A infância de adolescentes farmacodependentes:
uma análise discursiva da memória autobiográfica.
Christian César Cândido de Oliveira*, Claudia Ines Scheuer**, Sandra Scivoletto***
•Mestrando em Ciências pelo Depto de Fisiopatologia Experimental da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Fonoaudiólogo da equipe do Ambulatório de Adolescentes e Drogas,
do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP .
**Profa. Dra. Docente do Curso de Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da USP .
***Doutora em Psiquiatria pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Coordenadora do Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas do Departamento e Instituto de Psiquiatria do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Chefe do Ambulatório de Adolescentes e Drogas, do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência do Hospital das Clínicas da Faculdade de
Medicina da USP.
I- Introdução
Alterações na memória são comumente encontradas em usuários de drogas (Bhattachary, 2001).
Para Tulving (2002), a memória autobiográfica ou semântica, um tipo de memória explícita
consiste de eventos singulares que a pessoa recorda, sendo verificada por meio do discurso.
Peterson & McCabe (1983) descrevem que o discurso autobiográfico deve apresentar seis
elementos, que juntos formarão a estrutura episódica. Tais elementos são: cenário que se trata do
cenário, da caracterização inicial dos personagens e do ambiente; complicação, tratando-se do(s)
evento(s) que o agente procura resolver, o equivalente à ação; resposta interna, que seria a
mobilização da personagem a partir de uma mudança interna; tentativa, a ação que realiza a
resposta interna; conseqüência, que é a resposta à tentativa que pode ser o sucesso ou o
fracasso dos objetivos; reação, ou seja, a reação, o elemento que mostra o final da estória, que
pode ser visto como a moral do relato.
Para Brown, Shevell & Rips (1986), interpreta-se o conteúdo dos eventos autobiográficos
classificando-os em três classes: o conteúdo pessoal, que se relaciona à vida privada do sujeito,
seu meio familiar; o público, que se relaciona a acontecimentos sociais, e o ocupacional que se
relaciona ao conceito intermediário, entre o público e o privado.
Já para Reiser, Black & Abelson (1985), o discurso autobiográfico pode ser analisado de acordo
com o número de eventos (fatos e ocorrências em que o sujeito de alguma forma, relaciona com
sua própria história de vida que contenha, necessariamente, referências espaço-temporais),
atividades (seqüências estereotipadas de ações gerais ou específicas deliberadas visando uma
ou mais metas) e ações (subordinadas às atividades, podendo sofrer modificações conforme a
especificidade do contexto de cada uma), a fim de verificar a organização da memória
autobiográfica.
II- Propósito do Estudo
Descrever a estrutura autobiográfica do discurso de adolescentes usuários de substâncias
psicoativas e compara-la com a memória autobiográfica de adolescentes não usuários.
III- Metodologia
A amostra de adolescentes usuários de drogas foi obtida no Ambulatório de Adolescentes e
Drogas do Serviço de Psiquiatria da Infância e Adolescência (SEPIA) do Instituto de Psiquiatria do
Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Fizeram parte
deste grupo, 10 adolescentes usuários de drogas psicotrópicas de ambos os sexos, com
diagnóstico de dependência de substâncias psicoativas segundo CID-10 (OMS, 1993). Quanto
aos tipos de substâncias consumidas, 4 adolescentes faziam uso exclusivo de álcool e 6 de
múltiplas drogas. A média de idade de início de álcool foi de 11,5 anos enquanto de múltiplas
drogas, aos 13,7 anos de idade.
O grupo controle foi obtido em escolas da rede pública do Estado de São Paulo. Para este grupo,
utilizou-se um questionário para excluir a possibilidade de dependência química, elaborado pelo
NHSDA (National Household Surveys on Drug Abuse- SAMHSA, 1996; SAMHSA, 1999). Foram
selecionados 10 adolescentes não-usuários de drogas psicotrópicas, equiparados por idade
cronológica aos do grupo experimental, idade média de 15 anos, e de ambos os sexos.
Procedimentos
O discurso autobiográfico foi obtido a partir da fala auto-expressiva e espontânea, estimulada ou
eliciada. Para estimular o início do discurso, o avaliador fez uma única pergunta: “Conte-me uma
história que tenha acontecido com você em sua infância”. Apenas nos casos em que as
produções orais tiveram pequena extensão, houve interferência por parte do avaliador para que o
discurso fosse estimulado. Este procedimento foi gravado em Mini Disc para posterior análise.
Para análise dos discursos foram utilizados três modelos, o baseado em Peterson (1983), o de
Brown, Shevell & Rips (1986) e o de Reiser, Black & Abelson (1985), sendo que a pontuação
correspondente foi dada toda vez que fosse encontrado o elemento discursivo analisado, assim
como 0 ponto caso não houvesse tal elemento.
IV- Resultados
A Tabela 01 mostra a performance de cada grupo (usuários e controle) além do teste estatístico
adotado.
V- Referências
1. Bhattachary, S; Powell, JH. Recreational use of 3,4 methylenedioxymethamphetamine (MDMA) or “ecstasy”: evidence for cognitive
impairment. Psychological Medicine, 31 (4): 647-58, 2001.. 2.TULVING, E. Episodic memory: from mind to brain. Annu Rev Psychol, 53:
1-25, 2002.3.PETERSON, C.; McCABE, A. Developmental psycholinguistics: Tee ways o looking at a child’s narrative. New York:
Plenum, 1983.4.BROWN, N. R.; SHEVELL, S. K.; RIPS, L. J. Public memories and their personal context. In: Rubin, D.C. (Ed.)
Autobiographical Memory, Cambridge, Cambridge University Press, 1986. 5.REISER, B.J.; BLACK, J.B.; ABELSON. R. P. Knowledge
stuctures in the organization and retrieval of autobiographical memories. Cognitive Psychology, 17: 89-137, 1985. 6. ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE. Classificação de Transtornos Mentais e Comportamentos da CID-10. Tradução de Dorgival Caetano, com a
colaboração de Maria Lúcia Domingues e Marco Antônio Marcolin. Porto Alegre: Editora Artes Médicas do Sul, 1993.7.SAMHSA. Substance
Abuse and Mental Health Services Administration. Substance Abuse in States and Metropolitan Areas: Model Based Estimates from the
1991-1993, National Household Survey on Drug Abuse: Summary Report. U.S. Department of Health and Human Services, 92p; 1996.
8.SAMHSA. Substance Abuse and Mental Health Services Administration. Office of Applied Studies: 1998 National Household Survey on
Drug Abuset. U.S. Department of Health and Human Services, 1999. 2000.15.BHATTACHARY, S.; POWELL, J. H. Recreational use of 3,4
methylenedioxymethamphetamine (MDMA) or “ecstasy”: evidence for cognitive impairment. Psychological Medicine, 31 (4): 647-58, 2001.
Tabela 01- Estruturas discursivas encontradas entre adolescentes usuários de drogas (n=10) e
grupo controle (n=10) , apresentadas com média, mediana, desvio padrão e teste estatístico
(Mann Whitney test, Wilcoxon test e Friedman test).
Peterson & McCabe
Grupo controle
Cenário
Grupo de usuários
Grupo controle
Complicação
Grupo de usuários
Grupo controle
Resposta interna Grupo de usuários
Grupo controle
Tentativa
Grupo de usuários
Grupo controle
Consequência Grupo de usuários
Grupo controle
Reação
Grupo de usuários
Grupo controle
Total
Grupo de usuários
Média
1,1
0,7
0,9
0,8
0,4
0,3
0,8
0,5
1,6
1,3
1,3
0,9
6,1
4,5
Mediana Desvio padrão
1
0,57
1
0,48
1
0,57
1
0,42
0
0,52
0
0,48
1
0,42
1
0,53
2
0,52
1
0,48
1
0,48
1
0,32
6
1,29
5
1,08
Brown, et al
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo controle
Grupo de usuários
Média
2,2
1,6
0,1
0,4
0,2
0,7
2,5
2,7
Mediana Desvio padrão
2
0,79
2
0,7
0
0,32
0
0,52
0
0,42
1
0,67
3
0,85
3
0,82
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo controle
Grupo de usuários
Grupo Controle
Grupo de usuários
Média
5,8
2,6
1,8
0,6
7,6
5,9
15,2
9,1
Mediana Desvio padrão
6
0,79
3
0,97
2
0,79
1
0,52
8
2,91
5
2,77
15
3,65
9
3,54
Pessoal
Público
Ocupacional
Total
Reiser et al
Eventos
Atividades
Ações
Total
p
0,111
0,698
0,648
0,17
0,189
0,045*
0,009*
p
0,091*
0,131
0,066*
0,684
p
<0,001*
0,002*
0,136
0,002*
IV- Discusão
De acordo com os resultados obtidos, as lembranças autobiográficas dos adolescentes usuários
de drogas são diferentes das do grupo controle.
Os adolescentes do grupo de usuários foram menos detalhistas ao relatarem suas lembranças
autobiográficas de acordo com os modelos preconizados por Peterson & McCabe (1983) e
Lahey (1988), já que este grupo apresentou escore total significativamente inferior ao grupo
controle, além de ter apresentado um número menor, também estatisticamente significante, de
reações em seu discurso.
Apesar do pequeno número de sujeitos que participaram deste estudo, já foi possível verificar
diferenças importantes na análise discursiva. Pode-se constatar que o uso de drogas esteve
relacionado com pessoas menos reativas às questões rotineiras, já que apresentaram números
significativamente menores de reações em seus discursos.
Usuários lembram em menor freqüência os eventos pessoais do que o grupo controle, porém,
em maior freqüência os eventos ocupacionais. Pode-se inferir que é mais fácil para o grupo de
usuários se recordar de eventos que não sejam tão particulares, como, por exemplo, aqueles
relacionados a ocupação, a compras, a vendas e a demissões, do que aqueles relacionados às
relações familiares ou outras relações afetivas.
Ao encontrarmos um menor número de eventos no discurso dos usuários, observamos um
menor índice de referências espaço-temporais.
Da mesma forma, o fato dos usuários terem apresentado um menor numero de atividades, nos
mostra que há uma diminuição das estratégias, dos materiais e dos instrumentos que venham a
auxiliá-los no alcance de seus objetivos.
Os resultados encontrados mostram que a avaliação da memória autobiográfica pode ser
importante recurso na avaliação de eventuais prejuízos cognitivos causados pelo uso de
substâncias psicoativas em adolescentes, uma vez que esta medida, através da análise
discursiva, avalia três esferas distintas e fundamentais na construção do individuo: a esfera
cognitiva, a afetiva e a social.
Correspondência: Christian César Cândido de Oliveira. Email: [email protected]
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