8cm tem uma existência hipotética, provável, ao passo
que a paciente com 2cm não. O lugar da qualidade, que se refere ao valor do único, no caso,
destacando-se o sentido de irreparável, irremediável, é colocado em confronto com o lugar do
existente, que afirma a superioridade do que existe, do que é atual sobre o possível, e uma
escolha se impôs. A decisão tomada e a ação decorrida é defendida por M7-4, apoiada pelo
argumento de autoridade dos médicos obstetras. M6-1 e M6-2 discordam e recebem a adesão
da autoridade PSM no grupo.
M7-4 vulnerável à critica por sua escolha, nesse auditório, procura deslocar a critica para
as psicólogas do local, ilustrando como nem esses profissionais de saúde, profissionais
dedicados ao sofrimento psíquico, acolhem o sofrimento da paciente. Ao contrário, tamponariam
as demandas das pacientes, calando seu sofrimento e o sofrimento possível dos profissionais. As
frases supostamente reconfortantes são avaliadas pela aluna como “um apelo ao esquecimento,
uma incitação a suprimir pela segunda vez o filho morto. Uma incitação a perdê-lo de novo, não
mais na realidade, mas ‘no coração’ ” (NASIO, 1997, p.13). Mas M7-4 não escapa à
desvalorização que seu ato implica em relação à sua pessoa:
M7-4 “...as psicólogas de lá são mais furadas do que nunca. (RISOS) Ó, 2ª feira, falando sobre a
psicóloga da Maternidade Escola: uma paciente tendo neném...
M7-2 Uma denúncia.
M7-4 Denúncia, denúncia, porque olha só. A paciente... Eu ‘tava na sala de parto, lá são duas,
né, eu ‘tava acabando de fechar uma, e a outra interna - a @M2 - estava fazendo, ia começar a
fazer um outro parto.
M6-1 Já estava fazendo os procedimentos.
M7-4 Ham?
M6-1 Nada.
M7-4 Aí, só que o outro parto era de um...
PSM (REPETINDO) Você já ‘tava fazendo os procedimentos, você mesma ‘tava fazendo?
M6-1 Luluzinha (APELIDO DE M7-4 E NOME DE PERSONAGEM DE REVISTA EM QUADRINHOS PARA
CRIANÇAS) é a maior obstetra da...
M7-4 Claro que não. Parteira! (EM TOM DE RAIVA, REFERINDO-SE À GOZAÇÃO - INAUDÍVEL - QUE UM
COLEGA FEZ ) (RISOS) Aí... Só que o neném, tipo assim era um feto morto, entende, e a mãe ‘tava
chorando. Sabe o que que a psicóloga ‘tava falando? “Não chora não, você é tão nova”.
M7-2 Você vai poder ter um monte! (IRONICAMENTE) (RISOS)
M7-4 Olha só que absurdo! Eu acho que isso, nem em M4 quando a gente teve aula com a &M2
(PROFESSORA DE PSICOLOGIA MÉDICA), era a primeira coisa que a gente aprendeu a nunca fazer é
mandar o paciente não chorar, porque “não chora não, você já tem filho” ou então “você pode ter
mais”. A psicóloga... Então, não tem nada lá, não tem nada. Elas vão embora. (RISOS) O que que
vai fazer? Não podia fazer nada ali.”
76
A desvalorização feita à M7-4 incide sobre o seu desejo de reconhecimento. M7-4 é
particularmente interessada em obstetrícia, sendo a aluna do grupo que, por ter esse interesse,
mais conhecimentos e experiência tem nessa especialidade, numa fase da formação onde os
alunos, de um modo geral, não têm uma participação destacada em especialidades. Ao não
atentar para suas escolhas, limitando-se a reproduzir o argumento de autoridade enunciado em
sua prática, M7-4 é vista pelo grupo como uma quase profissional com recursos mais limitados,
afeita eminentemente ao fazer. O uso da palavra “parteira” em oposição à “obstetra” nesse
contexto, nos parece, refere-se à oposição técnico x médico, apontada por M7-2 ao enunciar a
presunção.
M7-4 justifica seu ato com o argumento baseado na estrutura do real evocando a
noção de “falta” com relação à “essência” da prática assistencial cuja razão de ser é o sofrimento
do doente, buscando a solidariedade do grupo através de um ideal compartilhado. Nesse
momento dá-se uma atenuação da controvérsia, sobretudo, entre M6 e M7-4, a partir da
identificação de M7-4 não só como parte de uma equipe obstétrica, mas também como parte do
grupo de estudantes de medicina e desse grupo.
A enunciação de M6-2, que introduz a questão da dor associada à quebra da onipotência,
indica a possibilidade de algum sofrimento, um sofrimento suportável e, portanto, uma menor
intensidade de negação do sofrimento, abrindo a possibilidade de uma ressignificação para o tão
conhecido “se acostumar” na prática médica. Há mais de uma possibilidade ao “se acostumar”,
tornar-se “fria/frígida” ou “dolorido”, dependendo do vivido na experiência médica, quando deixa-se
de ser “virgem”.
M6-2 “Eu acho que existe uma diferença entre se tornar frio e se tornar dolorido. É aquilo...
Chega uma hora que você se acostuma à dor também, porque levando tanta pancada, você
assimila melhor aqueles golpes. Isso é diferente de se tornar uma pessoa fria.
M7-1 Eu também acho.
M7-4 Mas aquele dia na Maternidade vocês me acharam fria.
M6-1 Eu passei por um episódio...
M6-2 Mas era a primeira vez, a gente era virgem.
M7-4 Mas vocês chamaram, vocês falaram: “como é que pode?!” Eles ficaram revoltados comigo.
(DIRIGINDO-SE A PSM)
PSM Como é que você mandou uma paciente embora com 2cm!”
M6-1, pressionado pela angústia de sua experiência, já sinaliza a sua entrada, e nos trará
uma outra ilustração relacionada à presunção enunciada por M7-2, quando então se dará uma
segunda controvérsia, onde M7-4 se oferece novamente como porta-voz dos médicos, já que a
controvérsia anterior apenas se atenuou, deixando-a angustiada com a apreciação do grupo em
relação a sua pessoa e seus atos e, ao mesmo tempo, com sua identidade profissional em
formação nesse campo de forças.
Um filho morto: um aborto ou um natimorto? A questão técnica dos 500 gramas.
Essa controvérsia nos parece exemplar de como a angústia frente à morte pode gerar
defesas, que se estruturam num discurso, cujos argumentos nos mostram o uso do
conhecimento médico como certezas universais e inquestionáveis, livrando o sujeito de sua difícil
e, por vezes, dolorosa experiência, quando suas escolhas são vividas não como escolhas, pois a
complexidade da estruturação defensiva, no nível individual e no coletivo, se institucionaliza sob a
forma de normas, mais ou menos explícitas, de cuja obediência depende o reconhecimento do
sujeito por seus pares. O defender-se da morte e do sofrimento levando a um nível de
insensibilidade alteritária é o alvo dessa controvérsia.
M6-1 “Eu passei por um episódio assim: eu e aquele obstetra - como é o nome dele?
M7-4 O &H6.
M6-1 O &H6. O &H6 fez o parto, morto o neném. Lembra uma vez uma mulher? (REFERINDOSE A M6-2) Aí o cara tirou o neném, botou lá, foi embora.
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M7-4 E o &H6 é um cara assim super, super-humano, assim ele é... Ele faz parto
humanizado.
M6-2 Nego pegou pra pesar, porque se fosse menor que 500 gr...
M6-1 Vai pro lixo!
M7-4 Não.
M6-2 Menor de 500 gr vai pro lixo.
M7-4 Mas ele não falou... Duvido que o &H6 falou isso.
M6-2 Não, nego perguntou quanto é que era, quanto é que era. Aí eu perguntei: “mas qual é a
diferença”. Aí eles falaram: “ah, menor de 500 gr não tem que fazer certidão de óbito”.
M7-4 Aí não é, não é natimorto, é aborto.
M6-2 É aborto. (ECOANDO A FALA DE M7-4)
M7-4 Ah, mas é questão técnica. O &H6 não falaria isso assim.”
M7-4 preocupada, como assinalamos, com seu ato no plantão de Obstetrícia e seu ato
de discurso no grupo, no sentido da repercussão sobre a apreciação de sua pessoa pelo grupo,
consegue, nessa controvérsia, usar a técnica mais eficaz, segundo Perelman, de ruptura à
interação ato-pessoa, qual seja a consideração do ato como expressão de uma verdade médica
- “é questão técnica”. A independência de um ato em relação ao que se pensa de uma pessoa só
é possível quando esse ato expressa um fato ou uma verdade que, enquanto são reconhecidos
como tais, escapam ao domínio da argumentação (Cf. PERELMAN, 1996a, p.353-361).
A necessidade de qualificação - “parto humanizado” - pressupõe uma parto não
humanizado, o que nos remete, nesse contexto, à oposição técnico x médico, e nos lembra uma
crítica à medicina atual em que ela estaria se tornando uma medicina veterinária. Como nos diz
Perelman, “a simples qualificação, ao evocar a essência, pode fazer compreender quanto a
realidade se afasta dela” (1996a, p.376).
Lembro da minha perplexidade ao ouvir os alunos sobre os 500 gramas e a certidão de
óbito10 e a questão técnica que se destaca quando, no relato, todos os envolvidos vivem a morte
de uma criança. Mas o peso do sentimento mantém a discussão e o questionamento, ficando
implícita a relativização do valor da norma nesse contexto.
M6-1 “E eu fiquei conversando com ela algumas coisas. Fiquei conversando assim vários
minutos com ela. Perguntei em que situação tinha ocorrido aquela gravidez. O que que ela
achava daquilo tudo. E ela ‘tava chorando, sabe, muito, e no final do nosso papo ela parou um
pouco de chorar. Ela, ela..., eu falei até isso assim: “você ainda é uma menina nova, você não
pensa em ter outros filhos?” (RISOS)
PSM Mas aí vocês estão apontando uma esperança.
M7-4 Mas aí é diferente.
M6-1 E ela falou assim: “nunca mais quero ter filho na minha vida, nunca mais quero fazer isso,
nunca mais quero passar por essa situação”. Eu falei: “calma, calma”.
M7-4 É diferente de “não chora porque você pode ter outros filhos”. Você chora, mas você pode
ter outros filhos.
M6-1 Até que ela chegou pra mim e falou assim: “eu quero ver, quero ver, cadê meu filho, cadê
meu filho?” E já tinham levado. O &H6 naquele dia não ‘tava muito legal, ele tirou, enrolou num
10
Legalmente é facultado ao médico fazer ou não declaração de óbito em caso de perda fetal
precoce ou intermediária consideradas aborto. As perdas fetais precoces se caracterizam por
idade gestacional até 20 semanas, peso de até 500 gr, estatura abaixo de 25 cm. As perdas
fetais intermediárias se referem à idade gestacional entre 20 a 27 semanas, peso entre 500 e
1000 gr, estatura entre 25 a 35 cm. Os critérios são independentes em função da possibilidade de
desconhecimento da idade gestacional por parte do médico que realiza o parto. Cf. GOMES, H.
Medicina Legal, 32ª ed. atualizada por Hygino Hércules, 1997, pp. 42-3.
78
pano e levou. E ela queria ver o filho. Até que uma das obstetras, eu fui falar isso com ela, me
explicou até que tinha uma síndrome psiquiátrica, que se a mãe pedisse pra ver o filho, você
tinha que levar, mostrar o filho pra mãe, que existia uma síndrome, uma doença lá, psiquiátrica
que ela ia ficar achando que foi ela..., que o filho ‘tava vivo ainda.
M7-4 Eu acho que é assim: que o próximo filho que ela for gerar que ela pode ficar achando que
era este, entendeu? Tipo assim, quando ela..., não conseguir desassociar uma coisa da outra.
PSM Isso tudo é fantasia. (RISOS) O que existe, em termos de síndrome psiquiátrica, em
puérpera, que tem uma freqüência grande, é a depressão puerperal, e menos freqüentemente a
psicose puerperal, mas que não tem relação se a pessoa teve um natimorto ou se teve um bebê
saudável. Agora, o que ela ‘tava querendo, me parece, se referir é que talvez ficasse mais difícil isso não é só pra filho - mas pra filho, enfim, a puérpera é uma pessoa que está vivendo..., o ser
saiu de dentro do corpo dela, era uma parte dela, então mais no sentido de facilitar que não haja
uma negação, que pode até haver durante algum tempo, sem que seja nenhuma síndrome
psiquiátrica típica. Não é isso. Agora isso vocês vêem em outros pacientes, em outro momento
também, pedindo pra ver a pessoa que morreu. Isso faz parte de uma elaboração do luto, de
uma realização de que aconteceu a perda.
M6-1 Aí eu mostrei. Não sei se eu tinha essa autoridade de pegar a criança e mostrar.
M7-1 Ninguém mostrou?
M7-4 Mas o certo é perguntar se quer ver...
M6-1 Não, eu perguntei!
M7-4 ...e preparar a mãe - pelo menos foi assim que me ensinaram - tipo assim, você tem que
perguntar se quer ver, e preparar a mãe, antes de mostrar, que aquele neném ‘tá morto, que ele
não vai ser um neném bonitinho igual os outros nenens. Tipo assim, não com estas palavras,
mas preparar, porque de repente ela acha que o neném ‘tá morto mas é um bebê Johnson e ela
vai ver aquele ratinho morto.
M6-2 Eu sei que não tem muito a ver, mas me falaram que na Emergência eles fazem o anti-HIV
de rotina, assim não pergunta ao paciente.
CM -2 Qual Emergência, aqui?
M6-2 É.
CM -2 Isso não é permitido.
M6-2 Obrigado, essa era a minha dúvida.”
Quando ouvi que a decisão de levar o filho morto à mãe, que acabara de parir e queria vêlo, se pautava na existência de uma síndrome, uma doença psiquiátrica, sofri um desconforto
súbito cuja lembrança me ajudou a dar sentido a minha expressão: “isso tudo é fantasia”. Como
um obstetra precisa recorrer a um conhecimento do patológico num momento tão
demasiadamente humano!?
Que saber/poder médico é esse? Pergunta M6-2. Um saber que se pretende totalizante,
um poder autoritário, que lança M6-2 no conflito entre o desejo e o medo desse saber/poder, o
que o faz convocar CM-2 para saber dos limites desse poder, e agradecer formalmente, indicando
que seu alívio só pode advir da existência da lei. CM-2 representa a lei e ao dizer que reconhece
a lei, o limite, realiza essa função simbólica, mesmo que não seja de fato assim - o que vai se
dizer em outra discussão mais à frente, a partir do retorno a essa pergunta sobre o anti-HIV por
parte dos alunos (7º seminário). Nesse momento, a não realização do anti-HIV sem
consentimento do paciente é aceito como um fato, em função do contexto que está a exigir
simbolicamente o exercício da lei, e a preservação de alguma “ilha da fantasia”, no caso a do
hospital geral onde mora CM-2, já que a “ilha da fantasia” da obstetrícia foi, mesmo que
temporariamente, invadida pelo oceano. No entanto, os alunos nadaram. M6-1, na omissão dos
médicos sugerida no relato, escolheu entre se identificar com os médicos e abandonar a cena ou
atender à demanda de uma mãe em dor, arriscando uma atitude solidária, que deu sentido ao não
sentido da morte.
PSM parte para buscar modelos que se contraponham aos antimodelos trazidos pelos
alunos. Indica a presença de CM-2. Os alunos de imediato, mais uma vez, o convocam. CM-2
utiliza o argumento de ligação de coexistência pessoa-ato, privilegiando sobremodo a
estabilidade da pessoa, e obtém a adesão de M7-1, M7-3 e M7-4.
79
CM -2 “Não, eu acho que você não fica frio, não. Eu não fiquei. Você cria... vai criando alguns
mecanismos de defesa, de autopreservação, mas eu trato todos os meus doentes atualmente, os
meus doentes do ambulatório do hospital - faço ambulatório aqui no hospital há 10 anos, não, 12
anos; estou formado há 12 anos, faço ambulatório há 12 anos - eu trato os doentes da mesma
forma hoje do que eu tratava quando era residente. Da mesma forma. Eu trato da minha forma. ...
Agora, tem alguns locais que você tem que se proteger mais. O trabalho na Emergência é o
grande protótipo, né, porque primeiro é um contato rápido, segundo ... é um sofrimento mais
intenso, né. Então você tem que... Isso você aprende, você adquire com a sua prática médica.
Mas aquele, aquele médico, que existe lá, que entra numa sala de grande emergência, vê cinco
doentes gravíssimos e vira as costas e vai embora. Esse médico já era assim no primeiro ano de
formado, no primeiro ano de formado.”
PSM dá sua adesão parcial à CM-2, mas relativiza ao considerar como um dos aspectos
a estrutura defensiva da pessoa. Dando continuidade a pergunta tema sobre o tornar-se ou não
frio, os alunos chegam ao relato de sua primeira experiência com a morte de seus pacientes. A
surpresa e a angústia são compartilhadas, na cena, com colegas e familiares do paciente e, no
grupo, mais uma vez as alunas se emocionam. Nessa referência à elaboração de um luto
compartilhado lembramos o trabalho de Mannoni (1995) que nos diz: “Socializar a morte,
portanto, previne os lutos patológicos, ampliando a experiência humana do sobrevivente” (p.123).
As ações médicas não são só limitadas pelo biológico e seu conhecimento, mas também
pelo social e, em situações concretas, médicos e estudantes operam escolhas. O conflito vivido
pelo grupo tem uma importância maior se considerarmos a problemática da responsabilidade do
profissional que estamos formando, no contexto da qualidade da assistência médica atualmente
oferecida, onde já estão imersos nossos estudantes. Essa problemática é objeto de preocupação
de vários autores dos quais destacamos, neste momento, Lilia Schraiber:
“Reconhecemos aqui as recentes e constantes críticas sobre a qualidade
da assistência médica. A falta de compromisso surge como situação na
qual o profissional se crê isento da responsabilidade individual. Isto
ocorre, senão frente ao conjunto de repercussões de seu ato, ao menos
da parte que entende, ou representa para si próprio, como mais “externa”
à sua técnica, a qual geralmente repassa ou à instituição em que trabalha,
ou ao grupamento mercantil (médico ou não) e empresa a que se filia, ou
até ao governo, cindindo-se como ser técnico, trabalhador e ser social.
Essa situação freqüentemente é relacionada à despersonificação dos
cuidados e desumanização da assistência” (SCHRAIBER, 1997, p.128).
A EXPERIÊNCIA DE SUJEIÇÃO
Extratos para análise retirados dos 4º, 10º, 12º e 14º seminários
Corpus: p.219-220; p.274-275; p.276-285; e p.286-290
O contexto
Desde o início do 12º seminário, falava-se de conflitos entre as várias categorias
profissionais da equipe de saúde, enfatizando-se as conseqüências desfavoráveis sofridas pelos
pacientes, o que angustia os alunos, que sentem uma “raiva impotente”, pois “a corda estoura no
lado mais fraco”. Nas relações hierarquizadas do trabalho hospitalar, além da desqualificação, há
a impessoalidade, muitos não tem “nome”: (enfermeiros, auxiliares de enfermagem, assistentes
sociais, alunos.)
M6-1 “...O enfermeiro, na verdade, a gente não tem contato, na enfermaria a gente sabe disso. O
contato é: nem “oi” se fala. Nem “oi” se fala, parece que eles são invisíveis.”
M7-2 “Aí você vai pedir alguma coisa às vezes pra ele, às vezes você não sabe: “aonde tem
seringa?” No começo era assim. “Ali”. Não olha pra sua cara, entendeu? De graça. E é de graça
80
isso. Eu nunca fiz nada, a pessoa não me conhece, entendeu? No primeiro contato não é pra
falar: “ali”. Era pra falar assim: “tem ali na gaveta”.”
M7-3 “A gente não sabe nome de nenhum enfermeiro, sabe nome de interno, de todo mundo,
mas não sabe de enfermeiro, sabe da chefe, mas do resto...”
CM -3 “...O doente nem conhece nem o nome dela [assistente social], não conhece.”
O “descaso”, em especial com relação aos pacientes, e a “raiva”, por vezes totalmente
“impotente”, não só frente a ações, mas também diante de ditos como o tão freqüente “você tem
que se acostumar” que os alunos ouvem de seus superiores hierárquicos médicos, são questões
que percorrem toda a discussão, estando a incitar a apreciação de razões assim como a busca
de ações possíveis, nesse contexto de relações hierarquizadas, cuja finalidade é o ensino e a
assistência.
É importante que se diga que o cenário principal dos relatos na primeira parte desse
seminário é o plantão de Emergência no hospital universitário, o que nos indica uma maior
intensidade de angústia por parte de todos, em especial pacientes e estudantes, o que se reflete
no modo da experiência:
M7-2 “...E eles [os médicos] sempre falaram que a evolução da noite é uma coisa mais rápida:
“não precisa fazer aquele exame físico que vocês gostam de ficar fazendo”, não sei o que e tal,
mas a gente gosta de ficar conversando pra entender também a história. Bom. Aí eu fui chamar o
enfermeiro pra me ajudar a levantar o paciente. E nesse dia era dia de jogo do Brasil. Então ele
se sentiu meio incomodado e foi de má vontade. Na hora que a gente conseguiu colocar o
paciente pra cima, ele teve um acesso de tosse, começou a tossir, tossir muito, começou a
vomitar. Eu fiquei nervosa, com medo dele fazer broncoaspiração, não sei, fiquei segurando ele,
e isso assim - até ontem as meninas riram quando eu ‘tava contando isso - quando a minha irmã
vomita eu nunca fiquei do lado porque eu tinha nojo, entendeu, e ontem eu tive uma coisa, quartafeira eu tive uma coisa que não era eu, entendeu, que ‘tava ali, porque eu fiquei segurando ele, e
ele vomitando, vomitando, vomitando, vomitando, vomitando, eu não senti nada, lógico espirrou
em mim e tudo mais, mas eu permaneci ali.” (RISOS)
Os alunos, em função de seu saber mais limitado, vivem uma dimensão de dependência
e identificação na relação com os pacientes, pois é mais difícil para eles negarem que precisam
dos pacientes para aprender semiologia, clínica, cirurgia, enfim medicina. Isso os aproxima dos
pacientes e os coloca mais vulneráveis à culpabilidade quando, na dissimetria da relação
assistencial, os pacientes não têm suas demandas atendidas.
M7-2 “Mas então, CM -3, aí eu fui, eu fui... A paciente continuou reclamando: “eu ‘tou evacuada,
‘tou toda evacuada”. E realmente, aquela paciente - a T que tinha hepatoesplenomegalia - eu
fiquei palpando horas ela. Então, quer dizer, ela me viu palpando e depois ela não me viu
limpando, entendeu? Como é que essa menina entra aqui, me cutuca, não sei o que lá, faz tudo
que ela quis pra ela, entendeu, e na hora que eu ‘tou precisando não tem uma ajuda, entendeu?
Porque ela ‘tava se sentindo mal, óbvio que ela ‘tava se sentindo mal. Aí eu fui novamente lá, aí
eu já bati no braço dele [enfermeiro] e pedi pra ele ir lá. Aí ele não foi, continuou sentado vendo
televisão. Então eu também não podia chegar pra ele e falar assim: “você vai agora e pronto”.”
O estudante, como destinatário da demanda do paciente, procura amplificar a voz
desqualificada do paciente sendo seu mensageiro para a equipe de saúde, no entanto, nem
sempre a soma das vozes é suficiente na busca da ação desejada.
No contexto dessa discussão no grupo, são os professores que invocam a autoridade
médica tanto na sua possibilidade de interagir com outros profissionais de saúde visando ao bemestar do paciente quanto na sua responsabilidade enquanto modelo para o aluno, como por
exemplo neste trecho em seqüência à fala acima citada:
CM -3 “Não, você não.
M7-2 Porque vai causar... No novo plantão ele vai ‘tá lá e eu também, entendeu? Então eu teria
que me dirigir à enfermeira chefe ou o médico se dirigir à enfermeira chefe.
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CM -3 Exatamente.
PSM O médico responsável pelo plantão tinha que se dirigir à enfermeira chefe.
CM -3 E se o médico não fizer, até pode você fazer. Mas você chega para a enfermeira que é
responsável por aquele plantão do dia, e diz: “por favor está tendo um problema assim com
aquela paciente...” Se ela vai mandar ele mesmo, aí não compete mais a você. Ela pode, de
repente, ver que ele não vai mesmo, não vai se indispor com ele e manda outro. Mas o doente
não fica sujo, entendeu. E é uma omissão também, se um médico ‘tá lá orientando um grupo de
alunos, se vem um grupo de alunos e te mostra um problema que ‘tá acontecendo e ele não toma
uma providência, ele ‘tá dando um exemplo que não é bom, ele já ‘tá te ensinando a ser omissa
numa situação dessa. Entendeu?
PSM Isso é que eu acho mais grave.
CM -3 Isso é muito grave no ensino, no aprendizado de vocês, quando vocês estão aqui pra
mudar atitude. Como vai mudar atitude desse jeito?
PSM Mais. Estão formando atitude deformada.
CM -3 Isso é que é o pior.
PSM Por que é que vocês acham que as coisas se passam assim?”
No terço final desse 12º seminário, a discussão se desloca dos conflitos envolvendo os
vários profissionais de saúde para conflitos entre os integrantes da equipe médica, quando então
é apresentado um caso clínico, que propicia mais uma ilustração em relação à posição do
estudante na dinâmica das relações institucionalizadas, esse difícil lugar, diríamos, de “marisco”
entre a rocha e o mar. Temos, então, um relato de M7-1 que, sofrendo o impacto das demandas
da paciente, valoriza seu conhecimento da doente e das doenças, o que se expressa inclusive no
diálogo com os médicos na enfermaria e no round. Irritada com os médicos, pela desqualificação
de suas demandas assim como as da paciente que ela tentou amplificar, M7-1 traz sua “dúvida”
para o seminário, buscando uma estratégia argumentativa também no contexto do grupo.
A possibilidade de M7-1 realizar críticas não só a professores como médicos residentes,
seus superiores hierárquicos, nesse contexto do grupo se refere, entre outros aspectos, a sua
presunção de acordo por parte das autoridades presentes no grupo.
No contexto mais imediato desse seminário, diríamos que o fato de CM-3 e PSM terem
não só invocado a autoridade médica na sua dupla responsabilidade de ensino e assistência
como criticado sua “omissão” através do argumento pelo modelo é uma importante
sustentação da presunção de M7-1. Nesse sentido a maneira como M7-1 inicia sua
argumentação é reveladora:
M7-1 “Tira uma dúvida aqui. Quando a pessoa, a minha paciente essa semana... Aliás essa
semana eu fiquei irritada a semana inteira lá na Pneumo, eu ‘tava adorando, só que... Foi assim,
eu vou contar a história da paciente.”
M7-1 ao iniciar solicitando “tira uma dúvida aqui” enfatiza a relação professor-aluno no
grupo. Esboça então uma pergunta sobre a paciente sem sucesso, quando diz ter ficado
“irritada”, de forma semelhante à M7-2 no início desse seminário, a qual obteve uma expressiva
acolhida do grupo quando se mostrou ambivalente quanto a falar ou não de sua “raiva” em função
de conflitos com os profissionais da equipe de saúde a partir dos episódios ocorridos no plantão
de Emergência.
Antes de explicitarmos a “dúvida” de M7-1 e a dinâmica das controvérsias ocorridas na
enfermaria e no grupo, vamos considerar o contexto ampliado, na estrutura dialógica desse grupo,
citando exemplarmente enunciações que apóiam a presunção de M7-1 em relação aos
professores do grupo, quando esses falam da tensão doente/doença na valorização dos sintomas
na anamnese, no raciocínio diagnóstico e na dimensão terapêutica do ato médico, num fragmento
do 10º seminário:
PSM “...e uma coisa muito bonita que vocês apontaram é isso, quer dizer, e apontaram através
das próprias palavras do &H1: que numa relação, digamos a dois, é claro que tem toda a
equipe, mas pensando no médico e no paciente, cada um tem o seu interesse, o seu
investimento, o seu desejo naquela relação. É isso que o &H1 diz pro residente: “bom, você
82
atendeu ao seu conhecimento, a sua curiosidade etc. e tal, e o paciente?” E vocês vêem que
isso é uma coisa que tanto a Clínica Médica quanto a Psicologia Médica enfatizam; na Clínica
Médica, isso pelo menos de forma formal, aparece claramente na questão da queixa principal, e a
gente vê como que os alunos, alguns nem aprendem, eu acho, outros custam um certo tempo,
até viver a prática, a compreender porque ...
M7-2 A atender também.
PSM ... porque aquele espaço é dedicado às palavras do doente.
M7-7 E as principais palavras dele.
PSM Porque, vejam, do ponto de vista formal e de forma instituída, a queixa principal é o espaço
para que o paciente diga ao que ele veio, qual é a demanda dele, o que incomoda principalmente
a ele, ao que ele está pedindo a ajuda.
M7-7 Eu já vi várias vezes perguntar... O paciente tem uma... a doença dele é X, e a queixa
principal dele é A. Aí então o aluno vai faz a anamnese, começa com a queixa principal, então já
põe lá entre aspas, depois quando faz tudo, vê exame, lê prontuário, vê que não tem nada a ver
com a queixa principal, aí fica preocupado: “mas, vem cá, eu ponho aquela queixa principal
mesmo?” (RI) Enfim, o erro vai ser dele, sabe, se ele não...
CM -3 Isso é uma coisa muito freqüente, quer dizer, na prática médica às vezes o médico ele
quando identifica uma situação orgânica, uma causa orgânica, pra ele é um alívio até: eu
descobri o que é.
PSM Cumpri minha parte.
CM -3 Eu sei isso. Eu sei isso. Então, quando o doente às vezes vem queixando pra você de
tonteira, cefaléia, principalmente se os sintomas são bem vagos, ou então uma dor, uma dor
qualquer, que não é característica de nada que você aprendeu, então você começa a ficar muito
preocupado - pôxa isso eu não sei, isso eu não sei, que dor é essa, que queixa é essa - então
você vai fazendo a anamnese do doente, vai sempre tentando dirigir, dirigir, dirigir a anamnese
com perguntas, com perguntas, pra ver se você consegue diagnosticar, te dá uma ansiedade
muito grande, isso é óbvio. Então, é muito comum no exame físico no momento que você
examina o doente, se você encontra, por exemplo, uma ponta de baço ou um fígado um pouco
aumentado - pô! encontrei uma anormalidade, então eu tenho como ganhar um tempo aqui, vou
pedir uns exames, saber que fígado grande é esse - por aí começa, aí esquece que a queixa do
doente foi a tonteira, não orienta o doente pra nada da tonteira. Pede uma lista lá de exames, aí o
doente vai voltar daqui a não sei quanto tempo com aquela lista, continua tendo tonteira, pô!
Entende? Então aí é que tá, o médico ele tem que valorizar é o que o doente conta, é o que se
queixa. Não interessa se o meu doente tem cirrose hepática, mas ele veio pra mim, hoje, ele ‘tá
sentindo é tonteira, eu tenho que cuidar daquela tonteira, eu tenho que dar um alívio pra aquela
tonteira...
PSM Uma resposta.
CM -3 Uma resposta, uma orientação, não precisa ser um remédio, uma orientação. "Olha o
senhor ‘tá tendo muita tonteira, quando o senhor mobiliza a cabeça, quando o senhor levanta,
então vai levantar mais devagar, vai aos poucos, se ‘tá deitado, senta primeiro na cama, pra
depois você ficar de pé, não fica imediatamente que é pra não ter tonteira." E começa a orientar o
doente, pô. Você pode não saber o que é aquilo, mas você tem que saber orientar o doente. Por
isso que o sintoma, se trata sintoma, nem todo sintoma é uma doença. Quantos mal-estares a
gente sente na vida e não está doente? ... Porque a gente que tem conhecimento médico
começa a valorizar essas coisas. E passa aquele dia e você não encontra explicação pra aquilo.
PSM Você quer sempre fazer um...
M7-7 ...diagnóstico, e às vezes o doente se adapta a esse diagnóstico e vai... Por exemplo, a
minha madrinha, ela teve há uns quatro meses ela ‘tava com uma dor muito forte em região coxofemural...” (segue a discussão através do caso clínico)
A consideração de “erro” na queixa principal do doente, quando esta não expressa um
sintoma compatível com a síndrome ou doença hipotetizada no raciocínio diagnóstico do aluno,
sugere uma pretensão de total dissociação entre a narrativa do doente e a construção narrativa de
uma história clínica, o que nos remete a uma contradição, apontada por Hunter (1996) no ensino
da clínica, entre a ênfase que é dada à boa colheita da história relatada pelo paciente e a
83
freqüente suspeição em relação às palavras do doente. De fato, suas palavras não só podem ser
meramente desvalorizadas, como também, muitas vezes, são apreciadas como fonte de
equívoco, como resume a conhecida e freqüente expressão “o paciente informa mal”, o que
aparecerá inclusive na situação clínica trazida por M7-1.
CM-3, numa fala para além do certo e do errado no raciocínio clínico, através do
argumento pelo modelo, abre um espaço de legitimidade à experiência de incerteza na clínica,
admitindo a angústia de desconhecimento no processo de investigação que busca a identificação
de um padrão no caso clínico individual - o diagnóstico. Este, passa pela interpretação dos
sintomas que ganham seu significado predominante ora na narrativa do paciente ora na do
médico, ambas, entretanto, presentes na interação médico-paciente, a produzir respostas, nem
todas dadas a priori pelo conhecimento médico. “O a priori convém ao anônimo” (p.390), nos diz
Canguilhem (1994) num belo texto em que o autor defende que é da natureza do ato clínico ser
um ato de experimentação. “Uma medicina preocupada com o homem na sua singularidade viva
pode apenas ser uma medicina que experimenta. Não podemos não experimentar no diagnóstico,
no prognóstico e na terapêutica” (p.389).
A dinâmica das controvérsias
Voltando à questão que nos traz M7-1, no fragmento selecionado do 12º seminário,
evidenciam-se pelo menos dois ou três cenários onde se dão controvérsias dialogicamente
articuladas: a enfermaria, o round e o grupo.
No round, como na enfermaria, as controvérsias estão referidas às diferentes
interpretações e valorações de dados clínicos. No entanto, na apreciação da aluna, essas
diferentes impressões clínicas não são propriamente argumentadas, mas meramente cotejadas,
prevalecendo a avaliação dos médicos de maior prestígio e experiência, numa clara expressão da
equação saber/poder. A situação conflitiva para M7-1 se inicia desde a colheita da história clínica,
onde ela descobre diferenças entre a sua história e a da residente, que atribui ao fato de ela ter
conversado “muito mais tempo” com a paciente o que teria possibilitado que a paciente contasse
“mais alguns detalhes”. M7-1 se deixou impressionar mais fortemente pelo sofrimento crônico da
paciente assim como pelas suas múltiplas queixas.
M7-1 “...Na história da residente, há um mês ela começou com tosse, expectoração, tipo um
quadro de pneumonia. [...] Só que na minha história ela contou que teve infecção respiratória, ela
tinha infecção respiratória de repetição de dois em dois meses, de três em três meses mais ou
menos [...] ela disse que tinha problema de pulmão. Ela falava como se fosse uma coisa meio
crônica. Ela falou pra mim que ela teve um episódio de hemoptóico, então eu cheguei pro &H3
que é o médico e falei esta história do hemoptóico, ele falou que estava desconfiado de BK.
Fizeram o BAAR dela duas vezes e deu negativo.”
No primeiro round em que o caso da paciente foi discutido, M7-1 se fez expressar e, no
seu relato, destaca-se o uso repetitivo da expressão “ignoram”, como resposta à consideração de
um aspecto da situação clínica que não está sendo priorizado na apreciação de quem detém
maior prestígio nas relações hierárquicas.
M7-1 “PSM, daí chegou no round, a residente contou a história, daí, tipo assim, ela não contou
nada do que eu tinha falado pra ela e pro médico, ela ignorou...
M7-2 De repente ela não sabia, entendeu? Ela ‘tava contando o que ela sabia realmente.
M7-1 É exatamente. Daí tudo bem. Daí eu lembrei, o &H3 foi e completou, o médico foi e
completou o que eu tinha falado [...] Nisso a gente ‘tá falando da paciente há meia hora, eu
falando que ela tinha infecção de repetição... Daí o &H4 ‘tava do meu lado, ele virou e
perguntou: “ah, ela tem problema de disfagia?” Aí, pra mim, ela contou que tinha problema de
disfagia, ela tinha queixa de artrose. Só que neguinho ignora isso, ela só tem problema de
pulmão, na Pneumo só tem pulmão, o resto eles ignoram mesmo, ignora. Ela tem queixa de
disúria [...] Eu comentei isso com a residente, a residente: “ah não, isso aí ela já fez tratamento,
isso aí não vale nada, ignora”. Aí tudo bem, isso aí é outra história.
PSM O &H4 é o que, interno?
84
CM -3 Não, é médico.
M7-4 É um dos ferões, é um dos ferões.
M7-1 Só que ele ‘tava do meu lado, então como eu ‘tava falando, comentando com a M7-2, ele
prestou mais atenção. Ele falou assim: “podia até pesquisar...” Daí ele comentou até a conduta,
depois virou pra mim e falou assim: “podia pesquisar melhor essa história dela de artrose, essa
história da disfagia dela, porque de repente ela pode ter até uma colagenose, uma coisa assim,
pesquisa melhor, vê o remédio que ela toma, vê se é artrose mesmo”. Eu: “ ‘tá.” Isso ele falou pra
mim.
PSM Baixinho?
M7-1 Foi. Falou assim conversando comigo. Pensando alto, falando comigo. Daqui a pouco, a
gente ‘tá discutindo há uma hora, aparece, chega não, ele ‘tava lá, outro ferão, olhando pro RX:
“que coisa engraçada, que isso aí parece um RX de..., parece um quadro meio crônico, né?”
Gente, a mulher tem problema pulmonar, ou bem ou mal ela tem infecção de repetição, há dois
anos. Daí eu virei pra residente e falei assim: “dois anos não é considerado quadro crônico?” Ela:
“é, lógico que é.” Ele fala, todo mundo ignora, tudo bem. Levantaram, foram embora, disseram
que devia fazer BAAR de novo, pesquisar pneumonia...
PSM Para alguns a paciente não tem nem só pulmão, tem só RX. (RISOS)
M7-1 É. Não conhecem nem paciente, não olham a paciente. Ignoraram a história da disfagia,
ignoram mesmo.”
Numa visão perelmaniana, o argumento de autoridade estaria sendo usado em alguns
momentos, de forma até certo ponto implícita, quando há uma presunção de que se está diante
de uma suposta evidência de natureza empírica, quando então não caberia argumentação, como
neste fragmento sobre a interpretação da imagem radiológica: 11
M7-1 “...Eles [professor staff da enfermaria e médicos residentes] tinham combinado entre si que
uma mancha que eles viram lá no pulmão dela, uma cavidade, aquilo era uma cavidade talvez até
com nível hidroaéreo.
CM -3 Combinaram?
M7-2 Antes!
M7-1 Chegaram dois ferões lá [no 1º round], olharam: “Não que...!” Daí todo mundo fica quieto,
ninguém discute se é ou não é. Eles falaram que não é, então todo mundo: “é então não é”. Tudo
bem.”
Na enfermaria, o professor responsável (&H3) é quem decide o ato médico a ser
executado principalmente pelos médicos residentes e também pelo estudante de medicina junto
à paciente. Quando ele hierarquiza os vários aspectos da situação clínica, a partir do conjunto de
enunciações numa dialogia complexa, as vozes dos “ferões” no round podem ser relativizadas,
porque como eles não conhecem a paciente, eles podem se esquecer no próximo round de suas
próprias impressões e hipóteses. A expressão da aluna “pensando alto, falando comigo” em
referência a &H4, um dos “ferões”, pode então ser compreendida, pois a palavra de um dos
ferões, no caso valorizando o conjunto de queixas da paciente levando à formulação de uma
hipótese diagnóstica “colagenose”, não gerou necessariamente uma ação.
11
Sobre a utilização de recursos visuais nas práticas acadêmicas na Faculdade de Medicina da
UFRJ ver a pesquisa etnográfica de ROCHA PINTO (1997) que nos aponta, entre outros aspectos,
como essas práticas freqüentemente “levam a um apagamento do processo de construção das
imagens, as quais são apresentadas como meramente decorrentes de uma ‘reprodução’ da
realidade empírica, ela própria dotada de uma existência concreta desvendável pela observação
direta” (p.68).
85
M7-1 “E eu falei que o &H4 tinha dado mais atenção, daí chegou essa semana no round, como
ele não conhecia a paciente, na hora que eles botaram o RX, ele não se tocou que era a mesma
pessoa, ele ignorou também, entendeu, ele não se tocou. Ele não conhecia a paciente, porque a
gente tinha o round não na enfermaria, os sintomas que..., os sintomas de disfagia e coisa
ninguém sabe, a única pessoa que sabe, né, sou eu, ele não se tocou que era a mesma
paciente, ninguém falou nada e nem eu. ... Como foi, era uma semana depois, ele não se tocou
que era a mesma paciente, então como não é ele que fica na enfermaria, ele não pesquisou. Aí a
residente... E ele [&H4] falou pra mim, que devia se pesquisar melhor artrose, pra mim. Acho
que a residente ouviu, ele chegou a falar alto no round, quarta-feira passada. A residente virou pro
&H3 essa semana e falou: “não tem que pesquisar, não ficou decidido no round que a gente
tinha que pesquisar melhor essa artrose?” Aí o &H3 pra ela: “não, não, não precisa não”.
No segundo round, M7-1 não consegue mais se expressar:
M7-1 “...Eu acho que ela tem mais alguma coisa, entendeu? Daí resumindo a história. Chegou
agora, ela tem um monte de queixas, ninguém dá a menor atenção, já encaminharam pra
Gineco... Então ela melhorou do quadro pulmonar, deram antibiótico nela, ela ‘tava com infecção
urinária, deram antibiótico, só que ela ficou internada mais uns três dias porque ‘tavam tentando
conseguir antibiótico de graça pra ela ter alta. Daí teve o round essa semana de novo, e como ela
melhorou do quadro pulmonar... Só que se você pergunta: “o que aconteceu?” Ela há três meses
atrás teve a mesma coisa, teve pneumonia. E ela falou pra mim que teve 5 vezes já pneumonia.
Só que ela não informa... assim ela não é uma pessoa que informa muito bem. Tudo bem pode
não ser verdade o que ela fala. Mas o que você tem que fazer? Ela diz que tem uma mãe que
até, ela falou: “ah, eu vou perguntar pra minha mãe.” Podiam chegar e chamar a mãe dela,
chamar alguém e perguntar melhor a história. Não fazem. Ninguém ‘tá nem aí. Eu cheguei nesse
round agora, ela vai ter alta, vai ter alta porque melhorou do quadro pulmonar, então ‘tá tudo bem.
Então eu fiquei assim no round: pôxa mas ela melhorou, porque ela melhora sempre, mas daqui a
três meses ela vai ter isso de novo, porque ela tem sempre, o que que me garante que ela não
vai ter de novo? Então eu fiquei assim, eu fiquei com a maior vontade de falar, no round. Só que
aquele round, eu fiquei com medo de falar e passar, como se ‘tivesse passando por cima do
&H3, porque eu não tinha falado com ele, entendeu? Aí eu fiquei assim: falo ou não falo, acabei
não falando. Fiquei até meio chateada. Não falei.”
O grupo dá adesão à M7-1 tanto em relação a sua apreciação sobre o funcionamento do
round quanto a sua crítica no sentido de uma simplificação, um reducionismo empobrecedor da
realidade clínica, importando desfavoravelmente na transmissão do conhecimento médico assim
como na assistência à paciente.
M7-1 “...nesse dia era o round. Só que o round da Pneumo é assim: primeiro que todo mundo fica
estre (ESTRESSADO) - todo mundo não, eu não fico assim - as residentes e os médicos
estressados, porque o round em vez de ser uma discussão pra resolver os problemas dos
pacientes, aquilo ali parece discussão pra ver quem sabe mais, sabe...
M7-2 É exatamente.
M7-1 ...pra um humilhar o outro. É verdade, na Pneumo é assim, entendeu? Eu nunca vi um
round igual aquele.
M6-1 É mesmo?
M7-1 É sim. Juro por Deus.
M7-2 É sim. Quem leu o último artigo?
M7-1 Quem leu... exatamente. Daí chega os médicos fera. Nesse dia ‘tava lá quase todo mundo.
Daí...
(OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE)
M6-1 O clima da parada é tenso?
M7-2 É tenso. É tenso.
M7-5 Eles treinam antes.
M7-1 Só que agora...
PSM Os residentes treinam?
86
M7-1 É eles treinam. Ainda por cima, só que agora, não é mais perto do paciente, é na sala,
então nem o paciente, eles não sabem nem quem é o paciente, ainda piora, piorou a história.
Porque parece que antes era na beira do leito.”
E quanto à realidade clínica, CM-3 conclui ironicamente, após o relato dos dois rounds,
antes de se retirar do seminário, um pouco antes de seu final:
PSM “E qual foi o diagnóstico que eles fizeram?
M7-1 Disseram que era pneumonia! Não, pra mim era pneumonia, eu fiquei com isso na cabeça.
CM -3 Mais uma pneumonia e alta hospitalar!
M7-1 É. Alta hospitalar.”
Para além da estrutura de relevância do olhar médico numa enfermaria de especialidade
associada à estrutura de poder das relações na equipe médica, há a singularidade dos sujeitos a
fornecer uma pluralidade de falas e gestos que importam na transmissão do conhecimento e no
ato médico resultante para a paciente. Na estrutura dialógica do grupo, ao termos a presença de
dois professores CM e PSM, estende-se a pluralidade de opiniões. Como nos diz Perelman, “toda
argumentação é seletiva” expondo-se inevitavelmente à crítica de ser parcial. Isso é
particularmente relevante quando a argumentação se pretende válida para o auditório universal.
Considerando “uma ilusão” supor que “a totalidade dos elementos relevantes poderá ser
esgotada” a partir da existência de um critério, o autor argumenta:
“a passagem do subjetivo ao objetivo só pode ocorrer através de
ampliações sucessivas, das quais nenhuma pode ser considerada a
última. Quem efetuar uma nova ampliação enfatizará necessariamente o
fato de que as exposições precedentes haviam procedido a uma escolha
dos dados e decerto conseguirá mostrá-lo com relativa facilidade.
Cumpre acrescentar que nas ciências humanas, como nas ciências da
natureza, essa escolha não é, aliás, somente seleção, mas também
construção e interpretação” (PERELMAN, 1996a, p.136).
É importante destacar que CM-3 pertence ao subgrupo de professores de Clínica Médica
que não se especializaram - clínicos gerais ou generalistas - cujas tensões com o subgrupo de
especialistas clínicos os alunos apreendem, pela primeira vez, especialmente, no contraste entre
a experiência de treinamento em serviço nos 6º e 7º períodos, na passagem de uma enfermaria
de Clínica Médica para a de especialidades, como nos mostra esse fragmento do 4º seminário:
M6-2 “Fala da enfermaria aí.
M6-1 Eu quero interagir... O que que ‘tá acontecendo comigo? Eu quero interagir com o meu
doente, completamente, eu quero ter uma relação boa médico-paciente, eu quero fazer o exame
físico dele, quero evoluir ele diariamente, quero fazer o exame físico dele completo, quero fazer
uma anamnese completa. E eu estou começando agora a fazer uma anamnese de um doente
que eu vou acompanhar, agora que eu vou começar, que eu ‘tou começando a fazer um exame
físico num doente que eu vou acompanhar a evolução dele.
PSM Você entrou na equipe de saúde.
M6-1 Claro. No período passado eu fazia, eu fazia manobras de exame físico, sem nenhuma
ligação com qualquer doente em quem eu fazia, e fazia anamneses também sem nenhuma...
M7-2 Sem um vínculo.
M6-1 É, pra entregar ao professor uma anamnese, tudo bem, mas sem nenhum vínculo. E o que
‘tá acontecendo agora? Está me sendo cobrado que eu faça a anamnese, o exame físico, em
todo doente novo que eu pegar no meu leito, que eu evolua o meu doente no meu leito, que eu
faça os exames, enfim, que eu evolua, que eu saiba do caso dele completamente, que eu veja a
prescrição, veja a conduta, veja a impressão, tudo, e que eu ainda saiba de todos os doentes da
enfermaria, dos casos, pra gente discutir, não sei o que, não sei o que lá... Isso de sete e meia
às dez e meia da manhã.
87
M7-2 Olha só. Agora, você vai chegar numa parte pior, que é você estar de sete e meia até às
dez, porque vai diminuir, pra você fazer uma evolução, como você aprendeu lá no M6, aquela
evolução com todos os órgãos, pra chegar o meu orientador ou mestrando lá: “você escreve
demais no prontuário, você não acha?”
M6-1 Vocês falaram isso.
M7-2 “O principal aqui é Gastro.”
PSM O quê?
M7-2 “O principal aqui é Gastro. Você escreve demais no prontuário”, ele falou pra mim. O
principal era colocar o exame daqui, e se você for ver, PSM, se você abrir o prontuário dos
pacientes, não tem aparelho respiratório...
M6-1 Isso é um absurdo.
M7-2 A minha paciente tem sopro no coração, tem várias coisas, só que ‘tá lá: “rítmo cardíaco
regular”.
M6-1 E como é que eles pedem parecer então, se eles não examinam?
M7-2 Não, mas aí começa. Aí descompensa o coração, chama a Cardiologia. Entendeu? Aí
começa os fragmentos, eu acho que o ser humano é uma pessoa inteira. Eu aprendi, com a
&M2 da M7, que a impressão, principalmente, é aquela coisa gigantesca. A impressão lá é
aquela: paciente estável, mantida. Ele pediu pra eu resumir.
(“&M2 DA M7” É UM ATO FALHO. &M2 NÃO É ESPECIALISTA E FOI SUA PROFESSORA NO M6.)
PSM A impressão é a conclusão da evolução.
M6-1 Impressão subjetiva sua.
M7-2 Minha. Minha. Como é que eu ‘tou vendo a minha paciente, sabe. Então, tipo assim, se eu
for colocar que ela ‘tá deprimida, ele vai rir da minha cara. Entendeu? Porque o que interessa é
como o fígado dela ‘tá funcionando, como é que o estômago dela ‘tá funcionando. Não ‘tá
interessando o resto.
PSM É o tubo digestivo.
M7-2 É o tubo digestivo. Então, M6-1, se você ‘tá se decepcionando agora, se prepara, porque
daqui a pouco sua evolução vai se resumir ao órgão, entendeu?”
M7-1 calou-se no round, mas não se esquecendo das próprias demandas nem as da
paciente, embora falando da posição mais baixa na hierarquia da equipe médica, insiste, na
enfermaria, argumentando com as médicas residentes pelo encaminhamento da paciente ao
ambulatório de Reumatologia, exercendo sua participação no ato médico junto à paciente. No
grupo, a controvérsia então se dá com relação a essa escolha de M7-1. Como o questionamento
dessa escolha partiu de PSM com adesão de alunos, M7-1 inibiu-se parcialmente, declarou não
saber o que fazer, mas não deu adesão à argumentação a favor do encaminhamento da paciente
ao ambulatório de Clinica Médica sugerido como alternativa ao múltiplo atendimento
especializado à paciente.
PSM “Porque o que você trouxe é o problema do olhar fragmentário da especialidade, que não é
uma obrigatoriedade, você pode ser especialista em Pneumologia, e não precisa ter um olhar tão
fragmentário, né.
M6-1 É verdade.
PSM Mas é um viés, um bias, que a gente ‘tá acostumado a ver aqui e fica como um alerta pra
vocês que, provavelmente, vão escolher especialidade, que realmente por isso que a CM-3 se
bate tanto, como ela já disse, nós todos, pelo menos uma parte da faculdade, em termos de uma
formação de um médico generalista que tenha a capacidade pra poder fazer uma boa anamnese,
como essa daí, como você insistiu em fazer, um bom exame físico...
M6-1 Nós quando vamos ao médico, a gente às vezes escolhe um especialista.
M7-1 Eu fiquei revoltada, eu não sei o que fazer.
M6-1 Acho que há uma cultura do especialista, você não acha? O meio mesmo. Todo mundo:
“Ah, eu vou num ... patologista!” (RISOS)
(OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE)
PSM Tem. Isso já passou pra sociedade de forma geral. Tem que ir a um especialista porque
esse sabe mais sobre o meu problema do que o clínico.
(OS PRESENTES TROCAM IDÉIAS PARALELAMENTE)
88
M7-3 Eu acho que o clínico é muito desvalorizado. Você fala que vai fazer clínica, todo mundo
fala que você vai morrer de fome. Todo mundo sabe disso. O clínico não ganha dinheiro, a
consulta é mais barata. Eu acho que um país pobre como o Brasil não podia ser assim.
M6-1 Porque o sistema, exatamente, o modelo...
M7-3 O modelo não ‘tá adequado.
M7-1 O que eu fiquei chateada...
M6-1 O modelo ‘tá errado. Eu ‘tava lendo aquele livro do Balint - ‘tou lendo aos poucos ele assim.
Na Inglaterra é diferente.
PSM Porque o sistema de saúde é todo organizado diferentemente. O clínico geral, que é o
general practitioner, é quem encaminha pro especialista e volta...
M7-2 ...pro clínico.
M6-1 É obrigatório...
PSM É obrigatório.
M6-1 ...que passe por um generalista antes de ser encaminhado a qualquer especialista.
M7-1 PSM, eu fiquei meio chateada porque eu não sabia o que fazer. Ao mesmo tempo que a
paciente ficava me cobrando, cobrando não, me perguntando as coisas, eu não sabia explicar
pra ela, porque eu não tinha entendido direito o que tinha acontecido e ela me perguntando se ia
ficar boa.”
A caricatura, o cômico da argumentação na busca do exemplo probatório como nos fala
Perelman (1996a, p.404), pode ser vista na enunciação de M6-1 sobre o privilégio do
conhecimento do especialista. No limite, o objeto inerte do patologista, o cadáver,
metaforicamente horizonte das certezas. Cuidar do vivo, sem dúvida, é muito mais difícil.
A controvérsia, que poderíamos nomear “quem cuida do vivo?”, levanta um
questionamento sobre um projeto médico institucionalizado num hospital de ensino que,
reduzindo a paciente ao conhecimento de uma doença, de uma patologia, de uma imagem, sem
nome, sem história, suscita, primeiro na aluna, e depois no grupo, a pergunta: e o futuro? Qual o
futuro dessa paciente no sistema público de saúde, mesmo no seu segmento universitário? Qual
o futuro desse projeto médico recém-iniciado nessa internação? Na anomia institucional, creditase um futuro, após a alta, muitas vezes, reduzido ao texto do prontuário, como se sua construção
fosse unívoca e as relações intersubjetivas e o contexto não tivessem maiores influências no
desenvolvimento de um projeto médico passível de ser realizado por qualquer médico referido a
qualquer paciente.
Poder-se-ia argumentar que esse caso não é exemplar e só nos possibilita conclusões
particulares, tratando-se de uma argumentação do particular ao particular, como diria Perelman
(1996a, p.401-402). Vamos mais uma vez recorrer ao material, dando a palavra ao clínico,
representante do discurso hegemônico nessa instituição, num fragmento do 14º seminário, no
qual a negação da construção interpretativa do caso clínico - a “impressão” - reduz a clínica a um
suposto conjunto de evidências que, associada à sedução da tecnologia privilegiando a
semiologia armada, tende a apagar a tensão doente/doença no ato clínico com repercussões no
ensino e na assistência.
A partir de uma “confissão” de M7-5 feita na abertura desse 14º seminário de que há duas
semanas não tem ido à enfermaria de Cardio “porque na minha lista de prioridades a enfermaria
ficou no último lugar”, CM-3 nos diz:
CM -3 “...em relação a esse treinamento em serviço de vocês, eu estou sentindo que o alunado
ele está se envolvendo pouco com o paciente, porque o alunado ele está querendo discutir muito
a doença. Então o que está acontecendo? Não é atrativo, porque lá você não tem um professor
que te fique falando sobre as últimas coisas que ele sabe sobre ecocardiografia e insuficiência
cardíaca. ... O ensino de enfermaria, nós já detectamos no departamento e está sendo um
desespero para mudar essa coisa, porque nós estamos com um grupo muito jovem, muito jovem
que eu digo são todos professores, médicos, mais jovens em enfermarias, e você vê que mesmo
nas enfermarias de especialidade os staffs são jovens. ... Então eles estão fazendo a coisa tudo
mais tecnicamente. Então o que é importante, o professor, o médico, o staff, ele não chega do
lado do doente que ele está acabando de conhecer dentro daquela enfermaria, ele não colhe a
89
anamnese dele, ele não bota a mão, não examina, então ele não tem a impressão dele. Ele tem
a impressão do outro, que já teve a impressão de um outro que internou, e a coisa está em um
círculo vicioso. Então a gente tem descoberto coisas assim horripilantes, tipo descobrir sopros
que nunca existiram... Bulhas que o doente nunca teve a mais, entendeu? Quando você chega na
enfermaria e pergunta assim a um aluno que está lá: “como é o exame do abdômen do seu
doente?” “O ultra-som revelou...” Se fala assim! A terminologia aqui no momento é essa. Então,
não está tendo atrativo, porque vocês não estão se envolvendo com o doente, porque mesmo que
o staff fosse ruim, ausente, se vocês tivessem envolvimento com o doente ia ter atrativo. Porque
o doente é atraente, sempre é atraente, entendeu? Então vocês não estão chegando, não estão
vendo ainda ali internou, ontem, o Seu Severino, chegou ali, no leito 5, vou conversar com o Seu
Severino. Chegar: “bom dia Seu Severino, sou fulano de tal, o senhor está aqui desde ontem, por
que o senhor veio para cá?”, e começar uma anamnese. Não está sendo mais feito isso. Não é?
Isso não está existindo. Então existem esses paradoxos que você acabou de falar.” 12
M7-1 finaliza seu relato clínico expressando sua “dúvida” que nos revela como a ordem
médica na pretensão de exclusão da subjetividade na construção do caso médico, reduzindo a
realidade clínica à doença cuja verdade seria toda ela evidente, reduz a experiência do doente e a
experiência clínica de investigação semiológica da aluna a uma ficção. A repetição imposta pelo
desejo de alívio da paciente encontra o desejo de cura da aluna e não as deixa calar. Até
quando?
M7-1 ...“Essa disfagia dela, ninguém, acho que devem ter achado que é mentira minha, eu
inventei. Porque eu já perguntei várias vezes, então: ah, de repente ela ‘tá viajando, de repente
ela não tem nada disso. Já perguntei. Já tentei caracterizar várias vezes. É verdade, sabe! A
pessoa informa mal, mas ela não inventa a mesma coisa um milhão de vezes, entendeu, igual.
Mas ninguém dá a mínima atenção pro que você fala, entendeu? A maior raiva. Dá até... nem dá
vontade de você, pô você colhe a maior história enorme, sabe, examina o paciente, estuda, pra
você perguntar as coisas e discutir, e ninguém te dá a menor atenção.
[...]
M7-1 Eu achei, pensei vai ver eu que ‘tou ficando muito cri-cri, entendeu? ... ‘tou querendo
descobrir coisa aonde não tem, entendeu, como eles devem saber muito mais que eu, entendeu,
e ‘tão falando que não tem nada, e eu ‘tou aqui discutindo. Por isso que eu não falei nada no
round, porque eu falei além d’eu ‘tá passando por cima, parece que eu ‘tou, sabe, querendo
descobrir coisa na paciente que não existe. Não sei, de repente não existe mesmo, mas eu acho
que tinha que ser estudado.”
12
Como nos diz PORTO (1995): “A tecnologia de imagens ... instauram na prática médica uma
espécie de cultura do virtual, onde a imagem é a verdadeira realidade do paciente, e este, uma
espécie de realidade fantasmática” (p. 107).
90
Lembramos aqui o importante estudo de Renée Fox 13 quanto ao “treinamento da
incerteza” do estudante de medicina, em seu processo de socialização na escola médica,
associado à sua experiência de maior responsabilidade como estudante que a atividade clínica
implica. No entanto, a incerteza vivida pela aluna ganha maior complexidade numa dimensão não
estudada na pesquisa de Fox, qual seja a estrutura de relevância construída pelo olhar médico
numa enfermaria de especialidade associada à estrutura de poder das relações na equipe
médica. Nesse sentido nos aproximamos da apreciação feita por Byron Good que também
destaca em sua pesquisa, como a relação de confiança do estudante com a figura de autoridade
sustenta ou não a arbitrariedade na constituição da realidade clínica (GOOD, 1994, p.82-83).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A conclusão desta pesquisa tem necessariamente uma parte inconclusiva, uma parte
interminável. A experiência compartilhada pela qual passaram alunos e professores tem seus
efeitos, dos quais só podemos falar sobre os que se podem depreender na dinâmica das
discussões no tempo da experiência do grupo, que expressa o possível de nosso conhecimento
na impossível tarefa de educar.
A racionalidade anátomo-clínica que possibilitou, e ainda possibilita, um conhecimento
científico sobre o indivíduo doente, informa e conforma o olhar médico unilateralmente, diria
Freud, ou constitui uma objetivação limitadora que produz uma rarefação no discurso médico, que
não diz tudo de verdadeiro nem sequer sobre a doença, nas palavras de Foucault.
A prática clínica assim como o ensino da clínica estão para além de uma experiência de
aplicação do conhecimento que essa racionalidade possibilita alicerçada no desenvolvimento das
ciências básicas. Na prática se exerce a teoria num campo de valores e nela se expressa a
apropriação que os profissionais fazem do conhecimento, não só na aplicação técnica, mas
também na construção de argumentos para justificação de escolhas ao exercerem o ato médico.
A investigação dos argumentos no processo de apropriação do discurso médico nos
possibilita melhor compreender a formação de uma identidade profissional se valorizamos que é
na linguagem e pela linguagem que o estudante estrutura a experiência e constitui, para além de
um olhar anátomo-clínico, uma perspectiva com a qual exercerá a prática médica. É sobre essa
experiência posta em discurso que a prática pedagógica e de pesquisa que realizamos pretendeu
incidir, mantendo a tensão doente/doença no ato médico, propiciando a articulação e a
investigação do que foi referido como um duplo discurso: o discurso do cuidar e o da competência
técnica.
Para investigar o que querem e o que podem querer estudantes de medicina, construimos
um espaço que privilegiou a argumentação, onde alunos movidos pelos seus ideais do que seja
ser médico exercem o desejo e o poder em seu discurso, onde a tensão doente/doença na
clínica se encontra colocada, em princípio, pela simples presença de dois professores, o de
13
Renée Fox foi a pesquisadora responsável pelo trabalho de campo na investigação sobre o
processo de socialização médica realizada na década de 50, pela Columbia University Bureau of
Applied Social Research. De sua contribuição destaca-se o estudo dos processos que a autora
cunhou como “training for uncertainty” e “detached concern”. A autora considera três tipos
básicos de incerteza com os quais o estudante se defronta: as incertezas originadas da
incompletude de seu domínio do vasto e crescente conhecimento médico; as incertezas advindas
das lacunas, limitações e ambigüidades que também caracterizam o corpus da técnica e
conhecimento médicos; e as incertezas relacionadas às dificuldades do estudante em distinguir
os limites de seu conhecimento da dimensão “intrinsecamente imperfeita e enigmática” da
medicina. Cf. FOX em MERTON et al (1957), p. 207-241 e FOX, 1989, p. 72-107.
91
Psicologia Médica e o de Clínica Médica. Considerando que esses dois professores falam de
diferentes lugares, não só em função de sua experiência profissional como também de sua
posição na economia discursiva da instituição hospitalar de ensino, é neste espaço, entre dois
discursos, que os alunos tem oportunidade de discutir suas perplexidades, angústias, dúvidas e
as apreciações de sua experiência clínica. É também a partir dessa estrutura de relações que
chegamos a algumas respostas.
Os alunos querem ser ouvidos, sobretudo, quanto a seus conflitos que expressam a
ambivalência do medo e do desejo de apropriação do saber e poder médicos.
No 1º tema, onde dois casos são apresentados exemplarmente, os alunos buscam
argumentativamente explicitar a regra da desvalorização do sofrimento psíquico. Os alunos falam
da incompatibilidade que descobrem no discurso de professores médicos, que enfatizam o
escutar o paciente e, ao mesmo tempo, não se colocam disponíveis para ouvir os alunos sobre
essa escuta. Minipsiquiatras, bobalhões da corte, os alunos se descobrem realizando uma
função temporária prescrita pelo esquema, apesar de um discurso que é bonito. Falam, assim,
de um ideal romântico enunciado no discurso médico e do exercício de uma prática normalizada
sem romantismo. Os alunos arriscam-se, vivendo o conflito entre responder à demanda
transferencial na relação com o paciente e serem reconhecidos pelos pares como pertencentes
ao grupo social, hoje estudantes de medicina, amanhã médicos.
No 2º tema emerge o corpo erotizado que implica em inibições, sintomas e angústia. Se
o objeto do saber médico é a doença e seu acontecimento num corpo redutível às necessidades
biológicas, o objeto de investigação do médico na clínica é, no mínimo, o corpo de um doente,
que é, em princípio, erotizável num campo intersubjetivo. Por isso o risco associado a uma maior
intensidade de erotização ou sua negação - banalização. A presunção de que o objeto do médico
é exclusivamente um corpo biológico e que essa redução é o que identifica uma postura
profissional é central na argumentação que pretende calar a inquietação do aluno em sua primeira
experiência de realização de um toque retal. Essa presunção é posta em questão e, ao fim, o
grupo chega a uma outra presunção: o toque retal não é realizado com a freqüência devida na
medida em que a decisão de sua realização não é determinada só por verdades médicas, mas
também por significados inscritos na cultura e na história individual.
No 3º tema, vemos fatos e verdades médicas na construção de argumentos que
engendram a identidade técnica quando, na estrutura dialógica do grupo, foi possível questionar.
É uma norma técnica que define se houve uma morte ou uma perda fetal, na experiência de uma
parturiente e de uma equipe obstétrica? É a existência de uma síndrome psiquiátrica que decide
a escolha de mostrar ou não o filho morto à mãe? A surpresa vivida pela negação da morte e a
angústia de desamparo experimentada pelos alunos confrontados com sua vulnerabilidade
humana colocam em questão a frieza dos médicos. A mobilização de certa estrutura defensiva
que permita a diferenciação da dor do outro sem cortar o laço de identificação com o paciente,
quando não se seria frio/frígido mas dolorido, não impossibilita que os alunos compartilhem,
inclusive, a experiência da morte de seus primeiros pacientes.
No 4º tema, o que está em foco é o relato do caso clínico e as práticas formativas, que
implicam a construção da identidade médica articulada ao objeto do olhar e do discurso médicos.
Os alunos vivem o conflito entre ter que se acostumar ou amplificar a voz desqualificada do
paciente, entre o desejo de aprovação por seus pares e, ao mesmo tempo, a identificação com o
paciente na experiência de sujeição que põe em questão os ideais e a ambição de cura. Muitas
vezes, inclusive, o aluno vive um conflito mais intenso por se perceber como o principal
destinatário da demanda do paciente. Na incerteza do difícil aprendizado da clínica, a distância
entre a experiência narrada pelo paciente e o vivido pelo próprio aluno, com seu paciente e com
seus superiores hierárquicos na enfermaria como no round, coloca a dúvida do aluno entre fato e
ficção: o paciente informa mal e o aluno está inventando ou viajando? Ou a complexidade da
clínica impõe uma investigação mais abrangente que a realizada nessa experiência ocorrida
numa enfermaria de especialidade?
Ao associarmos os quatro temas, a desvalorização do sofrimento psíquico, a negação do
corpo simbólico, o engendramento de uma identidade técnica e a experiência de sujeição de que
nos falam os alunos, podemos surpreender uma coerência que nos remete, com Foucault, à
hipótese de uma estratégia sem estrategista presente na formação médica.
92
Gostaríamos que alguns professores de medicina soubessem pelo que passam pelo
menos alguns de seus alunos, afora o enorme esforço de apreensão de um conhecimento cada
vez mais extenso e de toda a habilidade técnica necessários ao exercício da profissão. É
importante situar que dos nove alunos que expressivamente participaram deste grupo de reflexão
apenas um interessou-se pela especialidade de psiquiatria. Acreditamos que a análise das falas
já propiciou o questionamento da conhecida presunção de que só se interessam por aprender
com professores de Psicologia Médica os alunos que já têm afinidade por isso, que na falta de
nomeação fácil, freqüentemente é dito afinidade pela psiquiatria.
Acreditamos que, do ponto de vista pedagógico, o professor de Psicologia Médica pode
contribuir para o pensamento crítico e o desenvolvimento da relação médico-paciente - objetivos
institucionais - numa perspectiva que, mantendo a tensão doente/doença, problematiza o ato
médico como um ato não só técnico mas também simbólico, com as conseqüências de referir o
sujeito, como função da intersubjetividade, às estruturas de significação e à criatividade do
simbólico. É assim que a Psicologia Médica, mantendo a interrogação da prática clínica, tem a
possibilidade de criar um espaço compartilhado com o professor de Clínica, que constitui o
modelo preferencial de identificação para o aluno e pode, ao compartilhar a experiência, legitimar
a pertinência da dúvida e o questionamento de sua própria prática.
No contraste entre a permanência e eternidade do real e a fugacidade da realidade
secundária que nós chamamos de realidade psíquica, não podemos deixar que o pensamento
reducionista e o valor de eficácia de uma ação sobre o real neguem ou levem à desvalorização
dessa realidade que descobrimos no nível das significações produzidas entre doente e doença,
entre doente e médico, e entre médicos e aprendizes de médicos.
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