Estado do
Bem-Estar Social
Para além do
A efetivação e ampliação de direitos já consagrados e outros ainda por vir
dependem de uma redefinição do lugar e papel do Estado na promoção de
políticas sociais, sem confundir desenvolvimento com crescimento econômico
e política social com “administração da pobreza” João Roberto Lopes Pinto
A
efetivação e a ampliação de
direitos sociais dependem
hoje não apenas de uma
retomada, mas também da
expansão da função pública do Estado. Isso significa ir além
da sua dimensão distributiva, alcançando os mecanismos de que dispõe
para regular e financiar a produção
da riqueza. Os direitos sociais devem
estar inscritos na própria dinâmica
econômica, orientando-a e ao próprio
mercado. As fronteiras, até aqui bem
definidas, entre o econômico e o social
precisam ser subvertidas, sob pena de
seguirmos tratando a “riqueza como
assunto econômico e a pobreza como
assunto social”.
A construção do Estado Social no
pós-guerra esteve ancorada nas lutas
sociais, mais particularmente dos sindicatos pelos direitos dos trabalhadores assalariados. Ao mesmo tempo,
esse Estado somente se viabilizou, com
variações a depender do país, por um
contrato social em que o empresariado
Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009
reconhecia as vantagens de uma cidadania mais robusta como forma de
alavancar o mercado e, portanto, seu
processo de acumulação. Esse pacto
se desfez pela chamada globalização
e pela consequente hipertrofia dos
agentes de mercado. As corporações
buscam hoje estender seus negócios
sobre áreas anteriormente ocupadas
pelo Estado na prestação de serviço
social, atuando em favor da desregulação pública e redução de direitos.
Certamente esse cenário aponta
para uma necessária e intransigente defesa do papel do Estado na promoção de políticas sociais capazes
não apenas de assegurar direitos já
conquistados, mas de ampliá-los e
qualificá-los. No caso brasileiro, a
promoção do Sistema Brasileiro de
Proteção Social precisa estar no centro
das preocupações e do gasto público.
Em estudo recente, o Instituto de
Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)
desmistifica a ideia de que o gasto social é o vilão do déficit público. O pro8
blema nas contas do governo está, em
verdade, na financeirização do gasto
público, ou seja, no pagamento de juros
altos, que acaba por comprometer as
contas públicas e produzir um círculo
vicioso. O estudo demonstra que o total
do gasto social do governo federal sempre esteve abaixo, na última década,
dos gastos com a dívida pública. Além
do quê, faz as contas e prova que o orçamento social é superavitário, mesmo
quando se desconta a parcela destinada
à composição do superávit primário.
Portanto, os recursos para a promoção
de políticas sociais existem e precisam
ser canalizados para essa finalidade.
Sem dúvida, um maior volume de
recursos é indispensável para dar conta
do grande déficit de cobertura de nossas
políticas sociais. Mas há que interrogar
sobre como efetivar e qualificar direitos
em meio à hipertrofia das corporações,
à desorganização da estrutura partidária e sindical e à crescente restrição de
uma cidadania ancorada no trabalho
assalariado. É inescapável repensar-
Elza Fiuza/ABr
nacional
A promoção do Sistema Brasileiro de Proteção Social precisa estar no centro das preocupações e do gasto público
mos o paradigma do Estado Social. Um
novo pacto se faz necessário. Como já
foi dito, não se trata de abrir mão dos
direitos sociais, consagrados em nossa
Constituição. Ao contrário, trata-se de
reafirmá-los como referência básica de
cidadania, mas cuja efetivação e ampliação dependem de uma redefinição
do lugar e papel do Estado.
Como e em que direção efetivar
e ampliar as políticas sociais? Para
responder a essa questão deve-se reconhecer que o paradigma do Estado
Social foi também responsável por
deslocar para fora do mercado setores importantes da reprodução social
e, com isso, serviu para despolitizar os
conflitos relacionados à desigualdade
ou à concentração da renda e riqueza. Não é por acaso que se confunde
desenvolvimento com crescimento
econômico e política social com “administração da pobreza”.
Não se trata mais de simplesmente
fazer crescer as rendas já constituídas
para, por meio da ação fiscal do Es-
tado, prover a população de “quase
direitos”. Não será suficiente para o
combate à pobreza alocar de modo
socialmente responsável os recursos
públicos se a ação do Estado não incidir em favor de um desenvolvimento
capaz de superar desigualdades. Com
o rompimento do equilíbrio entre Estado Social e Mercado, em benefício
deste último, reabre-se a possibilidade
de repolitizar as relações econômicas.
As políticas econômicas precisam ser
pensadas e encaminhadas como políticas sociais, e vice-versa.
Como falar, por exemplo, em direito à segurança alimentar, ao trabalho,
ao meio ambiente e ao desenvolvimento sem que a cidadania se projete sobre
as relações e instituições tipicamente de mercado? A questão climática
atual­mente expõe essa necessidade de
forma dramática. Nas lutas sociais há
uma clara tendência de ampliar a perspectiva dos direitos para o campo da
economia. Várias são as experiências
que apontam nessa direção e buscam
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assegurar direitos em pelo menos três
campos: do financiamento ao desenvolvimento; do regime de propriedade;
e do reconhecimento e regulação das
diferentes formas não assalariadas de
trabalho.
Em cada um desses campos, muitas são as agendas e iniciativas em curso. No que toca ao financiamento, a
agenda cobre um leque amplo de questões que vão da reorientação da política operacional do BNDES em favor
de um desenvolvimento socialmente
equitativo ao acesso ao fundo público por organizações que promovem
trabalho social, passando pela justiça
tributária. Já no caso do regime da propriedade, as questões envolvem desde
a revisão do índice de produtividade
da terra até a regulação sobre a exploração dos recursos naturais, além das
concessões de exploração das ondas
de rádio e infovias de comunicação.
Sobre a questão do trabalho, a agenda
compreende da contabilização do trabalho imaterial ao reconhecimento e
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valorização do trabalho reprodutivo,
incluindo a regulação e o fomento ao
trabalho associado, cooperativo.
A título de exemplo destacamos
algumas dessas agendas. Diferentes
organizações e movimentos sociais –
que incluem CUT, MST, MAB, Contag,
Fetraf, Cimi, Ibase, Rede Brasil, entre
outros – têm atuado em favor de uma
agenda comum de incidência sobre o
BNDES, intitulada “Plataforma BNDES”
(ver www.plataformabndes.org.br). Por
meio dela, pretende-se que o banco
adote uma postura proativa em termos
do estabelecimento de critérios sociais
e ambientais em seus financiamentos,
bem como do crédito a cadeias produtivas que favoreçam o desenvolvimento local e regional. Reivindica-se,
igualmente, o financiamento de tecnologias voltadas a um aproveitamento
equilibrado e sustentável dos recursos
naturais. Busca-se, enfim, reorientar
esse instrumento central do desenvolvimento brasileiro, que tem atuado
em favor da concentração econômica
e especialização produtiva em setores
intensivos em natureza (minério, papel e celulose, petróleo e gás, etanol,
pecuária e soja), na direção de uma
diversificação da estrutura produtiva
e da distribuição da riqueza e da renda.
No que toca ao regime de propriedade, vale chamar atenção para
o fato de que, com a “modernização”
do campo brasileiro nas últimas três
décadas, não há razão alguma para
não rever o índice de produtividade
da terra estabelecido nos anos 70, para
efeito de reforma agrária. A proposta
de revisão do índice encaminhada pelo
governo ao Congresso aponta para o
debate em torno da questão da finalidade social ou pública da propriedade, seja estatal, seja privada. Essa
discussão está igualmente no centro de
outras disputas legislativas, como no
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caso da recente “MP da Grilagem”, nas
proposições referentes à flexibilização
da legislação ambiental, ao zoneamento agroecológico da cana, bem como
àquelas sobre exploração mineral em
terras indígenas. Na verdade, assistese a uma tremenda disputa sobre o
modelo de apropriação dos recursos
naturais, incluindo os do subsolo, em
particular sobre a região amazônica.
O avanço no país de uma estrutura
produtiva especializada no setor intensivo em natureza aponta, de um lado,
para a desregulamentação do controle
e da exploração desses recursos. De
outro, as populações que deles vivem e
são as primeiras impactadas por grandes projetos extrativos e agropecuários
defendem um controle social e público
desses recursos. Com o aquecimento
global, essa passa a ser uma agenda
que extrapola as populações mais diretamente atingidas.
Sobre a regulação das formas não
assalariadas de trabalho vale chamar
a atenção para a atual composição do
mercado de trabalho. Dos ocupados
no país, 52% estão na “informalidade”.
Se retiramos os casos dos assalariados
sem carteira, temos algo em torno de
40% de trabalhadores não assalariados.
Ou seja, aqueles que estão operando –
como microempreendedores, cooperativados, conta-própria e produtores
rurais familiares – uma economia cujo
tamanho nos impede de qualificá-la
como franja do chamado setor formal.
Sua “inclusão” como sujeitos de direitos passa por uma agenda que os
reconheça e promova como agentes
de desenvolvimento econômico e social. Essas formas de trabalho podem
ser vetores de um aumento efetivo da
capacidade produtiva e de geração de
trabalho, sem cair na concentração de
renda típica dos processos de “crescimento sem desenvolvimento”.
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As políticas de economia solidária
voltadas à promoção do direito ao trabalho associado apontam nessa direção. Embora haja diferenças entre tais
atividades, existe um aspecto comum
a todas, que se refere ao fato de que
nelas praticamente não há separação
entre capital e trabalho. Ou seja, são
atividades que contribuem, com enorme debilidade é certo, para a desconcentração da propriedade e, portanto,
da renda. Além disso, como o trabalho
não possui a mobilidade característica
do capital, a inserção dessas atividades
no tecido socioprodutivo demanda estratégias de desenvolvimento local ou
regional. Nesse campo, a construção
de um marco legal que dê suporte a
uma política de fomento vem sendo
discutida no Congresso, no âmbito da
revisão da lei geral do cooperativismo
e do estabelecimento de um estatuto
da economia solidária.
Alguém poderia dizer que se trata
de uma agenda de resistência. Como
produzir esse novo pacto em favor de
um Estado Social ampliado, considerando a desproporção hoje do poder
alcançado pelos negócios? A conjuntura internacional marcada pelas crises climática e financeira, bem como
a conjuntura doméstica, que combina
estabilidade monetária, eleições presidenciais e “pré-sal”, ambas oferecem
um ambiente favorável para travar um
amplo debate público sobre que desenvolvimento queremos e que papel deve
desempenhar aí o Estado brasileiro.
Mas, a considerar as limitações de nossos partidos e lideranças políticas, esse
debate somente ganhará a cena pública
se resultar de uma demanda da própria
sociedade. Com a palavra, as organizações e movimentos da sociedade civil. ✪
João Roberto Lopes Pinto é cientista político,
coordenador do Instituto Brasileiro de Análises
Sociais e Econômicas (Ibase) e professor da PUC-RJ
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