UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A TERCEIRA TÓPICA DE DEJOURS E O
PROCESSO DE SOMATIZAÇÃO NA PSICODINÂMICA DO TRABALHO
Mônica
Maria
Silva
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto
UMA ARTICULAÇÃO ENTRE A TERCEIRA TÓPICA DE DEJOURS E O
PROCESSO DE SOMATIZAÇÃO NA PSICODINÂMICA DO TRABALHO.
Mônica Maria Silva1
Gustavo Adolfo Ramos Mello Neto2
Resumo
O presente texto pretende analisar, a partir da terceira tópica de Dejours, o processo de
somatização como uma solução possível para as pressões no ambiente de trabalho,
estabelecendo uma relação com o conceito dejouriano de psicopatologia do trabalho.
Nesse sentido, buscou-se articular a constituição da estrutura psiquica do sujeito
neurótico e não neurótico, estabelecida pela terceira tópica do autor, aos mecanismos
possíveis de solução das pressões presentes no encontro do sujeito com a realidade,
privilegiando o processo de somatização. A partir deste ponto discutimos o processo de
somatização no ambiente de trabalho, e quais as condições presentes, tanto na estrutura
psíquica quanto no ambiente, que levam o sujeito a lançar mão desse mecanismo como
defesa de seu psiquismo.
Palavras-chave: Terceira tópica dejouriana; psicopatologia do trabalho; somatização
Abstract
This text pretend to analyze from the third Dejours’ topic the somatization process as a
possible solution to the work environment’s pressure, establishing a relation to the
Dejours’ concept of work’s psychopathology. In this sense attempted to articulate the
psychic structure’s constitution of the neurotic subject and non neurotic, established by
the third Dejours’ topic, to the possible mechanisms of solution for the pressure in the
encounter between the subject and the reality, emphasis in this study the process of
somatization. From here using the Dejours schools contribution of psychodynamics of
work it’s build an articulation between the process of somatization in the workplace,
and which the present conditions, both the psychic structure and the environment,
leading the subject to resort to this mechanism as a defense of his psyche.
Keyworks: Third Dejours’ topic; psychopathology of work; somatization
1
Professora da Universidade Norte do Paraná, mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia,
da Universidade Estadual de Maringá.
2
Professor doutor da graduação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, da Universidade
Estadual de Maringá.
Introdução
A relação do homem com o trabalho pode contribuir para a sua saúde tanto física
quanto mental, como para o seu adoecimento também nessas duas instâncias. O que
levaria a um caminho ou a outro é a relação que o sujeito estabelece com o seu trabalho,
segundo Dejours (2011), não é possível entender essa relação apartando o homem de
sua história individual, pois, “o trabalho não é apenas um teatro aberto ao investimento
subjetivo, ele é também um espaço de construção de sentido e, portanto, de conquista da
identidade, da continuidade e historicização do sujeito.” (Dejours, 2011, p.143)
E é justamente esse percurso, o percurso da constituição do sujeito que pode dar
as pistas para o caminho que o leva a estabelecer uma relação mais ou menos patológica
em relação ao seu trabalho. Quando tratamos aqui da história individual, o que nos
interessa não é simples fatos da vida cotidiana, mas antes disso o que da história do
individuo está atrelado ao seu psiquismo, lembrando que, como aponta Dejours (2011),
existe uma continuidade nesse caminho e que alguns episódios irão se passar no
ambiente de trabalho.
A partir dessas colocações o presente trabalho tem como objetivo analisar, a
partir da terceira tópica de Dejours, o processo de somatização como solução possível
para o encontro do sujeito com a realidade no ambiente de trabalho. A psicopatologia do
trabalho e as contribuições da escola Dejouriana servirão como referencial teórico para
compreender a relação do homem com o trabalho e o que nesse contexto pode suscitar
pressões que sejam tão ameaçadoras que levem o sujeito, neurótico e não neurótico, a
construir estratégias defensivas tanto individuais como coletivas, utilizando muitas
vezes o próprio corpo como destino de uma descarga que não pode ser suportada pelo
psiquismo.
Somatização a partir da terceira tópica de Dejours
A relação que o sujeito estabelece com os acontecimentos em sua vida pode
suscitar certo nível de angustia, quando se trata de trabalho as pressões nesse ambiente
podem elevá-la a níveis às vezes difíceis de serem tolerados. A forma como ele irá lidar
com os conflitos gerados por essa angustia dependerá de vários fatores, dentre eles a sua
estrutura mental. Nesse sentido, Dejours (1988) afirma que nas estruturas neuróticas a
possibilidade de simbolização está assegurada pela condição que o sujeito tem em ligar
o afeto a representações e associações presentes em seu passado. Porém, quando isso
não é possível, quando a representação falha existe uma tendência a somatização, esse
processo é assim descrito pelo autor.
A angústia atual, somática, angústia descarga não-representada, não identificada
por um Ego que falha, concomitante com um defeito de ligação intrapsiquica e
com uma brecha no processo secundário, caracteriza os sujeitos que têm um
defeito de organização do aparelho psíquico, uma tendência a descompensar
através de somatizações, e aos quais se dá o nome de a-estruturação ou
inorganização mental. Vamos chamá-las de caracteroses. (Dejours, 1988, p.35,
grifos do autor).
Ao tratar desse sujeito descrito como aquele que tem um defeito de organização
do aparelho psíquico, o autor ressalta que não se trata de um defeito que poderia
caracterizá-lo como neurótico ou como psicótico e que assim merece outra
denominação chamando de caracteroses onde prevalece a angústia atual e existe a
tendência a descompensar pela eclosão de doenças somáticas. O autor ainda reforça que
essa descompensação pode acontecer a qualquer estrutura que diante de uma situação de
pressão extrema irá utilizar os recursos que possui na busca de uma solução possível.
Freud em Além do Principio do Prazer afirma que “quaisquer excitações provindas de
fora que sejam suficientemente poderosas para atravessar o escudo protetor” (Freud,
1920/1996, p.40) podem ser consideradas como traumáticas.
Para tratar dessas situações de pressão extrema é muito comum nos estudos
relativos ao ambiente de trabalho denominá-las de stress, Dejours (1988) faz uma critica
a utilização generalizada do termo que conduz a uma objetividade que descarta a
relação do sujeito com a situação, não considerando distinções importantes entre
angustia e ansiedade, ou entre emoção e emotividade. Utilizando um fundamento na
biologia para medir de forma generalizada fatos ditos estressantes e realizar uma
comparação entre eles, classificando-os de acordo com um padrão de gravidade que
segundo Dejours “acaba por considerar que o exame escolar é mais grave que a perda
de seu melhor amigo, e outros absurdos da mesma índole e que não tem mais nada a ver
com a questão de angustia.”(Dejours, 1988, p.27)
equívocos,
Porém como o autor afirma, esses
não devem nos conduzir a uma decisão de descartar totalmente a
importância de se levar em conta o enfoque biológico da angustia, não é possível
desconsiderar as questões endócrino- metabólicas e os efeitos dos medicamentos sobre
o sujeito, se assim o fizéssemos estaríamos considerando que existe uma dissociação
entre o psíquico e o somático. Antes disso, porém o caminho que iremos traçar aqui é
aquele fundamentado na premissa da metapiscologia freudiana que toma a pulsão como
conceito limite entre o psíquico e o somático.
Uma questão central, então, seria entender como as excitações de fora se tornam
tão poderosas e angustiantes a ponto de romper as camadas protetoras que o individuo
possui e levá-lo a utilizar mecanismos como a somatização na tentativa de encontrar
uma solução.
Dejours (1988) lembra que Freud, ao explicar os fenômenos psíquicos, utilizou
os níveis dinâmicos, tópico e econômico. Partindo então de Freud, Dejours propõe uma
terceira tópica que será aqui utilizada para fundamentar a análise sobre a relação do
homem com o trabalho e ao que poderia levá-lo a utilização de vias mais ou menos
patológicas, principalmente no que diz respeito à somatização. Para o autor, é possível
analisar o funcionamento psíquico do sujeito a partir da análise dinâmica ou econômica
dos conflitos, ou seja, através da análise da segunda tópica, pela presença do sentimento
de culpa que leva ao conflito entre Ego e Superego, ou a vergonha assinalando um
conflito entre Ego e Ideal de Ego. Porém, o autor reafirma que essas instâncias não
estão presentes desde o nascimento do sujeito, mas irão se constituir no curso de sua
história, e que essa constituição se daria em torno do Complexo de Édipo. Ele faz uma
relação entre a primeira e a segunda tópica a partir do PCs, argumenta que no curso de
desenvolvimento da segunda tópica o PCs irá se diferenciando do Ics. Quando se trata
do ponto de vista econômico, ele argumenta que “existem falhas da primeira e da
segunda tópicas e então, torna-se impossível representar topologicamente o que ocorre
na descompensação, ou até mesmo nos estados de compensação, nos pacientes
caracteropatas.” (Dejours, 1988, p.108) Fundamentando essa proposição, argumenta que
na clinica do neurótico o nível dinâmico é aquele que possibilitará ter acesso aos
conflitos psíquicos, mas que quando se trata de pacientes psicóticos ou caracteropatas
existiria uma dificuldade ou até mesmo uma impossibilidade em utilizar essa mesma
via, uma vez que nesses indivíduos os conflitos são descontínuos ou ausentes. Para
compreender melhor essas ideias, o autor afirma que os relatos desses pacientes muitas
vezes trazem situações de violência e de destrutividade e que nessas situações não
poderíamos falar de conflito da mesma forma como se apresenta no neurótico. Nesses
casos, o autor argumenta que esses pacientes organizam a sua economia principalmente
em torno da pulsão de morte e que a violência se efetiva na realidade sendo assim
impróprio falar de conflito.
Dejours (1988), ao afirmar que a possibilidade de descompensação diante de
uma situação extrema de angustia pode acontecer em qualquer estrutura, propõe uma
terceira tópica a partir da teoria freudiana do aparelho psíquico, que pode ajudar a
compreender como um mesmo individuo pode funcionar de modos diferentes. Nesse
sentido, ele parte da metapsicologia sobre a perversão e da noção de clivagem em Freud
para argumentar a possibilidade de em uma mesma estrutura mental existir um
funcionamento que reconhece a castração e ao mesmo tempo outro funcionamento que a
nega.
Na terceira tópica, Dejours (1988) localiza as instâncias psíquicas e a dinâmica
presente em funcionamentos neuróticos e não neuróticos. De um lado do aparelho
psíquico (o esquerdo) teríamos o Ics(recalcado) e o PCs e, do outro lado (o direito), o
Ics(primitivo) e a Cs, esses dois lados estariam separados verticalmente pela linha de
clivagem. Além dessa separação vertical também existiria uma separação horizontal
representada pela censura, que do lado esquerdo seria a 1ª censura que separa o Ics
recalcado do PCs, e do lado direito a 2ª censura que separa o Ics primitivo do Cs. Na
leitura da terceira tópica teríamos os pacientes neuróticos funcionando mais do lado
esquerdo e, nesse caso, a linha da clivagem estaria deslocada mais à direita, deixando o
lado esquerdo (Ics recalcado/PCs) maior que o direito(Ics primitivo/Cs). Já nos
pacientes não-neuróticos, essa linha da clivagem estaria deslocada mais para a esquerda,
o que faria com que o lado direito (Ics primitivo/Cs) tomasse a maior proporção.
A
regulação entre a passagem entre uma instância e outra, tanto do lado direito quanto do
esquerdo, se daria por um movimento de báscula. No lado esquerdo há a predominância
do processo secundário, e o retorno do recalcado e a clivagem é bem sustentada tanto
pela esquerda, sistema Ics recalacdo/PCs, quanto pela direita pelo sistema Cs. Porém,
quanto mais a linha de clivagem se desloca para a esquerda predomina um
funcionamento não-neurótico, onde a estabilidade é sustentada pelo sistema Cs,
aparecendo assim um comportamento estereotipado, lógico e intelectual. A Cs procura
separar de forma eficiente o Ics primitivo e a realidade, porém, quando essa estabilidade
é quebrada, o sujeito não-neurórico não pode contar com o apoio eficiente do sistema
Ics recalcado – PCs, pois esse é menos estruturado e não consegue conter as pressões do
Ics primitivo. A clivagem vai garantir a não circulação entre os dois sistemas que
funcionarão assim simultaneamente, mesmo ignorando-se, dessa forma, Dejours
defende que a clivagem não é exclusiva da perversão.
O funcionamento do aparelho psíquico sofre a influência de sua relação com a
realidade que, segundo Dejours (1988), é entendida não de uma forma objetiva, mas
daquilo que irá suscitar consciente ou inconscientemente no sujeito o encontro com o
outro. Esse encontro do sujeito com a realidade acontece em um ponto da estrutura
psíquica onde convergem as quatro instâncias, ponto esse denominado de zona de
sensibilidade do inconsciente. Nesse ponto, o inconsciente encontra com a realidade
através da percepção, porém, esse encontro não é direto uma vez que estão presentes ai
também o PCs e o Cs que irão funcionar como mediadores, o PCs no neurótico e a Cs
no não-neurótico, assim eles funcionarão como protetores contra o excesso de
excitação.
Se o PCs e a Cs estão funcionando como protetores é porque existe ai um perigo
presente no encontro do sujeito com a realidade. Freud, em Além do Principio do Prazer
(1920/1996), destaca que “a proteção contra os estímulos é, para os organismos vivos,
uma função quase mais importante do que a recepção deles.” (p. 38). Esse perigo está
diretamente relacionado à capacidade do sujeito manter a sua estrutura psíquica estável
frente ao que pode ser apresentado a ele pela realidade. No sujeito neurótico, a estrutura
do aparelho psíquico tem mais condição de protegê-lo de descompensações em seu
funcionamento, essa proteção se dá pelo mecanismo de negação da realidade, quando
essa se mostra ameaçadora. Dejours (1988) descreve o que pode dar errado nesse
encontro:
A destruição da negação pela Realidade na zona de sensibilidade do inconsciente
desencadeia uma sensação. O reconhecimento dessa sensação pelo sujeito
conduz a uma percepção. [...] Em certos casos, essa etapa da sensação à
percepção não é possível, e a sensação cria uma tal perturbação reativa no
inconsciente primário que a descarga imediata é obrigatória.” (Dejours, 1988, p,
115).
O autor descreve que o sujeito pode então lidar de forma diferente com a
excitação destruindo a sua fonte, fugindo dela ou, ainda, adiando a sua descarga,
mecanismos que não irão resultar em nenhum efeito para a organização mental.
Na passagem da sensação à percepção temos a presença do pré-consciente
atuando através das associações, que o sujeito irá fazer entre a realidade e as
representações constituídas ao longo de sua história. Nesse ponto, Dejours (1988)
salienta a importância do sonho, que dá ao sujeito a possibilidade de recalcar no
inconsciente secundário o afeto que pode surgir a partir das associações que o sujeito irá
fazer no percurso entre a sensação e a percepção. Dessa forma, o material do
inconsciente primário, que foi estimulado através do encontro com a realidade, pode ser
assim trabalhado e irá tornar mais rico o inconsciente secundário. Dejours (1988)
argumenta que nesse processo a clivagem dos dois sistemas permanece protegida
justamente por todo esse trabalho, feito através da intermediação da sensação, da
percepção e do recalcamento pelo sonho. Além de permanecer protegida, ela vai se
deslocando para a direita uma vez que conteúdos do inconsciente primitivo, ao passar
pelo o que o autor denomina de perlaboração pelo sonho, ganha um lugar no
inconsciente recalcado.
Porém, nem sempre o sujeito possui condição de utilizar o recurso descrito
acima, isso irá acontecer quando assistimos a atuação violenta, a alucinação ou a
somatização, que é o que nos interessa aqui.
Percorrendo o mesmo caminho descrito acima, isso é o encontro do sujeito com
a realidade, vamos entender o mecanismo descrito por Dejours (1988), que caracteriza a
via da somatização. Nesse encontro existe uma falha do lado do PCs /Ics recalcado,
devemos lembrar que nesse sujeito a barra da clivagem se encontra deslocada mais para
a esquerda deixando assim o lado direito Cs/Ics primitivo maior. O sujeito respeita a
realidade e a fonte de excitação, porém, antes de ocorrer à percepção, ainda no nível da
sensação, o impulso é descarregado no corpo através da repressão, De acordo com
Dejours (1988), ele “vai procurar descarregar em si mesmo aquilo que reage à situação
excitante” (p.125), o resultado seria então uma crise de angústia somática ou um ataque
agudo de uma doença crônica. O autor enfatiza o caráter misterioso do processo de
repressão, e faz aqui uma aproximação com o que acontece ao trabalhador quando esse
precisa realizar atividades repetitivas e estereotipadas, ele teria que reprimir o instinto e,
para não falhar na realização de suas atividades, “lutar contra seu funcionamento mental
e contra toda forma de retorno do recalcado.” (p.126)
A descompensação via somatização não é exclusiva da estrutura do
caracteropata, uma vez que em qualquer estrutura existe uma fragilidade na zona de
sensibilidade do inconsciente, dessa forma diante de situações perigosas e que
ultrapassem a negação qualquer estrutura pode vir a utilizar a somatização como forma
de proteger o aparelho psíquico de uma explosão da clivagem.
Qualquer estrutura, na medida em que há clivagem, e na medida em que a zona
de sensibilidade do inconsciente está protegida pela negação, é suscetível de
reagir à prova de realidade por uma somatização, por uma atuação violenta ou
por uma alucinação. (Dejours, 1988, p. 128).
Assim podemos compreender que a somatização é um mecanismo que protege o
sujeito de uma desestruturação, e o corpo é o lugar privilegiado para esse
transbordamento que é muito menos destrutivo para esse sujeito quando é endereçado
ao seu próprio corpo. Fernandes (2003) salienta que:
Se a conversão nos convida a evocar o modelo de um corpo da representação, a
somatização nos sugere, por sua vez, se assim podemos dizer, um modelo do
corpo do transbordamento, em que o sintoma corporal pode ser compreendido
como uma descarga. (p. 41).
Os caminhos da somatização na psicopatologia do trabalho
Dejours (2011) argumenta que o trabalhador chega ao seu local de trabalho não
como mais uma máquina capaz de ser programada para executar a atividade para a qual
foi contratado, mas antes disso ele traz consigo a sua história, história que como vimos
irá ser o pano de fundo de sua constituição subjetiva a qual carrega em si o que o autor
denomina de “vias de descarga preferenciais.” (p.24) Para Dejours (2011), todo o
trabalho comporta em si uma carga psíquica entendida através do que poderia ocasionar
uma retenção pulsional, nesse sentido o autor aponta como sinais de perigo o
subemprego de “aptidões psíquicas, fantasmáticas ou psicomotoras.” (p.24) Dessa
forma, quanto mais a tarefa possibilitar uma descarga de energia psíquica menor será a
carga psíquica dela o que a torna menos fatigante. O conceito de carga psíquica, descrita
por Dejours, nos ajuda a entender a diferença entre a fadiga física e o que muitas vezes é
denominado de fadiga mental, a primeira poderia estar associada ao trabalho que exige
muito esforço do corpo, e a segunda a carga psíquica. Nesse sentido, um trabalho menos
fatigante seria aquele que exigiria menos esforço físico do trabalhador, mas se assim
considerássemos estaríamos separando o psíquico do somático. Observações descritas
por Dejours, de trabalhadores em situações diametralmente opostas, comprovam que
tanto a qualidade quanto a quantidade da carga psíquica do trabalho estão associadas ao
desejo de trabalhar contra a vontade do empregador. Mulheres que desempenhavam
serviço de datilografas, e que em períodos onde o trabalho diminuía precisavam mesmo
assim comparecer ao trabalho e fingir estarem trabalhando, apresentaram uma fadiga
intensa e um aumento da carga psíquica. Em contrapartida, pilotos de caça, que mesmo
submetidos a pressões extremas tanto físicas quanto emocionais, e a uma carga de
trabalho exaustiva, não apresentaram fadiga ou aumento da carga psíquica. A diferença
entre essas duas situações está justamente na relação entre o desejo do trabalhador e a
imposição do empregador. Nesse sentido, a pesquisa realizada por Castro e Cançado
(2009), com profissionais de recursos humanos, demonstra que constantemente esses
profissionais precisam lidar com situações contraditórias, que as autoras denominaram
de paradoxos. O que, de acordo com Vanscocelos e Vasconcelos (2004, citado por
Castro e Cançado 2009, p.25) podem ser entendidos como “a representação pelo
indivíduo ou grupo de sua experiência, sentimentos, crenças e interações mediante dois
estados aparentemente inconsistentes, duas realidades opostas e aparentemente
irreconciliáveis.” Dentre os 25 paradoxos pesquisados, 17 causam sofrimento aos
pesquisados quando precisam lidar com essas situações, dentre elas estão aspectos como
descentralização versus centralização e liberdade versus controle.
Para Dejours (2011), o sofrimento no trabalho está relacionado ao acúmulo da
energia pulsional no aparelho psíquico devido a não possibilidade de haver uma
descarga dessa energia no exercício do trabalho. Isso acontece em situações onde não é
possível haver uma conciliação entre o desejo do trabalhador e a imposição do
empregador. Assim, o excesso de carga psíquica poderá desencadear uma doença
somática, porém nem todos os indivíduos irão reagir da mesma forma diante de situação
semelhante, pois “[...] as reações de defesa são fortemente singularizadas em função do
passado, da história e da estrutura de personalidade de cada sujeito.” (p.123). Embora
essas reações sejam singulares, Dejours descarta o caráter solipista da psicopatologia do
trabalho e ressalta que antes de tudo existe ai uma relação intersubjetiva, uma relação
que implica a existência de alteridade. Nesse sentido, considerando a somatização como
uma das vias que o sujeito pode recorrer como solução para lidar com uma realidade
que lhe parece ameaçadora, Fernandes (2003) argumenta que “o acontecimento
somático teria um momento eminente de verdade para o sujeito no plano do
inconsciente, o que coloca em evidência que a economia orgânica é atravessada pela
economia libidinal engendrada pela alteridade.” (p.102)
Desde as pesquisas desenvolvidas por Taylor, em sua teoria da administração
cientifica e na racionalização do trabalho, existe uma preocupação muito grande em
controlar os aspectos subjetivos para que esses não interfiram no resultado do trabalho,
embora muito se tenha realizado nesse sentido desde então, o caminho parece ainda
levar ao mesmo objetivo que seria apartar o sujeito de seu desejo, desejo esse que como
vimos comporta uma singularidade que muitas vezes não tem espaço no ambiente das
organizações. Dejours (2011) salienta que em conseqüência disso o trabalhador muitas
vezes precisa reprimir o seu desejo.
Trata-se bem de uma Repressão do Desejo, não de um recalcamento, sendo a
diferença entre os dois repleta de conseqüências no plano do psicossomático, na
medida em que a referência ao conceito psicanalítico de Repressão está
associada ao risco de uma doença somática. Dejours 2011, (p.40)
O trabalho dessa forma pode vir a ser um desencadeador de sofrimento psíquico
que leve a uma desestruturação cuja única possibilidade de solução para o sujeito seja
pela via da somatização. Nesse sentido Dejours (2011) aponta que talvez essa seja a
solução para o caminho onde se apresenta a seguinte questão: “qual é o lugar do Sujeito
no trabalho e de que liberdade ele dispõe para elaborar um compromisso nos conflitos
que surgem no confronto de sua personalidade e de seu desejo com a Organização de
Trabalho?”. Dejours, 2011( p.42)
Os compromissos podem ser tanto individuais como coletivos, nesse sentido o
sujeito pode buscar diferentes formas defensivas, e se adaptar bem ao trabalho não
significa necessariamente possuir uma estrutura psíquica menos fragilizada. Dejours
(2011) aponta que mesmo sujeitos psicóticos conseguem, por meio de estratégias
defensivas coletivas, manter uma certa estabilidade. Porém, na medida em que essas
estratégias ganham esse estatuto, de uma defesa contra a realidade, os sujeitos tendem a
não questioná-las e aqui o autor aponta que existe o risco da alienação. Com a alienação
o trabalhador atribui à estratégia defensiva um caráter ideológico, e essa passa a ter uma
importância maior do que o próprio trabalho. Esse processo parece muito próximo do
funcionamento não neurítico regido pelo lado direito do aparelho psíquico Cs/ Ics
primitivo, em que existe “uma interpretação, mais lógica, fornecida do exterior,
aprendida, e não uma interpretação fantasmática inventada pelo sujeito.” Dejours
(1988, p.111). Dessa forma, o que era uma defesa coletiva se transforma em ideologia
defensiva de forma radicalizada prevalecendo um “deslocamento que vai em direção ao
domínio da ordem imaginária, ou seja, em direção a substituição da ordem da imagem
pela ordem do pensamento.” (Dejour , 2011, p.131).
Porém, nem todo sofrimento no campo do trabalho leva a soluções patológicas,
assim como apontado no inicio desse texto o trabalho é um campo importante de
relação social e de continuidade da historicização do sujeito. As vias que esse sujeito irá
tomar nesse caminho dependem não só do ambiente do trabalho, mas também das
singularidades que fazem com que cada um dos indivíduos seja único. Singularidade
que insiste em ser descartada através de teorias que tendem a objetividade e que pouco
lugar dão para a subjetividade, que embora diga a respeito ao sujeito também é
importante para compreender as construções coletivas e as relações intersubjetivas
presente no ambiente organizacional.
Conclusão
É certo que o ambiente organizacional se apresenta às vezes de forma
insuportável para o sujeito, levando-o ao adoecimento, porém, o que faz com que as
pressões desse ambiente conduzam a um sofrimento psíquico passa pelo caminho que o
individuo percorreu ao longo de sua história. Esse caminho foi e continua sendo um
caminho de construção tanto de uma narrativa de vida quanto de seu próprio psiquismo.
A estrutura de vida, onde se inscreve o trabalho, não deixa de ter um entrelaçamento
importante com a estrutura psíquica, que pode ser percebido, por exemplo, no desejo
que conduz um sujeito a realizar as suas escolhas, incluindo aqui as profissionais.
Se não podemos separar o individuo de sua história, também em certo que não
podemos separar a organização do contexto que a circunda. Não devemos esquecer que
as organizações são antes de tudo regidas pelas leis de mercado, lei que muitas vezes
para ser seguida não comporta o que lhe é diferente como, por exemplo, o desejo do
sujeito. Nesse sentido se coloca em questão a liberdade que o sujeito poderia ter nesse
ambiente, liberdade que muitas vezes poderia propor uma subversão as leis do mercado,
mas que poderiam em contrapartida causar menos sofrimento. O que poderia se dizer
então a respeito da liberdade, nesse sentido Bauman (1998) afirma que:
E, desse modo, a liberdade do livre, a individualidade do individuo são
ameaçadas não apenas pelos detentores do poder. Estes últimos sustentam a
liberdade individual como o laço sustenta o homem enforcado – o homem ou
mulher que assume a responsabilidade com suas próprias mãos vive o pesadelo
de todo poder. Os detentores do poder, contemporâneos e em perspectiva, não
reconhecem senão uma forma de responsabilidade dos seus súditos: ser
responsável, na linguagem do poder, é seguir o comando, enquanto “ter poder”
significa, essencialmente, tirar o direito de alguém mais a qualquer
responsabilidade que é a sua liberdade. (Bauman, 1998, p.250).
De acordo com Dejours (2011), existe uma distância entre o desejo do sujeito e
os motivos que o ambiente organizacional dão a ele para conduzir as suas atividades, e
quanto maior for essa distância, ou quanto menos liberdade o sujeito tiver para adaptá-la
maior será a carga psíquica do trabalho.
Referências
Bauman, Z. (1998). O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro: Zahar.
Dejours, C. (1988). O corpo entre a biologia e a psicanálise. Porto Alegre: Artes
Médicas.
Dejours, C., Abdoucheli, E., & Jayet, C. (2011). Psicodinâmica do trabalho,
contribuições da escola dejouriana à análise da relação prazer, sofrimento e
trabalho. São Paulo: Atlas.
Fernandes, M. H. (2003). Corpo. São Paulo: Casa do Psicólogo.
Freud, S. (1996). Além do princípio de prazer. In: Edição Standard Brasileira das
Obras Psicológicas Completas (J. Salomão, Trad.) (Vol. XVIII). Rio de Janeiro:
Imago. (Original publicado em 1920).
Castro, P. M., & Cançado, V. L. (2009). Prazer e sofrimento no trabalho: a vivência de
profissionais de recursos humanos. Revista gestão e planejamento, 10 (1), 19-37.
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