O estatuto do objeto
na psicanálise
Cora Vieira
"Eu te amo,
Mas, porque inexplicavelmente
Amo em ti algo
mais do que tu o objeto a minúsculo
Eu te mutilo".
(Lacan, Seminário XI,
Os Quatro conceitos fundamentais da psicanálise)
O
estatuto do objeto na psicanálise para Lacan tem características bastante
definidas e particulares.
O objeto para ele, não é o objeto dividido em bom e mau de M. Klein, nem
o objeto transicional de Winnicott e nem o objeto perdido que se busca infinitamente reencontrar de Freud.
No Seminário A Ética da Psicanálise (Seminário VII) fala de das Ding,
antecedente lógico e teórico do objeto a, definido como um espaço vazio de
representação e constitutivo do objeto. É neste vazio, furo que delimita o inconsciente, fora de qualquer articulação significante, que Lacan instaura o objeto
a, encarnação de um vazio, causa de desejo. Marcado pelo significante da falta no
Outro, S(A), o objeto a vem funcionar no lugar onde a existência do Outro falha.
O conceito de objeto a vai sendo construído ao longo de sua obra. Em 56/57,
no Seminário As Relações de Objeto e as Estruturas Freudianas (Seminário IV),
diz: "a relação central de objeto é a de falta de objeto". Trabalha neste texto o objeto
do desejo como a falta de objeto, simbolizada pelo falo. Em 57/58, nas Formações
do Inconsciente diz: "não há objeto senão metonímico, o objeto do desejo sendo o
objeto do desejo do Outro e o desejo sendo sempre desejo de outra coisa, mais
precisamente, daquilo que faltava ao objeto perdido primordialmente, na medida
em que Freud nô-lo mostra como estando sempre por ser reencontrado". Ai ainda
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trata o objeto como ilusório e procurado infinitamente por um desejo metonímico.
Em 58/59, em O Desejo e sua Interpretação, Lacan aponta para o caráter real do
objeto a, indicando o lugar do objeto no materna do fantasma $Qa, a partir da
estrutura do desejo do sujeito como desejo do Outro. Em 60/61, no Seminário
A Transferência (Seminário VIII), começa a marcar a diferença entre o objeto a
do fantasma e o objeto metonímico.
Porém, é no Seminário A Angústia (Seminário X), em 62/63, onde Lacan vai
teorizar sobre o objeto a como objeto do real. Coloca, que a angústia surge como
sinal de algo que falta, falta da falta, resposta no real evocada pela incidência do
desejo. O desejo do Outro, se endereça ao sujeito e o coloca em questão. A angústia
é o que não engana e surge diante de algo irredutível do real.
Lacan nos fala ainda neste texto de duas faltas: a falta no simbólico, ligada à
castração, ponto onde Freud articula o final de análise; e a falta no real, onde o
sujeito tem que se defrontar com o seu ser, onde o Outro o coloca se defrontando
com a perda de seu ser e é aí que Lacan vai além de Freud. Esta falta no real, o
simbólico não pode remediar, esta falta não se esgota na castração. Apresenta o
seguinte esquema:
onde num primeiro tempo temos um sujeito e um Outro míticos, anteriores à
divisão feita pela barra que cairá sobre os dois, tempo inicial de gozo absoluto.
Num segundo tempo surge a angústia do Outro, apontando para um Outro barrado,
A, com o surgimento da falta; e num terceiro tempo surge a angústia do sujeito, e
este também está barrado, S.
É pois, a queda do objeto, o resto, o resíduo, que está na raiz da angústia. A barra
incide sobre o sujeito e faz cair o objeto num mesmo golpe. O a como testemunha
de um gozo perdido no Outro, marcando que não há relação sexual. Objeto podendo
vir então, a causar o desejo.
Entretanto ponto de angústia e ponto de desejo, nfto coincidem. O ponto de
angústia se articula com a função da falta que está enlaçada à satisfação, e o ponto
de desejo com a função de resto enlaçado à causa de desejo.
Nos diz Lacan no Seminário4 Angústia: "O desejo eu lhes ensinei a localizá-lo,
a ligá-lo à função do corte, a colocá-lo numa certa relação com a função do resto.
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Este resto é o que o sustenta, o que o anima e o que aprendemos a localizar na
função analítica do objeto parcial. Entretanto, a falta à qual está ligada a satisfação
é outra coisa. Esta distância do lugar da falta, em sua relação com o desejo conforme
estruturado pela fantasia, pela vacilação do sujeito em sua relação com o objeto
parcial, esta não-coincidência da falta com a função do desejo em ato, eis aí o que
cria a angústia, e só na angústia encontra-se designada a verdade dessa falta".
A partir da castração temos a marcação de -cp, lugar vazio, lugar da falta, -cp que
dá um lugar, uma imagem à a. -cp que aponta para a falta de objeto causa de desejo,
onde diferentemente do objeto a aceita qualquer vestimenta para cobrir esta falta.
Surge então a miragem do objeto do desejo. Já o objeto a não se reflete, é não
especularizável, algo que a imagem não resolve, inclusão aí do real. É o objeto a
que dá o ponto de basta, um limite, uma não reflexão. Lacan nos indica, num final
de análise, à levar o sujeito a chegar ao mínimo do seu laço social, que é ao objeto.
Por isso, a análise chega à um ponto de um discurso minimal, onde as palavras não
contam, só conta o laço social do sujeito a um objeto que o determina. Não há
relação sexual, a única relação é a relação fantasmática.
A construção fantasmática é então o trabalho da análise, o que possibilita o
sintoma ser escrito de outra forma, onde não há síntese mas sim um ponto finito,
real.
O objeto da pulsão se transmuta em objeto de desejo a partir de que alguma coisa
do fantasma se revela para o sujeito. Com a travessia do fantasma, o sujeito muda
de posição com relação ao objeto, o objeto passa a ser colocado atrás do sujeito,
causando-o, e não mais à frente como algo a ser reencontrado. Aí parece residir a
inovação de Lacan com relação ao final de análise, marcando o limite de Freud.
Para isto, o analista vem a ocupar o lugar de agente, lugar de causa, lugar de
objeto, mais precisamente vem a fazer semblant de objeto a; diferentemente do
que o analista na transferência é chamado a ocupar, que é o lugar de ideal. No lugar
de responder a partir de um saber que possa levar a uma identificação com um
ideal, deve surgir um analista que responda a partir do ato analítico.
O sujeito encontra a sua verdade a partir de seu fantasma, resta saber como
vamos determiná-la no caso da psicanálise com crianças. Para Freud o final de
análise se resolveria com a reconciliação com o significante Pai, com a castração,
diferentemente de Lacan, para quem o resto, o objeto a e sua posição em relação
ao sujeito no fantasma, é que seria resposta ao final de análise.
Há uma reconstrução de uma história primitiva, que é mítica, portanto uma
verdade que tem uma estrutura de ficção. A história que se reconstrói é fantasLETRA FREUDIANA- Ano X-n» 9
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mática, há o real que leva o sujeito a tentar montar uma rede com significações que
venham a simbolizar algo. Há um real em causa que aponta e exige um trabalho
de reconstrução. Mas isto não é o mesmo que a construção do fantasma fundamental.
Será que o final de análise com crianças poderia ir além de uma certa construção
de mito, abordando o real do sexo, e aí então poderíamos falar em travessia do
fantasma?
Em psicanálise com crianças, temos duas dimensões a serem pensadas com
relação ao objeto. Uma delas é pensar o lugar que a criança ocupa no desejo do
Outro, que pode ser encarnado pela mãe; lemos no texto Duas Notas aJennyAubry:
"... a criança realiza a presença disto que Lacan designa como objeto a no
fantasma...". Como um sujeito vem a realizar um objeto no fantasma do Outro?
Lacan diz que o sujeito como tampa, se fazendo objeto, impossibilita o acesso da
mãe à sua verdade.
E a outra dimensão, que está articulada à primeira, trata de pensar a relação da
criança com seu gozo, com seu objeto, tal como ela tem acesso a ele no seu próprio
fantasma.
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BIBLIOGRAFIA E CITAÇÕES
LACAN.J.
— Seminário IV — As relações de Objeto e as Estruturas Freudianas
(inédito).
— Seminário V —As Formações do Inconsciente (inédito).
— Seminário VII — A Ética da Psicanálise, Rio de Janeiro, Jorge Zahar
Editor, 1988.
— Seminário X —Angústia (inédito).
— Seminário XI — Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise,
Rio de Janeiro, Zahar Editores, 1979.
— Duas Notas sobre ei Nino (1969) — Intervenciones y Textos 2, Buenos
Aires, Ediciones Manantial, 1988.
MILLOT, C.
— A construção do Objeto (a) —Nobodaddy, a histeria no século, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1988.
VIDAUE.
— La Construccion dei Fantasma Fundamental em Freud y Lacan, in Como
se Analisa hoy?, Buenos Aires, Ediciones Manantial, 1984.
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