III Congresso Consad de Gestão Pública
ACCOUNTABILITY OU PROPAGANDA? A
PUBLICIZAÇÃO NO SETOR PÚBLICO: ESTUDO DE
CASO DO PROGRAMA ESCOLA DE GOVERNO DO
GOVERNO DO PARANÁ
Márcio Cunha Carlomagno
Painel 19/074
Participação, transparência e accountability na gestão pública: experiências e
questões
ACCOUNTABILITY OU PROPAGANDA? A PUBLICIZAÇÃO NO SETOR PÚBLICO:
ESTUDO DE CASO DO PROGRAMA ESCOLA DE GOVERNO DO GOVERNO
DO PARANÁ
Márcio Cunha Carlomagno
RESUMO
Uma das problemáticas enfrentadas pela gestão pública é como tornar
transparentes seus atos, divulgando e levando-os ao conhecimento dos cidadãos.
Contudo, depara-se com o problema da indistinção entre o princípio da publicidade,
estabelecido pela Constituição Federal para a Administração Pública, e a
propaganda de Governo. Onde acaba um e começa outro? Tanto a Constituição
Nacional quanto as teorias do Estado e as teorias da accountability garantem o
direito à informação sobre os atos do governo como um dos princípios estruturantes
da democracia, e através da publicidade estatal esse direito se efetiva. No entanto,
existem diferenças entre a publicização, o processo de tornar algo público, e a
propaganda – tomada por indefinições conceituais como sinônimo para a
“publicidade” constante na Constituição – enquanto promoção das realizações do
governo de modo a promover também seus realizadores. Com o pretexto de
publicizar seus atos, faz-se propaganda. Defende-se que não é possível existir
publicidade neutra, que não promova o governo de plantão, e que, portanto, não
existem propósitos para um governo realizar publicidade comercial que não seja
promover a si mesmo. O governo deve prescindir de fazer propaganda. A partir de
alguns alicerces teóricos se faz uma análise de case do programa “Escola de
Governo”, do Governo do Paraná, reunião semanal do secretariado estadual,
transmitido pela TV Educativa do Paraná, e comandado pelo governador Roberto
Requião. Nele, o governador e os secretários de estado apresentam ações do
governo, fazem balanços, prestam contas sobre as ações e programas
governamentais, discutem propostas, e discorrem sobre temas contemporâneos. O
estudo também analisa o contexto comunicacional no qual o programa nasce e se
insere, que é o de corte de investimentos nos meios de comunicação privados e o
fortalecimento da rede estatal como promotora da comunicação pública. A
accountability, princípio pelo qual o governo é controlado pela sociedade, garante
que os governantes devem reportar-se aos cidadãos, mas exige mais do que mera
informação; exige justificativa sobre as ações do governo. A publicidade comercial
só garante informação, mas a Escola de Governo promove, além de informação
substancial, a explicação sobre as informações. Contudo, acusa-se a Escola de
Governo de ser um campo de promoção das idéias e posições do governo e do
governador. O papel personalista exercido pelo governador Roberto Requião reforça
essas acusações. Conclui-se que a reunião da Escola de Governo é um modo de
promover transparência e accountability, abandonando o modelo de publicidade
comercial, no entanto, ao mesmo tempo, promove a imagem pessoal do governador.
Não teria como deixar de ser assim. Do mesmo modo que a publicidade tradicional
também o faz. Pela própria natureza dos conceitos, não é possível estabelecer um
critério imperativo para essa separação. Apesar dos vícios existentes na conjuntura,
e dos aspectos que ainda podem ser aprimorados, é uma contribuição valorosa para
o processo de accountability e para a democracia.
Palavras-chave: Accountability. Propaganda. Publicização. Publicidade. Escola de
Governo. Requião. Comunicação Pública.
"A luz do sol é o mais poderoso dos detergentes."
Hugo Black, juiz da Suprema Corte dos EUA.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO........................................................................................................ 04
2 A ESCOLA DE GOVERNO: O QUE É.................................................................... 05
3 ACCOUNTABILITY: CONCEITOS.......................................................................... 07
4 DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS............................................................................ 10
4.1 Transparência e publicidade na Constituição Federal e na Teoria do Estado..... 10
4.2 A publicidade oficial............................................................................................. 11
5 PUBLICIDADE, PROPAGANDA E UM OUTRO TERMO....................................... 13
5.1 Conceitos e indistinções...................................................................................... 13
5.2 Publicização......................................................................................................... 14
6 SOBRE A PROPAGANDA ESTATAL..................................................................... 15
6.1 Neutralidade da publicidade................................................................................. 15
6.2 (Não) Propósitos da propaganda estatal............................................................. 16
6.3 Apropriação da comunicação estatal................................................................... 17
7 ESCOLA DE GOVERNO: PROMOÇÃO DA ACCOUNTABILITY........................... 19
8 ESCOLA DE GOVERNO: CARACTERÍSTICAS DE PROPAGANDA.................... 22
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................... 24
10 REFERÊNCIAS..................................................................................................... 25
4
1 INTRODUÇÃO
Em uma sociedade marcada pela alcunha de era da informação, este
precioso bem básico – informação – é essencial quando se trata de discutir as
políticas governamentais e a própria democracia. O Governo do Paraná criou, em
uma iniciativa inédita no Brasil, uma reunião semanal do alto escalão do governo,
batizada Escola de Governo, que inclui governador, secretários e equipe
administrativa, e é transmitida ao vivo pela televisão pública do estado, para
promover a transparência de suas ações. Concomitantemente, a iniciativa é vista por
alguns setores como um meio de autopromoção, do governo e da imagem do
próprio governador. Mas como mostrar suas ações, sem implicar promoção?
Existem limites entre a publicidade dos atos e a promoção pessoal? A transparência
pública é campo obrigatório para a democracia, mas a publicidade comercial é
campo fértil para a controvérsia. A iniciativa do governo do Paraná se insere dentro
de controvérsias sobre o dever e o papel do Estado em relação à comunicação.
Este estudo tem como objetivo analisar o projeto Escola de Governo, do
governo do Paraná, à luz de algumas abordagens e implicações teóricas, e situado
dentro da conjuntura na qual se apresenta. Para isso, adota-se como metodologia
uma revisão teórica dos pressupostos nos quais se alicerçam a controvérsia entre
propaganda e accountability – princípio que exige a transparência dos atos do
governo – e a reflexão e análise do objeto realizada a partir desses alicerces.
Também se vai situar e discutir a conjuntura que permeia a criação da Escola de
Governo – que é a de corte de investimentos públicos nos meios de comunicação
privados e fortalecimento da rede estatal. O estudo se justifica pela inovação da
proposta da Escola de Governo e pelos avanços que ela traz para a construção da
democracia e promoção da accountability, mas também pelas controvérsias por ela
geradas, assim como a importância de se entender e discutir o papel da política
estatal para a comunicação pública.
5
2 A ESCOLA DE GOVERNO: O QUE É
A Escola de Governo1 consiste em uma reunião semanal do
secretariado e do alto escalão do Governo do Estado do Paraná, presidida pelo
governador do estado Roberto Requião, e transmitida ao vivo pela TV e rádio
Paraná Educativa, rede pública do estado do Paraná, autarquia do governo do
estado. Assim, é também um programa existente na grade horária da rede
Paraná Educativa, geralmente com uma hora e meia a duas horas de duração,
aproximadamente. A reunião semanal é realizada desde o início do mandato do
governador
Roberto
Requião
no
período
2003-2006,
e
permanece
na
continuidade de sua gestão, no período 2007-2010. Reunidos no auditório do
Museu Oscar Niemayer em Curitiba, participam da reunião a equipe do
governador, secretários de estado, assessores, integrantes do governo do 1o e 2o
escalão, representantes de entidades civis, e convidados.
O programa foi criado por iniciativa do governador Roberto Requião como
forma de divulgar as ações do governo do estado para a população, e tem por
objetivos a apresentação de projetos, obras, e ações das secretarias estaduais. Ele
serve também para explicar as atividades e ações das secretarias, longamente e em
detalhes, assim como os resultados de programas do governo. O governador
pessoalmente comanda a reunião; o secretário, técnico ou pessoa encarregada,
geralmente em uma tribuna, apresenta as ações e discorre sobre elas. O governador
faz intervenções, sempre pontuando sua visão sobre as ações do governo. Nessas
reuniões não é incomum a participação de pessoas ligadas a movimentos sociais
que são convidadas a falarem sobre o tema em pauta, assim como palestrantes que
versam sobre determinado tema; no entanto, o que prevalece é a pauta política.
Durante a reunião o governador assina contratos licitados, estabelece parcerias com
prefeituras (nessas ocasiões os prefeitos são convidados a comparecer), mostra
resultados de projetos realizados, apresenta propostas de projetos a serem
viabilizados, expõe problemas e entraves da gestão para justificar o andamento de
determinados programas, assim como uma série de ações na mesma linha, a fim de
1
Existe um programa homônimo, ligado à secretaria de administração, de capacitação do
funcionalismo público do estado do Paraná, também denominado Escola de Governo. Ambos estão
inseridos nas iniciativas do governo estadual de promover a eficiência administrativa, mas suas
ligações formais se restringem a isso.
6
promover a transparência dos atos do governo. O governador também discorre
sobre assuntos diversos e contemporâneos à época, que estejam em voga na
opinião pública. O governador dá um tom despojado à sua fala, se permitindo fazer
brincadeiras e comentários jocosos com os secretários, o que estabelece um clima
de naturalidade à reunião. Ele também dialoga com os interlocutores em tom
informal, muitas vezes pedindo que tomem determinadas ações, verifiquem
determinado dado, e faz cobranças aos secretários, publicamente, essas as ações.
Característica marcante dessas reuniões são as intervenções e as falas do
governador, que não se abstém em opinar sobre os rumos que considera adequado
a tomar e a nominar adversários, de interesses contrários ao que considera os
interesses do estado – o que já lhe rendeu polêmicas e processos. Também não se
furta a responder publicamente, durante a reunião, às críticas que eventualmente
sofre, sobretudo da mídia jornalística estadual, e a tecer críticas a estas.
Vinculada à Casa Civil, a organização da reunião é incumbência do
Cerimonial do Governo, mas a pauta é definida pela Chefia de Gabinete do governo
de acordo com as demandas que chegam. A organização para a transmissão é
responsabilidade da rede Paraná Educativa. Oficialmente, sua transmissão não é a
finalidade, mas o meio de promover a transparência – a finalidade é a reunião de
governo em si. A criação e inicio da transmissão da Escola de Governo nasce no
contexto em que o governo do Paraná, na gestão Requião, cortou radicalmente os
gastos com publicidade paga nos meios de comunicação privados2, relegando esta
verba apenas ao mínimo necessário para campanhas de cunho social. O
fortalecimento da Paraná Educativa – em diversas áreas, como o jornalismo – se dá,
segundo o próprio governador Roberto Requião3, como uma estratégia para se
comunicar diretamente com a população sem a necessidade da mídia empresarial.
2
Segundo dados do governo do Paraná, em todo período entre 2007 e 2009 foram dedicados apenas
R$ 20,3 milhões à área de comunicação social.
3
Entrevista concedida em janeiro de 2008. Disponível em:
http://www.aen.pr.gov.br/modules/noticias/article.php?storyid=34595
7
3 ACCOUNTABILITY: CONCEITOS
Não existe tradução precisa ou adequada do termo accountability para o
português, apesar de alguns autores adotarem os termos responsividade ou
responsabilização, o que convencionou o seu uso na língua inglesa. A accountability
é o princípio pelo qual os governos são controlados pela sociedade; para isso devem
reportar-se aos cidadãos, prestar contas de seus atos, e sofrer as sanções
eventualmente impostas. Miguel (2005) sintetiza que a accountability “se refere ao
controle que os poderes estabelecidos exercem uns sobre os outros (accountabilty
horizontal), mas, sobretudo, à necessidade que os representantes têm de prestar
contas e submeter-se ao veredicto da população (accountability vertical).”
A
necessidade
de
controle
sobre
os
indivíduos
delegados
à
representação baseia-se no pressuposto hobbesiano de que o homem, mau,
deixado sem controle tenderia a abusos, o que pode ser percebido no escrito de
Madison:
Se os homens fossem anjos, não seria necessário haver governo. Se os
homens fossem governados por anjos, dispensar-se-iam os controles
internos e externos do governo. Ao constituir-se um governo – integrado por
homens que terão autoridade sobre outros homens – a grande dificuldade
está em que se deve, primeiro, habilitar o governante a controlar o
governando, e, depois, obrigá-lo a controlar a si mesmo. A dependência em
relação ao povo é, sem dúvida, o principal controle sobre o governo, mas a
experiência nos ensinou que há necessidade de precauções suplementares.
(MADISON, 2006)
Conforme apresentado por Schedler apud Horochovski (2008), existem
duas dimensões da accountability, que a constituem como um todo: answerability e
enforcement. Answerability é a capacidade de resposta dos governos, a obrigação
que os agentes públicos têm de informar e explicar seus atos. Enforcement refere-se
à capacidade das agências de accountability de impor sanções aos agentes que
violem os deveres públicos, ou seja, diz respeito essencialmente à punição.
Peruzzotti & Smulovitz (2000) definem que “Accountability refere-se à capacidade de
garantir que os funcionários públicos sejam answerable (responsáveis) por seu
comportamento, no sentido de serem obrigados a informar e justificar sobre suas
decisões e, eventualmente, de serem punidos por essas decisões.” (tradução livre)
Nessa definição constam as duas dimensões de answerability e enforcement, com
destaque para um elemento em especial da answerability: é importante ingrediente o
8
fator justificativa. Não basta informar, é necessário explicar as decisões tomadas, o
que pressupõe uma concepção dialógica. O princípio da accountability passa,
invariavelmente, pela questão da transparência e da publicidade, mas não se
resume a mero prestar de contas previsto pela burocracia legal; pressupõe diálogo.
Sobre este campo retomaremos, adiante, a análise do objeto em estudo, a Escola
de Governo.
A accountability pode ser exercida em duas esferas, denominadas vertical
e horizontal. A essas duas esferas tradicionais se acrescentou uma terceira esfera, a
accountability social.
A accountability vertical é exercida na relação entre o cidadão e o
representante eleito. Segundo definição de O’Donnel apud Horochovski (2008) “Os
mecanismos verticais são aqueles que possibilitam o controle dos agentes públicos
pelos cidadãos em geral”. A forma de controle mais básica em que o cidadão exerce
poder e impõe sanções aos agentes públicos é a eleição, em que, com o voto,
conduz ou retira os representantes de seus cargos.
Informação é a chave para esta tomada de decisão, e o responsável por
fornecer a informação é, muitas vezes, o representante político com interesses em
fornecer ou não tais informações. Manin, Przeworski & Stokes (2006) tecem uma
crítica à insuficiência do voto como mecanismo de controle e accountability,
justamente pelo, entre outros argumentos, déficit informacional existente para os
eleitores. Os autores argumentam que “a prestação de contas não é suficiente para
induzir a representação quando os eleitores têm informações incompletas” e que “as
eleições são inerentemente um instrumento nada acurado de controle.”. Apesar das
críticas, o voto ainda é considerado o principal momento em que o cidadão pode
impor sanções no processo da accountability.
A accountability horizontal, pela qual se passará brevemente por não
tocar no objeto desse estudo, se baseia no mecanismo de checks and balances
(freios e contrapesos) que preconiza a necessidade dos poderes, ao mesmo tempo
em que são autônomos, exercerem controle mútuo uns sobre os outros. A
fiscalização mútua e recíproca das instituições do Estado sobre si, lastreada no
princípio da compensação de ambições, em que “a ambição deve ser usada para
neutralizar a ambição” (MADISON, 2006), garante a eventual sanção por delitos
políticos. A sanção a partir dos mecanismos horizontais, judiciário e legislativo, é o
9
único meio de sanção formal (leia-se destituição do cargo) possível, de acordo com
as leis brasileiras, durante a vigência do mandato eletivo.
A terceira esfera de accountability, rejeitada por alguns autores, é a
accountability social, que, segundo Peruzzotti & Smulovitz (2000), é um mecanismo
não-eleitoral apesar poder ser caracterizado como vertical, à medida que o seu eixo
de funcionamento é externo ao Estado – o que leva autores como O’Donnel a
considerá-lo integrante dos mecanismos verticais. Peruzzotti & Smulovitz (2000)
diferenciam o mecanismo vertical, exercido por cidadãos não-organizados,
predominantemente eleitoral, do societal, pois este assenta-se em mecanismos
organizados. Conforme argumentam, o mecanismo social “se baseia em setores
organizados da sociedade e em instituições de mídia interessadas e capazes de
exercer influência sobre o sistema político” (tradução livre).
Compreende, desse modo, ONGs, movimentos sociais, associações civis
e a mídia. Apontam ainda que a accountability social pode ser exercida sem
necessitar calendários fixos e, diferentemente das outras esferas, não necessita
mandato ou requisitos legais. Essa instância exerce, sobretudo, funções de
vigilância, e funciona como ativador dos outros mecanismos de accountability. Nisso
reside a maior crítica a este mecanismo, pois não detém o poder de impor sanções
formais. No entanto, como defendem Peruzzotti & Smulovitz (2000) “as sanções que
eles aplicam são – na maioria dos casos – não formais, mas simbólicas” (tradução
livre). Por entender que a sanção simbólica – referente à reputação – também é uma
sanção (principalmente quando da reputação, ao menos em parte, dependem os
políticos para sua eleição), é salutar a separação proposta pelos mecanismos
societais.
No entanto, é importante deixar claro o papel da mídia nesse jogo.
Conforme adverte Miguel (2005) sobre a postura não isenta da mídia:
O pluralismo dos meios de informação é limitado, seja pelos
constrangimentos profissionais, seja pela pressão uniformizadora da
concorrência mercantil; ou, ainda mais importante, devido aos interesses
comuns dos proprietários das empresas de comunicação de massa, que,
aliás, formam um mercado cada vez mais concentrado.
Ou seja, a mídia exerce papel duplo, ainda que seja um mecanismo de
controle sobre o poder, e contribua para esse controle, ela também tem interesses
inseridos dentro do poder, sendo ideologicamente orientada.
10
4 DOS PRESSUPOSTOS LEGAIS
4.1 Transparência e publicidade na Constituição Federal e na Teoria do Estado
A transparência dos atos do governo é um elemento central em toda a
questão democrática. A publicidade (no sentido de tornar público) é o meio pelo qual
se efetiva a transparência. O texto da carta magna nacional, a Constituição Federal,
preconiza os princípios pelos quais deve ser regida a administração pública. O texto
do artigo 37 determina:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte:
Aqui, nos deteremos sobre o quarto item enunciado, o princípio da
publicidade. Sobre este, anota o texto do mesmo artigo em seu primeiro parágrafo:
o
§ 1 – A publicidade dos atos, programas, obras, serviços e campanhas dos
órgãos públicos deverá ter caráter educativo, informativo ou de orientação
social, dela não podendo constar nomes, símbolos ou imagens que
caracterizem promoção pessoal de autoridades ou servidores públicos.
Deste modo, procura-se estabelecer que os atos do governo sejam
públicos e, concomitantemente atendendo ao princípio da impessoalidade, não
contenham referências que promovam os governantes em si. O direito do cidadão à
informação também se assenta sobre o inciso XXXIII do artigo 5o da Constituição,
que anota:
XXXIII – todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de
seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão
prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas
aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do
Estado.
A Constituição apenas normatiza um princípio já estabelecido como uma
das bases estruturantes da Democracia e do Estado de Direito. A concepção do
direito do cidadão à informação, através da publicidade dos atos de governo,
fundamenta-se nas teorias da democracia. Noberto Bobbio (2000) define que “o
governo da democracia é o governo do poder público em público.” O jogo de
palavras enunciado por Bobbio refere-se às duas acepções de público, enquanto
oposição a privado, e no sentido de evidente, visível. Bobbio (2000) argumenta:
11
Que todas as decisões e mais em geral os atos dos governantes devam ser
conhecidos pelo povo soberano sempre foi considerado um dos eixos do
regime democrático, definido como o governo direto do povo ou controlado
pelo povo. E como poderia ser controlado se estivesse escondido?.
A questão da transparência não se refere apenas à possibilidade de
controle pelos cidadãos, mas à legitimação da própria definição do que é a
representação política exercida pelos eleitos em nome dos eleitores. Citando Carl
Schmitt, Bobbio expõe:
Representar significa tornar visível e tornar presente um ser invisível
mediante um ser publicamente presente. [...] A representação apenas pode
ocorrer na esfera da publicidade. Não existe nenhuma representação que
se desenvolva em segredo ou a portas fechadas. (CARL SCHMITT apud
BOBBIO, 2000).
Assim, a transparência dos atos de poder se constitui como um dos
princípios que formam a própria democracia e o Estado de Direito. No entanto,
existem diferentes interpretações possíveis para a palavra “publicidade” constante
na Constituição. Dar publicidade, enquanto ato de tornar público, ou fazer
publicidade, enquanto ato propagandístico. Como exposto, dar publicidade de seus
atos é imprescindível para o exercício da democracia, contudo, como será tratado
adiante, o fazer publicitário contemporâneo vai além do simples tornar público,
transformando-se o meio, a publicidade, em objeto per se.
4.2 A Publicidade oficial
A publicidade oficial, no Brasil, é prevista conforme as bases legais já
expostas, contudo não há regulamentação adicional nem maiores pormenores para
sua aplicação.
A expressão “publicidade oficial”, também chamada imprensa oficial,
comumente refere-se àquela parcela da publicidade governamental destinada à
divulgação oficial dos atos de governo, para que possam gerar efeitos jurídicos, tal
como nomeações e demissões, editais de concorrência pública, concursos etc. Os
atos oficiais de governo só têm validade jurídica após sua publicação, que se dá
através do Diário Oficial, tanto nas esferas federal, estadual e municipal.
Contudo, toda publicidade realizada pelo Estado é “oficial”, e, portanto, a
publicidade paga veiculada em mídia privada também é considerada “publicidade
12
oficial”, não havendo, no direito ou na legislação, diferenciação no tratamento de
ambas. Desde modo, pode-se interpretar a partir do termo “publicidade” na
Constituição tanto que a publicidade oficial é meramente a publicação dos atos do
governo no Diário Oficial, quanto que o Estado pode (ou mesmo deve) veicular
anúncios na mídia corporativa.
O uso empírico da expressão publicidade oficial para designar a imprensa
oficial já demonstra as diferenças entre a publicidade obrigatória e necessária, e a
propaganda de governo. Acredita-se ser fundamental essa distinção, e aqui será
adotado o termo publicidade oficial apenas para designar esta tipologia de
publicidade, enquanto o termo publicidade designa a publicidade paga comercial.
13
5 PUBLICIDADE, PROPAGANDA E Um OUTRO TERMO
5.1 Conceitos e indistinções
Tradicionalmente, sobretudo no Brasil, existe uma indistinção teórica a
respeito dos conceitos de publicidade e propaganda, usados muitas vezes como
sinônimos. Como Pinho (1990) aponta, “as definições de publicidade e de
propaganda envolvem profundas contradições”. Citando Rabaça e Barbosa aponta a
interpretação comumente mais usada:
Em geral, não se fala em publicidade com relação à comunicação
persuasiva de idéias (nesse sentido propaganda é mais abrangente, pois
inclui objetivos ideológicos, comerciais etc); por outro lado, a publicidade
mostra-se mais abrangente no sentido de divulgação (tornar público,
informar, sem que isso implique necessariamente em persuasão (RABAÇA
& BARBOSA apud PINHO, 1990)
No entanto, diversos autores apresentam concepções distintas, ligando a
publicidade à técnica de promoção e vendas de produtos. Pinho demonstra que a
publicidade, que inicialmente designava o ato de divulgar, tornar público, ganhou –
ao longo da história e sobretudo a partir da Revolução Industrial – contornos de
persuasão, deixando em segundo plano o sentido informativo. Hoje o termo
publicidade é comumente empregado para designar a venda de produtos e o
despertar do desejo de compra, em sentido comercial.
Já propaganda (do latim propagare, propagar), devido ao seu uso pela
Igreja Católica no século XVII na Congregatio de Propaganda Fide (Congregação de
Propagação da Fé), impregnou-se de sentido institucional, de propagação de idéias,
valores, ideologia etc. No entanto, contemporaneamente, o termo propaganda
também passou a ser usado no sentido comercial, usado para designar inclusive a
peça publicitária em si, a propaganda, contribuindo para a indistinção conceitual dos
termos propaganda e publicidade. Bobbio (1998) define propaganda como ato
persuasivo:
difusão deliberada e sistemática de mensagens [...] visando a criar uma
imagem positiva ou negativa de determinados fenômenos e a estimular
determinados comportamentos. A Propaganda é, pois, um esforço
consciente e sistemático destinado a influenciar as opiniões e ações de um
certo público ou de uma sociedade total.
14
No plano da sociologia do direito, Castro (1979), de forma semelhante a
Bobbio, define a propaganda como “técnica que consiste em controlar as atitudes e
visa propiciar um clima de necessidades, levando os indivíduos a satisfazê-las de
acordo com o que lhes é sugerido” e ressalta como característica fundamental que
“a propaganda não admite diálogo”, não aceitando esta a opção de julgamento
contrário ao apresentado. Ainda Bobbio (1998), procurando definir as características
da propaganda, descreve que esta é deformada e parcial, e adota uma postura de
verdade frente a determinado ponto, não estando disposta a discussão:
A informação nunca é apresentada em toda a sua inteireza, contendo
sempre um elemento de valor bastante acentuado, geralmente assinalado
pela presença de adjetivos "fortes"; ao mesmo tempo, os argumentos
eventualmente contrários, ou são ignorados, ou ridicularizados, ou tratados
como irrelevantes, mas sem nunca se entrar na sua essência.
Em síntese, modernamente a publicidade e a propaganda se misturam,
gerando uma indiferenciação dos limites de cada uma. Independentemente do que
seja, ou da postura teórica que se adote, o amalgama de definições gerado abre
espaço para interpretações – e mais: ações – no sentido de que seja juridicamente
legal governos fazerem propaganda, o que proporciona brechas para a malversação
do uso da publicidade estatal.
5.2 Publicização
Devido aos problemas conceituais expostos, adotar-se-á aqui o termo
publicização4 para designar o ato de tornar algo público, em sentido amplo. Apesar
do termo não estar dicionarizado nem teorizado, a raiz público mais o sufixo do
indicativo de agir, que constituem a palavra, indicam a ação de tornar público. Esse
conceito é amplo, abrangendo toda e qualquer informação que venha a público (em
discursos políticos, entrevistas de governantes etc), e não somente aquela
publicada, como pode ser interpretado ante o termo publicidade. É, dessa forma, um
termo mais adequado para o setor público, pois contém o significado que no
passado o termo publicidade já teve, mas que foi perdido. Assim, esse estudo versa
sobre o tornar público na esfera pública, seja em forma de publicidade ou
propaganda, sem recair em confusões conceituais.
4
É importante não confundir o uso aqui empregado com termo homônimo usado no direito para
designar a forma de desestatização na qual as organizações sociais assumem as funções das
entidades públicas.
15
6 SOBRE A PROPAGANDA ESTATAL
6.1 Neutralidade da publicidade
Conforme Bakhtin (2006) apresenta em sua filosofia da linguagem, os
objetos não existem em si, estão inseridos dentro de um sistema ideológico de
símbolos e representações. Um signo (imagem, palavra, escrita, som, objeto etc)
fora de sua realidade não seria passível de ser reconhecido ou compreendido. Para
Bakhtin (2006), a compreensão só existe devido à realidade na qual o objeto está
inserido e, portanto, não se pode falar de nada fora de seu sistema de
representações, pois logo perderia a sua própria definição. Desse modo, também
não se pode falar em neutralidade, característica do que não tem ideologia ou é
desprovido de posicionamento. A publicidade também não pode se querer neutra,
uma vez que é concebida e está inserida dentro dessa rede de significações, tanto
dos emissores quanto de seus receptores.
Versando sobre a imputabilidade dos sujeitos enquanto agentes de
Estado, Hans Kelsen (2005) formula o pensamento que pode ser expandido para
esta tese: “Falar das obrigações e direitos do Estado não quer dizer que algum ser,
que existe separadamente dos indivíduos humanos, “tem” essas obrigações e
deveres.”
O que Kelsen diz é que não existe Estado em si, separado de seus
agentes, e só através dos indivíduos ele pode se efetivar. Interpretando Kelsen,
pode-se afirmar que, assim como não pode existir delito de Estado, mas do agente
que age em nome dele, não há como existir uma publicidade de Estado, fora do
mundo e contexto no qual estão inseridos, e, portanto, que não se constitua
promoção pessoal de determinado governante.
Desde modo, ainda que a constituição proíba a utilização de “nomes,
símbolos ou imagens que caracterizem promoção pessoal”, tal designação é
mesmo impossível de ser cumprida, uma vez que: a) não existe Estado sem seus
governantes e agentes; b) tudo se constitui como símbolo; c) ainda que seja
implícito e indireto, sempre haverá uma promoção pessoal do realizador da obra,
visto que as relações semióticas operam por mecanismos subjetivos demais para a
normatização jurídica.
16
Quanto à definição de símbolo, reconhece-se que o terreno é contestável,
devido à sua polissemia. Símbolo, como tratado na Constituição, refere-se à questão
objetiva e material, enquanto tratado de forma subjetiva pela filosofia. Menos
controverso, no entanto, é a promoção angariada. Tome-se, por exemplo, que
determinado governo realizou uma propaganda de suas obras, enquadrando-se em
todos dispositivos legais. Ainda que a propaganda não mencione o governante, o
receptor (aquele a quem se destina a publicidade) está inserido em um universo no
qual tem conhecimento que o governo X é do governante Y. Logo, ainda que
indireto, há promoção pessoal do governante ao ser realizada a publicidade de seu
governo – recurso que é fartamente usado pelos governantes.
6.2 (Não) Propósitos da propaganda estatal
A publicidade (ou propaganda) de e no governo, constitui, a partir do
modo como foi apresentada até aqui, uma problemática por sua indistinção entre os
limites da publicidade estatal e da propaganda pessoal.
Eugênio Bucci (2008) argumenta que existe uma separação entre as
informações que o governo tem o dever de tornar públicas, que, para ele, fluem através
dos meios jornalísticos, e a publicidade de governo, localizada na esfera da publicidade
paga. Ainda que contenha conteúdo informativo, o que atenderia ao dispositivo
constitucional, o problema se deve à própria natureza persuasiva do discurso
publicitário. Bucci (2008) exemplifica essa prática com uma questão indiscreta:
Tome-se, por exemplo, uma propaganda de governo que supostamente
alerta o público para os riscos da Aids e pergunte-se: sua finalidade é
proteger aqueles que podem estar expostos ao contágio ou é convencer os
que estão menos expostos ao contágio de que o governo é tão magnânimo,
humano e solícito que cuida de perto da saúde do povo?
Para Bucci (2008), e consoante ao que se expôs sobre a neutralidade da
publicidade, toda publicidade de governo não tem como deixar de ser, ao fim, a
promoção das causas e do próprio governante. Devido a isso, sintetiza pensamento
em linha também defendida pelo signatário:
Para ‘publicizar’ seu trabalho, os governos usam dinheiro público na compra
de espaço publicitário a toda hora. [...] a democracia deve prescindir desse
tipo de custo; o que interessa ao cidadão é que lhe seja assegurado o
acesso às informações de seu direito e de seu interesse sobre a gestão
pública e, para isso, ele não precisa de publicidade paga, salvo em
circunstancias excepcionais.
17
Esse âmbito, da publicidade paga, refere-se às relações entre governo e
empresas privadas, e a compra de espaço em meios de comunicação privados. O
uso pela publicidade pública dos mesmos mecanismos e recursos (técnicos,
narrativos, lingüísticos etc.) da publicidade comercial, não constituindo uma
característica própria da publicidade do setor público, evidencia qual o real propósito
de tais mensagens. Levando em conta que, salvo exceções (campanhas de
orientação social, por exemplo), o dever do Estado ao fazer publicidade é prestar
contas e gerar transparência, pode-se fazer uma analogia com a questão levantada
por Bucci, e questionar: que contas podem ser prestadas em um comercial de 30
segundos em horário nobre na televisão ou em um anúncio de página inteira em
revista/jornal, além de passar a mensagem da eficiência daquela administração?
Nesse sentido, se fazem necessários para a publicização efetiva no setor
público menos recursos propagandísticos e mais recursos dialógicos, como
preconiza o princípio da accountability. Pode-se entender nas ações do governo do
Paraná, na gestão analisada, uma posição consoante à exposta – e oposta à prática
majoritária – ao notoriamente não investir em publicidade paga nos meios de
comunicação privados. A Escola de Governo é um passo importante rumo ao tornar
público sem a conotação comercial no uso da propaganda estatal.
6.3 Apropriação da comunicação estatal
O eminente Raymundo Faoro demonstra que, devido às características
da formação do Estado brasileiro, este não adquiriu o conceito da “administração
burocrática”, fundando-se sob a prática do patrimonialismo (Faoro, 2001). A
característica patrimonialista não distingue sociedade e Estado, nem as idéias de
público e privado. O Estado patrimonial, uma vez tomado pelo agente político,
passava a arcar com seus gastos e custos, e o interesse pessoal de tal agente se
transformava em interesse do Estado, configurando assim a apropriação
patrimonialista do Estado. Essas características advindas da monarquia no
nascimento do Estado brasileiro determinariam, até os dias de hoje, a organização
política brasileira. Ainda que os tempos tenham mudado, os traços patrimonialistas
teriam permanecido no espírito nacional. Contemporaneamente, pode ser visto,
sobretudo na área da comunicação, os resquícios desses traços patrimonialistas, em
18
que, como já ensejado, o governante se apropria da publicidade estatal para
promover-se, ainda que sob a égide da lei.
Nesse contexto característico nacional é importante fazer algumas notas
sobre o comportamento antagônico do governo do estado do Paraná. A postura do
governo do Paraná frente à publicidade paga e o corte dos investimentos em
propaganda sinaliza, à primeira vista, o salutar abandono da postura de apropriação
do Estado, de fazer propaganda de si mesmo, de vangloriar-se pelas suas
realizações, que caracteriza majoritariamente os governos brasileiros, em todas as
esferas de governo.
No entanto, concomitantemente, vê-se a ampliação da comunicação
estatal por meio da rede pública. O papel da Paraná Educativa na comunicação
governamental do governo Roberto Requião vai além do âmbito da Escola de
Governo, tomando os intervalos comerciais e os noticiários da emissora. A
administração fortaleceu e ampliou a televisão estatal, de modo a construir um
contraponto à mídia corporativa. Não se vai entrar aqui, por não ser este o foco
deste estudo, no mérito da questão de como a Paraná Educativa veicula, em seus
comerciais, publicidade do governo estadual, ou na análise de seu teor, nem nas
relações entre governo e o jornalismo favorável ao governo exercido na emissora –
material este que renderia um belo estudo à parte. Tais posições são legitimadas
pela discussão sobre qual o verdadeiro papel de uma emissora pública: comportarse de modo “neutro”, na mesma linha das empresas privadas, ou assumir a função
de promoção das questões públicas de interesse do Estado, e, em conseqüência, da
comunicação governamental. A Escola de Governo nasce dentro desse debate
sobre o papel de uma emissora pública.
Contudo, vale registrar que, ainda que tenha o mérito de não gastar
dinheiro público em empresas privadas, a publicidade veiculada nos intervalos
comerciais no canal estatal continua sendo publicidade – ainda que esta, ao
contrário
das
mensagens
veiculadas
nas
redes
privadas,
distinga-se
esteticamente da formulação comercial da propaganda. E, conforme defendido
por Bucci (2008), acredita-se que “(os governos) não deveriam precisar de
propaganda de si mesmos”.
19
7 ESCOLA DE GOVERNO: PROMOÇÃO DA ACCOUNTABILITY
A accountability é um processo contínuo que é exercido em diversas
esferas e momentos, o que impossibilita tratá-la como um conjunto fechado e
completo, mas em características e momentos. Como apresentado, ela pressupõe
três momentos chave – informação, justificativa, e punição – na relação entre
agentes públicos e cidadãos. A publicidade oficial e a publicidade realizada por
governos, tal como costumeiramente praticada e garantida pela Constituição,
garante (quando garante) somente o primeiro momento, da informação. Acredita-se
que
é
no
segundo
momento
que
reside
o
diferencial
da
publicidade
constitucionalmente garantida para o verdadeiro processo de accountability, a
explicação das decisões.
Como já apresentado, a dimensão da answerability exige que os agentes
públicos informem sobre seus atos e os justifiquem, os expliquem, e é sob esse
prisma que se entende a Escola de Governo como uma contribuição valorosa ao
processo da accountability. A Escola de Governo é essencialmente uma esfera
argumentativa. Diferentemente da publicidade paga, que exige restrições em tempo,
espaço e linguagem, as ações apresentadas durante a Escola de Governo decorrem
por longos períodos de tempo a cada reunião, sem determinação de tempo, com
explicações em pormenores das ações. Pode-se dizer, desse modo, que, além de
atender a esfera da explicação das ações, a qualidade da informação transmitida é
mais substancial.
A titulo de exemplo, para melhor compreensão, pode-se citar alguns
casos de prestação de contas (e serviços à sociedade) realizados pela Escola de
Governo. Balanços de secretarias são comuns. Apenas para ilustrar, em janeiro de
2009 ocorreu uma reunião em que o secretário de planejamento fez um balanço das
políticas de desenvolvimento do estado, apresentando os resultados obtidos. Em
maio foi a vez da secretaria de saúde fazer balanço semelhante, apresentando as
ações desenvolvidas, seus objetivos e resultados. Essas apresentações apóiam-se
em dados, números e estatísticas, geralmente apresentados em formato de slides
em um telão. Apesar de a pauta positiva prevalecer, também as áreas “sensíveis” ao
governo (aquelas atacadas pelos críticos e oposição como sendo ineficientes) são
tratadas durante o programa, a exemplo da segurança pública, tema de uma reunião
20
de outubro de 2009. A relação com a sociedade como um todo também é mais
ampla. A Escola de Governo muitas vezes foge da pauta política para promoção de
temas de interesse social. Ocorre, por vezes, de corais de escolas públicas se
apresentarem durante reuniões, incentivando assim ações de promoção cultural.
Durante o surto da gripe Influenza A (H1N1), em agosto de 2009, um programa foi
dedicado a debater o tema, em que o secretário estadual de saúde explicou as
implicações, precauções, limites e “mitos” a respeito da nova gripe. Este programa
foi considerado, pelo governo, como exemplo da importância da Escola de Governo
para a informação à população.
As reuniões não são somente de prestação de contas, mas também de
anúncios de medidas a ações que estão se iniciando ou sendo planejadas, assim
como de debate sobre as ações a serem tomadas. A exemplo de reunião em
dezembro de 2009, em que se abriu espaço para discutir a participação dos
municípios do Paraná no ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e
Serviços). Em maio de 2009, o governador Roberto Requião convidou, durante uma
das reuniões, os prefeitos do Paraná a mostrarem ações e programas desenvolvidos
em suas cidades nas reuniões semanais da Escola de Governo. Intentava assim,
tornar a reunião um espaço para a demonstração e compartilhamento das boas
práticas governamentais. Apenas um exemplo, que ganhou mais destaque, dos
contratos e assinaturas de projetos que costumeiramente são firmados publicamente
durante as reuniões, foi em setembro de 2009, em que governador Roberto Requião
sancionou, após aprovada pelo legislativo, a lei antifumo estadual durante a reunião
da Escola de Governo. Na oportunidade, o governador discorreu sobre os
argumentos favoráveis que o levaram a encampar o projeto, e refutou os
argumentos contrários à lei. Para seus críticos, intenção de promover seu ponto de
vista e de demonstrar serviço. Na impossibilidade humana de se averiguar as
intenções do governador pode-se apenas analisar o efeito produzido: transparência
dos atos do governo e, além, dos motivos que levaram o governo a adotar tal ato.
A respeito de explicações é importante notar o processo de resposta à
sociedade, no qual está inserido a Escola de Governo. São notórias as respostas
que, na reunião semanal, o governador dá aos noticiários e à imprensa paranaense.
Muitas vezes sem medir palavras, o governador, com a veemência que lhe é
peculiar, rebate críticas que tenha sofrido e tece suas próprias críticas aos meios de
21
comunicação. Entendendo o papel exercido pela imprensa como accountability
social, pode-se afirmar que as respostas de Requião são também accountability,
vertical, para com os cidadãos. Poderia ele não responder, omitir-se, ignorar, ou
uma série ações possíveis, mas, ao optar por rebater as críticas feitas ao governo,
ao responder a questões desagradáveis, incômodas, o governador está explicando
seus atos, dando satisfações ao cidadão, e gerando transparência. Assim evidenciase como a accountability é um processo contínuo e circular, ela ocorre no momento
em que a imprensa tece uma crítica, e no momento em que o governador a rebate,
demonstrando capacidade de resposta e justificação para com o cidadão. Desse
modo, a Escola de Governo contribui também para criar uma esfera pública de
debate, o cenário por onde passam, publicamente, todos os temas relacionados ao
governo, incômodos ou não a este.
Também vale ressaltar o papel de aproximação do governo à sociedade e
aos cidadãos comuns, proporcionado pela Escola de Governo. A Escola de
Governo, além de promover transparência sobre as ações do governo, leva o
cotidiano governamental para dentro da casa do cidadão, por meio da transmissão
televisiva. O cidadão pode acompanhar, semanalmente, as ações, os progressos, o
andamento, e os temas em pauta no governo do estado. Assim, o governo
abandona a mediação dos meios de comunicação e da imprensa para estabelecer
uma relação direta do cidadão com o centro do poder: as decisões e argumentações
do governo para tomar tais decisões são apresentadas diretamente, sem
intermediários. Baseado nas informações e argumentações expostas o cidadão está
munido de informação para tomar seu posicionamento em relação ao governo, a
favor ou contra.
22
8 ESCOLA DE GOVERNO: CARACTERÍSTICAS DE PROPAGANDA
Apesar dos avanços no campo da accountability, a Escola de Governo
também detém traços fundamentalmente ligados à propaganda. Ainda que todo tipo
de publicidade gere, por conseqüência, um favorecimento à imagem do governante,
a reunião do secretariado paranaense é marcada pelo personalismo do governador
Roberto Requião. Ele comanda o programa, faz intervenções e dita a opinião do
governo – o que seria natural, por ser o governador. Weber ao estabelecer os
fundamentos pelos quais a autoridade se legitima situa o Estado essencialmente no
campo da legitimidade legal-racional (ou burocrática), adquirida pelo reconhecimento
(e submissão) do cidadão perante a lei e o Estado instituído. Apesar de estar ali em
nome do Estado, Requião apresenta papel muito mais próximo da autoridade
carismática, que segundo Weber “descansa na entrega extraordinária e na
santidade, heroísmo e exemplo de uma pessoa” (WEBER, 1999). Sobre o papel de
liderança carismática exercido pelo governador Requião assentam-se as críticas por
parte da oposição ao governo e setores da mídia sobre o uso da transmissão da
Escola de Governo para promoção pessoal. Poder-se-á argumentar, em resposta,
que o governador está exercendo, em uma reunião de secretariado, a liderança
própria do seu cargo.
No início de 2008, a Escola de Governo ganhou destaque nacional ao ser
matéria de uma decisão judicial em que o juiz Edgard Lippmann Júnior, do Tribunal
Regional Federal da 4.ª Região, proibiu Requião de emitir opiniões e fazer críticas na
programação da emissora pública. Segundo a hermenêutica do juiz Lippmann em
sua sentença:
...é fato público que o Agravado, Governador do Estado do Paraná, Sr.
Roberto Requião é useiro e veseiro em tecer críticas ácidas tanto à
imprensa paranaense, políticos desafetos, bem como às instituições
públicas, especialmente o Ministério Público e a alguns de seus integrantes,
o
o
não poupando nem a Justiça Federal (1 e 2 graus), quando proferem
decisões em desfavor aos interesses do Estado do Paraná.
E a mesma sentença determinava:
...impor ao Agravado, Roberto Requião de Mello e Silva, se abstenha de
praticar atos que impliquem em promoção pessoal, ofensas à imprensa,
adversários políticos e instituições, com a utilização indevida de qualquer
programa, propaganda ou comercial veiculado pela Rádio e TV Educativa
do Paraná, especificamente, no programa “Escola de Governo.
23
O que se realizou, na prática, foi a suspensão preventiva do direito de
expressão do governador por causa, no entendimento do juiz Lippmann, do uso
indevido da Escola de Governo para a promoção pessoal do governador. Tal
decisão causou polêmica e reações da sociedade civil, frente ao que foi considerado
censura. Tal decisão, posteriormente, foi revista e extinta.
Segundo as definições de Castro e de Bobbio das características da
propaganda, esta não permite o diálogo, não há espaço para respostas. Nesse
movimento a Escola de Governo pode ser enxergada sob dois prismas. Ao mesmo
tempo em que, junto com outras forças da sociedade, integra um grande conjunto
que promove um diálogo da sociedade, ela se manifesta apenas como uma parte
desse diálogo. Dentro da reunião não há, na prática, espaços de debate ou abertura
para questionamentos; a decisão e a opinião do governo são manifestadas de modo
pronto e acabado, tal qual definida a propaganda, que não admite argumentos
contrários, sendo estes descartados como “errados”. Entendendo propaganda por
propagação de idéias, o que se verifica é, mais do que a simples exposição, a
promoção das causas do governo, do ponto de vista do governo. Assim, a Escola de
Governo se constitui como um campo de defesa e promoção dos interesses,
bandeiras e opiniões do governo e de seus agentes. Campo público, mas exercido
de forma monopolística, a que não tem acesso outros setores e agentes.
A inexistência de uma formalização a respeito da concepção da Escola de
Governo é outro ponto que incorre contra a mesma. Não existe, formalmente, uma
definição sobre sua concepção, uma carta de intenções ou objetivos e metas formais
– os objetivos expostos resumem-se a expressões informais. Deste modo, a Escola
de Governo é não é uma reunião de Estado, mas da administração. O que pode ser
empiricamente evidenciado pelo fato de ter se tornado comum a ironia de setores
contrários ao governo que chamam a Escola de Governo de “Escolinha do Requião”,
apelido adotado popularmente e, em certa medida, pelo próprio governo. A Escola
de Governo fundamenta-se sobre a vontade pessoal do governador, sob ela foi
instituída, e sem ela inexistente. Característica que enfraquece toda a inovação
positiva do projeto – uma vez que o governador deixe o cargo, a iniciativa corre o
risco de desaparecer, o que evidencia não se tratar de uma iniciativa de Estado.
24
9 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Toda e qualquer forma de publicidade gera promoção. A publicidade não
tem como ser neutra, como se o Estado pudesse existir sem seus agentes. A Escola
de Governo também gera promoção para os seus agentes. Contudo, existem meios
e meios de realizar a publicidade estatal. O governo do Paraná optou por um modelo
inédito, que abandona a publicidade comercial paga e aproxima a administração dos
cidadãos. Enquanto o discurso publicitário comercial procura mascarar a
propaganda de governo com ares de oficialidade, os agentes públicos da Escola de
Governo, secretários e afins, “mostram a cara”, expondo-se para as críticas públicas.
Promovem-se, sim, mas com isso também expõem, conforme Bobbio define a
democracia, o público em público.
A accountability depende fundamentalmente não só de informação, mas
de justificativa. Nisso distingue-se a Escola de Governo da publicidade nos veículos
comerciais, tal qual tradicionalmente realizada. Enquanto essa assegura somente
informação, na Escola de Governo existe espaço para a justificativa e explicação de
tais atos. O que, inevitavelmente, acaba incorrendo também como promoção e
difusão do ponto de vista apresentado, o que a caracteriza como propaganda. Os
limites são tênues, e não imperativos; não há como estabelecer uma linha entre uma
coisa e outra. É as duas coisas, simultaneamente, todo o tempo.
Existem muitas e graves vicissitudes no modelo, como a apropriação
patrimonialista da comunicação estatal através da rede pública. Mas aqui defendese, conforme o entendimento de Bucci, que o papel do Estado não é fazer
propaganda de si mesmo, apregoar-se de seus feitos. E nisso a gestão analisada
obtém sucesso, por abandonar a publicidade em veículos comerciais. É um avanço
rumo à publicização no setor público sem a conotação comercial que se impregnou
no fazer governamental. Enquanto a publicidade paga só apresenta a informação, a
reunião semanal expõe os argumentos que levaram à decisão, e seus resultados.
Menos propaganda, e mais diálogo. Mais democracia.
É uma iniciativa que pode, e precisa, ser aperfeiçoada – um modelo
menos personalista e mais baseado na tecnicidade estatal seria recomendável –
mas que, mesmo com seus defeitos, se constitui como uma importante ferramenta
democrática de promoção da accountability e da cidadania.
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2006.
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2007.04.00.003706-6/PR. Agravante: Ministério Público Federal. Agravado: União
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Relator: Edgard Antônio Lippmann Júnior. Porto Alegre, 08 de janeiro de 2008.
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Dinheiro da propaganda no Paraná é usado para construção de escolas e hospitais,
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“Estou sendo censurado”, afirma Requião a Paulo Henrique Amorim. Conversa
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WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
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27
___________________________________________________________________
AUTORIA
Márcio Cunha Carlomagno – Graduando em Gestão Pública pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR), e graduando em Comunicação Institucional pela Universidade Tecnológica Federal do
Paraná (UTFPR). Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Endereço eletrônico: [email protected]
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accountability ou propaganda? a publicização no setor público