Universidade Presbiteriana Mackenzie REPRESENTAÇÃO DO CONCEITO DE CRIMINALIDADE PARA ESTUDANTES DE PSICOLOGIA, DIREITO E PEDAGOGIA Grasiele Aparecida Garcia dos Santos (IC) e Robson Jesus Rusche (Orientador) Apoio: PIBIC Mackenzie Resumo A criminalidade é um tema muito discutido em nossa sociedade através dos veículos midiáticos e da preocupação com a forma que podemos ser atingidos por ela. De acordo com Kolker (2004), a criminalidade é um fenômeno complexo e multideterminado que demanda diálogo entre saberes distintos. Acredita-se que em relação a esta estão envolvidas diferentes áreas do saber, cada uma com sua especificidade e considera-se que a Psicologia, a Pedagogia e o Direito são áreas complementares em relação a esse tema. Dessa forma, buscou-se investigar as concepções de criminalidade para os estudantes desses cursos. A partir disso, objetivou-se também identificar as convergências e divergências de suas concepções e uma possível interface entre essas três áreas de estudo. Para tal foram realizadas entrevistas semidirigidas, que posteriormente foram analisadas, por meio de análise de conteúdo, visando à apreensão dos sentidos que compõem o discurso dos entrevistados, através de Núcleos de Significado, conforme apresentado por Aguiar e Ozella (2006). Foi possível perceber que as concepções dos entrevistados estão atreladas às suas áreas de estudo, o que pode significar que estas colaboraram para a reformulação de seu pensamento. Além disso, as questões sociais, políticas e econômicas foram pouco abordadas, predominando uma visão de patologia individual, o que remete ao principio dos estudos criminológicos. Palavras-chave: criminalidade, representação social, estudantes (Psicologia, Direito, Pedagogia) Abstract Crime is very discussing in our society through the media vehicles and concern about the way we can be affected by it. According to Kolker (2004), crime is a complex and multidimensional phenomenon that requires dialogue among different knowledge. It is believed that on this are involved in different disciplines, each with it’s specificity and it is considered that psychology, pedagogy and law are areas that complement the theme. Thus, we sought to investigate the conceptions of crime for the students of these courses. From this, also aimed to identify the similarities and differences in their conceptions and a possible interface between these three areas of study. For this semi-structured interviews were conducted, which were then analyzed through content analysis, aimed at taking the senses that form the interviewees through core of meaning, as presented by Aguiar and Ozella (2006). It was possible to see that the views of respondents are tied to their areas of study, which may mean that these contributed to the reformulation of his thought. In addition, social issues, economic policies and some were addressed, predominantly a vision of individual pathology, which refers to the principle of criminological studies. Key-words: crime, social representation, students (Psychology, Law, Education) 1 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 INTRODUÇÃO A criminalidade é um tema muito discutido em nossa sociedade através dos veículos midiáticos e da preocupação com a forma que podemos ser atingidos por ela. Acredita-se que em relação a esta estão envolvidas diferentes áreas do saber, cada uma com sua especificidade, trabalhando para convergir em um objetivo comum: a transformação da realidade social, especificamente das pessoas que cometeram algum delito. O principal objetivo da pesquisa foi investigar as concepções de criminalidade para os alunos desses cursos. A partir disso, objetivou-se também identificar as convergências e divergências de suas concepções e uma possível interface entre essas três áreas de estudo. Os profissionais dessas áreas têm dado contribuições nas decisões acerca da criminalidade, ao mesmo tempo em que há uma pressão, veiculada pelos recursos midiáticos, para que eles dêem respostas e soluções para este fenômeno. Entende-se que os estudantes serão futuros profissionais que exercerão poder nas relações sociais a partir do conhecimento científico adquirido e legitimado pela crença da ciência como instância solucionadora dos problemas sociais. Conhecer a representação de estudantes dos cursos de Psicologia, Direito e Pedagogia, possibilitou ir além das conceituações determinadas pela lei. A escolha desses cursos não foi aleatória nem arbitrária, referiu-se a busca de um olhar específico dessas áreas acerca do tema, considerando suas atuações determinantes para a discussão da criminalidade no bojo das questões sociais. Investigar as perspectivas de estudantes de outras áreas, bem como, da própria Psicologia contribui no sentido de pensar como os profissionais podem refletir sobre suas atuações em diversos ângulos, repensando suas práticas acerca da criminalidade ou aproximando os olhares de diferentes áreas. Esta pesquisa faz-se relevante à medida que, através do relato das representações do conceito de criminalidade de estudantes dos cursos de graduação dessas três áreas, visa problematizar um assunto comumente falado, mas que muitas vezes não é repensado para propor mudanças na ordem estabelecida. Universidade Presbiteriana Mackenzie REFERENCIAL TEÓRICO PSICOLOGIA, DIREITO E EDUCAÇÃO: RELAÇÕES COM A CRIMINALIDADE DIREITO E CRIMINALIDADE De acordo com Kolker (2004), a criminalidade é um fenômeno complexo e multideterminado que demanda diálogo entre saberes distintos. Para Lira Júnior (2009), toda sociedade possui seus padrões, regras e limites por ela estabelecidos, e quando um indivíduo ou grupo se desvia destas determinações ele provoca mudanças e é considerado desviante da norma social. Neste caso, a criminalidade, apesar de não ter sido aceita em nossa sociedade como forma de mudança social tem modificado o modo como lidamos com ela. De acordo com Kolker (2004), a Escola Clássica de Direito, baseada em idéias iluministas, via a punição como meio de evitar a recorrência de um delito. Esta perdeu espaço para a Escola Positiva de Direito Penal no fim do século XIX por não conseguir explicar o aumento da criminalidade e da reincidência. Para a Escola Positiva a criminalidade era algo inato, manifestação de uma anormalidade, sintoma de uma personalidade perigosa, e, dessa forma, os criminosos não poderiam ser responsáveis pelo perigo que representavam, mas, no entanto, eram um perigo ao bem estar da sociedade e esta deveria ser protegida reeducando-os ou neutralizando-os. (KOLKER, 2004). Com o enfraquecimento das idéias positivistas surge o sistema Dualista de Direito Penal, que faz coexistir a pena e a medida de segurança como acréscimo para os casos mais perigosos. Novas mudanças possibilitam a substituição desse sistema pelo Vicariante, em que penas são reservadas aos imputáveis e medidas de segurança aos inimputáveis (KOLKER, 2004). No entanto, a Escola Positiva de Direito Penal, apesar de ter perdido forças, ainda influencia esse sistema. [...] como legado dessa escola se manterá a tradição, inteiramente maniqueísta, de perceber os que delinqüem como um outro perigoso, pernicioso à sociedade, desumano, verdadeiro monstro e por isso incapaz de viver entre os homens de bem... Dessa maneira será sempre possível justificar para eles os tratamentos mais cruéis e ainda garantir a aprovação da opinião pública (KOLKER, 2004, p. 182). Huiman e Vergez (1978) discutem os problemas que se apresentam acerca da conceituação de direito, já que existe um direito devidamente regulamentado, que vai ordenar o convívio social através de leis e regras (direito positivo) e um direito que é dependente da concepção do indivíduo sobre justiça (direito natural). De acordo com Huiman e Vergez (1978) justiça é “o rigoroso respeito aos direitos de cada um” (p. 250). Mas cabe discutir qual direito garante 3 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 a justiça. O direito se apresenta como uma noção moral, delimitando o que nos é permitido por meio de uma regra. Dá-nos autorização e deixa-nos decidir sobre a nossa conduta. É um conceito mais amplo que o dever, mas possui uma relação recíproca com este, à medida que nossos direitos são deveres de outros em relação a nós e vice-versa. É então um poder: podemos o que é possível e permitido (HUIMAN; VERGEZ, 1978). PSICOLOGIA E CRIMINALIDADE De acordo com Bock (2001), a história da construção Psicologia tem mais de dois mil anos e está relacionada à necessidade da humanidade e às exigências colocadas pela realidade econômica e social, além da busca do homem para compreender a si mesmo. A primeira tentativa de sistematização da Psicologia ocorreu entre os filósofos gregos, que levantavam questões acerca do homem e sua interioridade. Segundo Bock (2001) o estudo Da Anima, de Aristóteles, pode ser considerado o primeiro tratado em Psicologia. No período do Império Romano, o pensamento psicológico estava relacionado ao conhecimento religioso, visto que a Igreja Católica monopolizava o saber naquele período, ao lado do poder econômico e político. Para Figueiredo (2006), a instituição da Psicologia como ciência é construída, principalmente, na passagem do Renascimento para a Idade Moderna, período em que ocorre a noção de subjetividade privatizada (sensação de experiências íntimas, as quais ninguém tem acesso). No século XVI, o surgimento da imprensa possibilitou a leitura silenciosa e isto permitiu a construção de um ponto de vista próprio a cada sujeito, tornando-se o trabalho intelectual e, até mesmo a religiosidade, um ato íntimo, já que não eram mais necessários intermediários para o acesso ao conhecimento. Neste período a produção de conhecimento foi intensamente valorizada, tendo-se início a sistematização do mesmo e o estabelecimento de métodos para sua construção (BOCK, 2001). De acordo com Bock (2011), é no século XIX que o papel da ciência ganha destaque, tornando necessário seu avanço, para trazer respostas técnicas às necessidades advindas da nova ordem econômica (o capitalismo). De acordo com Figueiredo (2006), é neste século que se desenvolvem a Ideologia Liberal Iluminista e o Romantismo. Para a Ideologia Liberal os homens são iguais em capacidade e devem ser iguais em direitos, portanto, todos devem ser livres. No entanto, essa liberdade precisa ter como premissa a solidariedade, para que não gere caos. Já no Romantismo se reconhece que os homens são diferentes e acredita- Universidade Presbiteriana Mackenzie se que é nisto que reside a liberdade, sendo possível a comunicação entre os homens em atividades que anulam as diferenças (artes, religião, entre outros). De acordo com Figueiredo (2006), a experiência de liberdade individualizada gerou “inconvenientes” (p. 46) e, com isto, instaurou-se um sistema de docilização e domesticação dos indivíduos, que “envolve a elaboração e aplicação de “técnicas científicas” de controle social e individual [...] chamado de Regime Disciplinar ou, mais simplesmente, “Disciplinas” e pode ser encontrado muito facilmente nas práticas de todas as grandes agências sociais” (FIGUEIREDO, 2006, p. 46). Com as Disciplinas, por se reconhecer a existência de um sujeito individual, tem-se a esperança da possibilidade de padronização dos sujeitos, colocando-os a serviço da ordem social. Dessa forma, surge a necessidade de uma psicologia aplicada, especialmente nas áreas da educação e do trabalho. “Ou seja, o Regime Disciplinar, em si mesmo, exige a produção de um certo tipo de conhecimento psicológico de forma a tornar mais eficazes suas técnicas de controle” (FIGUEIREDO, 2006, p. 49). De acordo com Leal (2008), a articulação entre psicologia e justiça ocorreu em 1868, com a publicação do livro Psychologie Naturelle, de Prosper Despine, que investigou as particularidades psicológicas dos sujeitos envolvidos em crimes graves. Ele concluiu que a maioria deles não apresentava enfermidade física ou mental, situando a delinqüência na tendência e comportamento moral do indivíduo. A Criminologia surge em 1875, no cenário das ciências humanas, como responsável pelo estudo da relação entre o crime e o criminoso, buscando formas de reeducá-lo para a vida em sociedade. Nesse contexto a Psicologia ganha destaque e é encarregada de investigar a personalidade e compreender a conduta do criminoso. Para Segre (1996, apud LEAL, 2008, pp. 173-174), “o que deve prevalecer no estudo criminológico é a tentativa de esclarecimento do ato humano anti-social, visando à sua prevenção e, tanto quanto possível, a evitar a sua reiteração”. EDUCAÇÃO E CRIMINALIDADE Ensina Freire que, o que importa verdadeiramente ao se ajudar o homem, é ajudá-lo a ajudar-se, fazendo-o agente de sua própria recuperação. Assim, não se trata de educar (transformar) o preso, mas de oferecer condições para que se eduque (SILVA, 2011, p. 138) Silva (2011) aponta que uma das bases teóricas para desenvolver um trabalho educativo com sujeitos presos é a pedagogia freiriana, que propõe a educação como instrumento de libertação. Há um movimento desse teórico em busca de uma educação para a “consciência e conquista da dignidade humana, contrapondo-se, assim, aos processos históricos de 5 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 coisificação que acometem os homens no universo penitenciário” (SILVA, 2011, p. 130). Este processo levaria o homem a descobrir-se como sujeito histórico, a partir de um processo de reflexão acerca de si mesmo e promoveria sua libertação dos modos alienantes e domesticadores de sua dignidade. A libertação deveria ser entendida em duas dimensões: a primeira voltada a liberdade do indivíduo e a segunda ao fortalecimento do sujeito como agente social para a libertação (SILVA, 2011). Outro aspecto apontado pelo autor é a caracterização do homem como ser de relações, que responde ao mundo e com ele se relaciona de maneiras plurais, não automatizadas. Além disso, essa capacidade lhe permite transcender, ou seja, auto objetivar-se para refletir e discernir sobre si e as demais pessoas. De acordo com Silva (2011), na medida em que adquire uma consciência crítica em suas relações com o mundo, a exigência por atitudes mais reflexivas e menos instintivas aumenta. No entanto, para Silva (2011), a sociedade disciplinar atual retira do homem a capacidade de refletir e decidir, negando-lhe sua condição de humanidade. O autor aponta que, para haver libertação através da educação, é necessário que esta se afaste do caráter bancário, “essencialmente narrativo e desconectado da experiência existencial dos educandos” (SILVA, 2011, pp. 136-137). Nesta prática pedagógica o educador é considerado o único detentor do saber, responsável por “depositar” o conhecimento nos alunos-depositários, que acabam por apenas memorizar mecanicamente o conteúdo transmitido. Segundo Leme (2007, apud SILVA, 2011), a educação só caracterizará benefício àqueles privados de liberdade se opor-se à lógica de transformação do indivíduo e buscar a transformação da realidade que oprime, afastando-se do modelo bancário, que gera dominação, marginalização e disciplinamento. DIREITOS HUMANOS De acordo com Tosi (s/d), a constituição dos direitos do homem é influenciada, principalmente, pelo pensamento do liberalismo, do socialismo e do cristianismo social. Ao liberalismo estão relacionados os “direitos de liberdade” (TOSI, p. 2), que garantem ao indivíduo liberdade, direito à propriedade e à segurança. Estes são chamados de direitos negativos, pois objetivam a não intervenção do Estado nos direitos individuais. Ao socialismo é atribuída a noção de igualdade de direitos a todos os indivíduos. Os movimentos revolucionários de 1848 possibilitaram a introdução na Constituição Francesa da noção de direitos sociais: “assistência pública aos pobres e necessitados, ao trabalho, à instrução primária universal e gratuita” (TOSI, p. 4). O cristianismo social introduz a noção Universidade Presbiteriana Mackenzie de fraternidade, através da conceituação de homem como ser criado à imagem e semelhança de Deus e, portanto, possuidor de uma dignidade intrínseca. Em 1948, foi proclama a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que contemplam as três esferas citadas, em seu artigo primeiro: “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. São dotadas da razão e de consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade” (MARCÍLIO, 2008, p. 10). De acordo com Tosi (s/d) a quantidade de direitos se desenvolveu a partir de três tendências: a universalização (indivíduos que antes eram cidadãos de um Estado, passam a ser cidadãos do mundo), a multiplicação (aumento nos bens a serem defendidos) e diversificação (definição dos sujeitos de direitos, respeitando suas especificidades). Dessa forma, surgiram “novas gerações” de direitos (TOSI, p. 6). A primeira geração contempla os direitos civis e políticos (os direitos à vida, a liberdade, à propriedade, entre outros); A segunda geração inclui os direitos econômicos, sociais e culturais; Os direitos a uma nova ordem internacional (direito à paz, desenvolvimento, entre outros). A quarta geração, ainda em discussão, refere-se aos direitos das gerações futuras, criando-se, assim um compromisso de deixar um mundo melhor para as próximas gerações. Os direitos humanos não estão relacionados apenas ao âmbito legal, mas a valores que os justificam. Dessa forma, Tosi (s/d) apresenta que existem dimensões de direitos a serem consideradas, são elas: Dimensão ética, Dimensão jurídica, Dimensão política, Dimensão econômica, Dimensão social, Dimensão cultural e Dimensão educativa. De acordo com Silva (2011), os presos também são sujeitos de direitos, dessa forma “salvo as restrições peculiares e inerentes ao instituto da prisão, quais sejam, a liberdade de locomoção e o exercício dos direitos políticos, devem ser resguardados aos prisioneiros todos os direitos e garantias decorrentes de sua humana condição” (JUNQUEIRA, 2005, p. 26, apud SILVA, 2011, p. 113). A privação de liberdade não deve desrespeitar a dignidade humana, pois cometer um delito não descaracteriza o preso enquanto ser humano. De acordo com Silva (2011), a noção de sujeito de direitos corresponde ao dever do Estado em garanti-los. Para Gadotti (2009, apud SILVA, 2011), a educação é um direito humano decorrente da dignidade e, como tal deve ser assegurado pelo Estado, priorizando a população em situação vulnerável, incluindo as que estão privadas de liberdade. HISTÓRICO DA PRISÃO De acordo com Rusche (2004), com o avanço político da burguesia surgem críticas ao poder da monarquia, dos séculos XVIII e XIX, e, neste momento histórico, segundo Foucault 7 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 (2008), a economia do poder passou a acreditar que seria mais rentável punir e vigiar e que esta função deveria ser compartilhada com todo o corpo social. A partir daí iniciou-se uma política de especialização das penas baseada no contrato social, que deu surgimento a novas estratégias de poder, nas quais a transgressão é vista como atentado contra todo o corpo social e não mais voltada a uma única pessoa, como na soberania. Criou-se um código penal para definir os crimes e o caráter individual das penas. De acordo com Rusche (2004), no contrato social as punições eram dadas a fim de se reparar os danos contra a sociedade e para reintegrar o criminoso à mesma. A ênfase das ciências criminológicas é sobre a mente e não sobre o corpo, mas intenta transformar o criminoso, surgindo, assim, uma tecnologia da pena, que busca convencer o delinqüente da lógica do castigo. Tendo o controle das mentes as punições passam a treinar os corpos dos indivíduos, tornando-os dóceis e úteis. Constituiu-se, dessa forma, um saber a respeito da delinqüência que acabou por se tornar seu formador. Por meio dos mecanismos disciplinares e de controle e da classificação dos indivíduos, a forma-prisão espalhou-se pela sociedade, e se tornou inquestionável à medida que a punição e o controle passaram a ser dever de toda sociedade. Rusche (2004) aponta o conceito de panóptico para explicar esse controle: O panóptico, [...] é um conceito foucaultiano, que nos permite compreender melhor o caráter de vigilância e controle social. No penitenciário ele está inscrito na arquitetura das prisões. Arquiteturas em forma de mandala, com torre de vigia no meio, onde cada cela está ao alcance de uma inspeção central e invisível. Sem saber quando estão sendo observados, os prisioneiros têm de se comportar como se estivessem sendo sempre vigiados. Esse princípio estende-se a toda sociedade, que Foucault acaba por denominar de sociedade carcerária (Rusche, 2004, s/p) A pena passou a ser uma forma de reparação econômica à sociedade, já que o crime era visto como uma forma de subtração de algum bem comum, e por isso quantificada cronologicamente representando o tempo que o indivíduo levaria para ressarcir a sociedade. A técnica-disciplinar da prisão baseou-se nos mecanismos de disciplinarização presentes na sociedade, unindo a privação da liberdade, a sujeição e a disciplinarização. “Hoje em dia, a teia da disciplina visa generalizar o homo docilis exigido pela sociedade racional, eficiente, técnica: uma criatura obediente, trabalhadora, escrupulosa e útil, flexível a todas as modernas táticas de produção de guerra” (RUSCHE, 2004, p. 18). Para Foucault (2008), desde o seu início a prisão serve para fabricar novos criminosos ou para afundá-los ainda mais na criminalidade, pois está longe de transformá-los em pessoas honestas, sua lógica é fabricar delinqüentes, pois eles têm utilidade política e econômica. A relação saber-poder verificada em instituições como a escola ou o hospital, não é tão Universidade Presbiteriana Mackenzie diferente do que se verifica nas prisões, no entanto com o surgimento das ciências humanas, que ao estudar o homem o tornou conhecível, esta relação é levada a um âmbito de dominação-observação, visível na técnica penitenciária, mas não percebido tão claramente na sociedade (RUSCHE, 2004). Segundo Foucault (1986, apud RUSCHE, 2004), no sistema penitenciário julga-se a reconstrução da existência de uma pessoa como delinqüente. “Enquanto o infrator é um transgressor ocasional, a técnica penitenciária o transforma em delinqüente, numa anormalidade desviante” (RUSCHE, 2004, p. 19). MÉTODO Tipo de pesquisa Trata-se de uma pesquisa qualitativa tal como descrito por Sampieri, Colado e Lucio (2006), pois permite uma profundidade dos dados com uma riqueza de detalhes, propiciando ao pesquisador um grande número de interpretações. Amostra A coleta de dados foi realizada com cinco estudantes regularmente matriculados nos cursos de Psicologia, Direito e Pedagogia, sendo dois estudantes dos cursos de Psicologia e Pedagogia e um estudante do curso de Direito. A escolha por estas áreas de estudo se deu por acreditar-se que representam áreas complementares na questão do tema proposto. Como critério de inclusão da amostra foi determinado que apenas estudantes cursando os semestres intermediários dos cursos determinados poderiam participar da pesquisa. Foram estabelecidos, também, dois critérios de exclusão: estar matriculado nas duas primeiras etapas do curso ou nas duas últimas etapas. Estes critérios foram estabelecidos devido a, geralmente, estudantes dos semestres iniciais ainda não terem disciplinas específicas da área de estudo, e estudantes nos últimos semestres cursarem estágios obrigatórios, tornando o contato para a realização da pesquisa inviável. Instrumentos Para a coleta de dados foi utilizada a entrevista semi-dirigida, com o intuito de flexibilizar o contato com o participante a partir de um foco já estabelecido. Esse modelo auxiliou na condução das entrevistas sem privar o participante de expor suas concepções, pois não é uma forma rígida de entrevista e permitiu à pesquisadora formular questões além das estabelecidas no roteiro conforme as repostas dos participantes, assim como apontam Lakatos e Marconi (2007). 9 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 Respeitando as questões éticas foi entregue às coordenações dos cursos a “Carta de Informação à Instituição”, solicitando autorização para a realização da pesquisa, e aos participantes a “Carta de Informação ao Sujeito de Pesquisa” e o “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, documentando seu conhecimento e anuência acerca da pesquisa. Procedimentos Após a elaboração do projeto de pesquisa e a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa, por se tratar de pesquisa com seres humanos, foi realizado contato com os coordenadores dos cursos de Psicologia, Pedagogia e Direito, a fim de obter autorização para a realização das entrevistas na instituição. Após a apresentação e assinatura da “Carta de Informação à Instituição”, foi solicitada autorização para expor em murais da Universidade o convite à participação na pesquisa. A pesquisadora selecionou os participantes de acordo com os critérios da amostra e, para a realização da entrevista, estabeleceu um horário e local adequado, de comum acordo entre ambos, de forma a não prejudicar os horários de aula e garantir a privacidade e qualidade das entrevistas. No encontro com os participantes, a pesquisa e seus objetivos foram elucidados. Solicitouse a leitura do “Termo de Consentimento Livre e Esclarecido”, e este foi entregue em duas vias idênticas a serem assinadas pelo entrevistado, ficando uma cópia com o participante e outra com o pesquisador. Foi, também, enfatizado o sigilo da identidade do sujeito. Após as explicações iniciais Foi realizada a entrevista semi-dirigida e esta foi gravada, mediante o consentimento de cada entrevistado, e posteriormente transcrita para a análise das informações coletadas. Análise dos Resultados As entrevistas foram analisadas através de análise de conteúdo, visando a apreensão dos sentidos que compõem o discurso dos entrevistados, através de Núcleos de Significado, conforme apresentado por Aguiar e Ozella (2006). Neste tipo de análise o material de estudo, depois de gravado e transcrito, passou por uma série de leituras “flutuantes” (AGUIAR e OZELLA, 2006, p. 230), com a intenção de levar o pesquisador a apropriar-se do mesmo. A partir dessas leituras foram selecionados préindicadores de significado, que, por sua freqüência, ênfase na fala dos participantes, carga emocional a eles atribuída, entre outros aspectos, forneceram subsídios para a criação de núcleos de significado. Foi realizada uma seleção de trechos das falas dos participantes, a fim de ilustrar e esclarecer os núcleos e, considerando a importância para a compreensão do objetivo da Universidade Presbiteriana Mackenzie pesquisa, estes núcleos foram delimitados, conforme proposto por Aguiar e Ozella (2006) Neste momento foram analisados os dados de cada participante buscando compreender o movimento do sujeito e articulando-os à teoria. Em um segundo momento, foi realizada uma articulação entre a análise dos participantes de modo a contemplar o objetivo da pesquisa. Este tipo de análise demonstrou-se adequado para o estudo, pois pretende ir além do discurso aparente do sujeito, considerando condições subjetivas, contextuais e históricas; realizando-se uma análise que avança “da fala para o seu sentido” (AGUIAR; OZELLA, 2006, p. 231). Considerações Éticas Por se tratar de pesquisa envolvendo seres humanos, o projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa e, como dito anteriormente, os dados obtidos e a identidade dos sujeitos mantidos em sigilo. Foram acompanhadas as recomendações da resolução 0196/1996, do Conselho Nacional de Saúde, e do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Embora esta pesquisa não tenha representado riscos à integridade física e psicológica dos participantes, estabeleceu-se que, caso o sujeito ou seu representante legal sentisse necessidade, poderia entrar em contato com o pesquisador responsável pelo telefone que consta na “Carta de informação ao sujeito de pesquisa”. E, além disso, poderia retirar seu consentimento de participação na pesquisa a qualquer momento. Delimitou-se que existindo interesse dos sujeitos de pesquisa e/ou da instituição, seria realizada uma devolução dos resultados gerais do trabalho. RESULTADOS E DISCUSSÃO Os resultados da pesquisa serão apresentados, sinteticamente, de acordo com os núcleos de significação selecionados para contemplar os objetivos do estudo. Foi realizado um recorte da amostra, selecionando três das cinco entrevistas para compor esse item, devido à extensão da discussão. Entrevistado 1 – G.G. (22 anos, curso Psicologia, 6º semestre) Criminalidade: condição inata x influência do ambiente Para a entrevistada a criminalidade está associada a uma ação contra o bem estar de outra pessoa: “Seriam atos que podem prejudicar outras pessoas, no sentido de mortes, abusos, seja pessoal, psicológico, físico” (G.G.). 11 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 Sua concepção envolve uma relação em que um indivíduo é atingido diretamente pela ação de outro, sendo que esta lhe acarreta um prejuízo. Seu discurso é permeado de expressões que enfatizam a criminalidade como fenômeno individual e desconsidera aspectos sociais, econômicos, políticos que podem estar relacionados a ela. Há uma dúvida que envolve sua concepção: seria a criminalidade uma condição inata ou uma condição adquirida por influências do ambiente em que o indivíduo vive? Percebe-se que há a busca por uma perspectiva intermediária entre ambos os aspectos, no entanto, permanece uma visão que centraliza as explicações de criminalidade como patologia individual, assim como dito por Alves (2008), inicialmente os estudos criminológicos eram explicados a partir dessa visão. A autora pontua que estas teorias, atualmente em desuso, devido à sua conotação discriminatória, buscam compreender as causas e as formas de controle desse fenômeno a partir de motivações individuais. Tais idéias sutilmente persistem e permeiam o discurso social, como se pode perceber na fala da entrevistada. “Por exemplo, o caso de pessoas que vivem nas comunidades, que, geralmente, você já pensa que pode entrar no crime, no tráfico, enfim, por influência de outros que lá dentro estão. Porém nem todos que estão lá necessariamente vão entrar. Então pode ser que haja uma predisposição, sei lá, algo inato, do indivíduo para que ele cometa esses atos.” (G.G.). Ela apresenta que no decorrer do curso passou a voltar seu olhar à busca de compreensão das motivações do indivíduo, o que, anteriormente, não valorizava. No entanto, seu discurso permanece com uma visão individualizada, que é amplamente difundida na sociedade, na qual, em relação à criminalidade, não são discutidos aspectos da desigualdade social, econômicos ou políticos. Medidas eficazes, nem sempre são eficazes: sobre o sistema penal Para G.G. a eficácia do sistema penal parece estar relacionada ao tempo de cumprimento da pena. Novamente, verifica-se a centralização no indivíduo, devendo este permanecer afastado da sociedade até que esta se considere ressarcida pelo bem que lhe foi tirado. De acordo com Rusche (2004), historicamente, a pena era uma forma de reparação econômica à sociedade, pois o crime era visto como uma forma de subtração de algum bem comum. Sua quantificação cronológica representava o tempo que o sujeito levaria para compensar a sociedade. “Medidas eficazes, nem sempre são eficazes, porque, às vezes, no caso, o sujeito cometeu um crime, ele vai preso e, de repente, passa um tempo lá e logo já está na rua e é pouco tempo para o tipo de crime que ele cometeu” (G.G.) Parece haver nesta fala um sentido de injustiça para com a sociedade ao negar-lhe um tempo maior de distância do ‘sujeito criminoso’. Pode haver, também, uma idéia de que com Universidade Presbiteriana Mackenzie maior tempo esse indivíduo possa ser docilizado pelo sistema prisional tornando, assim, o sistema penal eficaz em sua tarefa de reeducar indivíduos para viver em sociedade. Prevenção educativa A entrevistada acredita que para lidar com a criminalidade a Psicologia auxiliaria nas áreas jurídica, clínica (individual e familiar), desenvolvimento e escolar, o direito na efetivação da lei, e a medicina também seria importante, pois são áreas que “lidam com o indivíduo em si” (G.G.). O acompanhamento desde a infância, na escola e família, cuidando para que esse indivíduo seja positivamente influenciado é considerado fator essencial. A entrevistada acredita que a prevenção seja a forma mais adequada de lidar com a questão da criminalidade, visto que, dessa forma, ela poderia ser evitada. “Você desde a escola orientar, aliás, desde a família, aí vai pra escola, na escola ela recebe orientações também, isso vai acarretar em todo processo de desenvolvimento e que fará com que, talvez, ele não entre pra isso, no caso para o crime” (G.G.). A perspectiva apresentada por G.G. faz menção à forma como o saber de determinadas áreas de conhecimento pode influenciar o individuo a não cometer crimes, ou seja, em uma relação linear entre esses saberes e o sujeito, desconsiderando-se outras variáveis. Acredita que dessa forma seria possível impedir a criminalidade. É possível perceber em seu discurso a relação saber-poder, apontada por Foucault (2008), em que aquele que tem domínio sobre a técnica/saber (médico, professor, psicólogo,...) tem influência/poder sobre o individuo, podendo domesticá-lo. Na perspectiva de G.G., a escola teria função essencial para a formação do indivíduo, educando-o para a vida em sociedade. Foucault (2008) apresenta que a escola, os hospitais e outras instituições, não diferem em sua totalidade da prisão. A prisão é um mecanismo de reeducação. Se uma pessoa comete um crime, considera-se que ocorreu uma falha em sua preparação e, portanto, é necessário corrigi-la. Assim, prisão e escola são vistas como mecanismos de (re)educação para a vida em sociedade segundo Foucault (2008). No discurso da entrevistada há grande ênfase na influência que as áreas de estudo apontadas podem ter sobre o desenvolvimento do sujeito. Para ela, a Psicologia (sua área de estudo) poderia fornecer informações que auxiliassem no desenvolvimento do individuo, para que ele pudesse ter consciência das influências a que está exposto. 13 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 Entrevistado 2 – F.G. (21 anos, curso Direito, 5º semestre) Criminalidade: fatores sociais x genética O entrevistado apresenta a criminalidade como descumprimento das leis determinadas. “Acho que criminalidade é tudo o que você faz contra as normas estabelecidas, todo ato que você pratica contrário às normas estabelecidas nas legislações elaboradas” (F.G.). De acordo com Huiman e Vergez (1978), o direito positivo ordena o convívio social por meio de regras e leis, conferindo uma noção moral. A perspectiva apresentada pelo entrevistado relaciona-se a isto, a determinação de que é criminalidade desenvolvida a partir das regulamentações legais. Neste sentido, percebe-se em sua fala a existência do normal e do desviante (criminoso), visto que foram elaborados critérios (leis) que assim os determinam. F.G. concebe como fatores para a ocorrência da criminalidade questões sociais e genéticas: “Falta de cultura, uns 80% da desigualdade social, falta de oportunidade. Mas eu também acho que tem gente ruim mesmo” (F.G.). No momento da entrevista percebeu-se que o sujeito relatava suas percepções com clareza e convicção, expondo até certo momento uma déia de que a criminalidade seria também permeada por fatores sociais; todavia retrocedeu desse pensamento e apresentou concepções focadas em fatores biológicos como determinantes da criminalidade, idéia também presente nos primeiros estudos criminológicos (LEAL, 2008). FG manteve em seu discurso idéias semelhantes às apresentadas pela entrevistada GG. e ao discursar sobre uma área de estudo diferente da dele (Psicologia), a associou a práticas retrogradas, fruto histórico de teorias discriminatórias já em desuso, mas que ainda exercem influência na sociedade. “Psicologia é fundamental (para) você poder entender a mente dessas pessoas. E como eu disse, eu acredito que existem pessoas más, e quando você consegue definir quem é realmente mau e quem, obviamente, cometeu crimes por até, influência de drogas, álcool, violenta emoção, qualquer outra coisa, você pode diferenciar, acho que isso é muito importante também na Psicologia” (F.G.). Prevenção mais importante que a punição O entrevistado aponta que as áreas de atuação essenciais para lidar com a criminalidade são a Psicologia, para definir quem é realmente mau, a Sociologia e o Direito, para criar normas mais rígidas. Para ele, o trabalho deve se focalizar na prevenção do crime. Portanto, reconhecer o comportamento criminoso e criar leis severas, que intimidem a sociedade, podem ser fatores positivos para a prevenção. F.G. considera a prevenção mais importante que a punição, no entanto, não seria esse tipo de atuação (chamada de preventiva) já uma Universidade Presbiteriana Mackenzie punição ao sujeito e à sociedade? Punição e coibição Este núcleo representa o ponto central da concepção de F.G., visto que é enfatizado e tratado com grande convicção pelo entrevistado. De acordo com F.G., o sistema penal deveria ser mais rígido, visando punir o indivíduo e coibir a sociedade. Para ele, esta é a função da pena e não deveria haver tantos recursos para promover a liberdade, após a prisão. “Porque a pena é justamente pra isso, além de você punir, é pra você coibir as outras pessoas da sociedade a não praticar o crime, né. Então, a partir do momento que as pessoas vêem que a pena é mais branda e que elas não vão sofrer tanto, como deveriam sofrer, não tem muito nexo” (F.G.). À pena é atribuído o caráter punitivo e de coibição. Parece que a criminalidade está associada à falha nesse sistema, uma vez que, com a existência de penas flexíveis, ele considera que o indivíduo não é suficientemente castigado (e pode voltar a praticar um delito), e os demais membros da sociedade não são intimidados a ponto de evitarem essa prática. A ênfase dada ao binômio punição-coibição remete ao conceito de Foucault, apresentado por Rusche (2004), de sociedade carcerária, em que toda a sociedade é responsável por vigiar o outro e a si mesmo, gerando, dessa forma, corpos dóceis, úteis e produtivos. O entrevistado apresenta, ainda, sua contrariedade em relação ao tribunal do júri, atestando que considera inadequado à sociedade julgar os casos mais extremos, visto que o juiz é o mais preparado e possui mais conhecimento para tal. “O juiz que estuda o tempo inteiro pra... às vezes estuda 20, 30 anos pra poder passar no concurso e aprende tudo, ele não julga os crimes mais pesados, quem julga é a população. O cara estuda muito e quem julga são as pessoas, pessoas que não conhecem o direito” (F.G.). Esta consideração coloca o profissional na posição de especialista e, portanto, possuidor de um poder que os demais não possuem, ou não deveriam possuir, neste caso, o poder de julgar os crimes cometidos pelos demais membros da sociedade. Entrevistado 3 – A.C. (25 anos, curso Pedagogia, 5º semestre) Criminalidade: doença da sociedade “Complexo. Ah, eu entendo que criminalidade é o ato de roubar, matar (risos), fazer coisas 15 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 desse tipo, né. Roubar, matar, coisas que estão fora dos padrões éticos da sociedade” (A.C.). Para a entrevistada a criminalidade consiste em uma traição ao pacto social e, nessa perspectiva, seria uma doença advinda da própria sociedade. Esta “doença social”, de acordo com a entrevistada acontece devido à ausência de vínculos entre as pessoas. A valorização da realização individual, no mundo moderno, traz consigo o distanciamento entre as pessoas. Conforme apontam Carvalho e Bonatto (2000), o individualismo é gerado na sociedade de consumo, pois há uma valorização exacerbada do indivíduo, que impede as relações sociais de contemplar as diferenças. Nessa perspectiva, a criminalidade estaria relacionada a não-atenção social para os laços de fraternidade e cuidado que poderiam amenizar seus efeitos. “Eu costumo dizer que por trás de um criminoso tem uma triste história [...]. (a criminalidade) é um sintoma da loucura que as pessoas vivem na sociedade. As pessoas não se enxergam, as pessoas não se olham e acaba fazendo com que a pessoa se perca nela mesma e cometa um ato desses” (A.C.). Trabalho de resgate do indivíduo Para a entrevistada, os métodos de cumprimento de pena são ineficazes, visto que não propõe uma intervenção que vise resgatar o sujeito. “Que complicado. A pessoa tem que pagar de alguma forma, só não sei se cumprir uma pena resolve. Tem que ser feito um trabalho de resgatar, tem que ter um olhar voltado, só enfiar na cadeia, não resolve, eu acho que só piora. A pessoa sai de lá e vai fazer de novo” (A.C.). Para a entrevistada esse trabalho deveria ser realizado por educadores e psicólogos, que poderiam promover a reflexão acerca da condição do sujeito. Ao mesmo tempo em que apresenta uma proposta de libertação, conforme apontado por Silva (2011), em que o indivíduo pode refletir sobre si mesmo e o outro, a entrevistada reconhece interferências das questões sociais, como pobreza, violência, entre outros aspectos. No entanto, ao falar sobre intervenção, seu olhar volta-se para o individual, como possibilidade de transformação. Interdisciplinaridade e prevenção Para ela é preciso realizar um trabalho interdisciplinar para lidar com a criminalidade, envolvendo profissionais das áreas de Psicologia, Sociologia e Pedagogia. Ela concebe este trabalho como preventivo à criminalidade, buscando realizar uma intervenção desde a infância que vise à formação do caráter e a criação de valores. A educação como formadora de sujeitos é vista como essencial. Universidade Presbiteriana Mackenzie “A educação, ela é poderosa, se você estiver realmente preocupado com a educação e não com conteúdo apenas” (A.C.). Esta perspectiva parece visar a formação de indivíduos com capacidade crítica de reflexão, não os limitando à memorização mecânica de conteúdo, como defende Silva (2011). A educação bancária, tal como concebida por Paulo Freire (apud SILVA, 2011) somente produziria dominação, marginalização e disciplinamento. De acordo com Leme (2007, apud SILVA, 2011), a educação só caracterizará benefício àqueles privados de liberdade se oporse à lógica de transformação do indivíduo e buscar a transformação da realidade que oprime. CONCLUSÃO Em relação às concepções dos estudantes acerca da criminalidade foi possível perceber que aqueles que representam o curso de Psicologia apresentam percepções relacionadas a outros indivíduos, ou seja, criminalidade como atos que prejudicam outras pessoas. Enquanto o entrevistado do curso de Direito apresenta uma noção de desvio da norma e transgressões à Lei. A entrevistada do curso de Pedagogia como uma traição ao pacto social. Interessante perceber que essas visões encontram-se atreladas às suas áreas de estudo e, portanto, podemos considerar que a formação colaborou para a reformulação de suas concepções. O discurso dos entrevistados foi permeado pela reprodução de teorias que já se encontram em desuso, pois enfatizavam a criminalidade como patologia individual. Foi permeado também pela tentativa de buscar alternativas para a humanização dos processos de intervenção. Na história das ciências humanas encontra-se uma ênfase no estudo da criminalidade. Com o surgimento da criminologia, o corpo e o comportamento do indivíduo foram exaustivamente estudados tendo como base a patologização desses comportamentos, talvez por esse motivo, esse pensamento tenha sido reproduzido pelos estudantes. Foram abordadas questões sociais e econômicas por alguns entrevistados, no entanto, predominou uma concepção focalizada em determinações individuais como geradoras da criminalidade. Ainda que apresentassem fatores externos ao sujeito, contraditoriamente, as alternativas de intervenção eram voltadas ao tratamento individual, não discutindo, assim, propostas para a transformação da realidade que oprime, conforme aponta Silva (2011). Diferente dos estudantes de Psicologia e Pedagogia, o estudante de Direito apresentou uma concepção totalmente vinculada ao cumprimento da Lei. Os demais estudantes sinalizaram a importância de intervenções que pudessem melhorar as condições do indivíduo, enquanto 17 VII Jornada de Iniciação Científica - 2011 o estudante de Direito relatou intervenções que garantissem a eficácia da Lei. Dessa forma, percebe-se o distanciamento entre áreas do saber que, ainda que com suas especificidades, poderiam atuar conjuntamente. Os objetivos da pesquisa foram contemplados, à medida que foi possível conhecer a concepção dos estudantes acerca da criminalidade comparando-a com as visões críticas das teorias. Considerando que a formação atual poderia abordar, e deve contemplar, tais aspectos críticos, poderíamos levantar a seguinte questão para uma próxima pesquisa: Quais as razões que levam à manutenção dos pensamentos ainda ligados à eugenia ou à política higienista, em estudantes das ciências humanas, na primeira década do século XXI? REFERÊNCIAS AGUIAR, Wanda Maria Junqueira; OZELLA, Sergio. Núcleos de significação como instrumento para a apreensão da constituição dos sentidos. Psicol. cienc. prof., Brasília, v. 26, n. 2, jun. 2006. ALVES, Marcia Cristina. Programas de Prevenção à Criminalidade: dos processos sociais à inovação da Política Pública. A experiência do Fica Vivo! 2008. 168f. Dissertação (Mestrado em Políticas Públicas) – Fundação João Pinheiro (Escola de Governo Professor Paulo Neves de Carvalho), Belo Horizonte, 2008. BOCK, Ana Mercês Bahia; FURTADO, Odair; TEIXEIRA, Maria De Lourdes Trassi. Psicologias: uma introdução ao estudo de psicologia . 13. ed. 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