A psicanálise e o mistério do corpo falante
O real é o mistério do corpo falante, é o mistério do
inconsciente.1
De que corpo se trata quando situamos este termo – CORPO –
para ser abordado a partir do que nos ensina a psicanálise?
Creio que esta pergunta marcou a escolha do título deste meu
trabalho no qual aparece a palavra mistério – A psicanálise e o mistério
do corpo falante.
Situar a questão do corpo como ponto central de nosso programa
de estudos, pesquisas e debates em 2009 e trabalhar este conceito de
forma rigorosa, a partir da teoria psicanalítica e de sua prática, é uma
tarefa árdua, difícil.
Por ter sido colocada pelos colegas do Campo Psicanalítico de
Salvador na função de coordenadora das atividades a serem realizadas
ao longo deste ano de 2009, pude sentir, mais de perto ainda, esta
dificuldade. Logo de início, em nossas reuniões para escolha e
construção do tema do nosso programa para 2009, este mistério relativo
à questão do corpo, tal como a psicanálise veio situá-lo, se anunciava.
Primeiro, na incisiva exigência de rigor teórico que vinha recair em
cada termo que aparecia na construção do título. Era como se o
1
LACAN, Jacques. Mais, ainda. Seminário Livro 20, Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 178.
1
mistério se correlacionasse com o Real, esse Real que Lacan descreve
como o Impossível, Real a ser definido em relação ao Simbólico e ao
Imaginário, mas que não pode ser simbolizado totalmente na palavra e
na escrita e, por conseqüência, não cessa de se escrever.
Esta dificuldade encontrada no que diz respeito ao título se fez
notar, também, no momento da escolha de uma imagem que, de forma
instigante e ao mesmo tempo próxima da concepção deste corpo do
qual a psicanálise se ocupa, viesse ilustrar o programa já, então com o
tema escolhido – O inconsciente e o corpo do ser falante.
Senti-me tentada a compartilhar com vocês um pouco deste
caminho percorrido na construção do nosso Programa 2009. Pareceume, mesmo, que seria interessante trazer algumas destas imagens
surgidas, ora do mundo da arte, ora da topologia, e que nos pareciam
capazes de gerar surpresa, de nos interrogar e incitar ao trabalho.
Como não poderia deixar de ser, a primeira imagem evocada foi
aquela que nos remete á Salpêtrière, ali onde Freud, com Charcot, ao
lidar com as histéricas, se deu conta da especificidade deste corpo
falante que, de forma surpreendente, desafiava os enfoques advindos da
fisiologia e expunha a sua heterogeneidade em relação à clínica
médica, mostrando-se rebelde às suas construções.
Em um artigo escrito após seu estágio na Salpêtrière,,2 Freud se
dispôs a mostrar que o corpo, na histeria, em suas paralisias e demais
FREUD, Sigmund. Quelques considérations pour une étude comparative des paralysies
motrices organiques e hystériques – (1888-93)
2
2
manifestações somáticas, se comportava como se a anatomia não
existisse ou como se não tivesse nenhum conhecimento dela. Ao
descrever a atipia das paralisias histéricas, ele vai dizer que as
características visíveis deste corpo não podiam ser relacionadas a
nenhuma das causas orgânicas conhecidas ou, mesmo, vislumbradas.
Na escuta de suas pacientes histéricas, Freud vai perceber que,
entre outros sofrimentos, elas se queixavam de dores na cabeça, no
rosto, nas pernas, ou mesmo por todo o corpo. Ele focalizará, então, as
suas investigações nas associações sobre o corpo, inaccessíveis à
consciência.
O relato do caso Elizabeth V. R., é o mais expressivo do
pensamento de Freud naquele momento. Nele, o autor da psicanálise
nos fala não somente a respeito da dor na histeria, mas também, sobre a
própria dor, em geral.
Perseguindo o enigma desta dor, Freud é conduzido à noção de
“zonas histerogênicas dolorosas”. Ele as constata ao observar, por
exemplo, a expressão singular revelada por Elizabeth: “ao ser tocada, o
que ela expressava tendia mais para o prazer que para a dor; ela gritava
como quem experimentasse algo de voluptuoso, ruborizava-se
intensamente, fechava os olhos e jogava, levemente, o corpo para trás”
3
3
Segundo Paulo José Carvalho da Silva, em seu trabalho Uma história da noção de dor em Freud.
3
Sabemos que os sofrimentos (hoje, podemos dizer – o gozo) destas
histéricas –, inspiraram a Freud uma pesquisa além dos limites da
medicina com resultados conceituais originais.
Em seu Seminário Livro 20 – ENCORE – Lacan joga com o
equívoco da língua, que é a sua – o francês –, para falar do corpo. Em
seu curso L´en-corps du sujet, Colette Soler também vai jogar com o
equívoco para tratar deste tema.4
Pareceu-me interessante, neste
momento de abertura das atividades do Campo Psicanalítico em 2009,
recorrer ao texto surgido deste curso de Soler e o faremos em tradução
livre, nossa, uma tradução sujeita a revisões pois deveremos ter o L´en-
corps du sujet como tema de um Cartel .
É interessante notar, por exemplo, que Soler considera que a
psicanálise, apesar de seu nome, PSICANÁLISE, análise da psyché, é
uma prática no centro da qual se encontra a questão do corpo. É uma
questão que aí está, desde os começos, notadamente no sintoma
histérico, sob a forma mais evidente da conversão, e também na noção
de traumatismo sexual. Soler considera espantoso que Freud não tenha
encontrado uma palavra melhor que psicanálise para designar a sua
técnica. Ao buscar uma justificativa para tal escolha, ela parte da
suposição de que Freud teria procedido desta maneira por ter começado
a elaborar os mecanismos do inconsciente a partir dos sintomas, dos
sonhos, da psicopatologia da vida cotidiana, dos chistes e que isto,
4
SOLER, Colrtte, L ´en-corps du sujet- Cours 2001-2002,.
4
evidentemente o teria atraído para a o lado psicanálise e não
somatoanálise ou bioanálise. Mas, como observa Soler, o eixo das
pulsões, que tanta importância terá para a psicanálise, logo vai surgir
nosTrês ensaios sobre a teoria da sexualidade (que é de 1905), depois
em As pulsões e suas vicissitudes (nos anos 15) e através da pulsão de
morte (em 1920). 5
Pareceu-me interessante, também, trazer o momento em que
Soler nos leva a pensar nas posições de Freud e Lacan em relação á
psicanálise.
No que diz respeito a Freud, ela observa que os resultados que ele
obteve com sua técnica, logo no início, o levaram a sentir que havia
encontrado algo novo, fazendo com que experimentasse, em relação à
psicanálise, algo da ordem de um entusiasmo e até mesmo, de uma
certa euforia. No entanto, muito cedo, Freud vai se deparar com a
repetição que o levará a teorizar sobre a pulsão de morte e o mal-estar
na civilização. Em seu texto sobre o final de análise já se vai encontrar
um Freud bem menos otimista a respeito da técnica da psicanálise.
Lacan experimentará algo semelhante ao que aconteceu com
Freud. Também ele acreditou ter encontrado algo novo ao repensar a
psicanálise freudiana o que o levou a supor que as suas reformulações
dariam à técnica analítica um novo alcance. Mas, tal como Freud,
Lacan vai enfrentar um certo pessimismo ao longo do seu ensino. Será,
5
Id. ibid
5
no entanto, graças à promoção que ele vai conceder à categoria do Real,
que Lacan reencontrará a confiança na psicanálise.
É preciso notar que, com Lacan, a repetição se torna um fato de
estrutura, a castração um efeito de linguagem e o mal-estar um efeito
de discurso.
Soler vai lembrar que os psicanalistas de hoje se deparam com
uma pergunta que aparece quase em toda parte: a psicanálise vai
resistir ao discurso atual, aos sintomas que surgem e que encontram, de
um lado, as neurociências e a farmacologia e, de outro lado, as
psicoterapias?
Face a esta pergunta, Soler traz a sua posição. Para ela, necessário
se faz lembrar de Lacan quando, dirigindo-se aos psicanalistas, afirmava
que a psicanálise deveria estar à altura de seu tempo. Ao longo do seu
ensino, de forma espantosa, Lacan nos mostra que esteve à altura do
discurso de sua época, chegando mesmo a estar adiante, a fazer
predições impressionantes, por exemplo, em relação à religião, à
segregação, etc.
Sabemos o quanto o corpo, na contemporaneidade, vem ocupando
um lugar crucial em vários discursos e campos do saber, gerando
polêmicas e levantando questões a serem abordados sob múltiplos
aspectos. Sabemos, também, que, no que diz respeito à psicanálise, estas
questões sobre o corpo deverão ser trabalhadas a partir da teoria e da
6
prática psicanalíticas e, portanto, conforme a ética da psicanálise. Uma
primeira questão, importante, que surge é saber quais são as
interrogações que nos foram deixadas por Freud e Lacan a respeito do
corpo.
Apoiada no ensino de Freud e Lacan, Colette Soler nos diz em
L´en-corps du sujet que o corpo é uma questão que se introduz na
psicanálise pelo sintoma. Logo de início, Freud se deparou com um
sintoma que perturbava as funções do corpo (quer se tratasse do soma
ou dos pensamentos). Atrás do sintoma, Freud buscou decifrar as
pulsões recalcadas.
Ao enfatizar a importância da questão do sintoma nos começos da
psicanálise, Soler vai evocar Lacan para lembrar que, em 1975,
praticamente no término do seu ensino, a importância da questão do
sintoma será por ele recolocada quando o define como un évenement
de corps.. Soler ressalta a importância deste termo événement porque
se pode encontrar aí uma conotação de contingência, de reencontro que
não é forçosamente traumático.6
A partir das elaborações de Freud sobre o corpo, uma questão deve
ser formulada: como se agregam e se articulam entre si os mecanismos
6
Esta definição do sintoma por Lacan podemos encontrar em Joyce Le symptôme, version II
7
do inconsciente, que são trazidos à luz pelo viés da decifração, e as
pulsões que são de uma outra ordem?
Pode-se observar que Lacan também levantou esta pergunta de
várias maneiras. Por exemplo, indagando: “Como o organismo vem se
colocar na dialética do sujeito?”
Com Lacan, poderemos notar que nos mecanismos do inconsciente
ele vai reconhecer os mecanismos da linguagem. Vai traduzir
“mecanismos do inconsciente”, de Freud, por mecanismos linguageiros
e mostrar que em A interpretação dos sonhos, em Psicopatologia da
vida cotidiana, e em Os chistes..., tudo o que Freud desdobra são
operações de linguagem.
Em relação às pulsões, Lacan introduziu a tese de que as pulsões
são efeito da linguagem, isto é, elas não são da ordem do instinto tal
como se postula sobre o instinto no mundo animal. O corpo pulsional
não é um corpo animal. Ele é um organismo desnaturado. A hipótese
de Lacan é de que o fato de ser falante não deixa o animal humano
incólume. Poder-se-ia dizer que o falante é um mutante na escala
animal. 7
Esta idéia de que o falante é um mutante na escala animal
favorece pensar que o homem seria a jóia da criação. Freud, no entanto,
se deu conta, imediatamente, de que a psicanálise deveria rebater esta
posição e ele o faz quando se refere às três feridas narcísicas sofridas
7
SOLER, Colette, L´en-corps du sujet , p. 5
8
pelo homem: a primeira, com Copérnico, a segunda, com Darwin e a
terceira, com ele, próprio, Freud, com a sua teoria do inconsciente que
vem anunciar que “o ego não é o senhor da sua própria casa8.
Penso que Lacan ratifica esta posição de Freud quando introduz
na psicanálise as noções de sujeito e parlêtre.
A referência de Freud às feridas narcísicas nos leva à questão do
narcisismo, tema sobre o qual Freud fez elaborações preciosas e no
qual, embora não apareça de modo explícito, o corpo está em jogo.
Sabemos que Freud tomou de empréstimo o termo narcisismo ao
mito grego de Narciso, personagem celebrizado por Ovídio na terceira
parte de suas Metamoforses.. O lugar central da imagem no narcisismo
já sobressai nesta versão de Ovídio É o que se pode constatar quando se
vê surgir no texto as expressões “ilusão sem corpo”, “imagem fugaz” e
“reflexo”9 para nos contar a história do jovem e belo Narciso.
Enamorado de sua própria imagem espelhada na superfície de um lago,
fascinado por seu reflexo, Narciso supôs estar vendo ali um outro ser.
Paralisado, ele não mais conseguirá desviar os olhos daquele rosto que,
no entanto, era o seu e desta ilusão vem a perecer.
No Seminário O sinthoma, podemos encontrar um momento em
que Lacan vai se referir ao olhar de uma forma tal que me levou a
pensar neste mito de Narciso. Definindo as pulsões, Lacan afirma que
elas são “o eco, no corpo, pelo fato que há um dizer. Esse dizer, para que
8
FREUD, Sigmund, Uma dificuldade no caminho da psicanálise, In _ Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas, Rio de Janeiro: Imago, 1990, v p.
9
Kaufmann, Pierre, Dicionário Enciclopédico de Psicanálise, p. 351
9
ressoe, para que consoe, é preciso que o corpo seja sensível e ele o é”. O
corpo tem alguns orifícios, dos quais o mais importante, segundo
Lacan, é o ouvido. É por esse viés que no corpo, responde o que ele
chamou de voz. Para Lacan, “o embaraçoso é que não não há,
certamente, apenas ouvido pois o olhar lhe faz uma eminente
concorrência”. 10
Segundo Soler, por causa de sua forma, o indivíduo se apresenta
como corpo e esse corpo tem um enorme potência de cativação. Ela nos
lembra que Lacan considerava que a forma libera algo que incha,
infla.... É, aliás, o que ele nos faz lembrar quando evoca a fábula da rã
que, ao querer ser tão grande quanto o boi infla, infla, até estourar...
No início do ensino de Lacan podemos encontrar o corpo como o
corpo da imagem. No momento, em que escreve o Estádio do espelho
como formador do eu (1949), Lacan vai se apoiar, de um lado, sobre
fatos que vêm do mundo animal, da etologia, e de outro, sobre fatos
fáceis de serem observados e que se referem ao que ele chamou o júbilo
da criança, em uma certa idade, diante do espelho. Segundo Lacan o
mundo animal nos demonstra que uma Gestalt, uma forma, pode ter
efeitos reais sobre o corpo. No estádio do espelho, segundo Lacan, dá-se
uma efetividade da imagem do corpo.
10
LACAN, Jacques, O seminário, Livro 23, O sinthoma, Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007, p.18-19
10
Neste momento teórico, Lacan vai conceder à imagem, uma
função mediadora, um valor operatório. Mais tarde ele dirá que não é a
imagem mas a linguagem que tem este valor operatório. No seu texto
Observação sobre o relatório de Daniel Lagache, (1960) ele quer
mostrar que a própria imagem e o investimento da imagem são um
efeito do simbólico. Neste texto ele mostra três vasos que representam
o corpo: um deles é o organismo (vivant), um outro é a forma deste
organismo vivo e um terceiro é o reflexo desta forma no espelho do
Outro. Ele dirá, então, que o sujeito não se vê na sua forma nem se ama
na sua forma senão pela mediação da linguagem.
Lembremo-nos que a criança, diante do espelho, se volta para
aquele que a suporta nos braços como se quisesse ratificar que a
imagem que ela vê é a sua e como se interrogasse o Outro a respeito de
seu valor.
Em o Estádio do espelho, Lacan dissera que seria graças à
imagem, e mesmo à IMAGO, que poderia se estabelecer uma relação
entre o organismo e sua realidade. É preciso observar, no entanto, que
ao afirmar a importância desta imagem, Lacan se referia à sua
importância libidinal.
Soler enfatiza que, quando se diz: eu tenho “um corpo” o UM do
corpo que torna possível que se diga – eu tenho um corpo – é o UM da
imagem e esta imagem vai se manter durante um certo tempo idêntica
a si mesma.
11
Ela observa que Lacan, até o fim de seu ensino, manteve a
hipótese de que o homem é enfatuado de sua imagem e adora o seu
corpo.
Há nesta imagem algo de indelével.
A potência irresistível do narcisismo é um fato clínico. A clínica
psicanalítica atesta isto.
Mas é preciso que estejamos atentos ao que nos diz Lacan quando
afirma que é a linguagem que nos faz discernir o corpo. Ele lembra que
se acredita que o corpo não passa pela mediação da linguagem.
Segundo o senso comum, o corpo é um fato. No entanto, Lacan adverte
que só há fato quando dito.
Segundo Soler, poder-se-ia mesmo dizer, no limite, que um animal
não tem corpo, que um animal é um organismo desde que, para se ter
um corpo, é preciso, efetivamente, que o fato seja colocado, seja dito,
seja articulado. Desde que ele é articulado, desde que ele é dito, desde
que se profere – “meu corpo”, “ teu corpo”, “um corpo” então, o corpo é
admitido no simbólico como significante.
É interessante notar que se pode observar um pouco o trabalho de
atribuição linguageira do corpo em relação às crianças bem pequenas.
É o que se faz, quando, diante do espelho, se diz á criança: olha aí os
teus pesinhos, tuas mãos, tua boca, teus olhinhos... Atribui-se um corpo.
O corpo admitido no simbólico se torna um significante. Uma vez
12
tornado significante, o corpo adquire o traço do significante. O
simbólico toma corpo.
Segundo Soler, isto começa com a colocação no punho do recémnascido de uma pequenina placa ou de um esparadrapo que identifica
este corpo como um corpo e com um nome. O um da marca não vem
do corpo, vem do significante, da linguagem. No ser falante o
organismo animal se torna um corpo sintomático e pulsional. Esta é
uma hipótese lacaniana: o corpo é um efeito da linguagem. Isto quer
dizer que a linguagem toca o organismo, o desnatura e o modifica.
Lacan utiliza um neologismo, o verbo corpsifier. A corpsificação diz
respeito à incidência da incorporação da linguagem sobre a libido e o
gozo. Para a psicanálise, não é a natureza que nos dá um corpo. O corpo
se fabrica com o discurso.
Creio que a arte nos mostra isto. É interessante notar como, ao
longo dos tempos, até nossos dias, o artista tem trabalhado o tema do
corpo. É um tema que tem fascinado os pintores e escultores. Ele surge,
também, através do cinema trazido por cineastas talentosos que nos
mostram o que a psicanálise constata e teoriza a respeito deste corpo
falante. Poderíamos trazer aqui inúmeros exemplos como em O livro de
cabeceira, O exorcista, Alien, o oitavo passageiro, Psicose, e muitos e
muitos outros...
13
A psicanálise nos ensina que, como sujeito do significante, se é
disjunto do corpo, de tal maneira que dele se fala antes mesmo que se
tenha um corpo ou que se o habite, antes de seu nascimento ou depois
da sua morte. É por isso que a linguagem assegura esta margem no
além da vida, que é a antecipação do sujeito ou a sua perenização na
memória, que podemos evocar o corpo como distinto, separado do ser
do sujeito.11
No metabolismo global do organismo, é a linguagem que isola os
órgãos e lhes dá uma função. Na infância, podemos constatar este efeito
de ordenamento pelo discurso quando perguntamos a uma criança
pequenina: onde dói?Ela não sabe o que lhe dói nem onde dói...
A esta referência à criança que se depara, muito cedo, com a
angústia, com a dor, com o mal-entendido, com o mal-estar, estrutural,
devido à falta, eu gostaria de evocar uma outra que é trazida por Freud
em seu texto Introdução ao narcisismo: a do bebê que dorme satisfeito,
“feliz”, por ter se saciado (supõe-se) no seio materno. Sabemos que
muitos, hoje em dia, ainda sonham com este estado suposto de um gozo
que seria pleno.
Em contraposição a esta idéia, gostaria de terminar trazendo algo
que nos remete ainda ao mistério evocado no início deste trabalho, ao
Real. É um fragmento, ainda, do L´en-corps du sujet, de Soler.
Cito:
11
SOLER, Colette, L´en-corps du sujet p. 189
14
“Lacan acentuou sucessivamente, duas vertentes da pulsão, sua
vertente significante e sua vertente de gozo. Isto não se dá sem o corte
significante correlato à demanda do Outro como se vê claramente no
que diz respeito às pulsões orais e anais. Mas a pulsão é, também,
condutora de um gozo que pode ser não apenas parcial, já que
localizado nas bordas anatômicas (fonte das pulsões, diz Freud), mas
fora-corpo, na medida em que um objeto o condensa, que é,
precisamente, destacado do corpo, “insensível pedaço que se deriva
disto como voz e olhar, carne devorável ou seu excremento.” Lacan o
nomeia objeto mais-de-gozar, sobre o modelo da mais-valia de Marx,
este “mais”, indicando aí a compensação em relação do menos
precedentemente evocado. Pelo efeito significante, alguma coisa é
perdida, que não vai ser restituída, mas compensada, em parte. Por este
fato, aliás, este objeto tem um estatuto particular: ele é, ao mesmo
tempo, perdido e não reapropriável; embora tomado na série dos
déficits ele é, também, repositivado e comporta um coeficiente de gozo.
É assim que o corpo é afetado pelo inconsciente, enquanto que o
sujeito é feliz, isto é, entregue a si mesmo, livré à l´heur, à fortuna, à
tuché, daí porque não cessa de se repetir, de repetir sua separação do
Outro, notadamente, do Outro sexo, em encontros nos quais seu
parceiro não é outro senão o mais-de-gozar. Poderíamos escrever esta
estrutura nos círculos de Euler, colocando o sujeito e o Outro cada um
no seu círculo enquanto que o objeto se inscreverá apenas nesta
15
interseção. Televisão exemplifica esta estrutura com o casal Dante e
Beatriz. De Beatriz, Dante só se apropria do seu batimento de cílios e
não é preciso mais para encarnar o objeto, mas o Outro, por este fato
mesmo, permanece barrado ao sujeito e toma existência, como escreve
Lacan. Este objeto que dá o preço da imagem é também o mais
substancial do corpo, não porque tenha materialidade, ou porque seja
extensão do corpo – pois ele não tem nenhuma. Ele é, certamente,
imaginarizável, a experiência o demonstra, mas é, no entanto, sem
imagem.(...) Lacan se empenhou em o logicizar, o que quer dizer,
também, desrealizá-lo, no sentido da realidade. Sem imagem, ele é,
também, sem significante que o represente, designável por uma
simples letra, índice do impossível a simbolizar e, no entanto,
substancial pelo gozo que se agrega aí, real, portanto, ejetado do Outro”.
Finalizando esta fala de abertura de nossos trabalhos, remeto-me
à epígrafe deste trabalho: O real é o mistério do corpo falante, é o
mistério do inconsciente.
Remeto-me, também, à Jairo Gerbase e à sua posição quando da
escolha do tema do Programa do Campo Psicanalítico em 2009. A sua
opção recaia em O inconsciente real e o corpo falante por nos levar,
afirma Gerbase, à hipótese de Lacan: o corpo afetado pelo inconsciente
é o próprio sujeito de um significante.
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