TRAVESSIAS DIFÍCEIS, DIVISÕES DIVERTIDAS E QUADRADOS
MÁGICOS: EVOLUÇÃO HISTÓRICA DE TRÊS RECREAÇÕES
MATEMÁTICAS1
Josinalva Estacio Menezes
UFRPE/UFRN
[email protected]
Os jogos em geral sempre estiveram ligados à vida social, como à religião,
às artes e outras manifestações culturais do homem. Entre suas várias funções têm sido
sempre instrumentos de aprendizagem; vêm a ser também uma forma de linguagem
usada para a transmissão das conquistas da sociedade em vários campos do
conhecimento, pois ao ensinarem o jogo, estão ensinando a própria vida. Alguns jogos,
tais como o cabo-de-guerra, o xadrez e os wargames são considerados o espelho da
cultura e da sociedade.
Os jogos de estratégia ou matemáticos, que se incluem entre as recreações
matemáticas, se constituem num tema de forte interesse para os pesquisadores da
Educação Matemática. Nos dias de hoje, existem registros sobre sua existência,
discussão e tratamento matemático desde o século XIV. Ênfase é dada, também hoje, ao
estudo da História da Matemática, com indicações para sua inclusão nos currículos de
matemática das escolas em geral. No que tange aos jogos, no entanto, as divulgações
históricas mais comuns têm-se limitado à propagação de algumas lendas, evidências
históricas da existência de determinados jogos em alguns locais (SEABRA, 1979) e a
uma discussão matemática mais profunda sobre algumas recreações específicas
(LUCAS, 1882). Assim, escolhemos como tema para o nosso trabalho foi a evolução
histórica do tratamento matemático dado a três recreações matemáticas. A razão de tal
escolha vai desde as experiências pessoais e profissionais do dia a dia – onde os
questionamentos mais comuns sobre os que tomam contato com a matemática levam à
idéia de que as circunstâncias nas quais o processo de ensino e aprendizagem de
matemática ocorre leva o aluno a conhecer o lado mais penoso e obscuro da
1
Agradecemos ao Professor Doutor John Andrew Fossa pela orientação dada neste trabalho.
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matemática, passando pela inexistência de textos sobre o tema escolhido; encontramos
coleções de jogos organizadas de acordo com diversos critérios (desafio, cronologia,
assunto, tratado de um único ou alguns jogos, etc.), de textos escritos por matemáticos
ou não, sobre o que podemos chamar de “o lado lúdico da matemática”, inclusive textos
em prosa, passando também pela fascinação exercida pelas lendas e pelo mistério de
que se revestem as recreações matemáticas - motivo de encantamento e interesse por
parte dos que tomam contato com estes elementos narrativos, encantamento que parece
ser o que impulsiona a produção das recreações matemáticas, sempre presente nos
depoimentos dos autores em seus prefácios ou introduções das publicações até as razões
acadêmicas: o tema está relacionado a duas áreas de interesses do atual contexto da
Educação Matemática: a História da Matemática e os jogos.
Neste trabalho, realizamos uma pesquisa com mais efetiva sobre a história
de algumas recreações matemáticas, a partir dos textos, tanto reais quanto virtuais,
acessados sobre o assunto. Hoje, existem várias terminologias para o termo recreações
matemáticas, o qual não parece se restringir a uma época ou a um local. Desde as
primeiras publicações até o século passado, porém, notamos o uso do termo jogo
matemático ou recreação matemática. Seria, contudo, impossível abranger todos as
recreações matemáticas que a humanidade já produziu. As causas vão desde o extravio
ou destruição de material antigo, que possa comprovar as origens, passando pelo acesso
a todas as publicações existentes, nem sempre em locais abertos ao público ou
acessíveis pela pesquisadora, até a exaustão: ainda que conseguíssemos catalogar todos,
a lista não estaria esgotada, pois a cada dia novas recreações podem surgir, isso sem
considerar também suas mais diversas formas de apresentação. Existem as poesias,
desafios, pensamentos, estórias e várias manifestações artísticas, o que torna ainda mais
abrangente seu âmbito. Assim, delimitamos nosso estudo a três recreações matemáticas:
As travessias difíceis, as divisões divertidas e os quadrados mágicos. Para nosso
trabalho utilizamos a pesquisa bibliográfica. Para isso, buscamos textos impressos,
periódicos especializados, e internet, com os textos virtuais e livros on-line que são
disponibilizados para os “internautas”2. Assim, nossa questão de pesquisa foi a seguinte:
ao longo do estudo das recreações matemáticas em questão, a evolução do
conhecimento matemático, as idéias de rigor na construção das teorias, e as novas
teorias que surgem tendem a se refletir no tratamento dado à discussão e na busca de
solução das versões dos problemas recreativos?
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Acreditamos que esse trabalho pode vir a ser uma contribuição que
permitirá, além do esboço de uma evolução histórica de algumas recreações
matemáticas, aprofundando o que se sabe sobre o tema, reforçar as razões para utilizar
recreações matemáticas no processo de ensino e aprendizagem, acrescentar mais
elementos aos já existentes para a melhor compreensão de conceitos e estruturas dos
componentes da matemática, tais como escolha de soluções e de estratégias vitoriosas,
vir a auxiliar nos elementos que poderão ajudar na motivação para a busca do
conhecimento matemático, o que poderá se refletir no conjunto de contribuições às já
existentes para a melhoria do processo de ensino-aprendizagem da matemática.
De um modo geral, as recreações matemáticas têm sido produzidas por
pessoas que lidam profissionalmente com matemática no seu dia-a-dia, pesquisadores,
professores ou estudiosos de matemática que produzem novos conhecimentos ou novas
teorias matemáticas. Os autores que discutem as recreações e, portanto, as diferentes
versões dos problemas, são apresentadas em ordem cronológica, para facilitar a análise
da evolução do tratamento matemático dado à busca da solução das mesmas.
Procuramos manter o enunciado original dos problemas como foram historicamente
formulados, seguidos de uma tradução livre ou acessada nas consultas bibliográficas.
A primeira recreação discutida foi intitulada travessias difíceis, que
correspondem aos problemas originais constantes na obra de Alcuíno de York e suas
variações e ampliações ao longo do tempo.
2
Termo atual e comumente utilizado referindo-se a todos os que utilizam ou “navegam” na Internet.
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Desenho de Alcuíno de York.3
Pesquisamos alguns dados de Alcuíno, a quem é atribuída a autoria da
primeira versão do problema das travessias, intitulada o problema do lobo, a cabra e a
couve: “Homo quidam debebat ultra flavium transferre lupum, capram, et fasciculum
cauli. Et non potuit aliam navem invenire, nisi quae duos tantum ex ipsis ferre valebat.
Praeceptum itaque ei fuerat ut omnia haec ultra illaesa omnino transferret. Dicat, qui
potest, quomodo eis illaesis transire potuit.”, cuja solução é “Simili namque tenore
ducerem prius capram et dimitterem foris lupum et caulum. Tum deinde venirem,
lupumque transferrem: lupoque foris misso capram navi receptam ultra reducerem;
capramque foris missam caulum transveherem ultra; atque iterum remigassem,
capramque assumptam ultra duxissem. Sicque faciendo facta erit remigatio salubris,
absque voragine lacerationis.”4 o enunciado original do problema e as formas de
discussão e interpretações encontradas à luz de teorias posteriores. Em seguida,
mostramos a versão do problema da travessia do casal e dois filhos, também proposta
3
O desenho de Alcuíno de York foi capturado no site
http://www.malhatlantica.pt/mathis/Europa/Medieval/Alcuin/Alcuino.htm ...em 16/02/2003
4
Uma tradução livre para o enunciado seria “Um homem se encontra na margem de um rio com um lobo,
uma cabra e uma couve. Para atravessar o rio existe apenas um barco tão pequeno, que cabe apenas o
homem e um de seus pertences. Pergunta-se como pode atravessar em segurança o homem junto com seus
pertences”. E para a solução seria: “Primeiro ele atravessa com a cabra, deixando a couve e o lobo.
Depois, volta para o outro lado do rio e atravessa com o lobo, trazendo de volta a cabra para a outra
margem; deixando lá a cabra, leva a couve para o outro lado do rio, e volta para buscar a cabra que havia
deixado. Assim, o lobo não ficaria sozinho com a cabra, nem esta com a couve. Feito isso, ele pode
continuar a travessia em segurança.”. O enunciado e a solução em latim deste e do problema seguinte
estão disponíveis no site:
<http://www.gmu.edu/departments/fld/CLASSICS/alcuin.propos.html>. Acessado em 27/06/2002.
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por Alcuíno de York, com soluções e discussões constantes em obras posteriores e
algumas variações, correspondentes a duas cargas maiores (adultos) e duas cargas
menores (contendo crianças, animais ou pertences). O quarto tópico correspondeu à
discussão do problema do pelotão e os nativos, parecendo uma generalização do
problema anterior, onde temos duas cargas menores e várias cargas maiores. No quinto
tópico, tivemos a quarta versão, com diversas variações, corresponde ao problema dos
três maridos ciumentos, onde temos dois grupos de três pessoas, havendo algumas
incompatibilidades quanto a quais duas pessoas podem ficar juntas no barco ou na
mesma margem, apresentando diferentes tipos de esquemas para interpretar a solução.
No sexto tópico discutimos o problema da travessia dos quatro casais, nas mesmas
condições do problema anterior, mostrado ser insolúvel e a mostra de um erro histórico
de Tartaglia, o qual afirmou haver solução. No sétimo tópico apresentamos a versão do
problema da travessia dos cinco casais, generalizado para o problema de qualquer
quantidade de casais, cabendo no barco uma quantidade menor de casais por viagem.
Em seguida, num subtópico, tratamos de duas versões curiosas: numa delas foi
introduzida uma variação na qual havia um marido bígamo, em vista de um dos
estudiosos ter vivido na Algéria, onde a bigamia era válida por fatores culturais, e na
outra variação havia uma ilha entre uma margem e outra do rio. Depois, no oitavo
tópico, veio a versão intitulada o roubo do tesouro, onde havia duas pessoas pesando
tanto quanto a terceira e as cargas, em condições de peso estabelecidas, e um limite de
transporte entre uma viagem e outra. Finalmente, nos dois últimos tópicos,
apresentaremos alguns problemas que surgiram posteriormente e que parecem ter sido
sugeridos pelos problemas das travessias e alguns dados de variações problema pelo
mundo.
Vimos que de uma maneira geral, todos os problemas de travessias que
foram discutidos neste capítulo puderam ser resolvidos usando lógica. Com a evolução
das teorias matemáticas e a generalização de algumas versões, surgiram esquemas para
explicar as travessias, contendo algumas ou todas as soluções, a exemplo de AGOSTINI
(1987).
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Esquema de Agostini.
No caso do problema do lobo, a cabra e a couve, a primeira versão de
Alcuíno apresentou apenas uma solução mas, sendo estas em número de duas, surgiram
os esquemas posteriores que vieram a contemplar todas as soluções. Apenas esta versão
e a dos três maridos ciumentos tiveram apresentadas soluções mais matemáticas; as
outras apenas soluções lógicas.
As soluções discursivas apenas descrevem as etapas, embora parecem ser
as primeiras apresentadas pelos mais antigos autores, mas as soluções matemáticas,
surgidas mais tarde, dão uma interpretação mais enriquecedora no sentido de melhorar a
visualização das soluções apresentadas, embora no caso da representação de
STEWART (1992), alguns elementos correspondentes a alguns vértices do cubo são
inúteis, uma vez que não fazem parte da trajetória referente às soluções do problema.
Em suas exposições, os autores dessas interpretações matemáticas levam à
idéia de utilizá-las para tornar mais fácil compreender a solução, embora os esquemas
que utilizam simplesmente símbolos para descreverem cada margem dos rios e os que
devem atravessá-lo, etapa por etapa, parecem ser de mais fácil compreensão,
principalmente para os não matemáticos. Segue a representação de Stewart:
y
z
(0,1,1)
(0,0,1)
(1,0,1)
(0,1,0)
(0,0,0)
(1,1,1)
(1,0,0)
(1,1,0)
x
Representação de Stewart.
Por outro lado, as leituras que temos feito a respeito da busca de solução
para problemas recreativos têm mostrado uma tendência a buscar a solução mais geral
possível, o que se repete no caso das travessias; neste aspecto, os modelos matemáticos
mostrados parecem desempenhar um papel efetivo de interpretar essa generalização.
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Devemos notar aí que as teorias matemáticas envolvidas são consolidadas mais tarde,
em relação à época em que o problema foi criado, o que parece fazer com que a
generalização venha a ocorrer depois; cada teoria nova desenvolvida ou teoria existente
ampliada aumenta as possibilidades de novas soluções para os problemas existentes, e
novas interpretações para serem acrescidas segundo outras diferentes abordagens.
O capítulo seguinte foi dedicado às divisões divertidas, dividido em três
tópicos.
Capa do livro de Jean Leurechon/Henry van Etten intitulado Mathematicall
Recreations.
No primeiro tópico discutimos os problemas com recipientes vazios, meios e
cheios, juntamente com suas variações e versões. Já encontrado na obra de Alcuíno,
datada do século IX, esse problema versa sobre dividir uma quantidade (correspondente
a um múltiplo de três) de recipientes por um número de pessoas, sendo que cada terça
parte do total corresponde a recipientes vazios, cheios e pela metade (meios) de algum
líquido. O que se pede é que cada pessoa receba simultaneamente a mesma quantidade
de recipientes e a mesma quantidade de líquido. No tópico seguinte discutimos o que
chamamos de problemas com M. M. C. Consideramos interessante esclarecer que
chamamos assim a esses problemas porque hoje vemos claramente que bastaria usar o
M. M. C. de vários números dados no problema para encontrar a solução do problema,
embora nem sempre se fez uso desse mecanismo ao longo do tempo. Finalmente, no
último tópico, discutimos os problemas para obter medidas desejadas para com
medidas diferentes, problema que consiste, de modo geral, em obter parte de uma
quantidade total de certos líquidos, sem lançar mão de recipientes que correspondem a
uma unidade de capacidade em questão.
Sabemos que por volta da Idade Média, predominava mais fortemente no
contexto da Matemática as idéias da Aritmética e da Geometria Euclidiana. Assim um
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tipo de problema que se destacou na obra de Alcuíno corresponde aos problemas de
divisões em diversas formas, presente até hoje até em livros didáticos, e que atravessou
os tempos. Escolhemos então três tipos de problemas de divisão que têm sido até hoje
bastante discutidos, e fartamente referenciado em obras antigas e atuais.
Pudemos observar que, nos caso das últimas versões que aparecem,
correspondentes a problemas propostos em livros sobre recreações matemáticas, as
soluções são expressas na forma de tabelas, onde apresenta-se todas as soluções
possíveis. Labosne, em versão corrigida da obra de Bachet, é que apresentou uma
solução geral, a que chamou de demonstração com idéias algébricas.
Vimos assim que os problemas que discutimos neste capítulo são
problemas simples que requerem aplicações de idéias matemáticas também simples e
raciocínio lógico. Atuais revistas de passatempos – como as do grupo Coquetel – ou
revistas que contém colunas de quebra-cabeças apresentam ocasionalmente problemas
como esse. Esses fatos nos dão o testemunho do fascínio que estes problemas sempre
exerceram, e ainda exercem sobre os leitores nos dias de hoje.
A terceira recreação discutida é intitulada quadrados mágicos. Por causa da
farta literatura sobre o assunto, trazendo muitas informações importantes, o capítulo
ficou dividido em noves tópicos alguns dos quais contêm subtópicos.
O lo shu
O Melancholia
No primeiro tópico, apresentamos as definições básicas sobre os quadrados
mágicos; depois, os primeiros dados históricos sobre os quadrados mágicos, e sobre o
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mistério e a magia que os envolvem, principalmente ao lo shu e o Melancholia; após
isso, no terceiro tópico, as principais classificações dos quadrados mágicos referentes
aos elementos básicos que os compõem, indicando exemplos ao longo do capítulo.
No tópico seguinte, apresentamos e discutimos os métodos de construção
dos quadrados mágicos de ordem par (duplamente pares e simplesmente pares) e ímpar,
criados por vários estudiosos e que encontramos na bibliografia consultada, com
exemplos de construção e as observações que consideramos pertinentes. No próximo
subtópico, destacamos os métodos de construção de quadrados mágicos de MELLO
(1957, 1959). As razões de tal destaque são duas: primeiramente, o autor é brasileiro e
depois, tendo publicado uma obra manuscrita, é provável que poucos estudiosos dos
quadrados mágicos tenham tido acesso às obras, em uma das quais o autor apresentou
dois métodos gerais para construir quadrados mágicos de qualquer ordem, o que ainda é
tido como desconhecido na literatura sobre o assunto; depois, apresentamos outras
construções para quadrados mágicos.
Como último subtópico, apresentamos os
quadrados mágicos geométricos, como quadrados mágicos mais curiosos que serão
tratados especialmente quanto aos métodos de construção. Assim, destacamos os
métodos para construir quadrados mágicos geométricos, chamados método exponencial,
método exponencial de La Hereian, método da razão e método fatorial. No dois tópicos
seguintes, apresentamos alguns quadrados mágicos especiais de estudiosos notáveis e
alguns dados que relacionam quadrados mágicos e arte.
Passamos então a discutir, no sétimo tópico, algumas informações referentes
a teorias matemáticas existentes no contexto dos quadrados mágicos que os associam
com outras teorias, as investigações sobre o possível número de quadrados mágicos de
uma ordem dada, as propriedades dos quadrados mágicos, uma teoria algébrica para os
quadrados mágicos baseada na álgebra booleana. Finalmente, discutimos nos dois
últimos tópicos, algumas figuras mágicas e algumas aplicações de quadrados mágicos a
problemas.
Em matéria de fascínio, poucas recreações têm sido tão amplamente discutidas e
durante tanto tempo quanto os quadrados mágicos, que são a nossa próxima recreação
apresentada. Considerada milenar, até a atualidade são criadas novas abordagens para
seu estudo à luz de diferentes teorias, e descobertas também fascinantes. Encontramos
na literatura sobre o assunto tratado, ensaios e livros datados do século XVII.
Apesar da indiscutível racionalidade que permeia o contexto matemático, a
mente humana ainda é capaz de pasmar com algumas leis do pensamento formal que de
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alguma maneira acabam levando-o a atribuir poderes mágicos a números e figuras
geométricas. No caso dos quadrados mágicos, o homem é às vezes levado a acreditar no
misticismo. Segundo SCHUBERT (1903, p. 41), o autor de um pequeno artigo sobre
quadrados mágicos na English Cyclopaedia (vol III, p. 415), presumivelmente De
Morgan, afirmou:
Though the question of magic squares be in itself of no use, yet it belongs to
a class of problems which call into action a beneficial species of
investigation. Without laying down any rules for their construction, we shall
content ourselves with destroying their magic quality, and showing that the
non-existence of such squares would be much more surprising than their
existence.5
A reflexão do autor deste artigo reflete bem essa perplexidade a respeito dos
fatos surpreendentes que são constatados freqüentemente no contexto das recreações
matemáticas, e em particular os quadrados mágicos. No entanto, matemáticos franceses
dos últimos séculos6 como OZANAM (1778) têm feito severas críticas e
escarnecimentos a essas crenças.
A origem dos quadrados mágicos tem sido apresentada nos textos sobre
recreações matemáticas como uma mistura de lenda, hipóteses e magia. Segundo
OZANAM (1778, p 217), deu-se a esses quadrados o nome de mágicos, porque os
antigos lhes atribuíam grandes virtudes, e que essa disposição de números formava a
base e o princípio de vários de seus talismãs. De acordo com Cornelius Agrippa(14861535), o quadrado de uma casa cheio pela unidade, era o símbolo da divindade, por
causa da unidade de deus e de sua e imutabilidade; pois eles observavam que esse
quadrado era um único e imutável pela natureza própria, o produto da unidade por ela
mesma sendo sempre a própria unidade. O quadrado de ordem dois era o símbolo da
matéria imperfeita, tanto por causa dos quatro elementos, quanto pela impossibilidade
de arranjar esse quadrado magicamente. O quadrado de nove casas era consagrado a
Saturno; o de 16, a Júpiter; tinha se dedicado a Marte o de vinte e cinco; ao Sol o de 36;
a Vênus, o de 49; a Mercúrio o de 64; e enfim à Lua, ou de 81, ou de 9 de lado. Falharia
sem dúvida ter o espírito bem inclinado a visões, por encontrar alguma relação entre os
5
Embora a própria questão dos quadrados mágicos não tenha uso, ainda pertence a uma classe de
problemas que levam a ações em espécies benéficas de investigação. Sem colocar quaisquer regras para
sua construção, nós devemos nos contentar em destruir sua qualidade mágica, e mostrar que a nãoexistência de tais quadrados deveria ser mais surpreendente que sua existência.
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planetas e suas disposições de números; mais tal era o tom da filosofia misteriosa dos
Jambliques, dos Porfírios, e de seus discípulos.7
RIOLLOT (1907, intr.), apresentou a suposição de que estes figuras seriam
tão antigas quanto o próprio jogo de xadrez sobre o qual os antigos se debruçavam, com
tanta habilidade, os peões e os dados, em seus jogos de tabuleiro favoritos. Sua
argumentação é que os exercícios do Chaturanga na Índia, do Ludus Calculorum nos
Romamos, do Shathanj na Idade Média e outros jogos de mesmo tipo se fariam
necessários, não somente à localização dos casos e a notação dos espaços, mas também
à prática da operação de fazer jogar constantemente os números no mesmo tempo que
os peões sobre o tabuleiro de xadrez. De fato, os antigos observavam rapidamente a
magia especial de certos números agrupados sobre o famoso quadro da Tábua de
Pitágoras e, enquanto os números prazeirosos a seus olhos de virtude, os mais estranhos,
ele atribuiriam, aos quadrados mágicos, qualidades também para eles, sem dúvida, as
qualidades maravilhosas. Os quadrados mágicos, que eram associados a uma forma de
magia antiga chamada Gematria, eram também construídos de foram que muito poucos
tinham acesso; eram interpretadas pelos divinos e os fazedores de talismãs, alguns dos
quais acreditava-se terem tais quadrados poderes de proteção contra a peste; sobre eles
se imbricam dos inverossímeis sistemas de astrologia, e eles se transmitem também,
envoltos de mistério, desde a Idade Média.
As menções mais antigas aos quadrados mágicos encontradas na literatura
diziam respeito às crenças e lendas que o envolviam, ao mistério e a magia em torno de
seus supostos poderes. Além disso, havia associações com os planetas conhecidos por
volta do século XV, mostrados em OZANAM (1778), e associações do lo shu com os
elementos básicos que dão forma às coisas (metal, fogo, madeira, água e terra), bem
como com a roda da vida Tibetana, mostradas em AGOSTINI (1987). Essas idéias
remetem às antigas idéias gregas de harmonia universal, que por sua vez estão
relacionadas à Geometria Sagrada vigente na Antiguidade.
Os quadrados mágicos que têm surgido no cenário das recreações
matemáticas parecem ter sua origem como um misto de descobertas maravilhosas e
processos de construção. Assim, as primeiras inferências matemáticas apresentadas
6
Vemos em OZANAM (1778) e KRAITCHIK (1930) comentários realmente depreciativos sobre a
crença nos poderes sobrenaturais dos números, considerados ser metafísicos.
7
Ozanam mostrava em seus comentários um certo desdém pelos aspectos místicos das recreações ou
produções da natureza. Isso foi manifestado em um comentário feito na obra, logo após as considerações:
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sobre os quadrados mágicos parecem corresponder a propriedades aritméticas
descobertas no estudo de quadrados construídos e métodos de construção.
Vimos que em torno do século XIV começou a difusão dos métodos para
construir quadrados mágicos. Iniciamos pelos quadrados mágicos de ordem ímpar.
O primeiro método para construir quadrados mágicos de ordem ímpar foi
atribuído a Moscopule, citado por OZANAM (1778). Tal método, junto com o de De La
Loubère, trazido dos hindus, são descritivos e ilustram com um exemplo, métodos
gerais; mesmo no século passado, ainda se descrevem métodos com esses, como o
chamado por BOLT (1995) de regra NE. Na obra de BACHET (1905), cuja primeira
edição data de 1612, vimos duas novidades: a primeira é que apareceram os esquemas
auxiliares dos processos de construção que ajudam a visualizar melhor, favorecendo
uma melhor compreensão, e a outra é que o autor propôs uma regra de construção onde
fez uma construção abstrata auxiliar para generalizar o método, embora ilustrasse com
um exemplo particular. No Século XVII veio a surgir um método com elementos
algébricos, representando a ordem do quadrados, o número de elementos, e o termo
médio respectivamente por n, n2, e (n2 + 1)/2 , citado por MIKAMI (1974).
Quanto aos quadrados mágicos de ordem par, os métodos de construção
tendem a acompanhar a evolução dos anteriores. Em 1840, Gokai Ampon apresentou
um método de construção de quadrados mágicos onde apresentou uma distribuição geral
das casas do quadrado mágico usando alguns esquemas de distribuição dos números
pelas casas para ajudar na visualização do processo, e também variáveis, portanto
lançando mão de elementos algébricos. Mello também utilizou diversos esquemas
gráficos para facilitar a visualização dos processos de construção de quadrados mágicos
de ordem par.
Para a construção de quadrados mágicos geométricos, usam-se métodos
exponenciais, remontando algum deles provavelmente a antes do século XVII. Outro
método usado na construção de quadrados mágicos geométricos é o fatorial, com mais
um elemento da Análise Combinatória.
No século passado, MELLO (1957 e 1959) desenvolveu um método que ele
chama de “absolutamente geral”, usando a teoria dos determinantes das matrizes.
Quanto
a
uma
teoria
matemática
para
os
quadrados
mágicos,
matematicamente, os estudos para construir uma teoria matemática geral iniciaram a
segundo ele, os matemáticos modernos, divertem-se com esses arranjos, que exigem um espírito de
combinação bastante estendido, não lhes dando mais importância do que eles merecem.
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partir do século XVI (secção 4.7). A teoria em questão é auxiliada por elementos
algébricos, como variáveis e expressões algébricas para exprimir dados numéricos
gerais, e esquemas gráficos para facilitar a visualização de algumas informações.
A partir do início do século passado, vimos um ensaio de PROSPER DE
LAFFITE (1904) sobre quadrados mágicos, o qual já citava um tratado mais completo
da autoria de Violle. Tal teoria já contemplava um maior rigor matemático e expressa
alguns teoremas e os respectivos corolários que enunciamos, mas não fizemos uma
demonstração detalhada, pois não foi nosso propósito nesse trabalho.
Vimos ainda que os quadrados mágicos têm sido associados de formas
interessantes com outras teorias matemáticas que foram surgindo com o passar do
tempo. Assim, RIOLLOT (1907) associou o problema de arranjar os primeiros n2
números naturais em configuração mágica à Aritmética de Grandeza e à Aritmética de
Posição. PAPPAS (1989) associou um quadrado mágico de ordem 3 à Seqüência de
Fibonacci, formando um quadrado com nove números da referida seqüência a partir do
terceiro. ANDREWS (1960) associou a construção de quadrados e retângulos mágicos à
Teoria ou método das diferenças complementares.
Existe ainda uma teoria algébrica para os quadrados mágicos baseada na
álgebra booleana, mostrada por KOLGOMOROV (2003).
Com o passar do tempo, surgiram novas configurações chamadas figuras
mágicas, para as quais não foram estabelecidos métodos de construção, e que têm
assumido diversas formas geométricas, ou e combinações destas. Finalmente, existem
problemas em aberto, tais como o problema de encontrar o número de quadrados
possíveis de serem formados de uma ordem dada. Como esse número aumenta
vertiginosamente com o aumento do número da ordem, são necessários aparelhos
simples de cálculos bastante sofisticados com capacidade de expressar quantidades
muito grandes, para fazer os referidos cálculos. Acompanhando a tendência, temos a
possibilidade que, as novas teorias que ainda estão por vir apresentem alguma
contribuição desse e de outros problemas igualmente encantadores e interessantes, no
contexto tão amplo das recreações matemáticas.
Concluindo, com esta pesquisa mostramos que, ao longo do estudo das
recreações matemáticas em questão, a evolução do conhecimento matemático, as idéias
de rigor na construção das teorias, e as novas teorias que surgem tendem a se refletir no
tratamento dado à discussão e na busca de solução das versões dos problemas
recreativos.
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PALAVRAS-CHAVE: jogos matemáticos; história da matemática, recreações
matemáticas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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(sem mudanças).
ANDREWS, W. S. Magic squares and cubes. New York: Dover, 1960.
BACHET DE MÉRIZIAC, CLAUDE GASPAR. Problèmes plaisants ed délectables
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primeira edição é de 1612.
BOLT, Brian. Uma paródia matemática. Lisboa: Gradiva, 1997, Trad. De Luís Leitão.
Título original: A Mathematical Jamboree. Cambridge: Cambridge University Press,
1995.
KOLGOMOROV, Nikolaevich. Teoria algébrica sobre quadrados mágicos.
Disponível no site: <http://www.cut-the-knot.com/game_st.shtml>. Acessado em maio
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KRAITCHIK, Maurice. Le Mathematique des Jeux et récréations mathématiques.
Bruxelles: Imprimerie Stevenns Fréres, 1930.
LAFFITE, Prosper de. Le carré magique de 3: solution genérale du problème. Paris:
1904 Gauthier-Villars, Imprimereur Libraire. Du bureau des Longitudes, de L´Ecole
Polytechnique. Quai des Grands-Augustins, 55.
ETTEN, Henry Van. Mathematicall Recreations: or a collecton of sundrie Problems
extracted out of the Ancient and Moderne Philosophers, as secrets in nature, and
experiments in Arithmeticke, Geometrie, Cosmographie, Horologographie, Astronomie,
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evolução histórica de três recreações matemáticas