1
Antonio Carlos Frizzo
A Trilogia Social: estrangeiro,
órfão e viúva no Deuteronômio
e sua recepção na Mishná
TESE DE DOUTORADO
DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA
Programa de pós-graduação em Teologia
Rio de Janeiro
Agosto de 2009
2
Antonio Carlos Frizzo
A Trilogia Social: estrangeiro,
órfão e viúva no Deuteronômio e sua
recepção na Mishná
Tese de Doutorado
Tese apresentada ao Programa de Pósgraduação em Teologia da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do título de
Doutor em Teologia.
Orientadora: Maria de Lourdes Corrêa Lima
Rio de Janeiro, agosto de 2009
3
Antonio Carlos Frizzo
A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no
Deuteronômio e sua recepção na Mishná
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor pelo Programa de PósGraduação em Teologia do Departamento de Teologia do
Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio.
Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo assinada.
Profa Maria de Lourdes Corrêa Lima
Orientadora
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Isidoro Mazzarolo
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Ludovico Garmus
Departamento de Teologia – PUC-Rio
Prof. Vicente Artuso
PUC-PR
Prof. Paulo Severino da Silva Filho
Seminário Teológico Presbiteriano Simonton
Prof. Paulo Fernando Carneiro da Andrade
Coordenador Setorial de Pós-Graduação e Pesquisa do Centro
de Teologia e Ciências Humanas – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 9 de agosto de 2009
4
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e da orientadora.
Antonio Carlos Frizzo
Graduou-se em Teologia na Faculdade Nossa Senhora da
Assunção de São Paulo em 1984. Defendeu a tese de
mestrado em 1999, pelo Instituto Católico de Paris,
resultado dos estudos sobre a relação entre judaísmo e
cristianismo, no Instituto Pontifício Ratisbonne de
Jerusalém. Leciona teologia bíblica (Antigo e Novo
Testamento), é responsável pelo curso de línguas bíblicas
(hebraico e grego) na Faculdade Dehoniana, Taubaté e no
ITEFIST (Instituto de Teologia e Filosofia Santa
Terezinha), São José dos Campos, São Paulo. É padre na
diocese de Guarulhos, São Paulo.
Ficha Catalográfica
Frizzo, Antonio Carlos
A trilogia social : estrangeiro, órfão e viúva no
Deuteronômio e sua recepção na Mishná / Antonio
Carlos Frizzo; orientadora: Maria de Lourdes Corrêa
Lima. – 2009.
235 f.; 30 cm
Tese
(Doutorado
em
Teologia)–Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Inclui bibliografia
1. Teologia – Teses. 2. Trilogia social. 3.
Estrangeiro. 4. Órfão. 5. Viúva. 6. Mishná. 7.
Deuteronômio. 8. Defesa da vida. I. Lima, Maria de
Lourdes Corrêa. II. Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro. Departamento de Teologia. III. Título.
CDD: 200
5
Ao meu pai, Antonio Frizzo (in memoriam), com quem aprendi a
sonhar e trabalhar por um mundo justo e solidário.
À professora Ana Flora Anderson, mestra nos primeiros passos no
estudo das Escrituras;
Ao professor e amigo, Dr. Pe. Emanuel Bouzon (in memoriam), pela confiança e
por ter acenado os primeiros passos desse trabalho.
6
Agradecimentos
Ao Deus Um, pela saúde e por tantas bênçãos recebidas no dia-a-dia.
À minha mãe Isabel dos Santos Frizzo que, no silêncio e na atitude de atenta
observadora, colaborou, em muito, na elaboração deste trabalho.
À Maria de Lourdes Corrêa Lima, minha orientadora, conhecedora, como poucos,
da ciência bíblica, exigente e transbordante de simplicidade e amizade.
À Igreja Particular de Guarulhos, na pessoa do nosso Bispo Luiz Gonzaga
Bergonzini, onde por mais de trinta anos vivo e celebro o dinamismo da fé e
missão, por ter-me possibilitado tempo e apoio integral no desenvolvimento da
pesquisa.
Ao meu pároco, Savério Lípori e agentes de pastoral da Igreja Santa Cruz, Jd.
Presidente Dutra, pelas inúmeras vezes em que assumiram minhas tarefas
cotidianas, possibilitando-me mais tempo para as pesquisas.
Ao Centro Bíblico Verbo, onde pensamos as Escrituras na vida de nossa gente.
Lembro a amiga Cecília Toseli, os professores Ademar Kaefer, Shigeyuki
Nakanoso, às professoras Maristela Tezza e Maria Antônia Marques. Essa última
foi uma constante assessora.
7
À Faculdade Dehoniana, em Taubaté e ao ITEFIST de São José dos Campos,
espaços de amizade, reflexão e debate em torno das Escrituras.
À professora Deucélia Adegas Pêra, quanto tenho a agradecer! Ela, embora
travando uma luta contra um câncer, sempre suplantou as dores ou desânimo e fez
uma revisão impecável deste trabalho.
Ao aluno Messias Rochinski pela ajuda no acerto do software.
Ao professor Élio Passeto, do Centro de Estudos Judaico-Cristão Ratisbonne, em
Jerusalém, pelos conselhos, leitura e revisão dos capítulos envolvendo a tradição
judaica.
À Irmã Maria do Rosário, bibliotecária da École Biblique de Jerusalém, pelas
constantes dicas bibliográficas.
Ao Prof. Ludovico Garmus, funcionárias e funcionários da Biblioteca do Instituto
Teológico Franciscano, Petrópolis, RJ, pela amizade solidificada ao longo do
trabalho.
8
Resumo
Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa. A Trilogia
Social: estrangeiro, órfão e viúva no Deuteronômio e sua recepção na
Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Tese de Doutorado – Departamento
de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
A presente tese aborda uma reflexão bíblico-teológica sobre a trilogia
social – ‫“ גֵּר‬estrangeiro”, ‫“ י ָתוֹם‬órfão” e ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva” no Dt e sua recepção da
Mishná. No livro encontramos seis explícitas referências à trilogia: 10,12-22;
14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. A presença dessas categorias
acena para um significativo conjunto de normas jurídicas no Antigo Israel. As leis
foram praticadas para defender os direitos de grupos socialmente vulneráveis,
diante de um determinado contexto político e social, como é possível verificar no
embate com o projeto beligerante do império assírio (722 a.C.) e, mais tarde, com
a experiência da comunidade religiosa pós-exílica (537 a.C.), após confrontos
com as tropas babilônicas. As narrativas, além desse aspecto, revelam o nível de
intimidade envolvendo YHWH e a comunidade religiosa, que deve engajar-se
para fazer prevalecer a prática do direito e da justiça aos grupos socialmente
desfavorecidos, como prova de sua interação com YHWH. Num contexto social
completamente adverso às comunidades judaítas, nos dois primeiros séculos da
nossa era, a Mishná baliza os esforços dos sábios fariseus ao colocarem em prática
os preceitos, sempre atuais, da Torá. Ler os dois universos literários – Dt e
Mishná - a partir da ótica dos grupos socialmente frágeis, é um desafio para se
compreender o valor significativo que teve a tradição judaica na compreensão do
conceito “Palavra de YHWH”.
Palavras-chave
Trilogia social, estrangeiro, órfão, viúva, Mishná, Deuteronômio, defesa da
vida.
9
Resumen
Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientadora).
Social Trilogia: El extranjero, el huérfano y la viuda en el
Deuteronomio y su recepción en la Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p.
Tesis Doctoral – Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade
Católica do Rio de Janeiro.
El objetivo es abordar una reflexión bíblico-teológica sobre la trilogía
social: ‫“גֵּר‬extranjero”, ‫“ י ָתוֺם‬huérfano” y ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viuda” en el Dt. En tal libro
encontramos seis referencias explícitas a esta trilogía: 10,12-22; 14,28-29; 16,912; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26. La presencia de estas categorías nos remite para
un conjunto significativo de normas jurídicas en la antigua Israel. Las leyes se
hicieron para la defensa de los derechos de los grupos socialmente vulnerables,
dado a un determinado contexto sociopolítico, como se puede ver en el
enfrentamiento con el proyecto beligerante del imperio Asirio (722 a.C.) y
posteriormente con la experiencia de las comunidades religiosas del pos exilio
(537 a.C.), y tras los enfrentamientos con las tropas
Babilónicas. Tales
descripciones; y más allá de estos puntos; indican el nivel de intimidad que
envuelve a YHWH y a las comunidades religiosas, las cuales deben dedicarse
para hacer prevalecer la práctica de la ley y la justicia en los grupos socialmente
desfavorecidos, como prueba de su intimidad con YHWH. En un contexto social
totalmente adverso para las comunidades judaicas en los primeros siglos de
nuestra era, la Mishna es señal de los esfuerzos por parte de los sabios fariseos
para poner en práctica los preceptos, siempre vigente del Torá. Leer los dos
mundos literarios – del Mishna y el Dt – desde la perspectiva de los grupos
socialmente vulnerables, es un reto importante para comprender el valor que tenía
la tradición judaica en la comprensión del concepto de “la palabra de YHWH”.
Palabras claves
Trilogía social, extranjero, huérfano, viuda, Mishna, Deuteronomio,
defensa de la vida.
10
Résumé
Frizzo,Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Orientatrice). La
trilogie sociale dans livre de Deutéronome: exotique, orphelin et veuve
et sa réception dans le Mishna. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Thèse de
Doctorat - Departamento de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro.
La thèse traite d’une réflexion biblico-théologique sur la trilogie sociale:
‫“גֵּר‬étranger’’,
‫“ י ָתוֺם‬orphelin’’ et
‫“ אַ ְל ָמנָה‬veuve” en Deutéronome. Plus
précisement dans ses chapitres 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21;26,12-15;
27,11-26. La présence de ces catégories fait appel à une importante série de
règles de droits dans l’ancien Israel. Ces lois sont faites pour défendre les droits
des groupes socialement vulnérables, compte tenu d’un certain contexte politique
et social, comme vous pouvez le voir dans l’affrontement avec la conception des
bélligerents de l’empire de syrie (722 Après Jésus Christ) et plus tard, avec
l’expérience de la communauté religieuse post-Exil (537Avant Jésus Christ),
après des affrontements avec les troupes Babyloniennes. Les récits, au-delà de ce
point, l’intimité de Yahvé et la communauté religieuse qui doit s’enganger à la
pratique du droit et de justice en faveur des groupes socialement défavorisés,
comme preuve de interaction avec Yahvé. Dans un contexte social totalment
néfaste pour les communautés Juives dans les deux premiers siècles de notre ère,
la Mishna, phare de sages pharisiens, les efforts visant à mettre en pratique les
préceptes, le cas échéant de la Torah. Lire les deux mondes littéraires - Mishna e
Dt - du point de vue des groupes socialement vulnérables est um défi de
comprendre la valeur qui a la tradition juive dans la compréhension de la notion
du mot “Yahvé’’.
Mots-clés
Trilogie social, étranger, orphelin, veuve, Mishna, Deutéronome, défense
de la vie.
11
Abstract
Frizzo, Antonio Carlos; Lima, Maria de Lourdes Corrêa (Advisor). Social
Trilogy: foreign, orphan and widow in Deuteronomy and its reception
in Mishná. Rio de Janeiro, 2009. 235 p. Doctoral Thesis– Departamento
de Teologia, Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The aim is to discuss the biblical-theological reflection on the social
trilogy - ‫“ גֵּר‬foreign, ‫“ י ָתוֺם‬orphan” and ‫“ אַ ְל ָמנָה‬widow” in Dt. In this biblical
book are six explicit references to this trilogy: 10, 12-22, 14, 28-29, 16, 9-12, 24,
17-21, 26, 12-15, 27, 11-26. The presence of these categories points out the
significant set of legal rules in Ancient Israel. The laws were made in order to
defend the rights of socially vulnerable groups, in a certain political and social
context, as you can find out from the clash with the design of the belligerent
Assyrian Empire (722 BC) and later, with the experience of religious post-exile
community (537 BC), after clashes with the troops of Babylon. The narratives,
beyond this point, show the level of intimacy involving YHWH. In a social
context, completely adverse to the Jewish communities in the first two centuries
of our area, the Mishná points out the wise Pharisees efforts to put into practice
the precepts always present of the Torah. To read the two literary worlds – Dt and
Mishná – from the perspective of socially vulnerable groups, is a challenge to
understand the significant value that the Jewish tradition has had about the
understanding of the concept “Word of YHWH”.
Keywords
Social Trilogy, Foreign, Orphan, Widow, Deuteronomy, Defense of Life
12
Sumário
1. Introdução geral
18
2. Sinalizando os rumos da pesquisa
30
2.1. O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres
34
2.1.1. O ‫“ ֵגּר‬estrangeiro”
35
2.1.2. A pessoa do ‫" י ָתוֹם‬órfão”.
39
2.1.3. A pessoa da ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva”
42
2.2. Conclusão
49
PARTE I: COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA
SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO DEUTERONÔMIO
51
3. Apresentação do conjunto das perícopes do Dt relacionadas com a
trilogia social
52
3.1. A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22
52
3.1.1. Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos
53
3.1.2. Delimitação do texto, composição e estrutura
56
3.1.3. Comentário e análise semântica
62
3.2. Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29
74
3.2.1. Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes
76
3.2.2. Delimitação do texto, composição e estrutura
77
3.2.3. Comentário e análise semântica
79
3.3. Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12
87
3.3.1. Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes
87
3.3.2. Delimitação, composição e estrutura
89
3.3.3. Comentário e análise semântica
92
3.4. Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22
96
3.4.1. Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes
97
3.4.2. Delimitação, composição e estrutura
101
3.4.3. Comentário e análise semântica
102
13
3.5. A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15
107
3.5.1. Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes
108
3.5.2. Delimitação, composição e estrutura
111
3.5.3. Comentário e análise semântica
114
3.6. O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do projeto
da bênção: Dt 27,11-26
122
3.6.1. Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes
122
3.6.2. Delimitação, composição e estrutura
127
3.6.3. Comentário e análise semântica
130
3.7. Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus
136
PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA
INTERPRETAÇÃO DO DT
139
4. Trilogia social nos textos da Mishná
140
4.1. A importância da Mishná na formação do judaísmo
140
4.1.1. A tradição judaica em meio à experiência da ‫גּוֹ ָלה‬, "desterro"
140
4.1.2. A autoridade hermenêutica de Hillel
144
4.2.‫" סדר זרעים‬Seder Zeraim
149
4.2.1.‫“ פֵּﬡָ ה‬Pe’ah” (córner, limite, divisa) 4,3
149
4.2.2.‫“ פֵּﬡָ ה‬Pe’ah” 6,4
152
4.2.3.‫“ פאה‬Pe’ah” 7,7
154
4.2.4.‫“ דמאי‬Demay” 1,2
156
4.2.5.‫“ שביעית‬Shebiit” 7,1
159
4.2.6.‫“ מעשר שני‬Maaser Shení” 5,10
162
4.3.‫“ סדר מועד‬Seder Mo´ed”
164
4.4.‫“ מגילה‬Megillah” 2,5
164
4.5.‫“ סדר נשים‬Seder Nashim”
166
4.5.1.‫“ נדרים‬Nedarim” 11,3
166
4.5.2.‫“ גיטין‬Gittin” 5,8
168
4.5.3.‫ סוטה‬Sotah 9,10
171
4.6.‫“ סדר נזיקין‬Seder Neziqin”
173
4.6.1.‫“ בבא מציעה‬Bava Metzia” 9,13
173
4.6.2.‫“ אבות‬Avot”, 5,9
177
14
4.7. Conclusão
180
5. A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos
183
5.1. O dever de disponibilizar os dízimos
183
5.1.1. Produtos disponibilizados no sétimo ano.
186
5.1.2. O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência 189
5.1.3. O dízimo lembrado nas ocasiões festivas
191
5.1.4. A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote
193
5.2. O dever de garantir aos pobres o direito da respiga
197
5.2.1. O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário
197
5.2.2. A radicalidade da lei do “não voltar atrás”
199
5.2.3. Em qualquer situação os pobres serão lembrados
200
5.2.4. Não há meios de revogar o direito da Torá
201
5.2.5. Esforços voltados para a manutenção da paz
202
5.2.6. Relações comerciais sem usuras
204
5.3. A violação do direito dos pobres
206
5.4. Conclusão
207
6. Conclusão final
208
7. Referências bibliográficas
218
15
Abreviaturas e siglas
Ab
Abot
AtTeo
Atualidade Teológica
BA
Bible Atlas
BAC
Biblioteca de Autores Cristianos
BHS
Bíblia Hebraica Stuttgartensia
Bi
Biblica
BJ
Bíblia de Jerusalém
BM
Babá mĕṣi´á
CA
Código da Aliança
Cadmo
Revista do Instituto Oriental de Universidade de Lisboa
CBSJ
Comentario Biblico San Jeronimo
CD
Código Deuteronômico
CBQ
Catholic Biblical Quarterly
CS
Código de Santidade
CSac
Código Sacerdotal
DBHP
Dicionário Bíblico Hebraico-Português
DBSup
Dictionnaire de la Bible, Suplément
DDD
Dictionary of Deities and Demons in the Bible
Dt
Dictionary of the Talmud
DEdJ
Dictionnaire Encyclopédique du Judaïsme
Dem
Dĕmay
DITAT
Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento
Dt
Deuteronômio
EB
Estudios Bíblicos
EsBi
Estudos Bíblicos
Git
Gittín
JBL
Journal of Biblical Literature
JBT
Journal of Bible and Theology
16
JNES
Journal of Near Eastern Studies
JSOT
Journal for the Study of the Old Testament
LD
Lectio Divina
LMB
Le Monde de la Bible
M
Mishná
Meg
Mĕgil.lá
MSh
Ma´ăśer šení
NCBSJ
Novo Comentário Bíblico São Jerônimo
Ned
Nĕdarim
NRT
Nouvelle Revue Théologique
PT
Perspectiva Teológica
OBO
Orbis Biblicus et Orientalis
Pea
Pe’á
RAAO
Revue d`Assyriologie et d`Archéologie Orientale
RB
Revue Biblique
RdCT
Revista de Cultura Teológica
ReBi
Recherches Bibliques
REJ
Revue des Études Juives
RIBLA
Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana
Shebi
Šĕbi´it
Sot
Sotá
TBT
The Bible Today
TDOT
Theological Dictionary of the Old Testament
TM
Texto Massorético
WBC
Word Biblical Commentary
17
,‫דבר אחד יי אלהינו עלינו יי אחד על כל באי העולם‬
‫יי אלהינו בעולם הזה יי אחד לעולם הבא‬
‫וכן הוא אומר והיה למלך על כל הארץ ביום‬
.‫ההוא יהיה יי אחד ושמו אחד‬
‫ ע``נד‬,‫ פיסקא לא‬,‫ספרי דברים‬
Outra interpretação de Yhwh nosso Deus: sobre nós.
Yhwh é um: sobre todos os que veem ao mundo.
Yhwh nosso Deus: neste mundo. Yhwh é um: para o mundo futuro.
E assim se diz: “Yhwh se converterá em rei sobre toda a terra; e naquele dia, Yhwh será um e seu nome um”.
Sifre Dt 31, 44.
18
1
Introdução geral
Em meados de 2005, durante a etapa de cumprimento dos créditos na pósgraduação, junto ao Departamento de Teologia, PUC-Rio, li uma breve resenha
sobre o Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, elaborada
pelo professor Emanuel Bouzon1. A narrativa de Bouzon versa sobre o encontro
da “Society of Biblical Literatur”, ocorrido na cidade de Münster, entre os dias 28
e 27 de julho de 1993. “A leitura deste volume trará, certamente, novos impulsos
e novos pontos de discussão para todo aquele que se propuser a estudar Dt 12-26”,
era a frase final da resenha. Confesso que fiquei inquieto diante dos possíveis
“novos impulsos”, como afirmava o eminente historiador, ao concluir o artigo. A
partir desse momento, comecei a aproximar-me, de modo mais crítico, dessa obra
que é um divisor de águas no conjunto do Antigo Testamento. Mas como dar
sequência às borbulhantes idéias?
Em nova conversa com o professor Emanuel Bouzon, com o objetivo de
colher as primeiras propostas de tema para um trabalho de doutoramento, tive
conhecimento da obra A Torá: Teologia e História Social da lei do Antigo
Testamento, do exegeta alemão Frank Crüsemann. Como sempre, muito fiel à sua
área de pesquisa, de exegeta e historiador do Antigo Oriente, Bouzon acenou para
a possibilidade de pesquisar um determinado conjunto de leis no Antigo
Testamento, sem deixar de lado seus aspectos históricos, sociais e teológicos.
Abracei a proposta. Terminada a leitura da obra de Crüsemann, surgiram os
primeiros rabiscos sobre a possibilidade de concentrar esforços em torno do livro
do Deuteronômio. Mas como subtrair um determinado tema num dos livros
bíblicos mais estudados nas ultimas décadas, por diferentes abordagens e escolas
exegéticas? Sobravam questões, diante da urgência de escolher um viés de análise.
1
BOUZON, M., Documento de Aliança e Lei: estudos sobre o Deuteronômio, In: AtTeo, 3, 1998,
pp. 99-103.
19
No início de 2006, é publicado o livro de Pedro Kramer, Origem e
Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e
excluídos. O texto é uma síntese de sua tese doutoral, elaborada a partir dos
escritos de dois dos mais relevantes estudiosos do Deuteronômio: N. Lohfink e G.
Braulik. Ao debruçar-me sobre essas páginas, descobri a existência de um grupo
social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva, citada não mais do que seis vezes
ao longo do livro do Deuteronômio. Pronto! Acabava de encontrar parte do sujeito
da tese, num conjunto de leis bem especificadas no corpo jurídico do Antigo
Testamento: a defesa de grupos violados em seus direitos e justiça. A parte
complementar do tema busquei na tradição judaica. Não queria negligenciar anos
de estudos vividos em Israel. Desejava, caso fosse possível, conciliar, os textos
deuteronômicos com algum período relevante do judaísmo.
Numa nova rodada de conversas, veio a idéia de relacionar o conjunto de
leis em defesa do estrangeiro, órfão e viúva com a época dos Tanaítas. Na
oportunidade, indagávamos, entre outras coisas: as reflexões presentes na obra
deuteronômica foram consideradas pelas comunidades israelitas? Os sábios
judaicos debruçaram-se sobre tais normas? As leis em defesa dos pobres foram
observadas na prática do dia-a-dia das comunidades do II século, após a guerra de
135 d.C.? Tais questões deveriam acenar para uma determinada época.
Escolhemos os anos vividos por dois brilhantes sábios e fundadores de duas
distintas escolas rabínicas. Shamai e Hilel representam as duas tendências do
movimento farisaico do I século, época do movimento literário erigido em torno
do centro cultural de Yabneh, quando as controvérsias legais começaram a
adquirir um conjunto redacional e, considerando as vicissitudes históricas, estava
em formatação a Mishná .
Da Bíblia não foi difícil selecionar o material. Bastou uma apurada leitura,
com o apoio da concordância de Lisowsky, para selecioná-lo os textos desejados.
Encontrei seis grupos de textos: 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15;
27,11-26. A pesquisa tem como eixo as análises das perícopes voltadas para a
defesa do direito dos grupos desfavorecidos, personificados no que é chamado
Trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva.
Separadas as perícopes bíblicas, surgiu uma dificuldade maior: quais os
textos a serem priorizados, provenientes da tradição judaica, e qual o critério para
selecioná-los. De posse da concordância ‫ הכתובה והמסורה‬:‫תורה‬, “Tora: Haketuvah
20
Vehamasorah”, do professor Aharon Hymin, o critério foi destacar todos os textos
da época dos Tanaítas, que fazem referências à trilogia social apresentada pelo
Deuteronômio. Chegamos à soma de setenta textos provenientes da Mishná, dos
Midrashin e dos respectivos Talmudes: Jerusalém e Babel.
A conclusão não poderia ser outra. Diante de um cenário literário
gigantesco, é salutar, não somente diminuir a área da pesquisa, mas, também,
redefinir o número de textos. Alia-se a esta dificuldade, meu caráter de neófito –
no senso comum da palavra – diante do vasto e qualificado universo literário de
tradição judaica. Diante dos textos judaicos, optamos por realçar os textos da
Mishná, tendo como período histórico a época dos Tanaítas, estabelecida
cronologicamente entre dois períodos pré-tanaítico – conhecido como período dos
zugot “pares” – 200 a.C a 20 d.C., e a época tanaítica, somando as seis gerações,
20 d.C a 200 a.C. São analisados os respectivos tratados em seus versículos: 1)
Seder Zeraim: Pe`ah 4,3; 6,4; 7,7; Demay 1,2; Shebiit 7,1; MSh 5,10. 2) Seder
Mo`ed: Meg 2,5. 3) Seder Nashim: Ned 11,3; Git, 5,8; Sot 9,10. 4) Seder Neziqin:
BM 9,13 e Ab 5,9.
Mas por que estes e não outros versículos? A escolha recai sobre este
conjunto de versículos exatamente por que eles justificam a aplicação de uma
‫“ ֲה ָל ָכה‬halachá” – norma de conduta, regra de como agir – nos textos do Dt, onde
é citada a trilogia social. Assim, buscamos comprovar se a defesa incondicional
do estrangeiro, órfão e viúva, em realce no conjunto da obra, foi ou não
evidenciada, posta em prática pelas comunidades judaicas em meados dos anos
em que é composta a Mishná.
Sinalizando os caminhos percorridos
Ao tratar do tema Trilogia Social – estrangeiro, órfão e viúva, grafado no
Deuteronômio, a pesquisa volta-se, no primeiro momento, para uma análise
literária em torno dos textos selecionados, com a finalidade de compreender o
contexto redacional em que a Trilogia se insere. Pensa-se que, por meio deste
termo técnico - Trilogia Social – seja possível compreender, não apenas o
contexto literário das perícopes, mas também, o seu sentido originário e os
21
motivos de incluí-la em diferentes narrativas, partindo sempre do contexto
literário, onde encontramos as referidas citações.
Foi com espírito de busca e entendimento que nos propusemos a realizar
este trabalho, considerando a especificidade de um determinado grupo de textos
jurídicos, realçando normas legais em defesa de uma categoria social e sua
recepção nos textos da Mishná.
Diante dos novos conceitos impostos ao grupo dos livros que compõem o
Pentateuco2, o livro do Deuteronômio não poderia, em hipótese alguma, passar
incólume nas recentes pesquisas exegéticas e descobertas arqueológicas. No
universo da ciência bíblica, são inúmeras as pesquisas e resultados apresentando
verdadeiras avalanches de variedades e resultados3. O Dt é uma obra literária de
inúmeras facetas. Um livro que, uma vez visto a partir de sua redação final, está
repleto de inúmeras outras redações e fases literárias. Não há possibilidade de se
imaginar que o texto encontrado e utilizado por Josias, em sua reforma religiosa e
política, é o mesmo Dt manuseado em nossos dias4. As opiniões sobre a formação
do Dt se dividem em diferentes escolas, quando o esforço é dirigido à
compreensão das diversas fases redacionais5.
Primeiramente, como já era possível imaginar, com base na fala de
Moisés, inserida no conjunto do livro do Dt, uma leitura mais minuciosa se depara
com uma variedade de teorias e escolas que, nas últimas décadas, revolucionaram
2
Sobre os acalorados debates em torno das origens e composição do Pentateuco conferir algumas
introduções aos cinco primeiros livros. NARDONI, E., Normas de justicia en las leyes de la
alianza. In: Revista Bíblica, 58, pp. 81-118; DE PURY, A., O Pentateuco em Questão: as origens
e a composição dos cinco primeiros livros da Bíblia à luz das pesquisas recentes, Petrópolis,
Vozes, 2002; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999; SKA, J. L.,
Introdução à Leitura do Pentateuco: chaves para a interpretação dos cinco primeiros livros da
Bíblia, São Paulo, Loyola, 2003.
3
KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 11: ˝A pesquisa atual sobre o
Deuteronômio revela que não há consenso, entre os seus peritos, sequer quanto aos pontos básicos,
como sua origem, formação e composição˝.
4
Cf. McConville, J. G., Singular Address in the Deuteronomio Law and the Politics of Legal
Administration. In: JSOT 97, 2002, 19-36. A simples alternância entre a primeira pessoa do
singular e a segunda do plural, legitima as inúmeras redações e camadas literárias presentes ao
longo do livro (Dt 6,1-2; 4, 1; 5,1; 6.3, 4; 9,1; 10.12; 27.9).
5
Entre os autores há relativo equilíbrio na percepção estrutural do livro, um eixo central no
formato de uma estrutura concêntrica, originária dos capítulos 12-26. Cf. SCHMIDT, W. H.,
Introdução ao Antigo Testamento, São Leopoldo, Sinodal, 1994, p. 120; BLENKINSOPP, J.,
Deuteronomio. In: BROWN, R. E., FITZMYER, J. A., MURPHY, R. E. (Eds.), NCBSJ, São
Paulo, Academia Cristã/Paulus, 2007, pp. 225-226; BRAULIK, G., Deuteronomium II, 16,1834,12, Echter Verlag, 1980, p. 98; SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario,
Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 45-46; NAKANOSE, S., Para entender o livro do Deuteronômio.
Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, pp. 186-187.
22
o estudo do Pentateuco e, consequentemente do livro do Dt. No capítulo II, sobre
o Status Quaestionis, apresento, de modo sintético, os caminhos pelos que seguem
as recentes pesquisas no Dt, tendo como eixo a trilogia social. Preferimos dividir
esse parágrafo em temas que julgamos ser relevantes na compreensão do livro,
descobertos durante o estudo da bibliografia e que, sem dúvida alguma, utilizamos
como princípios norteadores ao longo de todo trabalho. Com base em diferentes
escolas de exegese e teologia bíblica, chegamos a um consenso de que os grupos
sociais desfavorecidos jamais foram, em momento algum da história de Israel,
negligenciados. Pelo contrário, encontra-se em qualquer período da existência de
Israel uma clarividente defesa dos pobres em diferentes conjuntos jurídicos. A
proteção, por parte da administração da justiça, implica em que a comunidade
religiosa de Israel defenda e garanta a prática dos direitos desses grupos.
A defesa desses grupos é apresentada, numa espécie de redoma jurídica,
capaz de garantir o sucesso ou o infortúnio ao conjunto da sociedade que está por
detrás da elaboração do texto. Em outras palavras, é dada tanta ênfase a este grupo
que o leitor há de se perguntar: a sociedade, ou grupo social que produziu tal
conjunto de normas chegou, de fato, à vivência plena, radiante do javismo
defendido nas páginas do Dt? Os grupos em relevo, historicamente, viram seus
direitos defendidos, ou o que temos, como redação final, não passa de um forte
ensinamento ideológico forjado por um grupo de sacerdotes ou escribas, na
Jerusalém dos séculos VI e V a.C.?
No capitulo III, segue a análise exegética das seis perícopes. Buscamos
compreender o Gênero Literário (Forma e Estrutura), antes de tudo, percebendo os
recursos retóricos, os estilos utilizados pelo escritor bíblico, e só depois
debruçamo-nos na Análise Semântica. O conjunto de textos ai selecionados é
compreendido considerando o que inúmeros estudiosos intitulam uma releitura
teológica e histórica do Israel conhecido até então, por parte dos sacerdotes e
sábios instalados em Jerusalém, provavelmente, no período pós-exílico, isto é,
uma espécie de aprimoramento de antigas leis, em vigor em Israel, então, melhor
compreendidas ou completadas nas palavras que falou Moisés (cf. Dt. 1,1), num
contexto de uma literatura não acabada, mas pedagógica. Em todo o conjunto do
livro, o primado é dado a Moisés. O narrador prioriza a pessoa do profeta,
tomando o lugar de YHWH, como bem apresenta o Código da Aliança: E disse
YHWH a Moisés: Assim dirás aos filhos de Israel (cf. Ex 20, 22). Na pessoa de
23
Moisés, a lei se torna mais atual. Os discursos são para o presente, nunca
reminiscência de um passado, onde Deus, um dia, dirigiu sua fala à nação
escolhida.
Visto sob a ótica da religião de Israel, o cumprimento do suporte legal
adquire o desejo de garantir o projeto do Criador. Os suportes legais recebem uma
nova compreensão, quando vistos na hermenêutica religiosa do Antigo Israel. A
prática do Direito e da justiça, após longo processo no interior da sociedade, é
compreendida como um forte apelo ideológico, quando considerada como desejo
d`Aquele que nos libertou da terra da escravidão. Tornaram-se leis sagradas que,
uma vez observadas, aproximam a sociedade dos ideais divinos. Os textos
bíblicos exaltam a divindade de um javismo, cuja personificação não está na
pessoa do rei, mas este se vê implicado no cumprimento da vontade do Criador6.
Há possibilidade de levantar os seguintes princípios na pesquisa:
•
Perceber a natureza e contexto histórico da lei: Sabemos, e
são facilmente comprovados a influência e o intercâmbio
cultural entre Israel e os povos vizinhos, sobretudo a
Babilônia e o Egito. Diante de tal consideração, julgamos
ser útil realçar, ainda que de modo tangencial, a ressonância
de certos textos jurídicos presentes nas narrativas bíblicas.
Quais seriam as semelhanças entre as leis contidas no Dt
quando comparadas com textos legais provenientes do
Antigo Oriente? Considerando-se a praticidade da lei, os
conceitos
utilizados são idênticos nos dois universos
literários? O que se pode notar, logo num primeiro
momento, é que no Dt a pessoa, o grupo familiar está
sempre em evidência. A defesa incondicional da pessoa
está sobre os valores materiais. Seria esta uma novidade
introduzida no livro pelos sábios judeus ao apresentarem a
fala de Deus intermediada por seu representante Moisés?,
6
GONÇALVES, F. J., A Bíblia na História do Povo de Deus, Bíblica (série científica), 13, 2004,
pp. 34-35: ˝Nesta concepção de realeza, o rei invocava a autoridade de um deus criador. A título
de seu representante, o rei recebia desse deus a missão de manter a ordem do mundo por ele
instaurada com a sua vitória contra o Caos. O rei exercia essa missão assegurando o culto do seu
deus e fazendo reinar a justiça entre os seus súditos˝.
24
•
O século VIII é tido como um período áureo para a política
expansionista
do rei assírio Teglat-Falasar III (745-
727a.C.): a dominação imposta aos países vizinhos não
tardou a atingir as fronteiras de Israel. É imposto o regime
político de vassalagem aos reinos conquistados. Como
compreender neste contexto, as estratégias e resultados da
reforma promovida no reinado de Ezequias ao opor-se
contra os assírios? Não estaria neste período a perda do
direito da posse da terra e, consequentemente, no
agravamento da crise que se abateu sobre os pobres. Em
outras palavras, os que antes possuíam a terra, agora tem,
como garantia de sobrevivência, parte do dízimo, das festas
e das colheitas. Diante de tais considerações, as leis
expressas
no
Deuteronômio
foram
elaboradas
com
finalidade de equacionar o fosso social criado no interior da
sociedade israelita, mas não de devolver a terra aos seus
antigos e legítimos proprietários.
•
Para alguns exegetas, o conjunto dos textos selecionados,
no livro do Dt, são de um período recente. Os destaques
dados aos estrangeiros, órfãos e viúvas datam do período
exílico, momento em que a comunidade religiosa busca
entender as vicissitudes históricas, sobretudo a destruição
física do Templo, somada à destruição das tradições
religiosas, projetando-se no passado. Como transmitir a
história às futuras gerações? Com entender a relação Deus e
Comunidade a partir da calamidade exílica? Neste ambiente
de releituras, o Dt é uma ocasião de procurar relativa
compreensão da estrutura literária no conjunto geral do pósexílio.
•
Por qual motivo não encontramos o termo ‫(( ָענ ִי‬pobre) ou
‫( ֲענִיּ ִים‬pobres) tão freqüentes no livro do Deuteronômio (Dt
15,11; 24,12.14.15; 16,3),
e de suma importância na
pregação profética (Am 2,7; 8,4; Is 32,7; 49,13; 58,7; Ez
25
18,12; 22,19), junto à trilogia estrangeiro, órfão e viúva, no
conjunto dos textos escolhidos? Seria a categoria ‫ָענִי‬
diferente do termo ‫ י ָתוֺם‬na época da redação do texto?
Pensamos que o Dt, por constituir-se num livro de
princípios legais, volta a essas categorias os olhares
divinos. Possibilitar segurança, justiça e acesso ao direito é
sinônimo de agradar a YHWH.
A autoridade máxima é a ‫“ תּוֺ ַרת י ְה ָוה‬Lei de YHWH”. A ela estão
submetidas todas as autoridades e instituições. Tem-se a impressão de que coube
ao redator final da obra, no período pós-exílico, enaltecer a Lei, como elemento
catalisador da comunidade religiosa. Não é em vão que o livro retoma a proposta
da felicidade ou da desgraça completa, compreendida no modo como a
comunidade religiosa cumpre ou não os preceitos nela estampados (cf. Dt 6,25).
O Deuteronômio é o livro escrito essencialmente para ensinar crianças e
jovens, reis e servos (Dt 4,9-10; 6,7, 20-25; 11, 19; 31,13). Sua teologia tem como
idéia central a fidelidade absoluta a YHWH e a prática da justiça e do direito7. Tal
fidelidade teve seu pleno significado na experiência do êxodo e da aliança.
Seguindo o projeto de um deus oposto às demais divindades, Israel descobre, na
história, o conceito de um deus incapaz de compactuar com a vontade humana. A
comunidade se depara com uma divindade que existe por si mesmo, sem nenhum
mérito humano (cf. Ex 3,7), e a bondade deste Deus é pensada a partir da
experiência do êxodo, onde viram a ação preferencial por Israel. A idéia da
aliança8 surge e é transmitida às futuras gerações como força divina capaz de
garantir a coesão e identidade da comunidade religiosa ao longo de sua história.
No capítulo IV
são apresentados doze textos da Mishná. As leis
consideram as diferentes realidades, nas quais se inseriam as comunidades. Todas
7
Cf. SÁNCHEZ. E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p.
35.
8
RENDTORFF, R., A fórmula da aliança, São Paulo, Loyola, 2004, p. 75: ˝As grandes primeiras
seções da história de Israel residem no passado: a geração dos pais, a quem foi prometida a terra,
lembrada pelas primeiras frases da fala de Moisés no Deuteronômio (1,8); a saída do Egito, que
tem, em vários aspectos, uma função constitutiva para a situação atual e auto-imagem de Israel
(4,20; 7,8)...o caminho através do deserto, a tentativa frustrada de conquistar a terra a partir do
Qadesh, a perambulação por quarenta anos no deserto, o triunfo sobre os reis do Jordão Oriental e
a tomada de sua terra (1,19-3,17) até o ponto além do Jordão, na terra de Moab˝ (1,5), onde Moisés
começa a expor a Lei. Tudo o que é anterior a esse período é objeto de reflexão retrospectiva˝.
26
as normas são fundamentadas nos princípios provenientes da Torá. Isso revela o
desejo que os sábios fariseus tinham em levar uma vida social em conformidade
com as tradições transmitidas pelas Escrituras. Afinal, o Senhor não doou a Israel
normas temporais, passageiras a serem praticadas por uma determinada realeza.
São palavras eternas.
Uma leitura da Mishná revela o grau de sensibilidade social. Os pobres,
nas comunidades judaítas, nos primeiros séculos d. C., não assistem, de modo
passivo, a negligência de seus direitos. Ocorrida a violação do Direito, a
convivência social fica ameaçada. Há riscos de desintegração e desequilíbrio da
“harmonia” social. As normas jurídicas buscam meios para superar os conflitos.
Há uma urgência em recorrer ao suporte da jurisprudência, no desejo de equalizar
e projetar relativa sensação de harmonia entre interesses antagônicos.
Os sábios tanaítas não leram de modo aleatório as Escrituras. As normas,
no estudo da Torá, foram forjadas pelos tanaítas. Hilel é citado no desejo de
verificar o grau de comprometimento e seriedade diante das tradições orais e
escritas. As regras citadas comprovam tal seriedade. As regras exegéticas não se
furtam em comprovar o nível do amor a Deus que envolve todo o coração. A
Escritura, a Lei, não é entendida de modo individualista, repleta de conceitos
genéricos, sem destinatários. A disponibilidade na realização do projeto divino
está no ensinamento e transmissão da Torá, fazendo com que, de geração em
geração, seja conhecido o nome do Senhor.
No capítulo V, ocorre a interação entre os textos do Dt e a Mishná.
Procuramos compreender o grau dessa interação. A comparação expõe três
práticas muito comuns nos anos que se seguiram após a destruição do segundo
Templo. São elas: 1) O dever de disponibilizar os dízimos; 2) O direito dos pobres
pela respiga; 3) A violação do direito dos pobres. Não oferecer comodidade frente
às normas provenientes da Torá pode ser uma justa equação levada adiante pela
tradição judaica na época Tanaítica. A ortopraxis é justificada pelos textos
bíblicos. Neste sentido, cabe, no desenvolvimento da pesquisa, identificar quais
realidades sociais, os diferentes casos, que são normatizados na Mishná
considerando sempre as perícopes em que ocorre nítida referência à trilogia social:
estrangeiro, órfão e viúva.
A análise está centrada em 12 diferentes capítulos da Mishná. Vale realçar
que a sequência à trilogia social ( ‫ ֵגּר‬, ‫ י ָתוֹם‬e ‫ ) אַ ְל ָמנ ָה‬comum no livro do Dt (10,18-
27
19; 14,29; 16,11; 24,17.19.20.21; 26,12.13; 27,19) não é encontrada nas páginas
da Mishná. Na pesquisa, o critério de escolha dos textos considerou,
especificamente, textos do Deuteronômio que oferecem suporte a uma
determinada halakhah. Por esse critério, são relacionados as seguintes perícopes:
14,28-29; 16,9-12; 24,17.18.19.21; 26,13-15 que fundamentam, diante de uma
determinada realidade social os desafiu imposto à comunidade, a preocupação
com o direito social de grupos desfavorecidos ou que estão disputando a defesa de
seus direitos expressos na Torá. Foram selecionados apenas os textos em que,
explicitamente, é citada a trilogia social, como critério argumentativo na
justificação de uma determinada pratica adotada pela comunidade9.
Relevância do tema e contribuição à ciência bíblica
O método histórico-crítico, levado adiante nos últimos dois séculos, por
diferentes escolas exegéticas, tem possibilitado um conhecimento, cada vez mais
real, da gênese de um determinado texto, bem como o seu processo redacional
quando somado aos demais livros que compõem a Bíblia. O uso do nome Bíblia
faz jus a esta série de leituras e releituras. O avanço da ciência bíblica, somado às
áreas da teologia, parece ter recuperado o pleno sentido santo da Escritura e das
demais esferas da ciência teológica10.
Existe um considerável número de trabalhos no mundo da exegese
moderna que acena, cada vez mais, para um constante diálogo com narrativas
históricas ou jurídicas provenientes do universo mesopotâmico e egípcio. A
comunidade religiosa israelita foi de, um modo direto, influenciada por
pensadores, culturas e regimes que a circundavam. Tal influência foi determinante
na redação dos textos bíblicos. O que pretendemos verificar é que, a partir de
9
“A Mishná cita, relativamente, poucos versículos bíblicos, e estes em partes foram acrescentados
posteriormente. Inclusive uma prova do tipo bíblico (“como está escrito”) é rara. Em geral, a
Mishná dá a impressão de um cuidado consciente em manter-se independente da Bíblia. Porém
uma consideração mais atenta de alguns tratados deixa ver uma distinta relação com a Bíblia”.
STRACK, H. L., e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y
midrásica,Valencia, Instituición S. Jerónimo para la Investigación Bíbica, 1998, p. 192.
10
O que outrora causou estranheza e mal-estar no seio da Igreja Católica é, hoje, visto com bons
olhos. Recupera-se o sentido original do sensus bíblico no interior da comunidade de fé. Não é em
vão que o Concílio Vaticano II foi, não um ponto de chegada, mas uma legítima base de
lançamento para a ciência bíblica. Presenciamos nos últimos anos não uma revolução, mas uma
volta às origens no estudo das Sagradas Escrituras. Cf. DV. n. 6.8.
28
normas jurídicas de relatos históricos e de convivência social, há séculos em voga
no Oriente antigo, e expostas entre grandes impérios e inúmeras culturas que se
sobrepuseram a Israel, é inconcebível não perceber a herança herdada destas
experiências, mesmo aquelas de aparência contraditória como o imposto exílio
babilônico, nos relatos bíblicos. De posse de um conjunto de textos considerados
como ˝vontade divina, palavra inspirada pelo Criador˝, buscamos, na fase
conclusiva, perceber como os sábios judeus, do final do primeiro século, leram
tais normas jurídicas em defesa dos pobres.
As leis em defesa dos fracos, dos menos favorecidos, das vítimas do
processo escravagista foram colocadas em prática ou foram manuseadas como
mero discurso ideológico? As escolhas feitas pelas escolas de Hillel e Shammai
são exemplares para compreender o grau da interpretação e praticidade dada à
Escritura. Julgamos tal período essencial para compreender, não somente o
judaísmo na época tanaítica, como também o cristianismo do primeiro século.
Ciente do risco de ampliar demasiadamente o campo de pesquisa, não me
debruçarei sobre o cristianismo do século I e II, porém, delinear o movimento dos
sábios judeus deste período será uma relevante ajuda à ciência teológica,
sobretudo, considerando que este é um dos temas inquietantes e desafiadores na
exegese bíblica contemporânea. Afinal, a comunidade judaico-cristã, ao redor da
pessoa de Jesus Cristo e a sua primeira geração de discípulos, inquieta, interessa e
incomoda gerações de pesquisadores, que demonstram como a literatura bíblica
foi construída paulatinamente ao longo de sua história.
Para os leitores creio necessária e inovadora abordagem inter-cultural e, ao
mesmo tempo histórica, a fim de ajudá-los na compreensão, quer da história da
comunidade, quer na formação do que hoje chamamos tranquilamente de Cânon.
Coube a uma determinada comunidade religiosa encontrar soluções frente às
vicissitudes históricas, nas quais o caminhar, nas ordens do Criador, foi sempre
uma máxima, garantindo coesão e identidade à comunidade religiosa de Israel.
Consideram-se, de modo fundamental, os inúmeros esforços realizados, desde a
publicação do documento Nostra Aetate11, no diálogo entre a teologia e exegese
cristã e a tradição judaica.
11
Após 40 anos da declaração Nostra Aetate há muito que se fazer para que desejos, muitos deles,
suspirados nos bastidores ou penumbras da sociedade, nãos destruam o caminho percorrido.
29
A tese se desenvolve segundo a seguinte estrutura, exposta em duas partes,
que se desdobram em mais subdivisões:
Introdução
1- O estado atual da pesquisa, considerando a trilogia social
2- Apresentação da perícopes do Dt relacionadas com a trilogia
3- Percepção da trilogia nos textos da Mishná
4- Relação entre os textos do Dt e sua ressonância na Mishná
5- Conclusão
30
2
Sinalizando os rumos da pesquisa
A
1
análise
da
“Sozialtrias”
–
tríade
social1
– formada pelo ‫“ גֵּר‬estrangeiro”, ‫“ י ָתוֹם‬órfão” e ‫” אַ ְל ָמנָה‬viúva”, procura realçar,
de sobremaneira, os aspectos econômico-sociais, evidenciando o grau de
importância exercido por esses grupos humanos, profundamente atrelados ao
modo de produção agro-pastoril, predominante nas sociedades antigas. Considerase grupos de ‫“ ִמשְׁ ָפּ ִטים‬leis” ou “normas” bíblicas2 como sendo parte de um
arcabouço jurídico que procura soluções e garantias aos grupos sociais em
processo de pauperismo ou morte iminente.
As pesquisas inserem essa tríade num contexto eminentemente social3.
Grupos sociais desempenhando, se não um papel relevante na esfera do controle
ou determinações do poder, uma reivindicação de seus direitos essenciais, como
trabalho, alimentação, justiça, terra e liberdade. São compreendidos como um
grupo sociológico com papéis bem definidos nas diferentes épocas e sociedades
bíblicas. No desejo de compreender as abordagens de nossos autores, num
primeiro momento, evidenciamos a importância dos grupos sociais para, em
seguida, identificar tais grupos e suas características.
Em meio ao “redemoinho da derrocada social”4, responsável pelas
contradições sociais existentes em Israel e ecoando em Judá, presencia-se a
1
O termo é cunhado por Braulik em seu comentário ao livro do Deuteronômio. Cf. BRAULIK, G.,
Deuteronomium II, 16,18-34,12, Echter, Verlag, 1980, p. 184.
2
Cf. Dt 16,19; Ex 23,6.9.
3
Nossos autores abordam tal tríade num conjunto de outras preocupações com o andamento da
sociedade ou grupo social. LEVINSON, B. M., The Reconceptualization of Kingship in
Deuteronomy and the Deuteronomistic History’s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p.
515. GLASS, Z. G., Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s economy. In: JSOT,
91, 2000, p. 27-39. CARRIÈRE, J. M., Le cadre ou se forme la décision politique. Lecture de
Deutéronome 16,18-18,22. In: NRT, n. 121, 1999, p. 529-542.
4
Um dos termos utilizados por Crüsemann na descrição do processo de pauperização iniciado o
ano 722, e que se agrava no decorrer dos dois séculos seguintes. Cf. CRÜSEMANN. F., A Torá:
Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 323.
31
atuação de tais grupos ou categorias sociais agindo numa objetividade voltada para
a superação da violação da ‫" ְצדָ ָקה‬justiça". Uma análise de certas normas jurídicas
é capaz de perceber e expôr o alto grau de violência ou violação dos direitos
impostos por grupos ligados ao controle político-econômico da sociedade, contra
setores reconhecidos em nossa pesquisa como marginalizados, como demonstra
Jean-Marie Carrière5.
As leis acenam para a superação da violência. O “igualitarismo” jamais
deixou de ser almejado, quando consideramos as leis em defesa dos
marginalizados no conjunto do livro do Deuteronômio. Pelo contrário, deixam
transparecer o forte sistema de violência praticado contra esses setores sociais
ligados ao trabalho manual, seja esse na cidade ou no campo, dando a entender
que os interesses ideológicos, grafados em Leis, caminham na direção da
suplantação do regime da violência.
‫ אַ ְל ָמנָה‬,‫ י ָתוֹם‬,‫“ ֵגּר‬estrangeiro, órfão e viúva” são compreendidos como um
grupo merecedor das atenções nos afazeres da realeza6. É função do rei governar
tendo como princípio norteador a prática da justiça a esses grupos, bem como
facilitar e dar relativa garantia de que seus direitos serão praticados.
Com base na ideologia deuteronomista, Levinson acena sete diferentes
aspectos na função do rei em gerenciar a justiça. 1) No mundo antigo, a figura do
rei é compreendida como o filho adotivo, por meio do qual se realiza a
perpetuação de uma nova geração. Davi, visto como ‫( ְבּכוֺר ֶא ְתּנֵהוּ‬meu
primogênito), nos Salmos da Realeza (Sl 89,28; 2,7), é conclamado a administrar
a prática da justiça. 2) O estreitamento entre a divindade e a realeza era comum no
Antigo Oriente. No Código de Hammurabi, o rei apresentado possui uma filiação
divina. É seu supremo herdeiro. “Eu sou Hammurabi, o rei da justiça, a quem
Šamaš deu a verdade” (XLVII, 90). Sob o título de herdeiro divino os reis de
Israel também compartilharão desta nobre missão de administrar a justiça e o
direito (Sl 72, 2). Deus promete dar a Salomão o que procura, no desejo de que
este faça reluzir a prática da justiça e direito ao longo de seus dias (1Rs 3,11-13.
5
Estamos diante de tratados extremamente políticos. Tais leis acenando, ora para a defesa do
pobre, órfão e viúva, ora denunciando algum grau de violação dos direitos. Pode-se perceber que
algo maior está em jogo. Alguém teme ou não quer perder privilégios. Tais leis, quando praticadas,
podem redefinir os rumos da sociedade. Se não fosse assim, tais apelos – gritos – poderiam, muito
bem, se perder ou ser totalmente ignorados ou jamais registrados nos textos da Escritura. Cf.
CARRIÈRE, J. M., Le cadre où se forme la décision politique, op. cit., pp. 529-542.
6
BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18 – 34,12, 1980, p. 184.
32
28). 3) A positiva obrigação de garantir aos marginalizados o direito e a justiça.
Assegurar aos pobres a proteção necessária. 4) A remissão das dívidas foi usada
como meio de reconhecer ou não a sabedoria divina presente nos atos do monarca.
O binômio ֺ‫“ ִמשְׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ ה ְל ָכל ַעמּו‬direito e justiça a todo o seu povo” (2Sm 8,15; Jr
22,3) reproduz um termo técnico utilizado na qualificação de um rei. 5) Instância
responsável por fazer “dilatar em todo o reino o direito”. 6) A relação entre rei e
templo ecoa nos mais diferentes reinados. Construir um templo, com a finalidade
de abrigar as leis divinas, será uma das medidas do recém empossado rei Davi
(2Sm 7). Seja em Israel, ou em Judá, rei e templo se identificam (2Rs 18, 1-8; 2Rs
22-23). 7) O rei está diretamente implicado com seu poderio militar, a exemplo do
sucedido ao rei Hammurabi. (II, 32-36). A tarefa de passar em revista e animar
seu exército para o combate, foi um dos atributos da realeza (1Sm 10,27; 2Sm 11,
1-2)7.
No livro do Deuteronômio, os textos onde encontramos uma referência
explícita ao conjunto social formado pelo estrangeiro, órfão e viúva (10,12-22;
14,28-29; 16,9-12; 24,17-21; 26,12-15; 27,11-26) enaltecem, de modo
incondicional, a pessoa, conforme G. Braulik descreve em seu comentário ao
Deuteronômio8. A primazia da pessoa sobre qualquer tipo de bem material visa
impedir certo processo de exclusão de modo mais abrupto. Em outras palavras, o
não pagamento de um empréstimo não pode ser ocasião de violação à casa ou ao
patrimônio do devedor (Dt 24,10). O salário do pobre trabalhador não pode ser
retido (Dt 24, 14). Fica intransferível a dívida dos pais para os filhos (Dt 24,16).
Estamos diante de um claro exemplo e funcionalidade do termo técnico ‫ ְצדָ ָקה‬,
“justiça”9.
Estes grupos são apresentados nos textos do Deuteronômio de modo bem
definido. Aparecem sempre ligados ou relacionados às suas realidades materiais.
Surgem como aqueles que não tem, ou se viram diante da experiência da
7
Cf. LEVINSON, B. M., The reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the
Duteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, 2001, pp. 511-534.
8
Cf. BRAULIK, G. Deuteronomium II, 16,18-34,12, 1980, p. 184.
9
A tradução empreendida ao termo ‫ ְצדָ קָ ה‬, “justiça, retidão, andar retamente” considera as
definições oferecidas por alguns estudiosos. “A profecia na época babilônica, frente ao
desaparecimento da ‫ ְצדָ קָ ה‬em Israel, no horizonte histórico resulta num pecado maior do que os
praticados anteriormente no reino do norte de Israel”. Cf. KOCH, K., ‫ ְצדָ קָ ה‬. In: JENNI, E. e
WESTERMANN, C. (Eds.) Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, v. II, Madrid,
Ediciones Cristiandad, 1985, p. 667; ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, São Paulo, Paulus, 1997,
p. 556; BROWN, F., Hebrew and English Lexicon, Massachusetts, USA, 1996, p. 842.
33
expropriação, como resultado de relações injustas, impostas por um regime de
violação de direitos. A pobreza ou a condição de pobre não é algo natural, mas
entendida como resultado da situação de violência e da injustiça10.
O grupo dos ‫ ֶא ְביוֹנִים‬, “pobres”11 é encontrado em oposição aos grupos
formados por pessoas ricas, perversas ou opressoras. Trata-se de um termo
utilizado com a finalidade de evidenciar a prática de uma injustiça, de um delito,
cometido por outros setores ou grupos da sociedade que gozam de um relativo
prestígio ou almejam uma ascensão ou manutenção de um privilégio social12.
Uma segunda característica exercida pelo grupo dos pobres refere-se ao
dinamismo atuante no interior da história. Este aspecto foi bem elucidado por
Jean-Marie Carrière ao comentar as leis expressas no livro do Deuteronômio. Para
ele, o poder está em jogo nas entremeadas leis expostas no livro. Estamos diante
de tratados, de temas essencialmente políticos. O poder é o tema central e crucial
posto à prova:
“Deuteronômio 12-26 é um código de leis onde o estatuto é geralmente
reconhecido como sendo aquele de uma constituição política no senso moderno do
termo. Sua característica específica provém sobretudo da parte central do código,
que trata das instituições. O código se abre sobre uma lei dita de centralização,
oferecendo movimento à sua primeira parte e termina por um encontro
aparentemente discordante das leis que encobrem as principais prescrições do
código da Aliança segundo um princípio antropológico e político”13.
A esfera primordial da inserção dos pobres na história pode ser encontrada
na experiência do Êxodo. A teologia do Antigo Testamento está firmada nesta
10
O projeto de que não deve haver pobres em Israel é estampado logo nos primeiros capítulos do
livro do Deuteronômio. Iahweh entrega a Israel uma “terra boa” (Dt 8,7) e dotada de inúmeros
recursos (Dt 8, 7-10), para que não venham a existir pobres no meio de Israel. ‫אֶ ֶפס ִכּי לֺא י ִ ְהי ֶה ְבָּך‬
‫ " אֶ ְביוֺן ִכּי ָב ֵרְך י ְ ָב ֶר ְכָך י ְה ָוה ָבּאָ ֶרץ‬Eis que não haverá pobre em teu meio, pois YHWH te abençoará na
terra” (Dt 15, 4).
11
Conforme tradução oferecida por Schökel, usaremos a terminologia pobre como tradução do
termo hebraico ‫“ אביון‬pobre” entre tantos outros termos sugeridos. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L.,
DBH-P, p. 23. Vale ressaltar que sobre esse verbete ‫ אביון‬ocorre inúmeras impresições. Sobre isso
oportunas as observações elencadas por Botterweck. O grupos dos ‫ אֶ ְביוֺנִים‬surgem em paralelo ao
grupo formado pela trilogia formada por ‫ י ָתוֺם‬,‫ אַ ְלמָ נָה‬,‫ ֵגּר‬sobretudo, junto à literatura sapiencial. Cf.
Botterweck. In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Orgs.) Diccionario Teologico del
Antiguo Testamento, V. I, Madrid, Cristiandad, 1978, p. 43.
12
Uma das premissas elencadas por Glass é a de que parte do livro do Dt “teria emergido no norte
de Israel durante o oitavo século a.C., onde os privilégios econômicos serviram como pano de
fundo para o desenvolvimento de parte do livro”. Estamos diante de uma agressiva transformação
das relações de trabalhos no campo, responsável pelo aumento da riqueza nas mãos de pequenos
grupos familiares, em detrimento da pauperização e desagregação familiar. Cf. GLASS, Z. G.,
Land, Slave Labor and Law: Engaging Ancient Israel’s Economy. In: JSOT, n. 91, 2000, p. 27-39.
Argumento defendido por outros inúmeros estudiosos, conforme nota 17.
13
Cf. CARRIÈRE, J. M., Le Cadre ou se Forme la Décision Politique, op. cit., p. 532.
34
experiência, independente de qual seja a corrente ou hermenêutica exegética que a
analise14.
2.1.
O estrangeiro, o órfão e a viúva na categoria dos pobres
Nas análises das “leis”, são inevitáveis certas comparações. Por exemplo:
uma vez que os pobres estão sempre em oposição aos grupos ligados aos
proprietários de terras e de pastagens ou a aristocracia ligada aos templos
religiosos, pode-se levantar a questão procurando responder quais são as
características
relevantes
desses
grupos
sociais
merecedores
de
certa
jurisprudência constituídos pelo ‫“ ֵגּר‬estrangeiro”, ‫“ י ָתוֹם‬orfão” e ‫“ אַ ְלמָ נָה‬viúva”.
Fala-se desses grupos sociais num sentido sempre restrito, definido e
inserido numa determinada situação de demanda, de pessoas que se vêem
envolvidas numa esfera de violação de seus direitos e, ao mesmo tempo, têm
consciência de que, sem a proteção legal, se encontram à mercê da própria sorte,
isto é, correm o risco de morte. Ao referir-se aos grupos socialmente
empobrecidos - constituídos por camponeses, trabalhadores em obras públicas e
famílias de estrangeiros - nota-se que tais grupos experimentam um rápido
processo de empobrecimento15.
Em outras palavras, vê-se sempre determinados grupos de homens e
mulheres que recorrem à prática da justiça na ‫שַׁ עַר‬, “porta”, como único recurso
para garantir sua subsistência ou seus direitos. Somente as pessoas livres tinham o
direito e garantia à jurisprudência na ‫שׁעַר‬
ַ “porta”. A ênfase dada ao termo ‘à
14
Ex 6, 6-7. Esta experiência é posteriormente referendada no livro do Dt como um verdadeiro
paradigma histórico e teológico, soando como uma espécie de refrão no texto (15,15; 16,12;
24,18.22).
15
São vários os sinônimos utilizados na tradução do termo técnico ‫“ אֶ ְבי ֺון‬pobre”. Por detrás da
palavra ‫ ָענִי‬comumente empregada para definir uma pessoa portadora de deficiência física ou
algum tipo de distúrbio psíquico (Dt 15,11; 24,12; 24,15), identificamos uma pessoa despossuída
de qualquer tipo de bem material e, por isso, se vê obrigada a trabalhar para os outros. O ‫ ָענִי‬vive
do seu dia após dia, e que socialmente é indefeso e sujeito à opressão. Está, na maioria das vezes,
em sintonia com o conceito de ‫אֶ ְבי ֺון‬. Não é por menos que a expressão ‫ ָענִי ְואֶ ְבי ֺון‬surge por 15 vezes
no AT. Cf. Martin-Achard, R. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico
manual del Antigo Testamento, V. II, p. 439. Um outro termo, comumente usado para definir
algum tipo de pessoa em desvantagem social é o ‫“ דַּ ל‬dal”. Trata-se de alguém que passa por
necessidade material ou carente de um certo poder social (Pr 10,15. 21,13. 22,9; Am 2,7; Zc 3,12),
em contraste com o rico, o grande, o opressor. Na categoria social dos ‫אֶ ְביוֺנִים‬, “pobres”,
consideram-se outros grupos sociais. “Ao dar primazia ao termo
‫“ אֶ ְבי ֺון‬pobre”, o próprio
visionário opta pelo conceito que também abarca os demais: ‘fracos/magros’, ‘oprimidos’, ‘justos’,
‘escravos’, ‘lavradores’”. Cf. SCHWANTES, M., A Terra não pode Suportar suas Palavras, São
Paulo, Paulinas, 2004, p. 89-95.
35
Porta’ destaca a importância do lugar nas transações econômicas, nas publicações
dos oráculos proféticos e nas deliberações das sentenças sociais, definidas pelos
anciãos da cidade. Caberá ao rei administrar com proeza a justiça (1Sm 8,5; 2Sm
8,15; 2Sm 15,1-6). Os pobres, não raramente, buscam a proteção e suporte legal
de suas reivindicações recorrendo ao monarca16. Os grupos menos favorecidos
não tinham nenhuma restrição em apelar ao monarca para ver garantidos seus
direitos e assim meios básicos para sua existência.
2.1.1.
O ‫“ ֵגּר‬estrangeiro”
A defesa do estrangeiro deve ter sua origem no país do Norte. O século
VIII pode servir de fonte para o fornecimento de inúmeros elementos históricos na
compreensão do surgimento dos grupos sociais desfavorecidos e, mais tarde,
merecedores da atenção das normas humanitárias17. Leis expressas no CA, em
defesa do ‫ ֵגּר‬, “estrangeiro”18, são retomadas pelos escribas do Deuteronômio,
16
Cf. LEVINSON, B. M. The Reconceptualization of Kingship in Deuteronomy and the
Deuteronomistic History`s Transformation of Torah. In: VT, n. 51, 4, p. 519.
17
Após a queda do Reino do Norte houve um autêntico processo de migração rumo às cidades do
sul, sobretudo à capital Jerusalém, após a queda ocorrida em 722. Este inchaço urbano, resultado
das políticas econômicas e sociais no século VIII, iniciadas no governo de Jeroboão II (787-746) e,
posteriormente, implementadas por seus filhos, encontra pleno consenso entre inúmeras análises.
CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis,
Vozes, 2002, p. 360: “A política assíria deve ter contribuído para a dissolução das formas e dos
costumes sociais tradicionais. O que contribuiu mais, talvez, tenham sido as multidões de
refugiados, depois da queda do Reino do Norte”; NAKANOSE, S., Para entender o livro do
Deuteronômio. Uma lei a favor da vida?. In: RIBLA, 23, p. 180: “Cresce a classe urbana e rica às
custas do empobrecimento de grande parte da população, sobretudo a do campo, maior vítima da
injustiça e exploração”; BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 279:
“Sabemos que a pregação de Miquéias teve um efeito direto nas reformas de Ezequias (Jr 26,1619) e há muitos pontos de contatos entre as denúncias e o programa social do livro da lei”;
KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 80: “Uma primeira tentativa de
centralizar o culto na capital é atestada no tempo do rei Ezequias (725-696 a.C.). A política desse
rei visava proteger e defender a população rural diante de uma esperada guerra do rei assírio
Senaquerib (704-681 a.C.). O rei Ezequias forçou a população a um grande êxodo para cidades
fortificadas por muro”. Sabe-se que após a queda da Samaria os limites da cidade de Jerusalém
cresceram de modo desproporcional. A era de isolamento acabou. A cidade cresceu de 5 para 60
hectares. De uma população de 1000 para 15 mil habitantes. Os dados são resultados da resenha da
obra de FINKELSTEIN, I. e SILBERMAN, N. A., The Bible Unearthed: Arqueology’s New
Vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts. New York, The Free Press, 2001,
disponíveis em <http://www.airtonjo.com/resenhas5a.htm>. Acesso em 10 de jun. 2009.
18
Não são poucas as grafias atribuídas à condição de estrangeiro: ‫ מְ גוּ ִרים‬,‫ גֵּרוּת‬,‫ ֵגּר‬. O termo recebe
várias interpretações nas diferentes culturas. Por meio da raízes grm e klbm são encontrados
conceitos idênticos que acentuam a condição de um homem ou mulher que vive tendo amparo,
ajuda daquele que lhe dá estadia, guarita, segurança. No mundo fenício trata-se de alguém que se
encontra na condição de refugiado, hóspede de uma divindade. O termo é bem documentado em
aramaico, identificado na raiz gwr sinalizando o conceito angustiado, temente. No AT,
36
onde encontra uma forte argumentação nas tentativas de justificar o trato social
oferecido a esse grupo social. No código os cuidados são justificados pela mesma
condição em que passou Israel em terras egípcias: ~yIr"cm
. i #r<a,B. ~t,yyIh/ ~yrIgE-yKi(
WNc,x'l.ti al{w> hn<At-al{ rgEw> “Não afligiras o estrangeiro nem o oprimirás, pois vós
mesmo fostes estrangeiros no país do Egito” (Ex 22,20). Tal adendo não é visto
como a única motivação para justificar tais cuidados no CD, onde encontram-se
diferentes matizes.
Não se trata apenas de amparar o estrangeiro somente por ter vivenciado a
mesma condição de estrangeiro no Egito, mas outras diferentes realidades são
apresentadas na defesa do estrangeiro próprias do livro Deuteronômio. Este grupo
social, embora reconhecido como sendo parte dos grupos desfavorecidos, vivendo
no interior da comunidade israelita e merecedor de algum tipo de proteção, sofria
um processo de opressão, tirania ou marginalização, segundo acusam as leis
deuteronômicas.
O estrangeiro faz parte dos grupos socialmente fracos e tradicionalmente
sem bens – terra, animais, herança – e, embora sendo homem livre, está à mercê
da colaboração da comunidade de Israel19. Trata-se de alguém desprovido de
qualquer sistema jurídico que possa defendê-lo, facilitando, assim, a exploração
de seu trabalho e contribuindo para uma situação de extrema pobreza.
Para de Vaux, formavam o grupo dos ‫“ ֵגּ ִרים‬estrangeiros”, pessoas oriundas
de outras comunidades ou países e que, após um certo período de tempo,
passaram a viver e a desfrutar da proteção a eles oferecida20. De Vaux insiste no
ponto de partida está em perceber a fase nômade, isto é, o período de ‫ֵגּר‬
vivenciado pelo patriarca Abraão em Hebron: ~k,_M'[i ykinOa' bv'Atw>-rGE “estrangeiro e
residente no meio de vós, eu sou” (Gn 23,4). Moisés, nos dias vividos em Madiã:
‫ ַותֵּ ֶלד ֵבּן ַויּ ִקְ ָרא ֶאת ־שְׁ מוֹ ֵגּ ְרשׁ ֹם ִכּי אָמַ ר ֵגּר ָהי ִיתִ י ְבּאֶ ֶרץ נ ָ ְכ ִרי ָה‬, “Ela deu à luz um filho, ele
enfatizando o conceito corrente no Dt, como alguém sem pátria, não pertencente à comunidade.
Fala-se que na época da reforma empreendida por Josias (622 a.C) foi um grupo social que
recebeu destaque nas normas sociais. Um grupo que está em contrastes com aqueles que possuem
direitos adquiridos. Cf. Kellerman, D., In: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN, H. (Eds.),
Diccionario Teologico del Antiguo Testamento,V. I., pp. 1000-1012. Muitas vezes é visto como
alguém ou grupo social sem patria e em circunstância social que põem em risco sua integridade
física. Cf. Martin-Achard, R., in: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.), Diccionario Teologico
manual del Antiguo Testamento, V. I, p. 585.
19
O termo gēr refere-se ao estrangeiro, que entre as tribos árabes buscava refúgio e proteção em
uma tribo distinta da sua. O estrangeiro instalado em Israel goza de razoável estabilidade, embora
sem direitos garantidos. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder,
1992, p. 117.
20
Cf. Ibidem, pp. 117-119.
37
chamou de Gersam, pois disse: `Sou um imigrante em terra estrangeira`” (Ex
2,22). Os israelitas viveram longos anos no país do Egito como ‫ֵגּ ִרים‬
“estrangeiros” (Ex 22,20; 23,9; Deuteronômio 10,19; 23,8). Após a posse das
terras de Canaã, os antigos habitantes passaram a ser vistos como estrangeiros (Jz
19,16). Por vezes, o termo ‫ ֵגּר‬equivale ao ‫תּוֹשָׁ ב‬, “hóspede”, conforme a junção
encontrada em Lv 25,23: “A terra não será vendida perpetuamente, pois a terra me
pertence e vós sois para mim estrangeiros e hóspedes”.
Na interpretação de Bennett, o conceito de estrangeiro, em parte,
sintoniza-se com a argumentação apresentada por de Vaux. Porém, a base para a
compreensão não pode apenas considerar o fenômeno migratório ocorrido no
interior de uma sociedade para outra. Nem somente há de se procurar uma
definição do termo com base no grau de parentesco ou algum resquício de
consanguinidade.
A consanguinidade e o local de nascimento podem ser duas outras
características indicadas para definir o ‫“ ֵגּר‬estrangeiro”, no CD, segundo
argumenta Bennett. Embora não seja fácil encontrar uma única marca capaz de
definir o perfil do estrangeiro nas leis, Bennett sublinha outras experiências
vivenciadas por homens ou mulheres que passam a residir no interior das
comunidades israelitas. Somado à experiência da imigração, como destaca de
Vaux, está a ausência por completo de qualquer laço de parentesco ou vínculo
familiar, imposta ao recém-chegado em Israel. Ele não possui bens capazes que
lhe garantam a sua própria subsistência. Um outro fator tão importante como o de
laços de parentescos, é a diferença cultural-religiosa sentida pelo homem ou
mulher que venha residir nos fronteiras de Israel. Queira ou não, o homem ou
mulher que viesse a residir no interior das comunidades de Israel, se deparou com
práticas culturais e religiosas completamente diversas das vivenciadas em seu
país de origem. Defender a idéia de que o termo estrangeiro utilizado no livro do
Deuteronômio refere-se a um sujeito, seja ele homem ou mulher, que tenha saído
do meio de uma determinada sociedade para se estabelecer em terra de Israel,
pode, sim, ajudar em partes na compreensão do estrangeiro no CD21.
É possível compreender o estrangeiro como alguém que migrou de um
território para alguma área israelita, mas que levou consigo hábitos culturais e
21
Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows,
strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 45.
38
práticas religiosas que o distinguem quando em contato com grupos atrelados à
tradição judaica.
Bennett recorre a dois textos do Deuteronômio. O primeiro afirma22:
“Não podereis comer de nenhum animal que tenha morrido por si. Tu o darás ao
forasteiro que vive em tua cidade para que ele o coma, ou vendê-lo-ás a um
estrangeiro. Porque tu és um povo consagrado a Iahweh teu Deus. Não cozerás
um cabrito no leite de sua mãe” (Dt 14,21).
Nesta citação realça-se a presença de três significativos termos: ‫ֵגּר‬
“estrangeiro”, ‫נ ֵ ָכר‬, “forasteiro”,23 e o conceito diferenciador ^yh,l{a/ hw"hyl; hT'a;
vAdq' ~[; yKi “Porque tu és um povo consagrado para Iahweh teu Deus”. Nota-se
que, com base na égide de ser um “povo consagrado”, um “povo santo”, os
israelitas encontram uma justificativa diante de um gesto de comer carne de
animais mortos, prática usual levada adiante pelos estrangeiros e forasteiros. O
texto é elucidativo, justamente por facilitar e, até certo ponto realçar a idéia de que
o etnocentrismo é um fenômeno diferenciador entre os subgrupos sociais no CD, e
pode ser utilizado na definição de quem é estrangeiro, seja no interior do território
israelita ou fora dele.
Um segundo texto realça, não somente o aspecto étnico, bem como um
relativo grau de conivência dos “estrangeiros” na vida religiosa israelita: “Não
abomines o edomita, pois ele é teu irmão. Não abomines o egípcio, porque foste
um estrangeiro em sua terra” (Dt 23,8).
O versículo contrapõe duas realidades distintas vivenciadas pela
comunidade israelita: sua condição de estrangeiro no Egito e o tratamento
dispensado ao estrangeiro, quando de posse da terra. Na primeira ressalva,
notamos que, durante os anos vividos na qualidade de ‫“ גֵּר‬estrangeiro”, Israel
preservou sua identidade em terras egípcias, não sendo obrigado a submeter-se ao
processo de assimilação, isto é, à perda de sua identidade. O mesmo tratamento,
agora, é dispensado ao ‫ ֵגּר‬, “estrangeiro” que passa a viver nos limites da
comunidade israelita.
Com base nestes dois textos, pode-se evidenciar que a diferença étnica foi
também um aspecto preponderante na definição, não somente dos conceito de ‫ ֵגּר‬,
“estrangeiro”, como na aplicação das normas legais existentes nos textos do CD.
22
Cf. Ibidem, p.38-48.
As palavras referentes ao estrangeiro, em muitos dicionários, são apresentadas como sinônimos.
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 436.
23
39
O processo de assimilação ou não foi preponderante na migração ocorrida nas
sociedades do Antigo Oriente24. As diferenças culturais e religiosas somaram-se
ao fator da imigração, na definição do estrangeiro, nas comunidades bíblicas, quer
antes do final da monarquia - antes do exílio de 587 - e, de modo mais plausível,
na época pós-exílica, como testemunham as narrações proféticas e históricas. Há
de se destacar as reformas religiosas empreendidas por Esdras e Neemias que não
só redesenharam novos paradigmas sociais como estabeleceram o critério literário
da genealogia na tentativa de justificar, a quém de direito, sua pertença à
comunidade de Israel.
2.1.2.
A pessoa do ‫" י ָתוֹם‬órfão”.
O termo ‫“ י ָתוֹם‬órfãoʼʼ,ocorre 41 vezes no AT. Segundo Bennett, ele está
diluído, ao longo da BHS, e não facilita uma exata compreensão e definição do
conceito de orfandade, no interior das comunidades israelitas. Tem-se a impressão
de que o termo foi incluído no rol dos ‫“ ֲענ ִי ִים‬pobres”, no processo de elaboração
da literatura deuteronomista25.
No livro do Deuteronômio, o termo é apresentado 12 vezes, como sendo
um subgrupo social a quem se deve amparar; um grupo, entre tantos outros, a
quem se deve fazer vigorar seus direitos essenciais: ~Aty" jP;vm
. i hf,[o “faz direito ao
órfão” (10,18; 24,17; 27,19). É citado como um grupo merecedor da partilha do
. i “Cada três anos separarás a
dizimo trienal: rf;[.m;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceqm
décima parte da colheita” (14,28; 26,12.13). Gozar da convivência social, nos
momentos das grandes festas, era um direito garantido aos órfãos: ^yh,l{a/ hw"hy>
ynEp.li T'x.m;f'w> “e te alegrarás diante do YHWH teu Deus” (16,11.14)26. Citado entre
os demais subgrupos, a quem é garantido o direito de respigar os frutos – trigo,
uva, azeitona – durante a ocasião das colheitas: ^d<f'b. ^r>yciq. rcoq.ti yKi “Quando
24
Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows,
strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 48.
25
Cf. Ibidem, p. 53.
26
Sobre a transliteração do nome divino, expresso no uso do tetragrama, evitar-se-a sua
pronunciação. O tetragrama será mantido somente quando se trata de uma citação presente na
própria escritura. Opta-se pelos termos: Senhor, Adonai, Ele, o Todo Poderoso, Deus. Essa
sensibilidade se faz necessária diante das conclusões do Sínodo sobre a Palavra. Conforme
publicação da Sagrada Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. “Para
não dizer “Yavhe” : o sínodo adota esta disposição. Cf. <http://www.zenit.org/article-19440?l>.
Acesso em 21 de fev. de 2009.
40
estiveres fazendo a colheita no teu campo” (24,19.20.21). Nota-se a preocupação
humanitária com esses grupos sociais, mas, com base nos textos do livro do
Deuteronômio, não encontramos elementos capazes de estabelecer um perfil de
quem seria, de fato, considerado órfão. O grupo social órfão é sempre citado como
alguém merecedor de atenção e que não deve ver seu direito violado, mas não se
vê nenhuma característica capaz de desenhar situações do que venha ser um órfão.
Por outro lado, os textos sapienciais oferecem esses elementos, possibilitando
uma definição, compreensão e manuseio do termo.
Em Lm 5,3 lemos: “Somos órfãos (‫)י ְתוֹמִ ים‬, já não temos pai (‫ ;)אָב‬nossos
mães (‫ ) ִאמּ ֹתֵ ינוּ‬são como viúva (‫” ) ְכּאַ ְל ָמנוֹת‬.
O termo ‫“ י ְתוֹמִ ים‬órfãos”, surge bem definido no texto. São apresentados
como aqueles – homens ou mulheres – que não têm mais a proteção ou segurança
do ‫אָב‬, “pai”, em paralelo com a condição de ‫“ אַ ְל ָמנוֹת‬viúvas”. O uso da partícula
comparativa ‫“ ְכּ‬como, semelhante”, nos dá uma clara definição do termo. O órfão
é visto como um jovem que não conta mais com a presença e proteção paterna.
“Pelo estudo da palavra yatom como aparece em quarenta e dois textos do Antigo
Testamento, como por exemplo em: Ex 22,21; Dt 24, 19; Is 10,2; Jr 5,28; Zc 7,10;
Lm 5,3; Jó 24,2.3; 29,12; Sl, 82,3, pode-se deduzir que órfão/órfã era uma pessoa
solitária, sem pai ou mãe, portanto, sem protetor, desamparado, sem segurança. O
yatom, bem como a viúva, é o lado frágil e vulnerável da sociedade”27.
Um segundo texto da literatura sapiencial, ao realçar a pessoa do órfão,
pode ser encontrado em Jó 24,928. Nele encontramos a seguinte definição: “ O
órfão, “‫ ”י ָתוֹם‬é arrancado do seio materno e a criança pobre, “‫” ָענִי‬, é penhorada”.
Na opinião de Grenzer e Ternay, o texto realça o grau máximo de violência
imposta aos grupos mais fracos no interior da sociedade israelita29. Trata-se de
uma condição social insuportável empreendida por grupos dominantes contra o
órfão, isto é, quanto à criança separada, à força, de sua mãe, roubada para servir
de escrava ou para ser vendida a terceiros.
A mesma definição é compreendida por Ternay que, ao comentar Jó 24,9,
realça a “dura condição da classe dos pobres”. Neste capítulo, vemos um
27
Cf. SBRANA, L. Y., “Ensaio sobre a palavra “Órfão”. In: RdCT, 22, Jan/Mar, 1998, pp.77-92.
Significativa a tradução e comentário ao versículo feita por Grenzer: “Roubam, do peito
materno, o órfão, e penhoram a criancinha do oprimido”. “Deve-se notar que os dois delitos
mencionados no v. 9 levam ao auge da descrição da violência. Trata-se, agora, do roubo e da
penhora de seres humanos. Nos dois casos, o objetivo é, fundamentalmente, a exploração da força
do trabalho e de pessoas dependentes”. Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade. Um
estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas, 2005, p. 34-48.
29
Cf. Ibidem, p. 47.
28
41
verdadeiro “catálogo de violência” imposto aos grupos menos favorecidos. Uma
clara violação aos códigos legais de Israel30. Podemos considerar o órfão como
aquele sobre o qual pesa uma espécie de roteiro, um sistema de violência
arbitrária31. A perspectiva da vigência de um sistema opressor pode ser
comprovada em outra passagem de Jó: 29,12: “Porque eu livrava o pobre, “‫” ָענ ִי‬,
que pedia socorro, E o órfão, “‫”י ָתוֹם‬, que não tinha auxílio”.
Uma vez associado às demais pessoas protegidas pela jurisprudência,
como o estrangeiro, o levita e a viúva, o órfão é apresentado envolto numa
realidade de total abandono: ‫ ְוֹלא ע ֹז ֵר לוֹ‬, “e não o socorre”. A força poética
imposta na narrativa realça o aparato da violência. Não são em vão os inúmeros
apelos encontrados na “Tora do Deuteronômio”32, em favor desses grupos. Em
outras palavras, as descrições da violação contra o órfão, bem feitas nos textos
sapienciais, recebem total destaque nas leis deuteronômicas, onde ocorre um
constante apelo em favor do gerenciamento da justiça, aos grupos socialmente
necessitados.
Duas outras distintas situações são encontradas no livro dos Salmos. O Sl
68,5 realça a falta da presença paterna na compreensão na definição de orfandade:
“Pai dos órfãos (‫ )י ְתוֹ ִמים‬e justiceiro das viúvas (‫)אַ ְל ָמנוֹת‬. Assim é Deus em sua
morada santa”. O texto mostra uma disponibilidade em cuidar das pessoas
desvalidas e revela dois aspectos para qualificar o grau de orfandade. Num
primeiro plano, é notória a ausência paterna, o que evidencia a orfandade. Mas,
podemos supor, também, a incapacidade de dar segurança às crianças. Nota-se um
total silêncio em torno da figura materna.
O Sl 109,8-9 ecoa contra o caluniador.
Um, entre tantos outros
infortúnios, que pesam sobre ele é a possibilidade da orfandade:
“Que seus dias fiquem reduzidos
e outro tome o seu encargo.
Que seus filhos fiquem órfãos (‫)י ְתוֹמִ ים‬
e sua mulher se torne viúva (‫)אַ ְל ָמנָה‬
30
TERNAY, de H., O livro de Jó. Da Provação à Conversão, um longo Processo. Rio de Janeiro,
Vozes, 2001. pp. 164-165.
31
Cf. GRENZER, M., Análise Poética da sociedade: um estudo de Jó 24, São Paulo, Paulinas,
2005, p. 73.
32
Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e História Social da Lei do Antigo Testamento,
Petrópolis, Vozes, 2002, p. 352.
42
Verifica-se, mais uma vez, que a realidade utilizada para definir se alguém
é ou não órfão é a ausência paterna, sem nenhuma referência à presença ou
ausência materna, mostrando, deste modo, que nos textos da BHS a orfandade é
definida pela ausência da proteção e segurança paternas.
2.1.3.
A pessoa da ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva”
São semelhantes as definições do termo ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva”33 oferecidas por de
Vaux, Leon Epstein, Pedro Kramer, Paula S. Hiebert e Hennie J. Marsman. Para
esse grupo de estudiosos, trata-se da mulher que passou a viver sem a proteção do
marido, após a sua morte, tenha filhos ou não34, e se vê diante de um desafio de
procurar a proteção familiar sob as condições patriarcais35. A perda do marido
colocava-a numa situação de debilidade. A viuvez impunha, sobre a mulher, no
Antigo Israel, um período de falta de proteção e segurança, quer em seu aspecto
físico, quer diante da possibilidade da perda de suas posses patrimoniais.
Trata-se de um subgrupo, comum também na sociedade egípcia e
mesopotâmica36. Nesses universos, segundo Epstein, as viúvas gozavam de um
status social mais elevado, quando comparado a Israel37. A viuvez de uma israelita
33
A tradução permanece um pouco incerta embora o termo seja corrente no Oriente Antigo.
Segundo Hiebert encontramos no Acádico o termo almattu, no Ugarítico ̓lmnt, no Fenício ̓lmt, no
Aramaico ̓armaltā ̓ e no Árabe ̓armalat. Cf. HIEBERT, P. S. Whence Shall Help Come to me?:
The Biblical Widow. In: PEGGY, L. D., (ed.), Gender and Difference in Ancient Israel, p. 127. Na
definição encontrada em Hoffner o termo é demasiadamente corrente em todos os centros culturais
da antiguidade. Em documentos hititas, faraônicos, mesopotâmicos e, no universo bíblico não
poderia ser diferente, a pessoa ou grupo de viúvas aparece revestida de plenos direitos que lhe
favorecem subsistência e garantia de vida. Cf. Hoffner, in: BOTTERWECK, G. J. e RINGGREN,
H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 305-309.
34
2Sm 14,5-7: ‫ וּ ְלשִׁ ְפ ָחתְ ָך שְׁ נֵי ָבנִים‬.‫“ אִ שָׁ ה אַ ְלמָ נָה אָנִי ַויָּמָ ת אִ ישִׁ י‬Eu sou uma mulher viúva. Meu marido
morreu. E para tua serva há dois filhos”.
35
Com base em inúmeras citações, pode-se estabelecer uma definição ao termo ‫“ אלמנה‬viúva”. Os
autores identificam a viúva como sendo uma mulher que passou a viver sem qualquer tutela ou
aparato social familiar, antes garantida em companhia do marido (Nm 30,10; Rt 1,9; Gn 38,11;
2Sm 14,2; Jd 8,4). Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992,
p. 75-76; EPSZTEIN, L., A justiça social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo,
Paulinas, 1990, p. 137-138; MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and
Religious Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 291-320;
KRAMER, P., Origem e legislação do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem
empobrecidos. São Paulo, Paulinas, 2006, p.174-175.
36
“Na Mesopotâmia, o status da mulher casada torna-se outro após a morte de seu marido”.
EPSZTEIN, L., op.cit, p. 291.
37
“Em Babilônia, ela tinha direito a determinada parte da herança do marido. A viúva ou a mulher
repudiada podia até, em certos casos, beneficiar-se com parte da herança igual à do filho e
reencontrar a plena disposição de seus bens dotais”. Cf. Ibidem, p. 139. Na concepção de Bouzon,
vê-se com clareza que a lei hammurábica é clara em defender o sistema de propriedade ou bens da
43
não lhe assegurava quase nenhum direito. Tal contraste é proveniente da própria
situação da mulher, compreendida como uma propriedade a mais do marido em
Israel38. Ela é contada entre os pertences do marido e classificada, em meio aos
animais, escravos, arados e escravas na condição de propriedade do varão (Ex
20,17). Ao marido, cabe o direito amplo de repudiá-la. Direito, este, em hipótese
alguma facultado às mulheres (Dt 24,1). A princípio, todo e qualquer tipo de ‫נֶדֶ ר‬
“voto” ou ‫שׁבוּ ָעה‬
ְ “juramento”, que venha a implicar na vida ou comportamento da
mulher Hv'yai vp,n" tNO[;l. rS"ai “compromisso que venha subjugar a pessoa da
mulher”, deverá receber aprovação ou negação da parte do marido (Nm 30,14).
Por outro lado, verifica-se em certo grupo de textos, relativo prestígio dado à
mulher quando esta exerce funções no interior da casa, no cuidado com os
animais, na educação dos filhos, na administração das coisas existentes na esfera
familiar (Dt 21, 18-21; Pr 19, 26. 31,10-31; Ecl 3,1-6)39.
Bennett analisa as características marcantes da viuvez, dividindo as
referências bíblicas em quatro conjuntos de textos40.
2.1.3.1.
Textos legais
O conjunto das Normas Legais (Ex 20,22-24) realça a injustiça como uma
prática inaceitável. Por ser uma sociedade agrária em seu ambiente originário, as
leis do CA parecem querer interferir nos comportamentos sociais e,
consequentemente, econômicos no período monárquico de Israel. A viúva, uma
mulher em caso de viuvez ou separação do marido. “A lei protegia a esposa, que tivesse gerado
filhos no casamento, da arbitrariedade de seu marido. Se este quisesse divorciar-se dela, perdia,
como determinava o § 59, o direito a todos os seus bens”. BOUZON, E., Uma coleção de direito
babilônico pré-hammurabiano. Leis do reino de Ešnunna, Petrópolis, Vozes, 2000, p. 45.
38
Cf. DE VAUX, Instituciones del Antiguo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, p. 75.
39
Diante de um vasto arcabouço jurídico, como percebemos nos textos referentes às viúvas na
BHS, corre-se um perigo: deduzir a figura da mulher como um ser inferior ao marido. Nossa
referência leva em conta uma sociedade patriarcal na qual os papéis da mulher casada acontecem e
estão legalmente definidos. É por demais ingênuo pensar a posição da mulher casada numa
situação de vassalagem frente ao homem da casa. “As leis deuteronomistas definem o status legal
de uma mulher – seus direitos sociais e posição econômica – sempre nos termos de sua relação
com o homem. Queira ou não, ela está casada e nesta condição encontra ela direitos, obrigações e
penas capitais”. PRESSLER, C., The View of Women found in the Deuteronomic Family Laws,
New York, Walter de Gruyter, 1993, p. 82.
40
Bennett divide em quatro grupos os textos da BHS, ao analisar o estado da viuvez: a) Textos
legais: Ex 22,22. 22,24; Lv 22,13 e Nm 30,10; b) Textos narrativos: Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7.
20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,8-16; c) Literatura profética: Jr 7,6. 22,3; Ez 22,7. 44,22;
Zc 7,10; d) Literatura sapiencial e lamentações: Jó 24,21. 29,13; Sl 68,5. 78,64; 94,6. 109, 9;
146,9. Pr 15,25; Lm 5,3. Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the
plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, pp. 31-37.
44
vez já se encontrando numa condição desfavorável, não poderia sofrer, agora,
ultraje imposto por nenhum ‫“ אָדוֺן‬senhor”41. Ela não pode sofrer nenhum tipo de
violência física ou qualquer ação na esfera do comércio que venha a prejudicá-la
na manutenção e usufruto patrimonial. Por se tratar de uma norma de santidade, a
violação da prática do direito feita contra o órfão e a viúva passa a ser punida por
vontade de Deus. Essa atitude, executada pelo ‫אָד ֺון‬, “senhor”, deveria receber uma
sanção imposta pelos homens responsáveis em gerenciar a justiça na porta da
cidade42. O CA realça que diante do estado de viuvez deve ocorrer explícitos
gestos de solidariedade à mulher. Seus direitos naturais devem ser garantidos. São
os meios disponíveis para sua sobrevivência futura.
No Código de Santidade (CS)43 refere-se duas vezes à categoria da viúva
(Lv 21,14; 22,13), contra uma vez (Nm 30,9-10) no Código Sacerdotal (CSac).
Estudos recentes apontam ser o Código de Santidade parte integrante do
Documento Sacerdotal. É necessário fazer uma distinção: No CSac são indicados
dois tipos de homens deparando-se diante da realidade matrimonial. No tocante ao
‫ ַהכּ ֹהֵן ַה ָגּדוֹל‬, "sumo sacerdote", (Lv 21,10) paira o interdito, sobre qualquer
hipótese, de receber uma viúva ou prostituta como esposa: xQ"yI h'yl,Wtb.bi hV'îai aWhw>
“Ele tomará uma mulher na sua virgindade” (Lv 21,13). Não cabe ao sumo
sacerdote a união matrimonial com uma viúva ou uma mulher que tenha praticado
“infame prostituição” (Lv 21,14). Tais alertas são justificáveis no tocante à
manutenção do regime de pureza consanguínea. Com respeito à ‫“ ַבּת כּ ֹ ֶהן‬filha do
sacerdote”, essa poderia voltar para a casa paterna, uma vez viúva. O pai, nesse
caso, teria a obrigação de recebê-la de volta em total clima de comunhão,
cumprindo, desta maneira, um princípio social e jurídico estabelecido em Israel
(Lv 22,13). Entretanto, encontramos uma ressalva no texto ‫ ְוז ֶ ַרע ֵאין ָלהּ‬, “ela não
tem
filhos”.
A presença dos filhos impõe relativa preocupação econômica.
Compete à família prover alimentação e segurança. Neste caso, a mulher
pertenceria, em caráter definitivo, à família de seu marido, passando a gozar do
41
A palavra faz referência à pessoa do patriarca familiar, ao marido, ao homem casado (Gn 19, 2;
Jz 19,26; Rt 2,13).
42
São os anciãos os responsáveis de julgar e estabelecer tais sanções divinas. Cf. CRÜSEMANN,
F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 273.
43
Cf. Ibidem, p. 383.
45
direito imprescindível de mãe44. A mulher, cujo marido havia morrido, ao voltar
para a casa dos pais, qualifica-se na sua condição de ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva”.
A referência ao ato de fazer um ‫“ נֶדֶ ר‬voto”, por uma viúva, encontra total
aceitação e validade no interior da sociedade (Nm 30,10). Embora considerandose a submissão institucionalizada da mulher frente ao homem, o voto feito pela
mulher viúva ou repudiada é válido somente para ela. O texto pode bem
demonstrar a possibilidade de uma mulher viúva preservar seus bens, uma vez que
esta se encontre desprovida da tutela de um varão. O reconhecimento de seus
votos implica na legitimação de sua segurança. Daí, serem válidos e reconhecidos
por todos.
2.1.3.2.
Textos narrativos
O conjunto formado pelos textos narrativos que mencionam a categoria da
viúva (Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7; 2Sm 20,3; Rt 2,1-23; 1Rs 7,13-14. 11,26; 17,816) oferece alguns exemplos de comportamentos ou interesses do cotidiano.
Podemos notar duas maneiras de referir-se à viúva: 1) A lei do Levirato45 oferece
um suporte legal aos episódios presentes em Gn 38,1-30; 2Sm 14,5-7 e Rt 2,1-23.
É emblemática a saga envolvendo Tamar e seu sogro Jacó. O que numa primeira
leitura pode parecer uma condenação do ato idealizado pela jovem esposa, pode
bem ser compreendido como uma demonstração da alta aceitação, da praticidade e
da eficiência da lei na defesa dos direitos das viúvas. Sua estratégia de coabitar
com seu sogro registra um gesto feito em sua defesa e referendado legalmente no
Antigo Israel. Na narrativa, nenhuma censura lhe é imposta, pois está em jogo a
manutenção da hereditariedade de seu primeiro marido (Gn 38,7) e foi este, e não
outro, o desejo pelo qual uniu-se aos seus cunhados (Gn 38,6-9); 2) O regresso
para a casa de seu pai é um principio legal. Ninguém pode ser exposto às
situações de inseguranças. A viúva, legalmente, encontra algum tipo de proteção
ao permanecer na casa do sogro ou na casa paterna. A narrativa mostra os direitos
de Tamar que se encontra numa situação de total desamparo familiar: sem marido
e sem filhos.
44
Cf. BENNETT. H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law and the plight of widows,
strangers, and orphans in ancient Israel, Michigan, USA, 2002, p. 32. O direito de mãe é
assegurado em Israel: Lv 21,4; Ex 20,12. 21,15.17.
45
Cf. Dt 25,5-10.
46
Outra característica da viúva pode ser definida considerando os textos de
2Sm 14,5-7 e pelo episódio envolvendo Rute e Booz (Rt 2, G 1-3. 4). Na primeira
narrativa, a própria mulher se declara, ao rei Davi46, uma viúva: “de verdade eu
sou uma mulher viúva e meu marido morreu” (2Sm 14,5-7). Entre os dois filhos
ocorreu um fratricídio, e caso venha a perder o outro filho, agora acusado pelo
crime do irmão, a mãe passaria privações. Ela não tem marido e agora se encontra
sem nenhum sistema de segurança e bem-estar. Ao rei compete o gerenciamento
da justiça.
Uma clara compreensão dos problemas enfrentados pelas mulheres viúvas,
na sociedade israelita, é encontrada na história de Noemi e suas duas noras, Rute
e Orfa47. Os três homens, os ex-maridos, estão mortos e as três mulheres, agora
viúvas, se encontram em estado de miséria correndo o risco de morrer de fome e
sede (Rt 2,1-23). Com base na lei do Levirato48, Noemi insiste no retorno das
noras às casas de seus pais. Uma delas, após rejeitar o pedido, consente voltar à
casa de seu ancestral, mas Rute insiste em ficar. É-lhe dado o direito de respigar o
campo durante a colheita (Lv 19, 9-10; 23,22). Nas tarefas no campo, Rute
encontra Booz, parente de seu sogro, que tomando por base os costumes legais, a
toma por esposa. Após retirá-la das terras de Elimelec, Booz a recebe em sua
propriedade garantindo-lhes comida, proteção e uma descendência: “E disse Booz
aos anciãos e a todo o povo: Sois testemunhas que eu comprei tudo o que
pertencia a Elimelec, a Maalon e a Quelion das mãos de Noemi” (Rt 4,9).
De certo modo um aspecto depreciativo no uso do termo viúva pode ser
encontrado nos demais textos narrativos (2Sm 20,3; 1Rs 7,13-14; 11,26; 17, 816). As concubinas de Davi passaram a viver na condição de viúvas: ‫אַ ְל ְמנוּת ַחיּוּת‬,
“viveram como viúvas” (2Sm 20,3), recebendo, ao longo dos anos vividos na
corte, por parte do rei, comida e segurança. Nos outros três textos do livro dos
Reis a referência ao termo ‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva” é revestida de um profundo senso de
46
Ao monarca compete gerenciar a prática de todo o sistema necessário para colocar em prática
suas atribuições de administrador do reinado e gerenciador da prática do direto (Dt 17,14-20; Sb
1,1; Sl 34,7.18; 35, 1-3). Ao rei era necessário um aparato burocrático que fosse capaz de
proporcionar condições para administrar as inúmeras demandas (1Rs 7,7).
47
O termo técnico ‫“ אַ ְלמָ נָה‬viúva” não é encontrado na história de Rute. Vemos o texto da BHS
apresentar um outro termo correlato: ‫“ אֵ שֶׁ ת ַהמֵּ ת‬mulher daquele que morreu” (Rt 4,5).
48
O nome é proveniente da palavra latina levir – do latim – cunhado. Cf. KRAMER, P., Origem e
Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos, São
Paulo, Paulinas, 2006, p. 174.
47
negatividade49, na medida em que são desqualificados por conviverem com a
realidade da viuvez. O sustento dado ao profeta Elias provém de um gesto de uma
viúva em condições de miserabilidade (1Rs 17,12)50.
2.1.3.3.
Textos proféticos
Das narrativas proféticas, percebem-se inúmeras referências ao termo
‫“ אַ ְל ָמנָה‬viúva”, mas sem fornecer elementos que facilitem identificar aspectos
relevantes na condição de viuvez, conforme encontra-se nos textos históricos e
narrativos. A referência aos grupos desfavorecidos é uma constante nos relatos de
Is (1,23; 10,2; 47,8), Jr (7,6; 22,3 e 49,11), Ez (22,7; 44,22), Zc 7,10 e Ml 3,5.
Os oráculos proféticos formam um grupo de narrativas com uma marca
essencialmente reivindicatória. Com base nesse termo técnico os grupos
proféticos edificaram um verdadeiro acervo literário na defesa inconteste desse
determinado grupo social. Nota-se uma forte sensibilidade no gesto de denunciar a
falta de normas éticas, capazes de garantir a justiça e o direito a esses grupos,
tidos como sem importância em suas respectivas épocas. Os oráculos proféticos
favorecem a percepção do alto grau de opressão e flagelo imposto a esses grupos
desamparados e do dilema vivenciado pela mulher casada que venha a ser
reconhecida como uma viúva.
2.1.3.4.
Textos sapienciais e poéticos
Distante do senso reivindicativo impregnado nos textos proféticos está o
conjunto formado pelas narrativas de cunho sapiencial (Jó 24,9; 29,12-13; Sl 68,6;
78,64; 94,6; 109,9; 146,9; Pr 15,25), onde predomina um discurso que realça a
preferência divina na defesa dos grupos que sofrem violência, entre os quais a
viúva: Avd>q' !A[ïm.Bi ~yhiªl{a/ tAnm'l.a; !Y:d:w> ~ymiAty> ybia] “Pai dos pobres e juiz das
49
O artesão Hiram, embora com sua habilidade na metalurgia, é reconhecido como filho de uma
viúva da tribo de Neftali (1Rs 7,13). Um dos oponentes a Davi foi Jeroboão, filho de uma viúva de
nome Sarva (1Rs 11,26).
50
A descrição oferecida pela narrativa é própria para ajudar a compreender os inúmeros apelos
legais feitos com a finalidade de amparar este subgrupo. “As viúvas viveram sob uma especial
proteção dos deuses”. MARSMAN, H. J., Women in Ugarit and Israel. Their Social and Religious
Position in the Context of the Ancient near East, Boston, Brill, 2003, p. 295.
48
viúvas, assim é Deus na sua santa morada” (Sl 68,6). Defendê-la, oferecer-lhe
proteção e garantir seus direitos são ações realçando a exclusividade divina.
Hiebert, seguindo o termo ‫אַ ְלמָ נָה‬, indica cinco referências no livro dos
Salmos, em torno dos gêneros literários de lamentações, de hinos e de cantos de
agradecimentos provenientes do período davídico ao pós-exílio: Sl 94,4-7; 146,9;
68,6; 78,63-64 e 109,951.
A violação do direito merece realce nos Salmos 94,4-7 e 146,9, uma vez
que ambos citam a trilogia social formada pelo estrangeiro, órfão e viúva. No Sl
94,6 o realce pode ser percebido no emprego dos verbos gr;h' “matar” e xc;r'
“assassinar”. Práticas atribuídas aos ~yai(GE “soberbos” (v.2) e aos ~y[iv'r> “ímpios”
(v.3), contra
os grupos merecedores dos benefícios divinos.
Os gestos de
YHWH, a saber, um Deus que age com justiça, tornam-se o eixo interpretativo na
identificação do Deus de Israel, oferecendo conteúdo aos atributos divinos nos
louvores expressos no Sl 146. Nota-se a ampliação dos grupos beneficiados. A
proteção recai, agora, sob outros grupos sociais diante do perigo da dizimação.
. i hf,[o “faz direito”; aos famintos, ~x,l, !tEnO “dá
Aos que estão oprimidos, jP'vm
pão”; aos prisioneiros, ryTim; “faz soltar”; os cegos, x;qEPo “abre a vista” e aos
curvados, @qEzO “endireita” (vv.7-8). O Sl 68,6, como um hino de exaltação à
vitória, destaca a providência divina nutrindo de pão a viúva e o órfão. O contrário
é verificado nas inúmeras fases históricas de Israel apresentadas numa narrativa,
por meio de uma meditação, presentes no Sl 78,64. O sofrimento atinge as viúvas
que não encontram tempo para lamentações. Já num estilo de súplica individual,
no Sl 109,9, a viúva é apresentada numa situação possível de uma mulher que
venha a perder a companhia do seu senhor, passando a receber o título de viúva.
Diferenças de estilos e conteúdos à parte, constata-se uma preocupação com esse
grupo social formado pelas viúvas.
Assim, também, Jó se refere à realidade de sofrimento envolvendo a
pessoa da mulher viúva: ‫“ ְואַ ְל ָמנָה ֹלא י ְי ֵ ִטיב‬e à viúva não fez o bem” (Jó 24,21). Em
outro texto, ele refere-se à viúva como um dos meios para agradar a Deus e gozar
de suas bênçãos: ‫“ ְולֵב אַ ְל ָמנָה אַ ְרנ ִן‬e o coração da viúva enchia de alegria” (Jó
51
Embora não considerando o trabalho em torno da datação e classificação dos Salmos é notório o
fato de recorrer ao termo ‫אַ ְלמָ נָה‬. Cf. HIEBERT, P. S., Whence shall Help come to Me?: the biblical
widow. In: DAY, P. L.; (Org.), Gender and Difference in Ancient Israel. Minneapolis, Augsburg
Fortress, 1989, pp. 126-127.
49
29,13). Essa mesma proteção realizada por Jó passa a ser efetuada pelo próprio
Deus como meio de manifestar sua presença. Vale destacar a total ausência da
figura do homem – do patriarca – em relação à mulher viúva. Na literatura
sapiencial o subgrupo da mulher viúva é apresentado como merecedor do socorro
do Senhor. A autoridade de Deus toca diretamente este grupo social,
determinando o ponto de partida para se efetuar um sistema onde triunfe a justiça.
A condição de superar a violência pela prática da justiça ao estrangeiro, órfão e
viúva soa como um princípio básico para provar a eficácia e veracidade da Lei.
2.2.
Conclusão
Pelos textos selecionados concluem-se aspectos consensuais referentes aos
grupos sociais marginalizados. Tais grupos recebem uma relativa atenção, não
somente nos textos do Deuteronômio, como em todo o conjunto das Escrituras.
Não é difícil afirmar que as situações de opressão e violência estão sempre em
evidência, seja qual for a fase histórica, quando são citados nos textos bíblicos.
Percebemos um apelo permanente e renovado na defesa dos grupos sociais fracos
e indefesos. O conjunto de um forte arcabouço jurídico persistiu nas mais
diferentes épocas históricas da comunidade religiosa de Israel. Os apelos estão
presentes em todos os Códigos Legais da BH52.
Os legisladores deuteronômicos realçam uma total dependência dos grupos
desfavorecidos (15,4). As leis estão sempre alertando, em tom apodítico, a defesa
de setores pobres da comunidade israelita (15,18). As normas apelam para a
sensibilidade dos proprietários de terras em facultar-lhes o direito de respigar na
época da colheita. O direito não pode ser-lhes negado. O monarca deve considerálos em suas aflições, e as leis litúrgicas têm como eixo Deus, o Doador da terra
Prometida, em torno do qual forma-se todo o arcabouço jurídico (19,14)53.
Pelos textos do Deuteronômio, percebe-se a existência de um sistema
tradicional voltado para garantir os aspectos físicos e sociais do estrangeiro, órfão
52
Código da Aliança (CA), Código Deuteronômico (CD) e no Documento Sacerdotal (DSac).
O caráter das leis em defesa dos grupos pobres apresenta uma conotação altamente humanitária.
Pode-se verificar uma perspectiva de edificar um projeto de fraternidade/irmandade visando um
total equilíbrio social. Arcabouço jurídico surgido durante a experiência histórica do exílio. Cf.
KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, São Paulo, Paulinas, 2006, p. 35.
53
50
e viúva. Essa trilogia social se vê inserida num determinado momento histórico no
qual a falta de proteção e bem-estar são essenciais na definição dos grupos.
Diante dessas considerações destaca-se: a) o ‫ ֵגּר‬, “estrangeiro”, ele ou ela,
seria uma pessoa que teria imigrado de um outro local e se estabelecido junto à
outra comunidade israelita. Τrata-se de uma pessoa obrigada a passar por um
processo de inculturação, no interior de um determinado grupo social, onde
passaria a fixar residência; b) o ‫י ָתוֹם‬, “órfão”, no conjunto do Deuteronômio,
refere-se a uma menina ou menino, que venha a perder a proteção paterna,
passando a vivenciar um período de total incerteza; c) a ‫אַ ְל ָמנָה‬, “viúva” refere-se a
uma mulher que tenha passado um período de sua vida sob a proteção de um
homem, legitimado pelo vínculo matrimonial, e que se encontra, após a morte do
homem, indefesa e sem proteção.
A falta de proteção, isto é, segurança, expunha esses grupos a uma
situação de exploração por parte de outros grupos sociais, como bem realçam
inúmeros oráculos proféticos, ainda mais no contexto de uma sociedade
agropastoril, movida por uma mão-de-obra pautada pelo sistema escravagista.
51
PARTE I
COMENTÁRIO DOS TEXTOS ONDE É CITADA A TRILOGIA
SOCIAL – “ESTRANGEIRO, ÓRFÃO E VIÚVA” NO
DEUTERONÔMIO
52
3
Apresentação do conjunto das perícopes do Dt
relacionadas com a trilogia social
A trilogia social – estrangeiro, órfão e viúva – por seis vezes encontrada no
livro do Deuteronômio deixa transparecer um forte desejo de defender grupos
sociais ameaçados. Quem se debruçar sobre essas perícopes, no desejo de
conhecer a sociedade, perceberá que se trata de uma produção em etapas
históricas. Sabe-se que são normas jurídicas que surgiram num determinado
contexto social e, por este motivo, propõem a superação de uma violência ou
sonegação de direitos a esses grupos.
Neste capítulo serão analisados os respectivos textos. Nota-se um conjunto
formado por seis perícopes e serão analisadas, seguindo os respectivos processos:
1) delimitação do texto; 2) crítica textual das variantes; 3) composição e estrutura
do texto; 4) análise semântica; 5) gênero literário; 6) estudo da tradição e redação;
7) significado do texto. A ordem poderá sofrer ligeiras modificações
considerando-se o conteúdo e a estrutura de uma determinada perícope.
3.1.
A historicidade divina reside na realização da justiça: Dt 10,12-22
Dt 10,12-22 não se encontra no corpus, assim conhecido, como a parte
mais
1
antiga
do
Dt,
formado
pelos
capítulos
12-261,
intitulado de Código Deuteronômico. O capítulo 10 seria um acréscimo ao livro
ocorrido ao longo dos anos que sucederam a morte do rei Josias (609 a.C). A
1
Não são poucos os estudos que apresentam as inúmeras edições empreendidas ao livro do Dt. Os
estudos, realçando as introduções existentes, as inúmeras repetições, as sucessivas interrupções
que chegam a mudar até mesmo os sujeitos ao longo das frases, bem como a troca de orador
principal evidenciam as inúmeras etapas literárias impostas ao livro do Dt. Cf. BUIS, P., Le
Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, pp. 16-28; VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia,
Paidéia Editrice, 1979, pp. 30-39; CHOURAQUI, A., A Bíblia – Palavras (Deuteronômio, São
Paulo, Imago, 1997, pp. 19-24; CRAIGIE, P. C, The Book of Deuteronomy, Michigan, William B.
Eeardmans Publishing, 1976, pp. 30-45; CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1-11, Texas: Word
Books, 1991, (WBC) pp. 12-25; BLENKINSOPP, J., Deuteronômio, In: NCBSJ, São Paulo,
Editora Academia Cristã e Paulus, 2007, pp. 223-225; NELSON, R. D, Deuteronomy – A
Commentary, London, Westminster John Knox, 2004, pp. 1-13. Sugestivo o título “A invenção do
Deuteronômio”, dado por Carrière ao propor uma gênese e estrutura ao conjunto da obra
53
reforma de cunho deuteromista, desenvolvida entre os anos 630-609, teve amplo
apoio de toda a sociedade de Judá, e demais setores que se uniram ao redor desse
evento de autêntica reorganização nacional2. Neste período, o livro teria recebido
os capítulos referentes ao Decálogo (Dt 5), e mais tarde, outros dois grupos de
textos: os relatos oriundos da chegada na terra (Dt 1-3), e as tradições vinda do
Sinai (Dt 9-10). Nesta época, o Deuteronômio, como é hoje conhecido, não
passava de um conjunto de Leis3. Buis4, baseando-se nas inúmeras fases
redacionais, verifica que em 10,12 começa uma “certa conclusão à primeira parte
do livro”, predominando estilos de exaltações plenamente independentes uma das
outras. Nos estudos de Blenkinsopp, esses acréscimos teriam ocorrido num
“período final ao reino de Judá” como resultado de mais um estágio redacional
imposto ao livro. Neste período teriam sido adicionados os capítulos “5-11 e 28
como uma estruturação para as leis”5.
3.1.1.
Dt 10,12-22: tradução e aspectos filológicos
E agora Israel, o que YHWH teu Deus,
12a
tem perguntado a ti?
‫ְועַתָּ ה יִשׂ ְָראֵל מָה י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך שׁ ֹ ֵאל‬
‫ֵמעִמָּ ְך‬
Se não temer a YHWH, teu Deus
12b
‫כִּי אִ ם־ ְלי ְִראָה אֶת־י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך‬
Andar em todos os seus caminhos,
12c
‫ָל ֶלכֶת ְבּכָל־דְּ ָרכָיו‬
e amá-lo
12d
‫וּלְאַ ֲהבָה א ֹתוֹ‬
E servir a YHWH, teu Deus com todo o
12e
‫ְו ַלעֲב ֹד אֶ ת־י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך ְבּכָל־ ְל ָבבְָך‬
teu coração e com toda tua alma.
Observar os mandamentos de YHWH e
‫וּ ְבכָל נַ ְפשֶָׁך׃‬
a
‫ִלשְׁמ ֹר אֶ ת־מִ צְוֹת י ְהוָה וְאֶ ת־חֻקּ ֹתָ יו‬
13b
‫ֲאשֶׁ ר אָנֹכִי ְמ ַצ ְוָּך הַיּוֹם לְטוֹב לְָך׃‬
13
os seus preceitos
que eu te ordeno hoje, para o teu bem.
deuteronômica. Na sua opinião, que não difere de outros estudos, um processo redacional, ocorrido
entre o reinado de Josias (640-609), passando pela destruição do primeiro templo e o exílio,
findando no período persa (540 aC), seria o período histórico no qual teria ocorrido a redação do
Dt. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio: Escolher a vida. São Paulo, Loyola, 2005,
pp. 13-34.
2
Os dados cronológicos são apresentados seguindo as informações de Lamadrid, em todo o
trabalho. Cf. GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: Introdução à
história do Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999, pp. 219-225.
3
Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio-Escolher a Vida. São Paulo, Loyola, 2005, pp.
31-35.
4
Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 177.
5
Cf. BLENKINSOPP, J., El Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, p. 224.
54
Note bem, a YHWH, teu Deus
14a
pertencem os céus e os céus dos céus, a
‫ַשׁמָ י ִם‬
ָ ּ ‫שׁמֵי ה‬
ְ ‫ַשׁמַ י ִם וּ‬
ָ ּ ‫הֵן לַיהוָה ֱאֹלהֶיָך ה‬
‫ָאָרץ ְוכָל־ ֲאשֶׁ ר־בָּהּ׃‬
ֶ ‫ה‬
terra e tudo que nela existe.
Somente por teus pais se dispôs YHWH a 15a
‫שׁק י ְהוָה לְאַ ֲהבָה אוֹתָ ם‬
ַ ‫ַרק ַבּאֲב ֹתֶ י ִָך ָח‬
amá-los.
Escolheu-os como descendência, depois
15b
deles, a vós mesmos, dentre todos os
‫ַויּ ִ ְבחַר ְבּז ְַרעָם אַח ֲֵריהֶם ָבּכֶם‬
‫ִמכָּל־ ָה ַעמִּים כַּיּוֹם ַהזּ ֶה׃‬
povos, como acontece neste dia de hoje.
16a
‫וּמַ ְלתֶּם אֵת ע ְָרלַת ְל ַב ְבכֶם‬
e vossas nucas não endureceis mais.
16b
‫ְוע ְָר ְפּכֶם ֹלא ַת ְקשׁוּ עוֹד׃‬
Pois YHWH, vosso Deus, ele é Deus dos
17a
‫כִּי י ְהוָה ֱאֹלהֵיכֶם הוּא ֱאֹלהֵי ָהאֱֹלהִים‬
Circuncideis os prepúcios dos vossos
corações,
deuses e Senhor dos senhores: o Deus, o
‫ַנּוֹרא‬
ָ ‫וַאֲדֹנֵי ָהאֲדֹנִים ָה ֵאל ַהגָּד ֹל ַהגִּבּ ֹר ְוה‬
Grande, o Forte e o terrível,
17b
‫ֲאשֶׁ ר ֹלא־י ִָשּ ֹא ָפנִים‬
c
‫וְֹלא יִקַּח שֹׁחַד׃‬
a
‫ע ֶֹש ֹה מִ שְׁ פַּט י ָתוֹם וְאַ ְל ָמנָה‬
e ama o estrangeiro
b
18
‫וְאֹהֵב גֵּר‬
para dar a ele pão e roupa.
18c
‫ְש ֹ ְמלָה׃‬
ִ ‫לָתֶ ת לוֹ ֶלחֶם ו‬
Vós amareis o estrangeiro,
19a
‫וַאֲ ַהבְתֶּם אֶ ת־ ַהגֵּר‬
porque estrangeiros fostes na terra do
19b
‫ְאֶרץ מִ צ ְָרי ִם׃‬
ֶ ‫כִּי־ג ִֵרים ֱהי ִיתֶ ם בּ‬
20a
‫ירא א ֹתוֹ‬
ָ ִ‫אֶת־י ְהוָה אֱ ֹלהֶיָך תּ‬
b
‫תַ עֲב ֹד וּבוֹ‬
a ele te apegarás
c
20
‫תִ דְ בָּק‬
e em seu nome jurarás.
20d
‫תִּשׁ ֵבעַ׃‬
ָ ּ ‫וּ ִבשְׁמוֹ‬
Ele é teu louvor
21a
‫הוּא תְ ִהלָּתְ ָך‬
e ele é o teu Deus,
21b
‫וְהוּא אֱ ֹלהֶיָך‬
que te realizou estas grandes e terríveis
21c
‫ָש ֹה אִתְּ ָך אֶת־ ַהגְּדֹֹלת‬
ָ ‫ֲאשֶׁ ר־ע‬
que não favorece pessoas
e não aceita presente.
Faz direito ao órfão e à viúva,
17
18
Egito.
A YHWH, teu Deus temerás,
a ele servirás,
20
coisas,
que viram teus olhos.
Com setenta pessoas, teus pais desceram
ao Egito
‫ַנּוֹרא ֹת ָה ֵאלֶּה‬
ָ ‫וְאֶ ת־ה‬
d
‫ֲאשֶׁ ר ָראוּ עֵינ ֶיָך׃‬
a
‫בְּשִׁ ְבעִים נֶפֶשׁ י ְָרדוּ אֲב ֹתֶ יָך ִמצ ְָריְמָה‬
21
22
55
e agora dispôs-te YHWH, teu Deus,
22c
‫ש ֹמְָך י ְהוָה ֱאֹלהֶיָך כְּכוֹ ְכבֵי‬
ָ ‫ְועַתָּ ה‬
como estrelas numerosas dos céus.
‫ה ַּשָׁמַ י ִם לָר ֹב׃‬
- v. 12:
O verbo ‫“ שָׁאַל‬perguntar, inquerir”, no particípio qal, é significativo ao
proporcionar coesão ao longo de toda a frase, juntamente com outros verbos, onde
estão presentes as atitudes comportamentais exclusivas de arey", “temer”, (v. 12b),
%l;h', “andar”, (v. 12c), bh;a', “amar”, (v. 12d) e db;[', “servir”, (v. 12e) seu Deus
pessoal: o Senhor. O sentido inquisitorial imposto por Deus aproxima-se a Mq
6,8, considerando atitudes semelhantes ao acolher os mandamentos e praticar a
justiça.
Constata-se uma única ligeira alteração de grafia anotada no Códice
Vaticano (minúsculos), Siríaca e na Vulgata, quando comparada ao TM no
versículo 12. Trata-se do prefixo ‫“ ול‬e para” antecede o verbo ‫ ָל ֶלכֶת‬, “andar em”,
(v. 12c), mas que não marca qualquer alteração de sentido expresso na frase.
- v. 13:
Ocorre uma pequena diferença em alguns manuscritos no tocante à grafia
do nome divino. Os manuscritos de Qumran, Pentateuco Samaritano e LXX
grafam a fórmula ‫ ֱאֹלהֶיָך‬, “teu Deus”, diferenciando do TM que opta pelo uso do
tetragrama ‫ יהוה‬. Adota-se a grafia presente na versão do TM.
- v. 15:
Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar ‫על כן‬
“sendo assim, posto isso” e não ‫“ ַרק‬somente, só” como é encontrado no TM. Tal
exclusividade exige uma explicação. Emprega-se um advérbio, de interpretação
inalterada “somente”, aqui utilizada, com a finalidade de realçar a escolha,
preferência divina.
- v. 17:
São três as diferenças textuais encontradas no v. 17. A primeira refere-se
ao trecho do v. 17a-a encontrado nos targumim de Ônquelos e Pseudo-Jônatas. Em
substituição à expressão ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: são grafadas as expressões wmrj mlkjn. A
segunda, faz referência ao nome atribuído a Deus. Na diferença encontrada no
Pentateuco Samaritano e na tradução Siríaca, grafa-se o sufixo ‫ ון‬ao termo ‫ואדני‬, “e
senhor”, como apresenta a versão do TM. A terceira diferença está na forma
56
adjetivada de Deus: ‫ ַה ִגּבּ ֹר‬, “o forte”. Nos manuscritos de Qumran, Pentateuco
Samaritano, LXX, Siríaco e Vulgata registram-se a expressão ‫ והגיבר‬que recebe
diferentes traduções: “e o forte Um, o poderoso Um”.
-v. 20-21
No v. 20a uma ligeira diferença surge no uso da conjunção ‫“ ו‬e”,
prefixando a partícula do complemento do objeto (e temê-lo). A diferença está na
versão de Qumran como no Targum Pseudo-Jônatas, conforme 6,13, utilizando
‫ואתו‬e não ‫ אתו‬como faz o TM. Outra pequena diferença é verificada nos
manuscritos de Qumran nos targumim Ônquelos e Pseudo-Jônatas, onde se utiliza
a forma ‫ תקרב‬e não ‫תדבק‬, como no TM. O pronome demonstrativo ‫ ָהאֵ ֶלּה‬,
“coisas” (v.21d), é omitido nos textos de Qumran e Pentateuco Samaritano. Em
resumo, notam-se pequenas diferenças de grafia, mas que não propõem nenhuma
variante aos versículos 20 e 21.
- v. 22
O termo ^yt,Þboa] “teus pais” diferencia-se nos manuscritos de Qumran e no
Pentateuco Samaritano, onde se recorre ao termo ‫אָבוֹת‬, “pais”. Somada a essa falta
do pronome possessivo da terceira pessoa, ocorrem outras breves nuâncias
relacionadas ao uso das conjunções, artigos, sufixos e partículas possessivas de
ordem gráficas. Os verbos e seus respectivos casos não sofrem qualquer alteração.
O texto TM permanece inalterado.
3.1.2.
Delimitação do texto, composição e estrutura
A delimitação estrutural da perícope6, é demarcada pelo uso da partícula
adverbial temporal ‫ ַעתָּ ה‬, “agora mesmo, no presente, agora” precedida pela
partícula conjuntiva ‫“ ו‬e” (v. 12). O termo hT'[;w> “e agora” é utilizado para
introduzir a frase de abertura (v. 12) contendo uma seqüência de declarações
enaltecendo a fidelidade e o amor incondicional a YHWH, buscando colocar
Israel em diálogo sobre a maneira de proceder diante de seu Deus e, ao mesmo
6
Para um estudo sobre os inúmeros métodos exegéticos, seguem-se as referidas obras: SIMIANYOFRE, H., Metodologia do Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2000, p. 199; GUARDINI,
R. et al. Exegese Cristã Hoje. Petrópolis, Vozes, 1996, p. 326; BENOIT, P., Exegese et Théologie,
Paris, Cerf, 1961, p. 416.
57
tempo, marca a transição de uma fase redacional (9,7-10,11), para o conjunto da
perícope (10,12-22)7.
O verso, provavelmente adicional e utilizado para concluir a narrativa, é o
v. 22, que cita dois aspectos quantitativos, no desejo de exaltar o crescimento
numérico da comunidade israelita: ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta homens
desceram vossos pais”, (v. 22a) e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “numeroso como estrelas dos
céus” (v. 22b). Esse verso realça o aspecto quantitativo presente em Gn 46,27, Ex
1,5 e Dt 1,10 e mais adiante, citado em Dt 26,5. Trata-se de um verso adicional,
utilizado na conclusão da narrativa, diante do desafio em ocupar a terra
prometida8.
Considerando o termo ‫“ אֱ ֹל ֶהיָך‬teu Deus”, na segunda pessoa do singular,
pode-se afirmar que o tema da identidade divina e seu relacionamento exclusivo
com Israel é desenvolvido em três blocos que compõem essa unidade literária: vv.
12-15, 16-19, 20-22:
o primeiro, apresenta uma coesão e forte unidade
verificadas ao usar, por quatro vezes, o conceito ‫“ ֱאֹל ֶהיָך‬teu Deus”, (v. 12 e 14),
além do uso dos pronomes possessivos sempre na segunda pessoa do singular.
“com todo o teu coração” e “com toda a tua alma” (v. 12); “te ordeno” e “para teu
bem” (v.13); “com teus pais” (v. 15); no segundo bloco (v. 16-19), a diferença
verifica-se na mudança abrupta inserida na redação acentua-se não mais a forma
singular, mas o plural da segunda pessoa: ~k,_b.b;l,. “vossos corações”, ~k,P.r>['w> “e
vossas nucas”, (v. 16); ~k,yhel{a/ hw"hy> “YHWH vosso Deus”, (v. 17) e ~T,b.h;a]w:
“amareis”, (v. 19).
Por essas observações, percebe-se uma mudança de estilo imposto ao texto
que, depois, no terceiro bloco, retoma o uso da segunda pessoa do singular; nesse
bloco conclusivo (vv. 20-22), o estilo assemelha-se ao primeiro, não somente pela
retomada do termo ‫“ אֱ ֹל ֶהיָך‬teu Deus”, três vezes citado (v. 20, 21, 22) mas, no
tocante ao estilo teológico, ao conclamar Israel a cultuar a YHWH, considerando
os grandes fatos realizados em prol de Israel.
Entre os vv. 12-15, são encontradas várias menções exaltando o ser
de YHWH e favorecendo a compreensão da estrutura literária. O texto inicia-se
conclamando à observância das leis: amá-lo e observar (v.12) todos os seus
7
Cf. WEINFELD, M., Deuteronomy 1-11. In: The Anchor Bible. New York: Doubleday, vol. 5,
1991, p. 435.
8
Cf. Ibidem, p. 205.
58
preceitos (v. 13), para, depois, apresentar a identificação de Deus (v. 14) e,
encerrando com o gesto singular da escolha divina por Israel (v. 15), que
confirma, assim, a primeira parte do texto (vv. 12-15).
No v. 13, nota-se a reutilização de um vocabulário correspondente ao
Shema Israel (Dt 6,4-9). Ocorre uma nítida referência na afirmação: ^b<b'l.-l[; ~AYh;
^W>c;m. ykinOa' rv,a] hL,aeh' ~yrIb'D>h; Wyh'w> “estarão estas palavras que hoje eu te ordeno
sobre o teu coração” (Dt 6,6). São utilizados dois outros elementos substituindo a
. i "mandamentos de
expressão “essas palavras”. O Dt 10,13 apresenta hw"hy> twOcm
YHWH”, e wyt'Qoxu “preceitos”, com o termo hL,aeh' ~yrIb'D>h; “essas palavras”, que
não mais residem no coração, mas são, agora, compreendidas como regras doadas
por Deus para a felicidade de Israel9. Com base na observância desses dois
versículos, nota-se uma influência do conceito da unicidade do Deus de Israel,
expressa no Shema Israel e que é agora retomada, em afirmações, no corpo dos
vv. 12-13, elucidando um desenvolvimento redacional presente nos versículos
10,12-22, referentes ao ser de Deus, aos mandamentos e preceitos doados por
YHWH. O termo mandamento expressa aquilo que a comunidade israelita deve
fazer10.
O antigo vínculo usado para identificar as tribos de Israel e servir de sinal
de pertença a YHWH é, agora, retomado numa dimensão espiritual. O apelo a um
ritual religioso, como a circuncisão, abre a segunda parte da narrativa (v.16-22),
9
O conhecimento de YHWH, por parte de Israel, não se faz de modo quieto, passivo, meramente
confessional. Esse conhecimento ocorre na luta idolátrica envolvendo povos cananeus e a
comunidade israelita. Sabemos da existência de inúmeros santuários dedicados ao deus Baal onde
esse, como é declarado YHWH (Dt 6,4; 10,14-22) era também adorado como sendo a única
divindade: Baal Peor, o Baal de Hebron, Baal Berit de Siquem, o Baal da Samaria, o Baal do
Carmelo. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n.
86, 1979, pp. 59-91.
10
Não somente nesta parte, mas em todo o livro (4,1; 4,45; 6,1.20; 12,1), os autores
deuteronomistas cunham o binômio “as leis e os preceitos” como sendo uma marca característica
do livro. “O fato de que os dois termos não estejam nunca dissociados indica que a lei
deuteronômica, na época de Josias, resulta de uma fusão de dois tipos de direito: aquele
mencionado por uma autoridade (o rei e os funcionários de Jerusalém, sobretudo) e aquele em
curso nas cidades de Israel. O Deuteronômio opera uma síntese jurídica, de maneira nova, em
relação ao Código da Aliança; a ele, pertencem à mesma categoria tanto as “leis” como os
“costumes” (a jurisprudência). Um dos grandes projetos do Deuteronômio é realizar uma
unificação do direito”. Cf. CARRIÈRE, J. M., O livro do Deuteronômio. Escolher a vida. São
Paulo, Loyola, 2005, p. 28. Vale realçar a distinção entre preceitos/estatutos/decretos do termo
mandamento. A primeira provém da raiz ‫ ָחקַ ק‬, compreendida pelo ato de inscrever, entalhar
originando o conceito de escrever, gestos típicos do ambiente da jurisprudência ou da tradição de
compilar leis, costumes ou comportamentos. Já o termo ‫ מִ ְצ ָוה‬denota a instrução passada do mestre
ao aluno (Pr 2,1; Jr 32,11), tratando-se de um termo de uso específico ao universo da Aliança
firmado entre Deus e seu povo Israel (Ex 24,12; Dt 30,11).
59
apelando para a prática de marcar o ‫“ ע ְָרלַת ְל ַב ְבכֶם‬prepúcio do coração”, e evitar
qualquer tipo de dA[) Wvq.t; al{ “endurecimento”, mental, para que todos se façam
responsáveis na adesão e disponibilidade aos mandamentos divinos (v. 16). O
espírito indócil deve se render diante dos planos de YHWH. Eis a tônica do apelo
à prática da circuncisão.
O v. 16 abre esta parte da perícope, conclamando à circuncisão. O v. 17
apresenta, com realce, sete atribuições do Deus de Israel (v. 17)11.
A fórmula hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l' rGE bheaow> hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;vm
. i hf,[o “Faz o
direito ao órfão, à viúva e que ama o estrangeiro, a quem ele dá pão e roupa”,
serve para apresentar o conteúdo, bem como as bases da ação de YHWH. Ele
‫ש ֹה‬
ֶ ֹ ‫ע‬, “faz” e ‫ ָלתֶ ת‬, “dá” sustentação aos humildes (v. 18).
YHWH é descrito como um soberano juiz, ao utilizar um processo
jurídico, no desejo de compreender e oferecer um veredicto em prol dos
desvalidos12. Sua ação se compara à prática imparcial e reta de um juiz (Dt 16,19).
A frase, apresentando a Trilogia Social, realça o modo da ação divina que prefere
os grupos socialmente vulneráveis denunciando, também, a violação e a
negligência da prática do direito a eles negada ou, até mesmo, desvirtuada.
Com base no termo ‫“ גֵּר‬estrangeiro”, que une os dois versos, podese estruturar os versículos no seguinte esquema:
a) v. 18a: YHWH faz direito ao órfão e viúva.
b) v. 18b: [YHWH] ama o estrangeiro.
c) v. 18c: [YHWH] dá [ao estrangeiro] pão e água.
d) v. 19a: vós amareis o estrangeiro.
e) v. 19b: vós fostes estrangeiros no Egito.
Não é impossível perceber a justaposição textual entre Deus e o ‫ ֵגּר‬,
“estrangeiroʼʼ. Por meio das ações direcionadas a este grupo social, ocorre uma
sucessão de gestos visando o restabelecimento da justiça, capaz de diferenciar a
divindade dos israelitas. O termo estrangeiro, além de se referir aos anos em que
Israel esteve em terras egípcias na condição de escravo, é utilizado para canalizar
uma ordem expressa de Deus: amar o estrangeiro. Vê-se um harmonioso
11
As mudanças de estilos e de formas num determinado corpo redacional colaboram na sua
datação. As formulas primitivas foram redigidas no singular, ao passo que, nos textos tardios,
predonimam uma redação feita no plural. Cf. GARCIA LÓPEZ, F., Analyse Littéraire de
Deutéronome, V-XI. In: RB, n. 85, 1978, p. 9.
12
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco II, Ediciones Cristiandad, Madrid, 1970, p. 305.
60
entrelaçamento. Assim como o Senhor age para instaurar a justiça, Israel deve
imitar seu Deus no amor ao estrangeiro.
O gesto do amor divino ao estrangeiro, exemplificado na providência do
pão e das vestimentas, deve ser imitado pela comunidade religiosa, tendo por base
a recordação dos fatos grandiosos na libertação do Egito. O amor ao estrangeiro
se justifica pelos anos vividos outrora, na condição de estrangeiros, nessas terras
(v. 19).
O Deus de Israel exige uma entrega total. O convite à fidelidade continua
ao longo da primeira parte do v. 22, desta vez, apresentando duas atribuições
divinas e uma recordação dos feitos em prol de Israel. A primeira atribuição acena
para a prática cultual: o conceito de “Ele é teu louvor” (v. 21). Outra atribuição
retoma o caráter da unicidade divina, conclamando a exclusividade de YHWH:
“ele é teu Deus” (v. 21).
O versículo 22, conclusivo na perícope, pode ser dividido em duas partes.
A primeira, considera a intenção dos autores em unir a fase dos patriarcas no
Egito e uma segunda, reafirma a realização das promessas feitas a Abraão, na
primeira bênção (Gn 12,1-3).
Considerando-se as inúmeras repetições presentes no texto, o estilo
narrativo oscilando entre a segunda pessoa do singular e do plural, e o esforço em
ter YHWH como sujeito central no texto, pode-se dividir Dt10, 12-22 em três
seções, divididas entre discursos e narrativas13.
a) Pedidos feitos por YHWH a Israel: segunda pessoa singular Dt
10,12-15
a) Amar e servir ao Senhor com toda força
b) Guardar os mandamentos para o bem de Israel
c) YHWH é um deus onipresente
d) O amor exclusivo de YHWH
10,12
10,13
10,14
10,15a
b) O discurso apresenta a Aliança e atributos de YHWH:
segunda pessoa do plural Dt 10,15d-19
b
a) Preferência entre os povos
10,15
b) Fazer circuncisão e não endurecer a cabeça
13
10,16
Niccacci define um texto entre narrativo e discurso. Considera o uso da terceira pessoa uma
característica da narrativa. O discurso utiliza, preponderantemente, a segunda pessoas, numa
forma direta ao ouvinte. Cf. NICCACCI, A., Sintassi del verbo ebraico nella prosa biblica
classica. Jerusalem, Franciscan Printing, 1984, p. 18.
61
c) YHWH é um Deus forte
d) YHWH faz justiça aos fracos
e) Amar os estrangeiros
10,17
10,18
10,19
c) O discurso exalta o temor a YHWH: segunda pessoa do
singular
Dt 10,20-22
a) Caminhar com YHWH
b) Louvar a YHWH
c) Promessas realizadas
10,20
10,21
10,22
Os quatro primeiros versículos 12-15a oferecem uma clara exigência
imposta a Israel, por parte de YHWH. Verifica-se a força de uma novidade,
comparada ao primeiro mandamento e uma adesão total ao Senhor. A insistência
em colocar Israel diante de YHWH, pode ser facilmente sentida pela utilização de
inúmeros verbos, muitos deles sinônimos, relacionando Israel e a exclusividade
diante de YHWH. Constata-se essa exigência ao recorrer aos verbos “temer”,
“seguir”, “amar”, “servir” (v.12), “guardar” (v.13) todos grafados na segunda
pessoa do singular. Os vv. 14 e 15a parecem justificar a ênfase dada aos versículos
precedentes ao apresentar YHWH como Senhor absoluto nos céus e na terra, que
manifestou um amor exclusivo ao seu povo eleito: hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr: “Somente
por teus pais se dispôs YHWH” (v. 15a).
A segunda unidade é formada pelos vv. 15b-19. A separação pode ser
legitimada pela mudança gramatical, empreendida da segunda pessoa do singular
para o plural e pela ordem que impõe a prática da circuncisão14. Há uma nova
maneira de vivenciar a pertença a Deus. A utilização da metáfora ~k,b.b;l. tl;är>['
“Circuncideis os prepúcios dos vossos corações” (v. 16a), acena para uma entrega
interior ao projeto inaugurado e que ultrapassa os limites da primeira aliança
outrora estabelecida (Gn 17). Entre os vv. 17-19 encontra-se uma resposta ao
gesto da circuncisão do coração. Sete atributos e duas características - não faz
distinção de pessoas e não aceita presente – são destacadas na tentativa de
encontrar uma definição do ser de YHWH. Tudo procura exaltar a magnificência
14
Tillesse, considerando as diferenças redacionais no uso do Tu e do Vós, propõe repensar as
camadas literárias presentes no Dt. Para ele, “certa discriminação entre o Dt primitivo (seção Tu) e
o quadro redacional Dtr, que o envolve, permite datar com precisão as seções Vós e, sobretudo, de
desprender o documento Dt primitivo, primeira etapa indispensável de todo estudo crítico”. Cf.
TILESSE, G. M., Section “Tu”et sections “Vous”dans le Deuteronom”. In: VT, n. 12, 1962,
p.33.
62
de YHWH. A transcendência divina, tão elucidada no v. 17, traduz-se na vigência
da justiça aos setores sociais desfavorecidos, que se encontram num contexto
incapaz de garantir qualquer tipo de jurisprudência, que lhes dê sentido e garantia
de seus direitos. O amor de Deus ao estrangeiro (v. 18b) deve ser agora imitado
por Israel: rGEh;-ta, ~T,b.h;a]w:, “Amareis o estrangeiro”, (v. 19). O texto faz uma
nítida referência aos anos em que Israel esteve na situação de estrangeiro quando
da sua permanência em terras egípcias.
Na terceira unidade (vv. 20-22) o narrador volta a utilizar os termos na
segunda pessoa do singular. Os verbos destacam um estilo confessional, um amor
exclusivo dado a YHWH no intuito de denunciar qualquer tipo de prática de
idolatria ao elucidar que só em nome do Deus de Israel pode-se fazer um
juramento. YHWH é um Deus pessoal, íntimo da vida de seu povo, Israel. A
narrativa parece feita exclusivamente para descrever a parceria envolvendo Israel
e YHWH. Ele, YHWH, é o “Deus de Israel” (v. 20, 21). Esta exclusividade, já
apresentada na primeira estrofe (vv. 12-15) é, agora, retomada evidenciando Israel
como testemunha dos grandes feitos realizados por YHWH em prol de seu povo
eleito. Nesses atos repousa o sentido único de encontrar só em YHWH o
significado de louvá-lo. As palavras hL,aeh' taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, ^T.ai hf'[', “fez a
teu favor essas coisas grandes e terríveis”, (v. 21c) procuram resumir, de certa
forma, os grandes feitos não apenas no Egito, como a realização das promessas de
Israel se tornar um grande povo. O recurso de um paralelismo sinonímico,
assinalado em vp,n< ~y[ib.viB, “setentas pessoas”, e brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK “como
estrelas numerosas nos céus”, (v. 22), oferecem certeza ao ser divino, diante dos
grandes feitos realizados em favor de Israel.
3.1.3.
Comentário e análise semântica
Dt 10,12-22 revela a existência de uma divindade que se relalciona com o
povo escolhido (vv. 10-15). Por meio dos atributos, pode-se compreender outras
duas
unidades: vv. 16-19 e 20-22, tendo como sujeito o ser de Deus na
compreensão das unidades. Há uma conjugação de princípios, isto é, na mesma
intensidade em que se afirma a exclusividade de YHWH, ocorre o desejo de
instaurar a igualdade entre todos os membros da comunidade de Israel.
63
O versículo 12 abre a perícope que apresenta, num tom questionador, o
diálogo entre Deus e seu povo, Israel. O uso da conjunção ‫“ ו‬e” unida à partícula
adverbial
hT'[;,
“agora”, oferece um caráter de exaltação ao diálogo envolvendo
uma divindade – Deus - e seu súdito – Israel, já citada em Dt 4,1. O realce
oferecido pela expressão adverbial une-se às conseqüências da demanda imposta
pelo Senhor. Nos dois capítulos (10,12 e 4,1), Israel é exortado a obedecer os
decretos apresentados por um Deus que lhe é exclusivo e único. Trata-se de uma
fórmula genuína de estilo que não deixa de evidenciar certa solenidade, uma vez
inserida logo na abertura da narrativa. Israel é o sujeito principal com quem Deus
dialoga.
Os vv. 12-15 buscam motivações com a finalidade de inculcar a certeza da
particularidade e exclusividade de Israel diante de seu Deus. Verifica-se forte
interatividade entre Israel e YHWH, duas realidades distintas. Com base na frase
adverbial da perícope: “E agora, Israel, o que YHWH, teu Deus, tem perguntado a
ti” (v. 12), fica evidente o destaque ao conteúdo empreendido ao longo do texto.
A conjunção yKi oferece importância à prática fundamental a ser vivida por Israel.
Não é em vão que a frase impõe um certo equilíbrio e realce ao colocar, em
primeira ordem, na missão de Israel, uma atitude capaz de garantir ou não a
felicidade da comunidade religiosa. O paralelo entre Dt 10,12-15 e parte do
primeiro mandamento, expressa no Decálogo Dt 5,2-7, exaltando a exclusividade
de YHWH, justifica-se diante dos inúmeros verbos e repetições que visam
convocar Israel à frente de uma divindade que não é a única mas Um. YHWH tem
a primazia e exclusividade diante das demais divindades. Trata-se do
comportamento de ^yh,l{a/ hwhy>-ta, ha'r>yIl.-~ai ‫“ ִכּי‬exeto temer a YHWH, o teu
Deus”, (v. 12b), apresentada na forma qal do verbo arey" grafado no infinito,
destacando um comportamento essencial. A ação não se encontra numa esfera de
aspecto emocional, mas numa conduta comportamental, com a finalidade de
garantir as promessas de YHWH à comunidade de Israel e, consequentemente, a
realização das promessas firmadas. Na atitude de temer o seu Deus está ou não
garantida a segurança à comunidade religiosa.
64
Na sequência do verbo “temer” unem-se outras importantes práticas já
expressas nas primeiras páginas do Dt15.
O substantivo lK,o expressando
totalidade, é exageradamente utilizado na tentativa de não somente provocar uma
atitude, como evidenciar a ação de Israel diante de seu Deus. Trata-se de ações
intimamente ligadas à vida da comunidade implicada nas ordens ditas por
YHWH. Os verbos, todos, são grafados na forma infinitiva: “andar”, “amar” e
“servir” (v. 12b-e). Toda ação está direcionada a Deus. Com ele, Israel deve
relacionar-se ^b.b'l.-lk'B, “com todo o teu coração”, ^v<p.n:-lk'b.W “e com toda a tua
alma”. Busca-se evidenciar a fé em um Deus único. A atitude de temor a Deus
envolve duas dimensões humanas expressas três vezes ao longo do versículo 12:
em todo o caminhar, com todo o teu coração e com toda a tua alma. É a
insistência do amor total e sem reservas a Deus. Os dois elementos “coração” e
“alma” indicam a possibilidade de toda uma vida estar direcionada a YHWH,
Deus de Israel.
A palavra hw"c.mi “ordem, mandamento”, é compreendida de modo
inequívoco, envolvendo as realidades humana e divina. O formato apresentado em
Dt 10,13 hw"hy> twOc.mi “mandamentos de YHWH”, quando comparado a outros
termos sinônimos - rb'D', “palavra”, hr'AT “Lei”, e qxo “ordem, preceito”, - é um
tanto recente, não sendo
utilizado pela literatura profética pré-exílica16. Dt
apresenta que a ordem proveniente de YHWH direcionada a Israel revela um
caráter único em comparação aos textos do Antigo Oriente. “Uma relação de
autoridade envolvendo um contexto humano e divino”17. Apenas um critério será
determinante para garantir a felicidade ou não de Israel: o seu modo de colocar em
prática todos esses preceitos.
15
Notam-se inúmeras repetições que são retomadas nas mais diferentes formas, ao longo dos
diferentes temas apresentados pelo Dt. Segundo Kramer, essa retomada de temas, parecendo meras
repetições aleatórias, formam, sim, o estilo narrativo de “modelo de blocos” empreendido pelos
sábios na composição da obra. Esse apelo a amar o Deus ao qual pertence Israel assemelha-se às
fórmulas já encontradas em Dt: 4,9-10.39-40; 6,4-9; 8,11. Cf. KRAMER, P. Origem e legislação
do Deuteronômio. Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. In: AT, n. 27,
2007, pp. 428-433.
16
Cf. Cf. LEVINE, B., ‫ ִמ ְצ ָוה‬. Oráculos de Am 2,12; 6,11; 9,9; Is 5,6; 10,6 optam pelo uso do verbo
‫“ ָצ ָוה‬ordenar”. In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, H-JOSEF. (Orgs.),
Theological Dictionary of the Old Testament, v. 8, Michigan, William B. Eerdmans Publishing
Company, 1983-1984, p. 509.
17
Cf. Ibidem, pp. 509-511.
65
O convite à fidelidade se expressa, ao longo do versículo 12, no uso dos
verbos “caminhar”, “amar”, “servir”, que parecem adquirir sentido no momento
em que Israel recebe a ordem de hw"hy> twOcm
. i-ta, rmov.li “guardar os mandamentos de
YHWH”, (v.13). Os mandamentos visam mediatizar a vontade divina e ser uma
constante presença, todos os dias, na vida da comunidade, isto é, proporcionar
meios para que, durante todo o dia, ocorra um encontro com Deus que está acima
de tudo e, por consequência, norteia toda a atividade da comunidade. Todos os
empenhos no cumprimento dos twOc.mi, “mandamentos”, estão na disposição da
comunidade em cumprir a vontade do Criador18.
Neste sentido, o conceito envolto no testemunho dos twOc.mi não pode, de
modo algum, ser compreendido como uma ação puramente mecanicista. Salientase que, no relacionamento entre criador e criatura, corre-se o risco de haver um
comportamento de vassalagem, “senhor e servo”, sendo o ser humano visto como
um mero serviçal envolto em um processo de total alienação que nada acrescenta
ao desenvolvimento da sua personalidade. Enfim, algo totalmente contrário à
realização pessoal. Todos os empenhos no cumprimento dos mandamentos são
pensados em plena sintonia e interação com Deus. Em outras palavras, a
comunidade guarda os mandamentos, mas sem jamais se sentir esmagada,
atemorizada ou plena de pavor diante da presença divina e, sim, pelo fato de saber
que a presença divina está implicada nas ordens expressas da hw"c.mi.
Nestes versículos, se encontra uma alusão direta, embora um tanto
reduzida, às declarações contra o politeísmo presentes em Dt 6,4-9, que oferecem
conteúdo e formato à oração do ‫שׁ ַמע י ְִש ֹ ָראֵל‬
ְ “Shema Israel”19, que pode ser
verificado na utilização da frase “amar e servir a YHWH, teu Deus, com todo o
teu coração e com toda tua alma” (v. 12e), além de recorrer ao sentido de
“caminhar com Ele ao longo de todos os teus caminhos” (v. 12c). O uso do
infinitivo dos verbos ‫“ אָ ֵהב‬amar”, e ‫“ ָע ַבד‬servir”, expressam um determinado
18
A narrativa hebraica utiliza o termo ‫שׁמֺר אֶ ת מִ ְצוֺת י ְה ָוה‬
ְ ‫“ ִל‬Guardar os mandamentos de YHWH”
(Dt 10,13). Embora não sendo encontrados os três elementos, típicos de um mandamento: o
pronome pessoal “tu” mais a partícula negativa “não”, seguida do verbo no futuro, definida por
Carrière, na diferenciação de mandamento e estatuto, mantém-se o conceito de mandamento. Cf.
CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 92.
19
Trata-se de uma camada literária compreendida como protodeteronômica e sendo parte da
mesma camada literária de Dt 6,4-9. Demonstra a preocupação contra as atitudes idolátricas
empreendidas no reino do Norte e fortemente denunciadas pelas correntes proféticas de Elias,
Eliseu, Amós e Oséias, que estiveram em curso entre os séculos IX – VIII. CF. GARCIA LÓPEZ,
F., Deut. VI et la Tradition-rédaction du Deutéronome. In: RB, n. 86, 1979, pp. 59-91.
66
comportamento por parte de Israel: exclusividade a YHWH e separação de tudo o
que implica contato com os demais deuses e divindades cananéias. As atitudes de
amar e servir envolvem duas dimensões humanas realçadas no texto: “com todo o
teu coração” e “com toda a tua alma”.
- v. 13:
Há uma relação entre ‫מִ ְצוָה‬, “mandamento”, e %l" bAjl, “para teu bem”. O
versículo retoma outras partes do livro ao afirmar que todos os preceitos
provenientes da parte do Deus de Israel (5,31; 6,1; 7,11) têm como finalidade a
garantia de dias felizes para Israel (5,33; 6,24; 19,13).
- v. 14:
O superlativo
presente em
~yIm"V'h; ymeäv.W ~yIm:V'h;,
“os céus e os céus dos céus”,
1Rs 8,27 e no Sl 148,4 é um recurso a mais na exaltação dos
atributos de Adonai. A exaltação vem reforçada pelo uso da partícula
demonstrativa ‫“ הֵן‬preste atenção, vê bem, tem presente que”20. O texto conclama
a comunidade israelita a não titubear diante de outras divindades. Ter presente que
seu Deus, muita acima dos demais, reina de modo ilimitado. A expressão HB'-rv,a]-
lk'w> “e tudo que nela existe”, é uma diminuição das forças contrárias a Israel para
exaltar, de modo incomensurável, Adonai, um Deus tão distante e forte, que não
se nega a ter uma preferência pelos israelitas (v. 15).
O tema da crença num Deus diferente dos deuses circunvizinhos a Israel,
pode ser evidenciado no uso do superlativo ~yIm"+V'h; ymev.W ~yIm:V'h; “os céus e os céus
dos céus”, (v. 14). Verifica-se aí um elemento utilizado para realçar a fidelidade
ao Criador, uma exaltação ao ser divino que não habita numa casa construída por
mãos humanas (1Rs 8,27) por ser o Criador do universo (Sl 148,4a). Desse Deus
exaltado, acima dos demais deuses, provém um amor exclusivo a Israel: hb'h]a;l.
hw"hy> qv;x' ^yt,boa]B; qr:ó “somente com teus pais quis YHWH amar”, (v.15). O v. 15
expressa um gesto de amor firmado por iniciativa própria do Criador. Uma
escolha feita para sempre e que perpassa gerações. Uma escolha firmada,
primeiramente, com os patriarcas e que se atualiza - hZ<h; ~AYK;, “como neste dia”
(v. 15b) - de geração em geração na história da comunidade, até os nossos dias.
- v. 15:
20
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 182.
67
A preferência de Deus por Israel é um ato de sua livre escolha, expresso
pelo uso da partícula restritiva e adversativa ‫ ַרק‬, “unicamente, exclusivamente,
exceto (que)”. Uma ligeira mudança se verifica no texto de Qumram ao grafar ‫על‬
‫“ כן‬sendo assim, posto isso” e não ‫“ ַרק‬somente, só” como é encontrado no TM.
Tal exclusividade exige uma explicação apresentada logo em seguida.
Num esforço de oferecer significado à história da formação de Israel, o
texto apresenta o termo ‫“ ַבּאֲב ֹתֶ י ִָך‬por teus pais” como início da eleição por Israel.
Há, de modo proposital, uma referência explicita em que Israel não passava de
uma junção de clãs. Ocorre uma retomada, ainda que de modo mais reduzido, das
explicações firmadas em Dt 7,7. Deus não escolheu um povo numeroso capaz de
atemorizar nações. A eleição acontece como um ato impar de amor por um grupo
de pessoas. O termo visa relacionar o hoje da ação divina com a geração passada.
Não se trata de uma simples citação à dimensão familiar. A afeição do Senhor por
Israel, parte de uma esfera familiar, passa pelos patriarcas, pela história dos
antepassados, e chega ao conceito do hoje de Israel, referência última no Dt. A
presença de Deus, no hoje de Israel, tem início junto ao período dos ‫“ אָבוֹת‬pais”,
no passado. Um entendimento histórico e não fruto do acaso. Ocorre uma nítida
intenção retrospectiva unindo o conceito de ‫“ ַבּאֲב ֹ ֶתי ִָך‬por teus pais”, e ~k,B', “vós
mesmos”, apesar da mudança redacional para a segunda pessoa do plural21. A
escolha, feita no passado, a uma descendência é a mesma. Esta continuidade está
no uso da preposição que reforça o aspecto temporal ~h,yrEx]a;, “depois deles”,
unindo as duas realidades – “por teus pais” e “vós mesmos”, concluindo com a
idéia presencial da ação divina: “como acontece neste dia de hoje” (v. 15b).
No v. 16, em continuação a segunda parte do v.15b, segue com o uso da
segunda pessoa do plural ao apresentar o ritual da circuncisão. Trata-se de não
suplantar o antigo gesto ritual que marcava a união entre Deus e a descendência
de Abraão, firmada como um pacto eterno (Gn 17). A narrativa deixa de lado os
vínculos de sangue, mas reutiliza o antigo conceito da aliança de sangue compreendida como meio capaz de selar o relacionamento mútuo - para
demonstrar uma união que compromete Israel no cumprimento a tudo aquilo que
se escuta.
21
Cf. TILLESSE, G. M., Sections “Tu”et sections “Vous” dans le Deuteronome. In: VT, n. 12,
1962, p. 37.
68
Deuteronômio oferece a nova concepção, ao realçar uma aliança espiritual
mediante uma circuncisão capaz de marcar o coração, na linha apresentada pelo
profeta Jeremias (Jr 4,4; Dt 30,6). Não se trata mais de um sinal capaz de definir
os limites familiares ou o grau de união a uma determinada genealogia, mas o
grau de escutar e a capacidade de praticar as palavras ditas por YHWH. Ao
apresentar a circuncisão do coração, o texto não deixa de apelar para a disposição
de escutar e praticar os mandamentos. Alerta para o perigo do endurecimento dos
sentidos. Há uma insistência que coloca Israel diante dos mandamentos de Deus.
É o Deus de Israel que circuncida, no desejo de que seu povo escolhido seja capaz
de agir e seja capaz de temê-lo, amá-lo e servi-lo. Israel é escolhido para
transformar e renovar a ação de YHWH no mundo. A aliança tem um valor
definitivo e permanente (Dt 30,6-7)22.
O termo jP;îv.mi, “direito”, (v.18), encontrado 422 vezes nos textos do
Antigo Testamento, recebe inúmeros significados23. No contexto de Dt 10,18-19 é
nítido que o termo jP;îv.mi é antecedido do verbo hf'[', “agir, atuar, fazer com”,
sublinhando que Deus atua, age para restabelecer a justiça, atua para estabelecer
certa equidade.
Aqui se trata de um aspecto positivo de uma ação em favor da
pessoa ou grupo que se encontram envolvidos em atitudes que o levam a
negligenciar seus direitos. Não é por acaso o uso da fórmula [YHWH]
rGE bheaow>
hn"m'l.a;w> ~Aty" jP;v.mi hf,ֹ[ “faz justiça ao órfão e à viúva e ama o estrangeiro”.
No contexto de Dt 10,18, vale elucidar que o uso do termo jP;îvm
. i “direito”
está em oposição aos inúmeros delitos realizados contra àqueles que deviam ver
garantidos, no interior da sociedade, suas condições elementares de sobrevivência.
22
Carrière chama a atenção para o fato de que a aliança representa um outro viés. Aqui se trata de
uma metáfora que intima Israel a buscar sempre uma renovação, como solicita o salmista (Sl
51,12). A aliança busca dar condições para que Israel tenha um promissor futuro. Tudo acontece
por iniciativa de YHWH. Ele não deve ser negligenciado. Para o redator do Deuteronômio, a
experiência da Aliança foi aprofundada ao longo das vicissitudes históricas de Israel. Aliança
compreendida como experiência e prática de igualdade em relação a um Deus parceiro de Israel.
Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio. Escolher a vida, São Paulo. Loyola, 2005, p.
115.
23
Cf. Johson realça os diferentes conceitos que o termo recebe: jurisprudência, oráculos e
adivinhações, direito legal, mandamentos e hábitos. Comparando com outros textos, o aspecto do
hábito pela justiça fica mais elucidativo. YHWH “ama” a justiça: Is 61,8; Sl 33,5; 99,4; a justiça
pode também ser observada: Mq 3,1; Ecl 8,5; deve se ter conhecimento para exercê-la: 1Rs 3,11; é
possível estabelecê-la: Am 5,15; Is 42,4. Procura-se compreender o termo justiça no contexto de
Dt 10,18. Cf. JOHNSON, B., ‫שׁפַּט‬
ְ ‫ ִמ‬. In: BOTTERWECK, J. G., RINGGREN, H., FABRY, HJOSEF. (Orgs.). In: Theological Dictionary of the Old Testament, v. 9, Michigan, William B.
Eerdmans Publishing Company, 1983, pp. 86-98.
69
Recorre-se a YHWH na certeza de que ele é capaz de realizar gestos objetivando
erigir a justiça,24e por isso a referência a YHWH, responsável pela superação do
litígio.
A equação essencial é a de saber que YHWH age com justiça25. As
normas expressas no livro são preceitos que enfatizam as relações sociais de
aproximação. O próximo é seu irmão e os grupos socialmente desfavorecidos
representam simbolicamente o estado do povo quando YHWH o libertou da
situação de exploração e servidão26.
“O que funda o povo é o fato de YHWH tê-lo feito sair do Egito, tê-lo
libertado da servidão na qual vivia no Egito. Se o acontecimento fundador
de Israel é um ato de libertação, então a atitude fundamental que mantém a
identidade e a singularidade do povo, ao longo das circunstâncias de sua
história, deve ser da mesma ordem: um ato de libertação, concretamente
mediatizado nas situações encontradas”27.
- v. 16:
Os dois verbos - ~T,lm
. ;W “circuncidareis”, e Wvq.t; “endurecereis” não
deixam de exortar Israel a evitar todo e qualquer tipo de comportamento que seja
capaz de impedir a praticidade das leis ordenadas por Deus. ~k,b.b;l. tl;r>[' tae
~T,l.m;W “circuncideis os prepúcios dos vossos corações”, é uma nítida retomada da
antiga aliança selada com os patriarcas (cf. Gn 17,9-12). Agora, se trata de marcar
o coração em vez da carne. É no coração que se assenta o juízo de todas as
“atividades intelectuais e volitivas do ser humano”28. Complementando a
24
Weinfeld não apenas anota que o termo justiça aparece como um conceito inserido num
contexto de justiça social, e por isso forma um binômio juntamente com o conceito ‫ְצדָ קָ ה‬
“equidade”. Os “termos ‫ מִ שְׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ ה‬foram considerados um ideal sublime, e por isso divino no
salmo 33,5: Ele ama a justiça e o direito, a terra está cheia do amor de YHWH”. ‫ ִמשְׁ ָפּט וּ ְצדָ ָקה‬foi
amplamente utilizado na literatura do Antigo Oriente e, mais tarde, veio influenciar toda a
literatura sapiencial e profética em Israel. No Código de Hammurabi encontra-se a afirmação
positiva de que Shamash, ele mesmo, dá a verdade (kinātum) e kittum u mīšarum são seus
presentes. Cf. WEINFELD, M., Justice and Righteousness – ‫ – מִ שִׁ ָפּט וּ ְצדָ קָ ה‬the Expression and its
Meaning. In: JSOT.S. 137, 1992, pp. 228-246. Buis relaciona os grandes feitos narrados nas
epopéias ugaríticas como uma ação imitada, agora, pela divindade absoluta israelita. Cf. BUIS, P.,
Le Deutéronome, Paris, Beauchesne, 1969, p. 180.
25
Deve-se ter alguma cautela diante das traduções encontradas em várias versões bíblicas,
conforme as ressalvas feitas por Krašovec. Na BHS é ampla e variada a utilização do termo justiça
(‫) ְצ ָדקָ ה‬. Nosso texto realça a maneira e a vontade de YHWH no agir diante de uma real situação.
Cf. KRAŠOVEC, J., La Justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et L´interprétation Juive et
Chrétienne, Freiburg Schweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 181-209.
26
Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p.
64.
27
Cf. Ibidem, p. 63.
28
Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p.
40. Sobre o significado metafórico da circuncisão do coração ver também CHRISTENSEN, L. D.,
70
fidelidade diante do Senhor, a narrativa retoma a formula dA[) Wvq.t; al{ ~k,P.r>['w> “e
vossas nucas não endurecereis mais”, um tema caro ao profeta Jeremias (cf. Jr
7,26; 17,23; 19,15; 32,33 e 48,39). Uma possível teimosia da parte de Israel,
diante do não cumprimento dos mandamentos, recebe, assim, essas duas
observações que recaem sobre o coração e a dura cerviz, antigas metáforas
utilizadas para demonstrar um coração fechado ao projeto de Deus.
- v. 17:
Os atributos de Deus, iniciados no versículo 14, são retomados nesta parte
do texto. Os domínios do Deus de Israel são incomensuráveis. No formato da
narrativa, pode-se destacar o grau de interação entre transcendência e imanência.
Isto é, o Deus, senhor dos céus atua também no universo humano não
diferenciando pessoas. Por meio de inúmeros atributos, percebe-se que ele é o
único Deus e os demais deuses são meros subalternos. A Ele a suprema divindade.
O Senhor está muito mais acima de qualquer outra divindade existente entre os
cananeus ou mesopotâmicos. Buscam-se gestos que enaltecem os atributos e
feições do ~k,yhel{a/, “vosso Deus”, por outro, as características não deixam de fazer
um forte apelo contra a idolatria, como bem ressaltam os atributos que lhe fazem
menção: a) ~yhil{a/h' yhel{a/ aWh “ele é o Deus dos deuses”. Considerando que os
deuses legitimavam um determinado regime político e seu poderio militar,
YHWH é apresentado estando acima de todos os deuses; b) ~ynIdoa]h' ynEdoa]w: “e o
Senhor dos Senhores”. O superlativo está na base dos atributos divinos, utilizados
como meios para exaltar a unicidade de YHWH; c) laeh' “o Deus”. O termo é
proveniente do universo ugarítico e não se trata, aqui, de um termo genérico
proferido a uma divindade qualquer, alheia às vicissitudes do povo. A recorrência
ao uso do artigo definido ‫ ה‬aponta para uma exaltação e identificação do ser e
entendimento de Deus; d) ldoÜG"h; “o Grande”.
A presença do artigo definido
qualifica e diferencia o Deus de Israel. Oferece a YHWH grande importância,
além de acenar para a eternidade. e) rBoGIh; “o Valente”. O epíteto descreve outro
atributo do Salvador de Israel; f) ar"ANh;w> “e o Terrível”: uma exaltação para confiar
no poderio salvífico de YHWH (Dt 7,21-22); g) ~ynIp' aF'yI-al{ “não faz
favoritismo”: indica uma explícita referência à onipresença de YHWH.
Deuteroonomy 1-11. In: WBC, p. 206; NELSON, D. R., Deuteronomy:a commentary, London,
Westminster John Knox, 2004, p. 137.
71
Literalmente traduzido como sendo um Deus “que não considera a face”, isto é,
não faz distinção de pessoas. O texto considera as relações humanas que sempre
se fundamentam nos interesses para sublinhar o modo de agir de YHWH; h) dx;v)o
xQ:yI al{w “e não aceita presente”: a sinceridade divina se estende compreendendo
seu modo de agir: um juízo que não se deixa corromper (Dt 16,19; 27,25). Seu
ser divino é justo em sua essência. Desta essência divina provêm a capacidade e
atributos capazes de exercer seu papel de juiz, que, em seu modo de agir, prioriza
a prática da justiça ao órfão, à viúva e ao estrangeiro (v. 18).
Não é por um acaso que se incia a frase recorrendo à partícula de cunho
explicativo yKi, “pois, porque”, ao discorrer sobre os atributos divinos29. O recurso
é utilizado para as ações divinas. Após a citação do nome de Deus, seguem sete
atribuições, considerando o uso implícito do verbo ‫“ הָיה‬ser, estar” seguido das
cinco atribuições, com seus respectivos verbos: aF'äyI-al{ “não favorece”, xQ:yI al{w>
“e não pega”, jP;v.mi hf,[ “faz justiça”, bheaow> “e ama” e tt,l', “e dá”.
- v. 18-19:
No vv. 18 e 19 ocorrem, pela primeira vez no livro, a referência à Trilogia
Social apresentada na seguinte ordem: órfão, viúva e estrangeiro. A ordem difere
das outras seis citações encontradas no livro que usam a seguinte ordem:
estrangeiro, órfão e viúva. A consequência de um Deus incapaz de aceitar
presente e, que por isso, não faz diferença de pessoas, agora, vê sua
imparcialidade e imanência em realce. Adonai atua no interior das relações sociais
e econômicas, no desejo de impedir a “vulnerabilidade humana nos negócios”30.
O status social das três categorias assemelha-se à figura de pessoas não contadas
em Israel. Atingem um determinado grau de pauperização que chega a identificarse com os grupos das viúvas, órfãos e estrangeiros. Encontram-se numa situação,
por demais adversa, das condições mínimas capazes de garantir sua
sobrevivência31. Nesta situação, Deus é apresentado como instaurador do direito.
29
A partícula explicativa ‫ ִכּי‬se explica em referência às sete atribuições (v. 17): 1) vosso Deus, 2)
Deus dos deuses, 3) Senhor dos senhores, 4) o Deus, 5) o Grande, 6) o Forte, 7) o Terrível e não ao
uso do verbo circuncideis (v. 16a), como analisa Nelson, ao comentar a narrativa. Cf. NELSON, D,
R., Deuteronomy:a commentary, London, Westminster John Knox, 2004,p. 137.
30
Cf. CHRISTENSEN, L. D., Deuteronomy 1-11. In: WBC, Vol VI, Texas, Word Books, 1991,
p. 207.
31
NELSON, D. R., Deuteronomy: a commentary, op. cit., p. 137. Ver as análises comparativas ao
termo estrangeiro feita por Bertrand, para quem ocorre uma associação proposital, nos textos
bíblicos. Das dezesseis vezes em que o termo ‫“ אזרח‬nativo, autóctone” é citado na BHS, quinze
vezes surge associado ao termo ‫“ גר‬estrangeiro”. “Uma só legislação utilizada para o nativo como
72
Uma divindade que produz, realiza, a exemplo do verbo ‫“ בּ ָָרא‬criar, fazer” denota
uma ação, um gesto divino em prol dos violados em seus direitos, ou vítimas de
um processo ou acontecimento social, que os qualifica nesses grupos
desfavorecidos. Realizar o direito é prova da imanência divina.
O termo técnico jP;v.mi “direito”, é apresentado como uma ação divina em
vista do bem-estar do órfão e da viúva, gesto inserido numa realidade social,
segundo deixa transparecer a afirmação de que Deus jP;vm
. i hf,[ “faz direito”, rGE
bheaow> “ama o estrangeiro” e hl'm.fiw> ~x,l, Al tt,l' “dá para ele pão e roupa”. As
ações do Todo-Poderoso se traduzem em restabelecer o direito aos grupos
negligenciados. Um gesto feito em meio às contradições históricas.
Como
outrora, na escolha de Deus por seu povo (Dt 7,8), Adonai age somente por bh;a',
“amar”. No texto, o gesto de amor vem explicitado: Ele garante - !t;n" “dar” pão ao estrangeiro.
A referência ao Egito (v. 22) é evidenciada por meio de uma equação
expressando duas realidades quantitativas distintas. A primeira, apresenta a
unidade vp,n< ~y[ib.viB, “setenta pessoas”, citada em outros textos, com a finalidade
de realçar aspectos da origem de Israel, ligada historicamente ao Egito, espaço
reconhecido como local de servitude e exploração (Gn 46,27; Ex 1,5). As origens
de Israel entrelaçam-se com o interior deste poderosíssimo império, responsável
por séculos de dominação (Ex 6,2-9). Uma segunda realidade certifica o
cumprimento das promessas feitas por YHWH. Recorrendo também à fração
quantitativa brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como estrelas numerosas nos céus”, o
crescimento de Israel ocorre por meio de sua união a YHWH. Israel tem a sua
frente uma nova realidade diferenciada de séculos atrás (Dt 10,10-18). Nota-se
que essas duas realidades podem, muito bem, ser relacionadas pelo uso da
partícula adverbial
hT'[;w> “e agora”. O jogo de contrastes opondo “setenta
pessoas” a “estrelas numerosas nos céus” é utilizado para certificar que Israel não
para o estrangeiro”. Cf. BERTRAND, M., BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques.
In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, p. 57. A
imanência do Deus de Israel pode ser constatada na defesa do estrangeiro e dos grupos sociais
desfavorecidos. Eis uma real e contundente maneira de apresentar as nações circunvizinhas a
Israel, YHWH. Cf. BRIEND, J., Le Dieu d’Israël reconnu par des étrangers signe de
l’universalisme du salut. In: BOVATI, P., MEYNET, R., (Orgs.), Ouvrir les Écritures, Paris, Cerf,
1995, pp. 65-76.
73
vive por si mesmo, mas tem sua prosperidade somente na relação com seu Deus,
que perpassa toda sua história.
Embora sempre tenha havido, ao longo de toda história de Israel, uma
relação com o país vizinho, a citação ao hm'y>r"cm
. i “Egito”, (v. 22) acompanha um
conceito ideológico32. Não se trata de evidenciar a segurança e refúgio encontrado
em tempos de estiagens ou guerras (Gn 12,10; 13,8; 45,6-8; 50,25). O país é
compreendido como terra da servidão, época do não ser, e, também da dominação
espiritual, quando das idolatrias vividas pela comunidade dos hebreus. Desta total
realidade do não ser, fez YHWH sair das terras da escravidão.
É neste sentido que os apelos feitos pelo narrador nos versículos 20-21
adquirem pleno entendimento. A um Deus que garante a vida deve-se temer,
servir, apegar, louvar diante das grandes obras realizadas em benefício de seu
povo. No contexto da narrativa o versículo 22 não se entende sem a constatação
da ação javista em favor de Israel: “estas grandes e terríveis coisas que viram os
teus olhos” (v.21). Israel não ama uma divindade amorfa, sem interesses por sua
vida e história. Pelo contrário, verifica-se uma intimidade, uma onipresença e uma
gratuidade envolvendo Israel e seu Deus.
A fidelidade a YHWH volta a ser conclamada, agora, de modo solene nos
vv. 20 e 21, que usam os quatro verbos: “temer”, “servir”, “apegar” e “jurar”.
Busca impedir o risco da comunidade ceder aos outros deuses, cultos e práticas de
sacrifícios, sempre condenados pelos profetas. A frase [;be(V'Ti Amv.biW dbo[]t; Ataow>
ar"yTi ^yh,l{a/ hw"hy>-ta,, “a YHWH, teu Deus, temerás e só a ele servirás, só em seu
nome jurarás”, presente em Dt 6,13 é retomada com o acréscimo de qB'd>ti AbW “a
ele te apegarás” (v. 20c).
Nos vv. 20-21, Deus volta a ocupar a centralidade na narrativa. Desta vez,
a partícula ‫ את‬introduz o complemento direto que é Deus merecedor do temor, do
serviço, do apego e do ato de jurar. Em outras palavras, a vida deve tê-lo como
eixo. Aqui, acontece uma repetição das ordens grafadas nos vv. 12 e 13, com o
acréscimo ao uso do verbo qb;D' “apegar”. O v. 21 parece estar respondendo os
motivos de ter Deus como senhor de tudo. A resposta implica na retomada de um
dos atributos divinos presentes no v. 17 - ar"ANh;w> “e o terrível” – juntamente com
32
O realce é estabelecido pelo uso do sufixo he-locale que ofere realce ao substantivo Egito. A
tradução poderia ser: para o Egito. Cf. KELLEY, P. H., Hebraico Bíblico: uma gramática
introdutória. São Leopoldo, Sinodal, 2002, pp. 179-180.
74
outras duas indicações de cunho litúrgico, segundo a utilização dos substantivos:
^t.L'hit. “teu louvor”, e ^yh,l{a/ “teu Deus”. Tal apelo se justifica na fórmula hL,aeh'
taor"ANh;-ta,w> tl{doG>h;-ta, “estas grandes e terríveis coisas”, (v. 21) soam como uma
espécie de resumo do que aconteceu durante a saída da terra da escravidão,
vividos pela comunidade, na expressão conclusiva do versículo: ^yn<y[e War" rv<a],
“que viram teus olhos”, (v. 21).
- v. 22
A declaração hm'y>r"c.mi ^yt,boa] Wdr>y" vp,n< ~y[ib.viB. “com setenta pessoas teus
pais desceram ao Egito” (v. 22a), é uma retomada das promessas, feitas em torno
do pacto da aliança e presentes em outros textos (Cf. Gn 46,27; Ex 1,5; Dt 1,10).
O prometido é realizado. A promessa se realizou. Concretizou-se, segundo a frase
utilizada no fechamento da pericope: ‫ַשׁ ַמי ִם לָר ֹב‬
ָ ּ ‫“ כְּכוֹ ְכבֵי ה‬como estrelas numerosas
nos céus”. O Senhor cumpriu sua promessa e, por este motivo, ocupa o centro das
atividades de Israel. Ocorre a citação de duas referências numéricas que não se
contrapõem, mas se completam, no desejo de mostrar o crescimento, diante da
cifra vp,n<ë ~y[ib.viB., “com setenta pessoas”, (v. 22a) lembra a vivência dos patriarcas
em terras do Egito, de onde os fez sair YHWH (Gn 46,27b; Ex 1,4-5).
A descendência de Abraão se une ao agora, ao presente, à atualidade da
comunidade israelita como meio de legitimação das promessas de YHWH em prol
de Israel. Uma outra verificação acontece na cifra brol' ~yIm:V'h; ybek.AkK. “como
estrelas numerosas nos céus”. O contexto de Dt 10 prova o crescimento
incalculável da comunidade, o que não deixa de ser uma realização da promessa
divina. Há uma particularidade por parte do próprio YHWH, ao se identificar com
os patriarcas nas terras do Egito e com o presente vivenciado pela comunidade:
^yh,l{a/ hw"hy> ^m.f' hT'[;w> “e agora dispôs-te YHWH, teu Deus” (v. 22b).
3.2.
Há um tempo determinado para a justiça: Dt 14,28-29
O capítulo 14 insere-se entre os capítulos 12-26, reconhecidos como a
parte primitiva do livro ou proto-deuteronômio33. Quatro grandes grupos de
33
Os comentários sobre os inúmeros círculos redacionais imposto ao livro do Dt são convergentes.
Desde os estudos publicados por Martin Noth, a crítica vétero-testamentário indica um processo
redacional responsável “pela construção do livro do Deuterônomio”. O livro é resultado da soma
75
normas podem ser encontradas ao longo desses capítulos e divididas nos seguintes
estilos narrativos: leis sobre o culto (12,2-16,17), leis sobre o modo de vida no
interior das cidades (16,18-20; 20), leis comportamentais destinadas à vida
familiar (21,1-23) concluindo com leis de pureza social e ritual (23,2-25; 26,115)34.
Entre os capítulos 14-15,23 podem-se constituir certas unidades literárias35
subdivididas em seis diferentes blocos narrativos: a) Alerta contra práticas
idolátricas (Dt 14,1-3); b) Determinação das práticas alimentares definidas como
puro e impuro (Dt, 14,4-21); c) Alerta sobre a prática do dízimo, dividida em duas
unidades: dízimo anual proveniente do resultado da colheita e entregue num
santuário determinado por vontade de YHWH (Dt 14,22-27) e dízimo trienal,
também resultado da colheita, mas entregue para o consumo do levita, estrangeiro,
órfão e viúva (Dt 14,28-29); d) Determinação do ano sabático e as obrigações
sociais a serem praticadas (Dt 15,1-11); e) Normas de comportamento entre
escravos e proprietários na chegada do ano sabático (Dt 15,12-28); f)
Obrigatoriedade na consagração dos animais primogênitos, num lugar
determinado por YHWH (Dt 15,19-23).
Tais leis, quando subdivididas, formam a estrutura, descrita a seguir, tendo
como tema central leis voltadas às necessidades dos grupos socialmente pobres:
a) Dt 14,1-3
Apelos contra a idolatria
de inúmeros círculos literários, divididos entre as épocas pré e pós-exílica, constituindo os
respectivos códigos: D (Proto-Deuteronômio), “encontrado” no interior do templo, na época do rei
Josias (622), tendo suas tradições oriundas do Reino do Norte; dtn (deteronômico) referindo-se à
época pré-exílica que de certa forma trabalhou sobre as antigas fontes D; dtr (deuteronomista)
elaboração feita no pós-exílio e DtrG (Obra histórica deuteronomista) responsável pelos livros de
Js-2Rs. No trabalho da tradição deuteronomista pode-se, ainda, constatar outras três tradições:
DtrH (Deuteronomista historiador), DtrP (Deuteronomista Profético) e por último a presença de
uma tradição de cunho DtrN (Deuteronomista Nomista). Cf. GRADL, F.; STENDEBACH, F. J.,
Israel e seu deus - Guia de leitura para o Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2001, pp. 48-75.
Ver a síntese exposta por Carrièrre. Cf. CARRIÈRRE, J-M., O livro do Deuteronômio:Escolher a
vida, São Paulo, Loyola, 2005, p. 34. As recentes pesquisas, bem como seus resultados
consensuais e divergentes, sobre a obra Deuteronomista, vêm sendo acompanhada, no Brasil, pelo
professor Airton José da Silva. Em artigo publicado com base nos últimos simpósios
internacionais o autor apresenta os resultados mais recentes das pesquisas que estão longe de
atingir um patamar consensual. SILVA, J. A., O contexto da obra histórica deuteronomista. In:
EsBi. 88, 2005, pp. 11-27.
34
Cf. BUIS, P., Le Deutéronome. Paris, Beauchesne, 1969, p. 219.
35
Ao considerar a realidade agro-pastoril refletida nos princípios legais, pode-se determinar um
corpo literário estabelecido nos capítulos 14,1-15,23. Tal divisão não é consensual entre nos
estudos do Dt. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentário, op. cit. p. 252;
NELSON, R.D., Deuteronomy – a commentary, op. cit. p. 182; Christensen opta pela mesma
divisão apresentada por Buis. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised. In:
WBC, vol. 6a, Texas, Thomas Nelson, 2001, p. 295.
76
b) Dt, 14,4-21
Determinação do puro e do impuro
c) Dt 14,22-27
Prática do dízimo anual entregue no santuário
d) Dt 14,28-29
Obrigatoriedade do dízimo trienal entregue aos
grupos desfavorecidos
e) Dt 15,1-11
Determinação e periodicidade do ano sabático
f) 15,12-28
Obrigatoriedades sociais no ano sabático diante do
escravo compatriota
g) Dt 15,19-23
Obrigatoriedade dos animais primogênitos
O legislador do Deuteronômio se apóia em referências temporais para
expressar o caráter humanitário das normas apresentadas. O legislador
deuteronômico não se deixa dividir entre o utópico e o universo real, após realçar
a unicidade e a relação singular entre Israel e seu Deus (14,1-21). Há um tempo
bem fixado para se cumprir a oferenda do dízimo anual e trienal, a remissão das
dívidas e a libertação dos escravos somados à lei da primogenitura (14,22-15,20).
Percebe-se a junção entre o comportamento ético e religioso.
3.2.1.
Dt 14,28-29: tradução, aspectos filológicos e variantes
Ao final de três anos, tu tirarás
28a
a décima parte de toda a tua
rf;[m. ;-lK'-ta, ayciAT ~ynIv' vl{v' hceqm. i
awhih; hn"V'B; ^t.a'WbT.
colheita desse ano
e
disponibilizarás
nos
teus 28b
`^yr<['v.Bi T'x.N:hiw>
29a
ywILeh; ab'W
%M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae yKi
portões.
Virá o levita,
Porque ele não tem parte e nem 29b
herança contigo,
o estrangeiro, o órfão e a viúva,
29c
que vivem nas tuas vizinhanças,
rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w>
W[bef'w> Wlk.a'w> ^yr<['v.Bi
comerão
e se satisfarão.
A fim de que, te abençoará 29d
YHWH, teu Deus
^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> ![;mÛ;l.
77
em toda a obra que tua mão
29e
fará.
rv<a] ^d>y" hfe[]m;-lk'B.
`hf,[]T;
Duas variantes são apresentadas no v. 28. Em 28b o verbo xwn “depositar,
colocar, descansar”, na segunda pessoa do singular, no hifʻil, descreve a simples
ação de entregar parte da colheita em um lugar determinado: T'x.N:hiw>, “e depositarás,
colocarás à disposição”. Uma alteração gráfica ocorre no Pentateuco Samaritano e
na LXX, grafada também no hifʻil com o sufixo da terceira pessoa ATx.N:hiw>, “e as
depositará”. A LXX utiliza qh,seij auvto., “deposita-la-á”, usando o pronome
pessoal acusativo neutro da terceira pessoa, seguido do verbo no futuro, como faz
o TM. Uma segunda alteração está registrada no v. 28, refere-se ao termo ^yr<['v.Bi,
“nos teus portões”. Alteração encontrada na Gueniza do Cairo, grafada na forma
‫ בשערך‬e no Targum encontrada com o sufixo da segunda pessoa plural ‫בשעריכם‬,
podendo ser traduzida como “em vossos portões”.
No v. 29, considerando a grafia hfe[m
] ;-lk'B. “em todo o trabalho, tarefa”,
presente no TM, encontramos as seguintes variantes: 1) o texto grego da LXX na
edição tardia em contrastes com as revisões posteriores grafa sou evn pa/sin toi/j
e;rgoij, “em todos os seus trabalhos”, sendo equivalente à ‫שֺיָך‬
ֶ ‫ בכל מע‬conforme
15,10. 2) Outras inúmeras variantes são encontradas nos códices dos manuscritos
hebraicos 1.9. No texto da LXX, segundo recensão de Luciano, nos minúsculos
códices ou em alguns textos da LXX, segundo Orígenes de Alexandria, verificamse alguns asterísticos. A versão Siríaca/Peshitta e a Vulgata utilizam a forma ‫בכל‬
‫מעשה י ָדֶ יָך‬, contrastando com o Targum Yerushalmi I que a utiliza ‫בכל מעשי ידיכם‬,
“em todos os feitos de vossas mãos”. Outros códices cursivos (minúsculos) da
LXX omitem hf,([]T; rv<a] “que fará, que irá realizar”. Com base no uso feito por
alguns manuscritos na utilização da segunda pessoa do plural, em tradições mais
recentes, não ocorre nenhuma variante ao TM.
3.2.2.
Delimitação do texto, composição e estrutura
A delimitação da perícope (Dt 14,28-29) se faz considerando a
apresentação das leis religiosas e os deveres com o pagamento dos respectivos
78
dízimos. São encontradas duas leis sobre o dízimo: a primeira elucida o dízimo
anual (vv. 22-27) e a segunda, o trienal (vv. 28-29). As duas são distintas.
Guiando-se pelos textos, a evidência recai, sim, sobre a dimensão social do
dízimo, mas as narrativas são distintas. Se, na primeira – dízimo anual – prevalece
a oferta feita a YHWH, num santuário determinado (vv. 22-27), a segunda
evidencia, como principal destinatário, não mais o templo ou a manutenção dos
serviços realizados em seu interior, mas um grupo social formado por pessoas
desfavorecidas bem delineadas: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (vv. 2829). A delimitação do texto ocorre ao considerar a nomeação do dízimo anual
(14,22-27), trienal (14,28-29) e pela legislação do ano sabático (15,1-11). As leis
destacam o universo cultual, disponibilizando os bens a dois destinatários:
YHWH e grupos sociais formados pelo levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva.
Uma outra observação favorável a essa divisão das narrativas em dois
blocos – a) vv. 22-27, b) vv. 28-29 – são as três referências temporais citadas em
diferentes épocas relacionando, também, diferentes dízimos: hn"v' hn"v' “a cada
ano”, (14,22), ~ynI©v' vl{åv' “a cada três anos”, (14,28), ~ynIv'-[b;v, “a cada sete anos”,
(15,1). Nota-se a insistência em precisar o tempo de pôr em prática as leis.
Embora se trate de um outro tema, a libertação dos escravos, bem como a
remissão das dívidas e a oferenda do primogênito, são, também, fixadas num
determinado tempo36.
Trata-se de uma lei apresentando um enunciado. A intenção da lei é
elucidar a importância do dízimo oferecido no seu devido tempo: a cada três anos.
A preposição ‫מן‬, compreendida como “a partir de, desde, depois de”, oferece um
caráter enfático ao substantivo hc,q', “fim, extremidade”, dando à narrativa um tom
fortemente imperativo. Não se trata de qualquer época. Nada acontece à revelia ou
por vontade própria. O ciclo, a temporalidade para dispor do dízimo é bem
definida: “ao final de três anos”.
Num segundo momento é apresentado o material sobre o qual vigora a lei.
Neste caso é notório que está em questão certa quantia proveniente de parte do
resultado da colheita (v.28a). Como não poderia deixar de ser, a lei apresenta
aqueles que têm o direito ao beneficio por ela estipulado (v.29a-c). Os portões das
cidades são os lugares onde devem acontecer, como sinal de prova do
36
Cf. CARRIÈRE, J.M., O Livro do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, p.
30.
79
cumprimento legal (v.28b). Há, enfim, a finalidade de praticar a lei, ou seja, aparece
um arcabouço ideológico que justifica: a prosperidade diante de YHWH (v.29d). Pode-se
realçar o seguinte delineamento à narrativa:
v. 28a
periodicidade
a cada três anos
da lei
b
v. 28
elucidação
todo o dízimo da colheita dispô-lo
nas portas das cidades
v. 29a
Beneficiários
levita, estrangeiro, órfão e viúva
v. 29b
Motivação
não tem parte na herança
lugar
comerão nas portas até ficarem
v. 29c
determinado
saciados
v. 29d
conclusão
benção de YHWH em todos os
trabalhos
3.2.3.
Comentário e análise semântica
A origem dessa rf;[m
. ;, “décima parte”, a ser separada, também é
determinada no texto. Verifica-se ser a parte correspondente de toda a quantia
produzida ao longo do ano: rf;[m
. ;-lK'-ta,, “e toda décima parte”, do produto da
terra ou da colheita. O resultado da separação deve ser colocado à disposição dos
necessitados, segundo o sentido do verbo ‫ יצא‬no hif`il, junto às portas das
cidades. Trata-se de uma quantia vista como abundante, e disposta junto à porta
da cidade, produtos animais e vegetais colhidos em Israel, considerados
suficientes para suplantar os limites da pobreza37. Os beneficiados são bem
definidos no texto: o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 29). O objetivo é
de receber, por parte de YHWH, a bênção em todas as ações empreendidas. Tratase da afirmação renovada diante de YHWH e o ofertante. Estar diante de YHWH
é renegar qualquer dependência aos deuses cananeus38.
37
Cf. SÁNCHEZ, E., SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires,
Kairos, 2002, p. 301.
38
Cf. ZABATIERO, J. P. T., “Em busca de uma economia solidária: Dt 14,22-15,23, resistência
popular e identidade social”. In: EsBi, 84, 2004, p 14.
80
Uma legislação sobre o modo de dividir o dízimo foi fundamental para
poder medir o grau de liberdade e solidariedade existentes, já, na época em que
Israel esteve sob o regime de dominação Assíria39. Não se sabe se o dízimo trienal
somava-se ou não ao dízimo anual citado nos versículos 22-2740. A décima parte
da colheita pertence às classes desfavorecidas e aqui determinadas na pessoa do
levita, do estrangeiro, do órfão e da viúva e será disponibilizada nas portas das
cidades41.
“Nenhum código anterior ao Deuteronômio regulamenta o dízimo. Sabemos de
sua existência anterior em Israel e Judá através de textos como Am 4,4 e das
narrativas do Gênesis e na “lei do rei” em 1Sm 8 (texto deuteronomista). É
sabido também que em vários outros países do antigo Oriente o dízimo era
praticado. Provavelmente, em Judá e Israel, o dízimo fosse praticado como
tributo pago à casa real e não como uma oferta cúltica, uma vez que na chamada
Privilegrechte Jahwes e no Código da Aliança somente se mencionam as
primícias e os primogênitos”42.
Fruto da convergência de inúmeras tradições literárias, o Dt não poderia
deixar de apresentar diversos enfoques. Constata-se que duas diferentes
finalidades na coleta do dízimo foram estabelecidas, recebendo um viés que as
diferenciam das práticas estabelecidas nos principais santuários dos reinos de
Israel. As leis de centralização do culto modificaram tremendamente um grande
número de costumes religiosos, em particular as ofertas dos dízimos43. O dízimo não
está centralizado num determinado santuário, mas determinado para ser
consumido nas portas das cidades, por grupos socialmente fracos, como sinal
eficaz na busca de equilíbrio social.
39
Segundo o conteúdo encontrado em Am 4,4 e sobre a importância do santuário como local de
administração das finanças do reino (1Rs 12,26-28), pode-se, com grande clareza, perceber a
origem e importância do sistema do dízimo na manutenção das províncias de Judá e Israel, já na
época do império Assírio. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no
Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 305.
40
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, Madrid, Cristiandad, 1970, p. 322. O mesmo pode
ser notado nas considerações de Crüsemann ao procurar elucidar a importância do dízimo, já na
época dos dois reinos em Israel. O dízimo tornou-se um imposto obrigatório instaurado pela
própria realeza do país (1Sm 8, 15-17; Am 4,4; Gn 28,22). Cf. CRÜSEMANN, F., op. cit. pp.
304-307.
41
Nota-se certa insistência, quase uma obrigatoridedade por parte dos autores frente ao ato de
disponibilizar o dízimo. Embora esquivando-se da noção de retribuição, Zabatiero afirma certa
“coerção” religiosa, foi um gesto plausível de certa pecaminosidade humana percebida pelos
autores do Deuterônomio. Cf. ZABATIERO, J. P. T., op. cit., p.13.
42
Ibidem, p. 185.
43
Não é sem sentido a argumentação de Abba de que os deuteromistas harmonizaram antigas
tradições com as funções sacerdotais vinda da tribo de Levi e as de Arão. “Ambos, padres e
levitas, recebem igual menção no Deuteronômio, cada qual mencionado quatorze vezes, e suas
respectivas funções são claramente descritas”. Cf. ABBA, R., Priests and Levites in Deuteronomy.
In: VT, n. 27, 1977, p. 258.
81
Comparado aos demais textos do livro, onde somente são citados, na
trilogia, o estrangeiro, o órfão e a viúva, o grupo dos levitas é acrescentado como
beneficiário dos bens produzidos pela comunidade. O levita é uma figura
emblemática por estar ligada às antigas tradições sociais e redacionais vindas do
Reino do Norte44. Sua figura representa alguém merecedor de solidariedade, por
isso, a novidade do autor Deuteronomista de colocá-lo ao lado de outros grupos,
reconhecidos como pobres.
“Os levitas e os sacerdotes levitas fazem parte de Israel, sem dúvida e de modo
inquestionável. Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes
explicitamente, das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (Dt
14,27; 18,1). O Dt não contém regras para sacerdotes”45.
Aqui, nota-se um tom elucidativo ao afirmar sua precária situação e
os motivos de ser um beneficiário: %M'[i hl'x]n:w> ql,xe Al-!yae( yKi ywILeh; “o levita,
porque ele não tem parte da herança contigo”, (v. 29). Não é difícil provar que,
mesmo diante dos movimentos reformistas ocorridos nos reinados de Ezequias e
Josias46, essa instituição, ao lado da função da realeza e do movimento profético47,
manteve seu prestígio ao longo das diversas fases históricas de Israel48.
Para alguns autores, a citação dos levitas, como beneficiários, liga-se às
redações tardias igualando a figura do levita à do sacerdote. Não é difícil imaginar
44
O livro do Deuteronômio não deixa de ser uma etapa importante na compreensão do sacerdócio.
A união entre sacerdócio e levita apresentada ao longo do Código Deuteronômico considera
diferentes momentos da história social e religiosa de Israel. Sabe-se que, após a queda da Samaria,
os grupos de levitas se encontram em condições de decadência social e são apresentados,
juntamente com o grupo do estrangeiro, merecedores da proteção legal. Pode-se admitir a
existência de dois grupos: os responsáveis diretos pelo culto e outro, como os levitas, diretamente
ligados à prática do ensino. Os sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei num
período recente. Cf. AUNEAU, J., Sacerdote. In: GAZELLES, H.; FEUILLET, A., (Orgs.),
Dictionnaire de la Bible, supplément, vol. 10, Paris, Letouzey & Ané, pp. -1170-1254. Os
sacerdotes levitas e recebem como função estabelecida em lei uma exclusividade sacerdotal
45
Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento,
Petrópolis, Vozes, 2002, p. 309.
46
Sobre a questão sacerdotal, no tocante à sua origem, ao grau de importância e influências
sentidas diante das reformas históricas há inúmeras controvérsias. Verifica-se que a crítica literária
dos textos com referência aos levitas é um tanto complexa. Cf. DE VAUX, Instituciones del
Antigo Testamento, Barcelona, Herder, 1992, pp. 439-443; 462-478; CARRIÈRE, J. M., O Livro
do Deuteronômio: Escolher a vida, São Paulo, Loyola, 2005, pp. 66-74; EPSZTEIN, L., A justiça
social no Antigo Oriente Médio e o povo da Bíblia, São Paulo, Paulinas, 1990, pp. 75-76; 89-90;
143-144. Não é difícil perceber alguma consequência da reforma empreendida por Josias (621),
estritamente focada na centralização do culto a YHWH, em Jerusalém, visto como o santuário
único, uma vez que sua implementação impulsionou a destruição dos santuários altos e baixos (II
Rs 23,5-7.15.19-20), contribuindo, de modo vertiginoso, na mudança e na distinção de funções e
status entre os sacerdotes. Cf. CRÜSSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no
Antigo Testamento, Petrópolis, Vozes, 2002, p. 297. Talvez o final da monarquia condicionasse a
equiparação social do levita na condição idêntica a do estrangeiro.
47
Três grupos considerados como líderes do povo e da aliança. Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio:
introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p. 294.
48
Cf. CARRIÈRE, J. M., O Livro do Deuteronômio, São Paulo, Loyola. 2005, p. 70.
82
que as reformas de caráter centralizador causaram um grave problema às pessoas
ligadas aos santuários locais, seja sacerdote ou levita. De Vaux argumenta a
possibilidade de antigas tradições sob o controle de grupos sacerdotais ligados ao
santuário de Siquém, cujos líderes queriam transformá-lo em um “único local de
culto”, preservou antigos hábitos existentes no Reino do Norte, berço redacional
das tradições proto-deuteronômicas, entre as quais a proteção perpétua ao grupo
dos levitas. Diferenciação estabelecida por um decreto positivo da parte do
próprio Deus49.
O aspecto tardio de citar o sacerdócio levita também é reafirmado por
López, para quem os versos, muitas vezes, no livro do Deuteronȏmio se
interompem sofrendo uma espécie de junção50. Para Sánchez, a ressalva está em
perceber, ao longo das leis expostas em Dt 14,22-16,17, a afirmação da divindade
exclusiva de YHWH, expressa por meio das atividades cultuais e que se estendem
às outras esferas da vida: festas, alegrias, propriedades, bens, liberdades. São
momentos que edificam o projeto de
igualdade entre todos os membros da
51
comunidade .
Num outro momento, a norma legal exposta em Dt 14,29 enfatiza o grau
com que a prescrição jurídica deve acontecer. A insistência pode ser verificada no
uso dos verbos W[bef'w> Wlk.a'w>, “comerão e satisfarão”, (v. 29c). Na importância da
função verbal fica evidente que o gesto de disponibilizar 10% de todo o produto
da terra dá a certeza de aquisição de uma excelente quantidade de viveres (azeite,
carne, trigo e vinho) e do alto teor humanitário a ser vivido no interior da
comunidade. O consumo do dízimo no santuário é um aspecto do sistema de
arrecadação; outro, é a consideração com as pessoas que não eram proprietárias de
terras. Eis uma temática inovadora dos estatutos deuteronômicos.
“O que o texto reflete e legisla é um processo de empobrecimento de
israelitas livres, o qual culmina em geral na servidão voluntária ou forçada
das pessoas empobrecidas e/ou endividadas. Tal processo de
empobrecimento, na Antiguidade, está relacionado sobretudo com a
prática de fazer dívidas. Camponeses que, por motivo de força maior (seca,
pragas de gafanhotos, doença, etc), não conseguem colher o suficiente em
49
Cf. DE VAUX, R., Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., pp. 465-476.
Cf. LÓPEZ, G. F., Analyse Littéraier de Deutéronome, V-XI. In: RB, 87, 1978, pp. 5-49.
51
Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., 2002, p. 279.
50
83
sua roça para sobreviver durante o ano, recorrem a empréstimos junto a
outros israelitas ou junto a instituições como o próprio templo”52.
As
duas
ações
verbais
no
v.
28,
ayciAT, “tirarás”, e T'x.N:hiw>,
“disponibilizarás”, grafados na forma hif`il, oferecem coesão e sentido na
narrativa. Trata-se de uma ação feita pelo proprietário da terra ou por ele
encomendada para cumprir a lei. A lei fixa um período determinado, bem como a
quantia a ser disponibilizada nos portões da cidade.
Nota-se, considerando alguns termos, que o universo social contemplado
pela lei do dízimo trienal é de uma realidade agro-pastoril: ~ynIv' vl{v' hceqm
. i “ao
final de três anos”, (v.28a); ‫ש ֹה‬
ַ ‫“ מַ ְע‬décima parte”, (v.28a); ^yr<['v.Bi, “nos teus
portões”, (v.28b) ; ‫“ ַה ֵלּוִי‬o levita”, (v.29a) e ^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> “YHWH, teu Deus
te abençoará”, (v.29d). No interior dessa sociedade deve surgir um equilíbrio
social. As normas (vv.28-29) em torno do dízimo realçam o equilíbrio social, no
interior da própria cidade53.
O período determinado para efetuar o pagamento dos bens adquiridos no
ano pode servir de fio condutor na compreensão do dízimo e de sua finalidade. A
prática do dízimo recebe leis determinantes. Nada ocorre ao bel prazer do
proprietário que controla sua arrecadação.
O substantivo ‫ ַמעֲשֶֹה‬da raiz aramaica ‫שר‬
ַֺ ‫ ָע‬, implica o conceito de grupo,
divisão, coleção, originando o entendimento de dízimo como parte de um todo54.
Trata-se de uma prática comum nas antigas civilizações do Antigo Oriente55, que
já era praticada no Antigo Israel e que, devido à sua importância, recebe, no
52
Cf. REIMER, H., Um tempo de graça para recomeçar: o ano sabático em Êxodo 21,2-11 e
Deuteronômio 15,1-18, In: RIBLA, 33, 1999, p. 37. Análise consensual faz Wandermuren na
abordagem sobre as exigências a serem praticadas com o advento do ano jubilar. Ocorre uma
reinterpretação da antiga lei da terra, imprimindo um prisma mais social. “O ano de repouso do
campo é transformado em ano de remissão das dívidas”. Cf. WANDERMUREN, M., A lei do
ano sabático – para que pobres achem o que comer: um estudo sobre Êxodo 23,10-11. In: RIBLA,
33, 1999, p. 54.
53
A prática do dízimo constitui uma espécie de sacrifício entregue regularmente num único
santuário. A relação santuário e dízimo é muito antiga (Gn 28,22; Lv 27,30; Am 4,4). Cf. VON
RAD, G., Deuteronomio, Brescia, Paideia Editrice, 1979, p. 114. Craigie, considerando o ciclo
sabático de sete anos, argumenta a possibilidade de o dízimo trienal sofrer destinos diferentes.
Uma vez para o santuário, outra para os grupos socialmente necessitados. Cf. CRAIGIE, P. C., The
Book of Deuteronomy, Michigan, William B. Eeardmans, 1976, p. 234.
54
Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K., DITAT, p. 1182. BROWN, F. –
DRIVER, S. – BRIGGS, C. – The Brown-Driver-Briggs. Hebrew and English Lexicon,
Massachusetts, Hendrickson, 1996, pp. 798-799. Na LXX usa-se o δεκάτε, δέκατον.
55
Verifica-se que a prática do dízimo está intimamente ligada ao ato de agradar certa divindade,
no Egito, já na época dos antigos faraós. Os patriarcas fazem uso de uma prática muito comum
(Gn 41,34; 14,20). Cf. LESÉTRE, H., Dime. In: DBS, vol. 2, 1926, pp. 1431-1425.
84
Deuteronômio, uma lei determinando quando pagar, quanto pagar, a quem pagar,
onde pagar e por quê pagar. Compreende-se que esses cinco quesitos são
respondidos, de modo evidente, nesses dois versículos:
1) ~ynI©v' vl{åv' hceq.mi, “ao final de três anos” (v. 28a), é o tempo determinado
para se efetuar o pagamento do produto a ser disponibilizado aos setores pobres
da comunidade. A referência ao termo “final de três anos” realça a diferença no
tipo de dízimo a ser oferecido. Com base nas declarações de Dt 14,22-2756, não é
difícil verificar a existência de um outro estilo de dízimo oferecido no santuário e
marcado com um ritual de peregrinação e comunhão entre os membros da família.
Trata-se de um dízimo anual, direcionado ao santuário e marcado como banquete
sagrado, do qual, nenhum dos filhos de Israel deve se furtar nem medir esforços
para oferecê-lo (14,24-25).
2) rf;[.m;, “décima parte” (v. 28a), é a quantia que foi sendo determinada
como medida nas ofertas provenientes de todos os esforços empreendidos. O
termo não é por demais fluente nos textos do AT57, mas adquire um papel
relevante na manutenção das atividades e dos grupos que circulam na esfera do
santuário (Cf. 2Cr 31,5; Am 4,4), e no entendimento do desejo de partilhar, prover
víveres aos grupos pobres da sociedade, além de ser uma obrigatoriedade pública
no gesto de exigir a divisão de riquezas acumuladas58.
3) ^yr<(['v.Bi, “nos teus portões” (v. 28b), assegura a antiga tradição de ser a
r[;v;, “porta”, o lugar escolhido por excelência para dirimir qualquer assunto
relacionado à prática da justiça (Cf. Am 5,15; Dt 5,14). No contexto social do v.
28, foi o local destinado para reunir o povo (Cf. 2Rs 7,1), com a assembléia dos
anciãos, responsável pelo sistema de jurisprudência (Cf. Dt 21,19; Am 5,10),
testemunho das vitórias no campo de batalha (Cf. Js 8,29; 2Rs 7,17), local
56
A quantidade de dízimos coletados e oferecidos, seja aos santuários ou aos grupos socialmente
necessitados, não encontra consenso em grupos de autores. Defende-se a existência de dois ou três
dízimos coletados ao longo de um período de um ano. Seja qual for o número de vezes em que
ocorre a coleta, constata-se uma dimensão essencialmente social, voltada para o estabelecimento
da justiça entre os filhos de Israel. O Código Deuteronômico evidencia dois tipos de dízimo: anual
e trienal (Dt 14,22-27; 26,12-15). Outros autores defendem três tipos de dízimos comparando Lv
27 e Nm 18: dízimo dado aos levitas (Dt 14,27; Nm 18); o dízimo destinado ao santuário,
celebrado como um banquete sagrado de comunhão (Dt 14,22-26); e um terceiro, disponibilizado a
cada triênio aos pobres (Dt 14,28-29). Cf. HARRIS, R. L. – GLEASON, L. A. – WALTKE, B. K.,
DITAT, p. 1183.
57
Cf.LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen Alten Testamment, Stuttgart, Deutsche
Bibelgesellschaft, 1981, pp. 844-845.
58
Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento,
Petrópolis, Vozes, 2002, p. 302.
85
essencial nas transações comerciais e preferido pelos profetas no anúncio de suas
mensagens (Cf. Jr 7,2; 15,7).
Interessa o local destinado para dispensar o dízimo de toda a colheita: um
lugar público59, onde serão disponibilizados os produtos para serem consumidos
por grupos de levitas, estrangeiros, órfãos e viúvas - os socialmente fracos60 - e
ser, deste modo, capaz de ser comprovado e controlado, possibilitando aos grupos
socialmente fracos adquirirem uma base sólida suprindo suas necessidades
básicas.
4)
ywILeh;,
“o levita” (v. 29a),
a esse grupo juntam-se os pobres,
destinatários exclusivos para consumir os bens disponibilizados à porta. O levita
é, aqui, apresentado juntamente com os desfavorecidos. Sua sobrevivência
depende de seus irmãos e, por estar ligado ao ato de ensinar a lei, sem a garantia
de herança e manter as atividades cultuais e religiosas na esfera dos santuários, é
merecedor de certa parcela do dízimo trienal.
5) ^yh,l{a/ hw"åhy> ^k.r<b'y> ![;mÛ;l. “deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará”
(v. 29d). Trata-se de uma decisão que se projeta para o futuro. Este é o motivo de
todo o conjunto de normas, provenientes da vontade de YHWH, capaz de ser
praticada por toda a comunidade de Israel. Não há como pensar uma sociedade
teocrática fora desse parâmetro. Verifica-se, por outro ângulo, o estilo por demais
utópico, de plenitude, ao deduzir a finalidade de praticar todos os mandamentos:
cumpri-los é a garantia de ser bem sucedido.
“A inclusão solidária dos fracos na riqueza da produção proporciona a bênção para
o trabalho que torna isto possível. E as formulações estão relacionadas às leis sobre
como isso deve acontecer. Elas mesmas são novas formulações de antigas tradições
de culto, especialmente referentes aos tempos sagrados. A bênção que,
provavelmente já era esperada na entrada do ritmo do tempo sagrado, no
Deuteronômio, é assim relacionada com o cumprimento das leis sociais”61.
O estilo, na forma de abertura do v. 29, ab'W “virá”, especifica quatro
grupos, aos quais são destinados a décima parte de todos os produtos do campo.
Os verbos são, nesta primeira parte do versículo, usados na forma qal. Há uma
forma clara ao descrever os grupos e as ações de vir, comer e saciar.
A forma conclusiva ![;mÛ;l. “e assim, de modo que, correspondendo a”, aqui
prefixada com a preposição ‫ל‬, oferece um caráter de conseqUência, diante dos
59
Cf. Ibidem, p. 303.
Cf. Ibidem, p. 305.
61
Cf. Ibidem, p. 316.
60
86
preceitos divinos que Israel deve pôr em prática. O enfoque conclusivo do texto,
na forma Piʿel dada ao ‫ ָבּ ַרְך‬, “abençoar”, evidencia a relação de Deus para com o
homem, demonstra elevado grau de favorecimento, gratuidade, acúmulo de bens
provenientes da parte divina. O uso na forma Piʿel é a mais corrente nos textos do
AT62, e compreende uma relação direta e interativa entre pessoas ou grupos
envolvidos. A equação seguinte pode sintetizar a compreensão do verbo do Pi´el:
A abençoa B com. Fórmula encontrada no versículo. No texto, YHWH cumulará
infinitamente todos os trabalhos empreendidos por Israel.
Trata-se de uma ação estendida, não somente aos bens, mas a toda forma
de empreitada levada adiante, pelas mãos de Israel. O sujeito aqui é Israel
convocado a instaurar, diante de um velho sistema de arrecadação de imposto,
aqui compreendido como dízimo, uma contribuição regular devida aos pobres.
Verifica-se uma obrigatoriedade, seja na oferenda do dízimo, seja na libertação
dos escravos. Gestos cultuais e práticas de justiças se entrelaçam. A lei do dízimo
é compreendida como uma expressão direta da teologia deuteronômica da
liberdade63.
A observação da lei e, por sua vez, seu cumprimento são capazes de
garantir a sobrevivência dos grupos socialmente desfavoráveis, gerando um
equilíbrio social e, por acréscimo, pode demonstrar o ideal de sociedade apontado
pelo próprio YHWH. A observância da lei e a garantia do direito à vida do povo é
a âncora de todo um princípio legal, podendo, desta maneira, ver, no equilíbrio
social, a demonstração real das bênçãos com generosidade doadas por YHWH.
62
Nas seis ocasiões em que a forma Piʿel é analisada por Scharbert prevalece a relação de poder.
Os exemplos são inúmeros. 1) O poder do rei sobre seus súditos (2Sm 6,18;1Rs 8,14); 2) Uma
pessoa em posição privilegiada se opõe em relação à outra (Js 14,13); 3) Determinada liderança
carismática impõe-se diante do povo (Lv 9,23); 4) Um patriarca abençoa e, com a bênção segue
certa ordem a ser cumprida (Gn 28,1-6); 5). A bênção pode trazer infortúnios, como é o caso de
Balac, rei dos moabitas em ação contra o povo que saiu do Egito (Nm 22, 6). As inúmeras ocasiões
em que sacerdotes, em pleno ofício abençoam (1Sm 2,20; Lv 9,22; Sl 118,26; Dt 10,8; 27). Cf.
SCHARBERT, J., ‫ברך‬. In: TDOT, op.cit. pp. 288-290.
63
Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei no Antigo Testamento,
Petrópolis, Vozes, 2002, p. 310.
87
3.3.
Os produtos da terra utilizados na equidade social: Dt 16,9-12
Não são poucos os estudos que optam por um bloco literário entre os
capítulos 14,22-16,1764, no qual uma variedade de temas, ligados aos produtos da
agricultura, formam unidades literárias apresentando diferentes momentos da vida
humana: o preceito do pagamento do dízimo das primícias (14,22-29); a
restauração da igualdade a ser restabelecida com a chegada do ano sabático (15,118) e a consagração dos animais primogênitos (15,19-23). No capítulo 16, são
apresentadas três das chamadas festas de peregrinação: a celebração da festa da
Páscoa (16,1-8), a comemoração da festa das Semanas (16,9-12), a festa das
Tendas (16,13-15), bem como um cronograma que estabelece o comparecimento
diante de YHWH (16,16-17). Esta grande unidade pode ser compreendida por
meio da expressão ^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B “no lugar que escolherá YHWH,
teu Deus”, que perpassa todos os capítulos (14,22.24.25; 15,19; 16,2.6.11.15).
A vida religiosa do povo é refletida em importantes festas. No Código
Deuteronômico encontra-se uma verdadeira síntese65 reunindo inúmeras outras
tradições, tendo o templo como local por excelência de concentração e
entendimento da vida religiosa e social de Israel.
3.3.1.
Dt 16,9-12: tradução, aspectos filológicos e variantes
Sete semanas tu contarás, para ti
9a
%l"-rP's.Ti t[obuv' h['b.vi
mesmo,
64
Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronômio. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A.; MURPHY, R.
E. (Orgs.), NCBSJ, São Paulo, Paulus e Academia Cristã, 2007, p. 238.. SÁNCHEZ, E.,
Deuteronomio. Introdução e Comentário, Buenos Aires, Kairos, 2002, pp. 276-279. Em outras
análises prevalece a divisão considerando os diferentes temas. São elas: 14,22-29; 15,1-11; 15,1218; 15,19-26; 16,1-8; 16,9-12; 16,13-17. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9,
revised. In: METZGER, B. M.; HUBBARD, D. A.; BARKER, G. W. (Orgs.), WBC, Texas,
Nelson Reference & Electronic, 2001, p.295-352. NELSON, R. D., Deuteronomy – a commentary,
London, Westminster John Knox, 2004, pp. 182-210. CRAIGIE, P. C., The Book of Deuteronomy,
Michigan, William B. Eerdmans Publishing, 1981, pp. 228-248.
65
Não é impossível, com base nas afirmações de De Vaux, perceber o grau de ressonância que o
movimento de centralização em torno do santuário inaugurado no tempo de Ezequias e, mais
tarde, retomado por Josias, acabou impondo-se às antigas tradições religiosas. Cf. DE VAUX, R.,
Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder, p. 613-614. Sobre o resultado
centralizador da reforma de Josias, Nakanose declara que “os reformistas josiânicos usaram de
muita violência para eliminar tudo o que era contrário à centralização no Templo”. NAKANOSE,
S., Uma história pra contar: a páscoa de Josias. Metodologia do Antigo Testamento a partir de
2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, pp. 111-114.
88
9b
lxeT' hm'Q'B; vmer>x, lxehm' e
tu começarás a contar sete semanas.
9c
`tA[buv' h['b.vi rPos.li
Tu farás a festa das Semanas para
10a
^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w>
10b
!TETi rv<a] ^d>y" tb;îd>nI tS;mi
10c
`^yh,l{a/ hw"hy> ^k.r<b'y> rv<a]K;
11a
^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm. ;f'w>
desde o momento em que a foice
começar a cortar a espiga,
YHWH, teu Deus.
Parte da oferta voluntária de tua
mão, que darás
conforme te houver abençoado
YHWH, teu Deus.
Te alegrarás diante de YHWH, teu
Deus, tu, teu filho, tua filha, teu
t,m'a]w: ^D>b.[;w> ^T,biW ^n>biW hT'a;
escravo, tua escrava
11b
^yr<['v.Bi rv<a] ywILeh;w>
11c
^B<r>qiB. rv<a] hn"m'l.a;h'w> ~AtY"h;w> rGEh;w>
11d
^yh,l{a/ hw"hy> rx;b.yI rv<a] ~AqM'B;
para estabelecer lá seu nome.
11e
`~v' Amv. !KEv;l.
Tu recordarás que escravo tu
12a
~yIr"+cm. iB. t'yyIh' db,[,-yKi T'r>k;z"w>
12b
`hL,aeh' ~yQIxuh;-ta, t'yfi['w> T"rm> ;v'w>
o levita que está dentro de suas
portas,
e o estrangeiro, o órfão e a viúva que
habitam contigo,
no lugar que escolherá YHWH, teu
Deus
estiveste no Egito,
observarás e executarás esses
decretos.
Nas variantes do aparato crítico da BHS, encontram-se matizes referentes
aos vv. 9,10,11 e 12. O v. 9 possui uma variante seguindo a tradição do texto
apresentado pela LXX, correspondente ao Siríaco e referente ao uso do verbo ‫חלל‬
“começar”. Escreve-se ‫“ מֵ ַה ִח ְלָּך‬começar para ti”, juntamente com o sufixo da
segunda pessoa masculina do singular. Variante também presente na Vulgata.
Opta-se em manter o TM diante da brevíssima variação.
No v. 10 são registradas quatro matizes: a) uma mudança é proposta ao
termo
‫ ִמ ַסּת‬, “medida/quantidade/proporção”, no estado construto, alterado para
‫כמתנת‬, “conforme presente/doação de”, encontrado no v. 17. Registro esse
também presente na LXX, na forma de kaqo,ti ... ivscu,e, “conforme ...é capaz”.
89
A LXX, no v. 17, registra kata. du,namin, “segundo a capacidade”. Pode-se, de
alguma maneira, verificar que o TM não é seguido em algumas traduções. As
propostas, porém, acenam para diversas alterações poucos substanciais; b) uma
outra leitura surge no códice manuscrito hebraico 69, no Pentateuco Samaritano e
na versão siríaca ao termo ‫“ ידיך‬tuas mãos”. O termo no TM usa o singular: ‫;ידך‬
c) Correspondendo ao verbo ‫נתן‬, “dar”, ocorre uma retroversão, na LXX,
grafando-o no subjuntivo aoristo na 3a
pessoa singular
dw/| “der você”,
correspondente à grafia hebraica ‫“ יתן‬darás”; outros manuscritos da LXX
adicionam o pronome pessoal da 2a pessoa singular soi; d) alguns manuscritos da
LXX e da Vetus Latina grafam ‫כאשר ֵבּ ַר ְכָך‬, “conforme tem te abençoado”, mantem
a intensividade da forma piʿel. Fato, também, verificável na versão do Códice
Vaticano, correspondendo ao texto de Dt 15,14 e 16,15: ‫ כאשר ֵבּ ַר ְכך‬e ‫כִּי י ְב ֶָר ְכָך‬.
Embora ocorra essa série de matizes, elas não chegam a apresentar uma variante
sustentável a uma mudança ao TM.
No v. 11, ocorre uma diferença, embora curta, no tocante à grafia da
palavra ^D>b.[;w>, “e o teu escravo”. Nos códices cursivos da LXX e na Vulgata
encontra-se a grafia ‫עבדך‬, grafada sem a conjunção. O TM parece estar mais
coeso, ao verificar a métrica delineada com o uso da conjunção ‫ו‬, que une a série
de oito substantivos: ,‫ ַו ֲאמָתֶ ָך‬,‫ ְו ַהיּ ָתוֹם‬,‫ ְו ַהגֵּר‬,‫ ְו ַה ֵלּוִי‬,‫ ְוהָאַ ְל ָמנָה‬,‫ ְו ַע ְבדְּ ָך‬,‫ וּבִתֶּ ָך‬,‫וּ ִבנ ְָך‬.
No v. 12, o TM apresenta uma variante ao omitir o substantivo ‫“ בארץ‬na
terra”, como é encontrado no códice manuscrito hebraico 69 e em poucos
manuscritos hebraicos medievais, ponderando as recensões da LXX anotadas por
Orígenes de Alexandria. Uma vez que está presente em Dt 5,15 a fórmula ‫ְבּא ֶֶרץ‬
‫מִ ְצ ַרי ִם‬, “na terra do Egito”, e retomada em 24,18, idêntica expressão, opta-se
utilizar, na versão do TM, a grafia: ‫“ ִכּי־ ֶעבֶד ָהי ִיתָ ] ְבּא ֶֶרץ[ ְבּמִ ְצ ָרי ִם‬pois escravo foste
[na terra] do Egito.
3.3.2.
Delimitação, composição e estrutura
A perícope é intercalada pelos relatos de duas festas e atividades sociais. A
legislação sobre a festa das Semanas (vv. 9-12) se encontra entre duas outras
referências celebrativas: festa da Páscoa (vv. 1-8) e a festa das Tendas (vv. 13-15).
Trata-se de uma legislação que tem em vista datar os aspectos festivos que devem
90
acontecer após a Páscoa. Dt 16,9-12 forma um bloco bem distinto. Pois, a
perícope se insere entre a descrição da festa da Páscoa e das Tendas. Ocorre uma
harmonização clara, o que oferece um aspecto um tanto tardio à narrativa. Nota-se
uma coerência de estilo narrativo, conteúdo e uniformidade de vozes. Há um
período para a realização da festa, um nome, bem como um local determinado
para sua celebração.
Logo após a indicação de comer pães ázimos, por um período de seis dias
e, no sétimo, fazer uma grande assembléia em louvor a YHWH (v. 8), há a
indicação de um novo cronograma, referindo-se, inevitavelmente, a uma outra
festa. Agora, deve-se contar sete semanas, a partir do inicio da colheita, para ter
um tempo favorável para a celebração da Festa das Semanas. O v. 9a abre a
narrativa realçando um convite: %l"-rP's.Ti t[obuv' h['îb.vi “Sete semanas tu contarás”.
Eis um tempo determinado para dar início à contagem das setes semanas66.
Após o convite para contar sete semanas, o texto apresenta, de maneira
clara, o nome da festa a ser comemorada: ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; t'yfi['w> “farás a
festa das Semanas para YHWH, teu Deus” (v. 10a). Embora o texto apresente o
verbo hf'[', “fazer”, está implícito o caráter festivo (v. 15) dado à peregrinação
empreendida em honra a YHWH67 e acompanhada com uma determinada parte,
chamada de
“oferta voluntária”, como prova dos bons empreendimentos,
ocorridos nos campos e, em sinal das bênçãos recebidas ao longo do ano.
Juntamente com a expressão tA[bv' h['b.vi, “sete semanas”, utilizada para
abrir e concluir o v.9, o verbo rPes;, utilizado duas vezes, impondo à narrativa um
caráter de obrigatoriedade e periodicidade a uma festa que tem um determinado
tempo para começar. Não é por acaso que os termos sete semanas e contar se
repetem: AB ˂ ˃ AB, grafados paralelamente ao longo do versículo (v.9a + 9c),
dando unidade e coesão ao texto. Há um insistência em marcar o ciclo para iniciar
as festividades: sete semanas após o início da colheita das primeiras espigas.
Encontra-se uma compilação de exigências bem definidas: “tu contarás,
desde o começar [a meter] a foice no trigo” (v. 9); “tu farás a festa das Semanas”
(v. 10); “te alegrarás” (v.11), que envolve Israel em torno do preceito divino e,
66
Constata-se que o Código Deuteronômico apresenta as mesmas festas realçadas no Código da
Aliança (Ex 23,14-17) e Ex 34,18.22-24. Salvo os detalhes acrescidos em Lv 23, os textos, uma
vez cruzados, referendam as três importantes festas religiosas: Páscoa, Colheitas ou Semanas e a
festa das Tendas.
67
Ex 34,22 realça o aspecto festivo (‫) ְו ַחג שָׁ ֻב ֺעת‬.
91
com o recurso dos verbos, quase todos no imperfeito. Termina com a promessa de
bênção e prosperidade, seguindo o que fala o Senhor. Exigências e motivações se
intercalam:
Exigências
Motivações
v. 9a – sete semanas tu contarás
v.9b - tua foice começar a cortar
v. 9c – tu começarás a contar
v. 9c – sete semanas
v. 10a – tu farás a festa das Semanas
v. 10a – para YHWH teu Deus
v. 10b - parte da oferta voluntária de tua v. 10c - te acumulou de bênçãos
mão, que tu darás
YHWH, teu Deus
v. 11a - te alegrarás
v. 11a - diante de YHWH, teu Deus
v. 11e - fazer residir lá seu Nome
v. 11d - lugar que escolheu YHWH, teu
Deus
v.12a - recordarás que escravo tu v. 12b - observarás e executarás esses
estiveste no Egito
decretos
Nota-se que o eixo central é a identificação e atributos de YHWH,
intercalados por dois acontecimentos registrando, respectivamente, o tempo de
celebrar a festa das Semanas (v.9) e a experiência de escravo de Israel durante os
anos vividos no Egito (v.12). O tom convidativo à observância da norma conclui a
narrativa.
As exigências são apresentadas por meio de vários verbos indicando uma
determinada relação com YHWH. O destaque fica para o verbo ‫“ ָספַר‬contar”,
citado duas vezes, em relação à festa das semanas. Os verbos, compondo as
exigências, estão todos relacionados a uma motivação central: ‫י ְהוָה אֱ ֹלהֶיָך‬
“YHWH, teu Deus”. O conceito dessa divindade pessoal e exclusiva é realce na
narrativa. Não é por acaso que é citada quatro vezes (vv. 10a, 10c, 11a, 11d). As
motivações, por seu lado, afirmam quem é este Deus de Israel. Ocorre uma ênfase
na identificação de YHWH como Deus de Israel, elemento fundamental na fé
israelita.
92
3.3.3. Comentário e análise semântica
Trata-se de definir a época em que a festa tem seu início. Chouraqui a
explica, apoiando-se na narrativa de Levítico: “Contai para vós, no dia seguinte ao
shabat, do dia em que conduzis o feixe do balanço, sete shabats. Contareis
cinqüenta dias até o dia seguinte ao sétimo shabat e oferecereis, então, a YHWH
uma nova oblação” (Lv 23,15-16). Trata-se da festa de Pentecostes - cinqüenta
dias + um dia, período entre as comemorações da Páscoa, celebrada no dia 15 do
primeiro mês e Pentecostes, celebrado no terceiro mês68. A harmonia impregnada
nos textos de Dt 16,9-12 visa uma combinação de datas unindo as
três
importantes festas religiosas celebradas em Israel.
Os eventos festivos tornaram-se ocasiões de rompimento com o cotidiano.
. ;f'w> “e te alegrarás
Neste sentido, não é em vão o convite: ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm
diante de YHWH, teu Deus” (v.11a). A festa é nada mais do que uma ocasião de
desestruturar o cotidiano de modo controlado, com a finalidade de reconstruí-lo69.
No desejo de construir o novo, entrelaçam-se realidades religiosas e sociais. O
verso 11 é um destaque significativo, ao acentuar certa interação, envolvendo
YHWH, a família e demais grupos sociais. Apresenta uma interação entre o ser
divino e demais setores sociais. Na esfera familiar: tu, teu filho, tua filha; na
esfera social: teu servo, tua serva e o levita que vive entre tuas portas. Tal
analogia, envolvendo relações feitas na esfera do culto e do social, assinala que,
diante de Deus, prevalece o vínculo de irmandade70.
Há consenso entre os estudos que em época pos-exílica, a escola
deuteronomista71 teria concluída a redação de Dt 16,9-12. Possivelmente, na
68
Seguindo a narrativa de Ex 19,1 ocorre uma coincidência com a celebração da Aliança, quando
do recebimento das normas devidas a Moisés.
69
Trata-se da correlação entre dois mundos distintos. É errôneo dizer que o rito religioso é algo
que paira acima do universo social, de uma metalinguagem intocável. O sentido de criatividade
busca uma reestruturação entre o divino, o indivíduo e sociedade. Cf. MARTINI, A., Rito e Crise
da Modernidade, Mestrado no Departamento de Ciências da Religião, PUC-SP, 1995, pp.61-64. A
palavra ‫“ חג‬festa” aparece quatro vezes ao longo dessa unidade: 16,10.13.15.16.
70
Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio: introducción y comentario, Buenos Aires, Kairos, 2002, p.
297.
71
A referência às três grandes festividades: Páscoa, Semanas ou Pentecostes e Cabanas ou
Tabernáculos são festas relacionadas ao estilo nômade e agropastoril vivido por povos no Antigo
Oriente. Não é difícil imaginar que a vida religiosa dos países limítrofes tenha influenciado
calendários e ritos em Israel. De Vaux analisa rituais de sacrifícios mesopotâmicos, árabes e
cananeus que, cedo, teriam influenciado ritos incorporados pela comunidade de Israel. Na
comunidade de Qumran, a festa teve um momento de relativo sentido, sendo uma ocasião de
celebrar a renovação da aliança. Já no judaísmo ortodoxo a festa das Semanas não se manteve
como uma festa importante no calendário litúrgico. Não se encontra na Mishna nenhum tratado
93
época do primeiro século a.C., há uma compreensão tardia, afirmando que a festa
das Semanas se identifica com a festa do dom da Tora72. Considerando a tradição
oral, que em nada diminui o seu significado festivo, após a comemoração da saída
do Egito, lembrada com a festa da Páscoa, momento em que Israel celebra seu
final histórico vivido sob o domínio egípcio, a festa das Semanas marca a entrada
de Israel sob o jugo divino, compreendido pelo dom da Torá, o livro por
excelência entregue a Moisés.
A festa das Semanas é a segunda do calendário, segundo Dt 1673. De
Vaux a considera a segunda festa de maior importância no calendário judaico74.
Trata-se de uma comemoração ligada ao universo agrícola, onde há um convite
para apresentar durante a festa uma oferta de caráter voluntário, conforme a
quantidade colhida, oriunda dos frutos provenientes da terra, a ser compartilhada
no local de culto escolhido em honra do nome de YHWH. Diferentemente do que
ocorria na festa da Páscoa, era ocasião de comer pães fermentados com trigos
vindos da primeira colheita na época.
Ao longo da narrativa de Dt 16,9-12, não há oponente. É um monólogo, de
cunho normativo, construído, tendo a palavra de YHWH como ponto central.
YHWH é identificado como um Deus pessoal da comunidade de Israel ^yh,(l{a/,
“teu Deus”, especificando um determinado tempo para que seu nome venha a ser
celebrado.
O substantivo ‫ ַחג‬, “festa”, em referência à festa das Cabanas, é utilizado
uma vez para descrever a segunda festa mais importante do calendário, celebrada
após as comemorações da Páscoa ou festa dos ‫ ַמצּוֹת‬, “pães ázimos”, (Nm 28,1617). A festa das Semanas, também celebrada em nome de YHWH, segue um
tempo fixado, após sete semanas depois do corte das primeiras espigas. Há um
consenso datando-a em meados do fim do mês de maio, começo de junho,
marcando o fim da colheita dos cereais.
que lhe faça referência. Cf. DE VAUX, Instituciones del Antigo Testamento, Barcelona, Herder,
1992, pp. 549-557.
72
CF. AVRIL, A.C.; La MAISONNEUVE, D., Les Fêtes Juives, Paris, Cerf, pp. 40-41.
73
A forma atual é o resultado de uma intensa elaboração envolvendo diferentes tradições e fases
redacionais. Pode-se pensar que, no começo, havia um complexo legislativo profano (a atual
secção casuística de Ex 21,12-22,6) e, mais tarde, o redator proto-deuteronomista elaborou
pequenas unidades literárias, de conteúdo social e cultual, e as juntou às compilações profanas
formando a estrutura básica do “código da aliança”. Cf. VICENT, R., La Fiesta Judía de las
Cabañas (Sukkot), Interpretaciones midrásicas en la Bíblia y en el judaísmo antiguo, Navarra,
Espana, 1995, p. 37.
74
Cf. DE VAUX, R, op. cit., p. 620.
94
A determinação de ^yh,l{a/ hw"hyl; tA[buv' gx; fazer uma “festa das semanas
para YHWH, teu Deus” (v.10a) é apresentada de modo muito claro e conciso,
passível de concluir que “o Código oferece a esta festa um significado
histórico”75. Ressalta-se ainda o uso do “hapax legomenon” ‫ִמ ַסת‬
76
certificando
77
que se trata de um ato de plena generosidade .
A festa tinha como meta, utilizando parte de uma oferta voluntária,
agradecer as bênçãos recebidas de YHWH (v. 10b). Não é por menos que se
encontra, por quatro vezes, referências à expressão ^yh,l{a/ hw"hy> “YHWH, teu
Deus”, (vv. 10a, 10b, 11a e 11d). De Vaux afirma que a característica da festa
constituía-se na oferta dos pães preparados com farinha nova e fermentados,
distinguindo-se, dessa forma, da festa da Páscoa que a antecedia78. A festividade
é motivo de alegria para todos os membros da comunidade. Dela ninguém pode se
esquivar. Aqui, a narrativa retoma o ideal de se alegrar diante de YHWH, num
local determinado com o propósito de fixar para sempre o nome do Deus de
Israel. O versículo retoma o ideal de se celebrar com toda a família, já citado em
outra parte do livro (12,7.12.18).
Mais do que uma lembrança dos anos vividos como escravos, a narrativa
faz uma comparação entre os v.11 e o v.12. Os grupos sociais formados pelos
escravos, servas, órfãos, viúvas, estrangeiros refletem a antiga realidade, outrora
vivenciada pela comunidade em terras egípcias. E, diante desta realidade, Israel é
convidado a observar e praticar as ordens de YHWH.
Realizada no interior de uma sociedade essencialmente agrícola, a festa era
ocasião de promover uma forte interatividade social, considerando a ênfase na
. ;f'w “E te alegrarás diante de
narrativa no uso da expressão ^yh,ªl{a/ hw"hy> ynEp.li T'xm
YHWH, teu Deus” (v. 11a). A época festiva era uma ocasião que extrapola a
esfera familiar. Eis o lado humanitário dos preceitos a serem cumpridos (v.12b).
Pela ocasião dos festejos, os grupos – por sinal, bem especificados na narrativa –
que se encontram fora da esfera familiar (servo, serva, levita, estrangeiro, órfão e
viúva) têm acesso garantido, pela ocasião da festa. Trata-se de saber onde estaria o
motivo legitimador para tais grupos sociais participarem, em condições iguais, da
75
Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit. p. 265.
Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit. p. 342.
77
Cf. ZORELL, F., ‫ מִ ַסת‬. In: Lexicon Hebraicum et Aramaicum Veteris Testamenti, Fasc. 1-9,
Roma, Pontificium Institutum Biblicum, 1968, p. 451.
78
Cf. DE VAUX, R. Instituciones del Antigo Testamento, op. cit., p. 620.
76
95
festividade. Trata-se de uma festividade muito bem datada e realizada durante a
colheita do trigo, como bem especificam os textos de Ex 34,22; Gn 30,14; Jz
15,1. Uma festa tipicamente agrícola, na qual a primeira colheita deve ser
entregue num determinado local para, aí, ser celebrado o nome de YHWH,
seguindo os costumes locais e, marcando o ritual, por meio de uma doação de
caráter estritamente voluntário.
O caráter social da festa das Semanas aparece no registro que considera o
universo social representado pelo estrangeiro, o órfão e a viúva (v. 11),
extrapolando, assim, o âmbito meramente familiar. As bênçãos recebidas devem
ser partilhadas com os grupos sociais desfavorecidos que se assemelham à
realidade vivenciada por Israel, em terra do Egito (v. 12a).
A conclusão da unidade exige uma abordagem mais de cunho
comparativo, uma vez que aí se encontra o uso do verbo ‫“ ז ָ ַכר‬recordar”79, no qal,
remetendo à experiência vivida pelos antepassados em terras egípcias. O gesto de
manter a memória é de intenso significado à comunidade religiosa. Aqui,
compreendido em relação às três festas de peregrinação, a memória dos anos
vividos como escravos no Egito, bem como os gestos maravilhosos feitos por
YHWH em beneficio de Israel não devem passar ao esquecimento (Cf. Ex 15,15;
16,12; 24,18.22)”80. É um detalhe acentuado pelo uso da partícula explicativa yKi
“pois, porque, de modo que”, seguida do substantivo db,[, “escravo, servo”, dando
um caráter contemplativo ao texto. Contemplar o quê? Eis um apelo por demais
> ;v'w>
significativo para ter como respaldo a ordem de hL,aeh' ~yQIßxuh;-ta, t'yfiê['w> T"rm
“observarás e executarás esses decretos”, (v. 12b). O termo hL,aeh' ~yQIxuh; “esses
decretos”, referenda todo o conjunto de normas entregues por YHWH81. Eis o
motivo da narrativa referir-se ao termo unindo as duas realidades.
Israel não pode mais voltar à condição de escravo, porque já fora libertado
por YHWH. Agora, a condição de liberdade inside numa praticidade evocada na
lei: recordar os tempos vividos sob o regime escravagista, nas terras do Egito e
viver o ideal de partilha entre todos, gesto por demais reforçado na narrativa: “tu,
teu filho, tua filha, teu escravo, tua escrava, o levita...o estrangeiro, o órfão e a
79
Há uma considerável série de significados ao verbo ‫זָ ַכר‬: recordar, trazer à mente, rememorar. Em
Dt 16,12a, a modalidade, mediante a partícula explicativa ‫כי‬, refere-se ao passado, aos anos vividos
como escravo, servo no Egito.Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 192.
80
Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio – Introducción y comentario, op. cit., p. 280.
81
Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 1,1-21,9, revised, op. cit., p.343.
96
viúva” (v.11). O propósito principal referendado pela lei é o de assegurar à
comunidade uma condição de equidade entre todos. Por este motivo, não é difícil
justificar e associar os setores desvalidos da sociedade na participação das
festividades. A ocasião de celebrar encontra seu sentido último, não no passado,
mas no presente.
3.4.
Os pobres são lembrados durante a colheita: Dt 24,17-22
Dt 24,17-21 se insere num contexto literário em que é possível verificar
uma série de leis relativas às diferentes situações da vida e aspectos da ética
cotidiana, vivenciados no interior da comunidade de Israel. Para Kramer82 os
capítulos 21-25 são partes das leis complementares referentes aos seis últimos
mandamentos, relacionados da seguinte forma: quinto (5,17 = 19,1-21,23), sexto
(5,18 = 22,13-23,15), sétimo (5,19 = 23,16-24,7), oitavo (5,20 = 24,8-25,4), nono
(5,21a = 25,5-12), décimo (5,21b- 25,13-16). Renunciando ao aspecto da
complementaridade, outros estudos realçam um conjunto de inúmeras leis
humanitárias, já, há muito, presentes no Antigo Oriente, retomadas pelos autores
bíblicos, demonstrando o poderio do javismo e seu desejo por uma equidade
social83.
O processo redacional evidencia, a partir da redação final do livro, um
Israel, numa época de plena ocupação da terra, tendo ao seu dispor um amplo e
emaranhado arcabouço jurídico84, em que a defesa dos grupos desfavorecidos,
82
Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, op. cit., pp. 106-107.
83
Pode-se falar que houve por partes dos autores do Código Deuteronômico, uma “interpretação
das antigas tradições” utilizadas para expressar o poderio e responsabilidade dos monarcas pela
manutenção da igualdade social nos limites de sua autoridade legal. Em se tratando de Israel a
supremacia será sempre de YHWH. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois bibliques. In:
RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 80-82;
WEINFELD, M., The Origin of the humanism in Deuteronomy. In: JBL 80, 1962, pp. 241-247.
Bouzon fala de uma “grande semelhança temática” entre direito antigo e os códigos bíblicos. Cf.
BOUZON, E., Escravidão e dívidas na legislação cuneiforme e seus reflexos na legislação do
Antigo Israel. In: CADMO 8/9, 1998-1999, pp. 29-48.
84
Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio,op. cit., pp. 327-328. O realce dado ao tema da “centralização
do culto” reflete uma provável localização histórica, surgida durante a primeira reforma religiosa,
de que se tem notícia no Antigo Israel com forte caráter centralizador na época de Ezequias (725697 a.C.). O aspecto de centralidade cultual é um tema caro ao Deuteronômio (14,22-27; 16,18.9;17,8-13) que, de certo modo, trouxe consigo outras leis, provenientes do ambiente tribal, como
o cuidado dispensado ao estrangeiro, levita, órfão e a viúva. De Ezequias, passando pela reforma
de Josias (622 a.C), o Código Deuteronômico foi relido diante dos acontecimentos históricos, no
exílio e pós-exílio. Ao comentá-la, Braulik destaca sete fases históricas. BRAULIK, G. O livro do
97
citada quatro vezes na perícope (v. 17a-b, v.19e, 20d, 21d), encontra-se em
evidência considerando os séculos vividos na condição de escravo no Egito e a
primazia da Lei, como meio de identificação entre Israel e YHWH.
realidades – ~yIr;c.mi, “Egito”, e
As duas
‫“ ִמ ְצ ָוה‬mandamento”, – foram preponderantes na
função de fornecer critérios à vida social de Israel. O Egito será associado à terra
da escravidão, recebendo forte e acentuada conotação ideológica (Ex 5,12-13;
12,17; 13,3. 20,2). Marca uma etapa histórica em que Israel viveu como
estrangeiro, e por isso deve prestar solidariedade aos estrangeiros em meio à
comunidade (vv. 18a. 22a). De Ezequias, passando pela reforma de Josias (622
a.C), o Código Deuteronômico foi sendo relido diante dos acontecimentos
históricos, no exílio e pós-exílio85.
O cumprimento da Lei, entendida pela fórmula hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;
“praticar esta palavra”, (v.18c.22b), é o meio pelo qual Israel encontra sua
identidade e respaldo para manter a equidade social, apresentada como vontade
divina. Assim, pode-se definir que a experiência do Êxodo somada à da aliança
firmada com YHWH, formam uma unidade indissolúvel86.
3.4.1.
Dt 24,17-22: tradução, aspectos filológicos e variantes
Não farás desviar o direito do
17a
~Aty" rGE jP;vm. i hJ,t; al{
17b
`hn"m'l.a; dg<B< lbox]t; al{w>
18a
~yIr:cm. iB. t'yyIh' db,[, yKi T'r>k;z"w>
18b
~V'mi ^yh,Þl{a/ hw"hy> ^D>p.YIw:
18c
`hZ<h; rb"D"h;-ta, tAfê[]l; ^W>cm; . ykinOa' !Ke-l[;
19a
^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKi
estrangeiro [do] órfão
e não tomarás como penhor a
roupa da viúva.
Tu te lembrarás que escravo foste
no Egito
e te libertou YHWH, teu Deus, de
lá.
Eis porque eu mesmo te ordeno
praticar esta palavra.
Quando colheres a tua colheita no
teu campo
Deuteronômio. In VV.AA., Introdução ao Antigo Testamento, São Paulo, Loyola, 2003, pp.104107.
85
Cf. Ibidem.
86
Cf. SÁNCHEZ, E., op. cit., p. 349.
98
e esqueceres um feixe no campo
não voltarás para pegá-lo.
19c
hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w>
d
ATêx.q;l. bWvt' al{Ü
e
19
Para o estrangeiro, para o órfão e
para a viúva será.
Deste modo,
te abençoará YHWH, teu Deus,
em toda obra de tuas mãos.
19
hy<+h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
19f
![;mÛ;l.
Quando varejares tua oliveira,
20a
^êt.yzE jBox.t; yKiÛ
não repassarás [os ramos que
ficaram] atrás de ti.
Para o estrangeiro, para o órfão e
20c
^yr<x]a; raEp't. al{
20d
`hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
Quando colheres a tua vinha
21a
^êm.r>K; ‘rcob.ti yKiÛ
não farás rebuscar [a vinha que
ficou] atrás de ti.
Para o estrangeiro, para o órfão e
21c
^yr<x]a; lleA[t. al{
21d
`hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
22a
~yIr"cm. i #r<a,B. t'yyIh' db,[î,-yKi T'r>k;z"w>
22b
`hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l; ^W>cm; . ykinOa' !Ke-l[;
`^yd<y" hfe[m] ; lkoB. ^yh,êl{a/ hw"hy> ^k.r<b'y>
para a viúva será.
para a viúva será.
Tu te lembrarás que escravo foste
na terra do Egito.
Eis porque, eu te ordeno praticar
esta palavra.
Duas observações são realces no v. 17. A primeira, trata de saber se
somente a frase rGE jP;v.mi hJ,êt; al{ “Não farás violar o direito do estrangeiro”, (v.
17a), não seria a parte original do versículo, uma vez que o v. 17b, hn"m'l.a; dg<B<
lbox]t; al{w> "e não tomará como penhor a roupa da viúva", foi retirado em outros
manuscritos. Caso isto tenha ocorrido, estamos diante de uma variante. A correção
se justifica mediante a comparação do TM com narrativas mais antigas87. Nota-se
que, do ponto de vista gramatical, a frase se escreveria "estrangeiro órfão", (órfão
com função de adjetivo). Desta forma, encontra-se um outro subgrupo, entre os
demais, formado pela categoria "estrangeiro órfão". Algumas traduções adotam
por variante o substantivo órfão, com o uso do wav coordenativo. O TM não
apresenta o waw coordenativo - delendum fortasse – e não se encontram motivos
87
As diferenças, ainda que pequenas, são de grafias e incapazes de apresentar uma variante
significativa. Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b, pp. 594595.
99
para propor uma alteração diferente das outras citações encontradas no livro.
Assim, opta-se pela mesma ordem "estrangeiro, órfão e viúva".
Uma segunda nuância imposta ao texto refere se à expressão ~Aty" “órfão”,
prefixada com a conjunção ‫ו‬, conforme se verifica na versão da LXX, na Versão
Siríaca, nos manuscritos do Targum Pseudo-Jônatas e na Vulgata e, não
simplesmente ~Aty", como grafa o TM. Em uma recensão da LXX, feita por
Orígenes, pode-se verificar certo óbelo no uso do termo kai. ch,raj, “e da viúva”,
como em 27,19. Tais observações se justificam ao verificar que, nas outras três
citações à trilogia social, no TM, usa-se a preposição ‫“ ל‬para”, identificando os
respectivos substantivos, como se encontram nos versos 19e, 20d, 21d: hn"m'l.a;l'w>
~AtY"l; rGEl; “para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva”, harmonizando a
narrativa e comprovando a existência de diferença no aspecto da grafia, mas não
uma variante. Opta-se por manter a narração do TM, considerando as pequenas
omissões de estilo gráfico.
No v.18a encontra-se uma especificação no tocante ao Egito, em alguns
poucos manuscritos hebraicos, na recensão da LXX feita por Orígenes de
Alexandria e no Targum Pseudo-Jônatas, como sendo "a terra" da servidão. Tais
manuscritos grafam ‫“ ְבּא ֶֶרץ ִמ ְצ ַרי ִם‬na terra do Egito”. Constata-se um acréscimo,
por meio do uso da preposição, acompanhada pelo substantivo terra. A segunda
observação é referente ao termo ~V'mi “de lá”. Ausência ocorrida no manuscrito
hebraico e no Pentateuco Samaritano, mas mantida no TM. Pode-se bem verificar
a compensação feita pelo TM ao acrescentar ~V'mi “de lá” omitido na LXX, em
relação à especificação “terra do Egito”. O acréscimo ocorrido no TM corrige a
ausência da expressão ‫“ ְבּאֶ ֶרץ‬na terra”.
No versículo v.19 há quatro observações a serem consideradas: a primeira
se refere ao uso da forma verbal ATx.q;l. “para pegá-lo”. Em seu lugar, usa-se o
substantivo ‫ ָל ֶא ְביוֺן‬, “para o pobre”, semelhante ao termo grego: tw/| ptwcw/| kai. “e
para o pobre”. Esta incidência é atestada pela tradição do texto grego da LXX –
exceto para os cursivos do Códice Vaticano e, na recensão de Orígenes na LXX preferindo a eliminação do verbo pegar ao termo pobre. Na versão da LXX,
surge um quarto grupo, pela ordem: tw/| ptwcw/| kai. tw/| proshlu,tw| kai. tw/|
ovrfanw/| kai. th/| ch,ra| e;stai, "para o pobre, para o prosélito, para o órfão e para a
100
viúva será". Verifica-se que a diferença não ocorre em outros manuscritos, o que
inviabiliza uma variante ao TM.
Uma segunda observação refere-se ao uso da conjunção ‫“ ו‬e” antecedendo
o termo ~AtïY"l;, “para o órfão”. O uso da conjunção ocorre em dois manuscritos
hebraicos medievais, na Septuaginta, na versão Siríaca e na Vulgata. A terceira
ocorrência aparece no uso da conjunção ‫“ ו‬e” omitida diante da preposição ‫ל‬
diante do termo hn"m'l.a;l'> “para a viúva”, como registra um manuscrito hebraico
medieval e o códice da LXX. A omissão é encontrada também no v. 20. Essa
diferença é encontrada em algumas leituras do códice manuscrito hebraico 9 e em
muitos manuscritos hebraicos medievais. Um outro marco no texto, que não chega
a propor divergências significativas ao conteúdo exposto na versão massorética, é
a leitura do termo ‫ידך‬, “tua mão”, no singular, contra a forma ‫ידיך‬, “tuas mãos”,
no plural, como usa o TM.
No v. 20, três observações são registradas: a primeira refere-se ao uso do
termo tw/| ptwcw/| kai., “e para o pobre”, encontrada no Códice Freer menor, do
século V. Trata-se de uma retroversão do termo ‫לאביון‬, “para o pobre”, conforme
ocorre no v.19. Também poucos manuscritos da Septuaginta, da versão Siríaca e
dos manuscritos da Vulgata registram a leitura ‫“ ְו ַלי ָתוֹם‬e para o órfão”, variando
no emprego da conjunção ‫ו‬, ausente no TM. Uma última observação ocorre no v.
20 referindo-se, novamente, ao uso da preposição ‫“ ל‬para”, omitindo a conjunção
‫ו‬, como bem grafa o TM. Notam-se três diferentes grafias incapazes de sustentar
uma variante e que, de modo algum, deixam transparecer mudanças significativas
ou interpretações divergentes do TM.
As variações do v. 21a assemelha-se à do v. 20a. Ambas omitem o termo
^yr<x]a;, “atrás de ti” e acrescentam tw/| ptwcw/| kai. “e para o pobre”, como registra
o Códice Freer menor, ao utilizar-se de uma retroversão. A segunda variante
consta da tradução do texto grego da LXX e do Siríaco, colocando, antes, a
conjunção ‫ו‬. Estas duas variantes ocorridas no v. 21 podem ser consideradas sem
importância. Vê-se que a forma gramatical usada na versão massorética
possibilitou mais clareza e objetividade ao texto.
101
3.4.2.
Delimitação, composição e estrutura
A delimitação do texto pode ser feita com base nas quatro passagens que
mencionam a defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva (vv. 17b, 19e, 20d, 21d).
As repetições acenam para a unidade na narrativa em Dt 24,17-22. Tal círculo
narrativo pode ser conferido por meio de costumes e hábitos referentes à prática
do divórcio e medidas de proteção ao indivíduo (24,1-4. 8-9). Os apelos são
apresentados com ênfase na manutenção da integridade física da pessoa e no
desejo de praticar a justiça diante de YHWH. A defesa dos grupos desfavorecidos
e dos fracos (Cf. Dt 14,29; 16,11.14) apresenta o papel do juiz, mediador de
pequenos conflitos existentes nas relações internas dos grupos, sendo o grifo a
relação com um ser divino.
O corte delimitando o princípio e o fim da perícope é assinalado a partir do
v. 17 ao v. 22. Neles, encontram-se três temas em questão: não perverter a prática
do direito diante dos grupos socialmente frágeis (vv. 17.19.20); a lembrança dos
anos vividos no Egito (vv. 18a.22a) e o convite para fazer cumprir a palavra
ordenada por YHWH (vv. 18c. 22b).
Nota-se a insistência para que a prática do direito seja mantida. Os grupos
são utilizados como ícones na administração da justiça, por representarem as
camadas mais pobres da vida social. As leis têm como objetivo último estabelecer
a igualdade numa terra não pertencente a Israel, mas a YHWH e, em torno desses
grupos, centra-se a narrativa. Escolhe-se a tradição do Egito (vv.17-22), para
compreender a estrutura concêntrica na narrativa que retoma diretamente a defesa
dos grupos marginais. Pode-se formar a seguinte estrutura:
A
Não desviar o direito (17a)
B
Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (18a-18b)
C
Quando tu colheres a colheita no teu campo (19) ↔ hn"m'l.a;l'w>
~AtY"l; rGEl;
D
Quando varejares tua colheita (20) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
C`
Quando colheres a tua vinha (21) ↔ hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
B`
Tu te lembrarás que escravo foste no Egito (22)
`
A
Ordeno a praticar esta palava (22b)
102
A lembrança da experiência do Egito é emoldura pela ordem de não
desviar o direito e praticar a palavra88. As referências ao tempo vivido no Egito
emolduram as três distintas realidades sociais, e três ocasiões de garantir meios de
vida para os pobres. Não ocorre nenhum desajuste na narrativa; pelo contrário, a
norma jurídica é evidente, ao impor práticas voltadas à defesa dos grupos
desfavorecidos, como base no estilo metafórico, evidenciando que o sofrimento
vivido na terra do Egito – o sofrimento do passado – não pode ser imposto no
momento presente. A estrutura concêntrica se forma citando os três mais
importantes gêneros agrícolas responsáveis pela sustentação econômica de Israel:
cereal, azeite e vinha.
Os vv. 19-21 comportam um estilo redacional de cunho jurídico. Trata-se
da forma evidente, comum no universo literário jurídico e, por este motivo, é de
fácil e rápida compreensão.
Observa-se, ainda, relativa importância no uso da partícula de negação ‫לא‬,
“não”, cinco vezes assinalada no texto (vv. 17, 17a. 18b. 20a. 21a); o uso dos
verbos indicando o gesto a ser evitado, grafado sempre no imperfeito: “farás
violar” (v. 17a), “tomarás o penhor” (v.17b), “voltarás para pegá-lo” (v. 19a),
“repassarás os [ramos]” (v. 20a), “farás rebuscar” (v. 21a) e os substantivos
acusativos indicados após os verbos que impõem uma relação de causa e efeito,
isto é, uma determinada ação deve ser realizada em determinado contexto
beneficiando um grupo específico. Tais elementos definem a existência de um
mandamento formando este bloco temático, tendo como eixo a prática do não
roubar ou violar bens pertencentes a outros.
3.4.3.
Comentário e análise semântica
Dt 24,17-22 constitui um texto de estilo legislativo. No interior desse
conjunto de normas verificam-se duas grandes tradições que guardam meios para
garantir a subsistência da família ligada aos trabalhos do campo. Na primeira, o
texto retoma a antiga tradição oriunda da saída das terras egípcias: a experiência
do êxodo. A outra se refere ao hábito de garantir os modos e os meios essenciais
88
Christensen opta pela centralidade priorizando os grupos sociais. Na centralidade da estrutura
está o v. 19b: “Deste modo, YHWH, teu Deus, te abençoará em toda obra de tuas mãos”. Cf.
CHRISTENSEN, Deuteronomy 21,10-34,12, op. cit., p. 596.
103
para a sobrevivência do outro: o tribalismo. Essas duas tradições, oriundas da
origem do povo de Israel, vigoram em inúmeras narrativas bíblicas89. São, aqui,
atualizadas e harmonizadas tradições num esforço de superação dos desafios
sociais marcantes, como se pode perceber no uso das expressões "quando tu
colheres......não.....para o estrangeiro.....". Ocorre uma relação de causa e efeito,
para evitar que aconteça um possível desvio da prática do direito. Há como
certificar-se dessas duas tradições presentes na narrativa90. Afinal, o êxodo
tornou-se paradigmático no processo de redação dos textos bíblicos, chegando a
estar no lugar de tantos outros êxodos.
Embora antiquíssimas, elas continuam dando sentido às normas tardias da
vida comunitária em Israel. Crê-se que não é à revelia que a tradição do êxodo
forme a moldura estrutural na narrativa, como se nota nas duas citações diretas à
tradição. A ênfase é dada por vontade do próprio YHWH: hZ<)h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;
^W>c;m. ykinOa', “te ordeno agir conforme esta palavra” (vv. 18b. 22b). Esta ordem
adquire sentido quando se considera o uso da partícula !Ke-l[;, “eis porque, por
isso”, levando a agir conforme o proposto por YHWH. Existe uma relação de
causa e efeito entre a lembrança do fato de ~yIr:cm
. iB. t'yyIh' db,[,, “escravo foste no
Egito”,
(vv. 18a. 22a) e a ordem hZ<h; rb"D"h;-ta, tAf[]l;, “agir conforme esta
palavra”, (vv. 18b. 22b).
Não é difícil de perceber a presença de uma tradição tribal no conjunto
dessas normas, e não é por acaso. Foi um projeto forjado em meio às vicissitudes
de ocupação das terras de Canaã91. Neste ponto, é necessário buscar um motivo
89
Percebe-se que a defesa dos grupos desfavorecidos se faz considerando os grandes feitos de
YHWH em prol de seu povo escolhido. Os episódios do êxodo, visto como fuga ou saída, é
retomado ao longo de toda história de Israel. Do Egito para a terra prometida, a comunidade tem a
oportunidade de criar novas relações sociais e novos vínculos éticos que defendem a sobrevivência
dos clãs. Cf. GOTTWALD, N., As Tribos de YHWH. Uma sociologia da religião do Israel liberto
1250-1050 a.C., São Paulo, Paulinas, 1986, pp. 102-114.
90
Sobre a importância das tradições a literatura é vastíssima. Cf. BLENKINSOPP, J. El
Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 1999, pp. 176-234. Estudos priorizam a experiência em terras
egípcias de tal importância que chegam a migrar para textos litúrgicos. “A experiência do êxodo se
confessa liturgicamente em um dos textos mais antigos das Escrituras: Dt 6,20-25. Cf.
FERNÁNDES, P. J. T., “Un proyecto de solidaridad, justicia social y resistencia. Um estúdio a
partir de Deuteronomio 15,1-18. In KAEFER, J. A. e JARSCHEL, H., (Orgs.), Dimensões Sociais
da Fé do Antigo Israel, São Paulo, Paulinas, 2007, pp.53-67.
91
Este assunto é por demais caro nos estudos sobre a história da ocupação das terras de Canaã,
independente do viés hermenêutico empreendido. Cf. BERTRAND, M., L`étranger dans les lois
bibliques. In: RIAUD, J. (Org.), L`étranger dans la bible et ses lectures. Paris: Cerf, 2007, pp. 7880. Sabe-se que a redação do Código Deuteronômico ocorreu numa época em que Israel, reino
rival de Judá, não existia como nação por mais de um século. Tais mudanças no cenário
geopolítico serão amplamente compreendidas pelos autores. Perspectiva endossada por
104
para relacionar às épocas das colheitas, e o resultado das suas produções, com a
sustentabilidade física das pessoas ou grupos desfavorecidos. Por qual motivo
relacionar os bens da produção agrícola com grupos socialmente desfavorecidos,
como estampam as leis deuteronômicas? A resposta não pode vir a não ser de
algum fato histórico bem determinado.
“Tudo isso mostra como o Código Deuteronômico está próximo da realidade
agrícola da Idade do Ferro e, de certa forma, interpreta esta realidade. A riqueza da
produção agrícola é uma expressão das experiências fundamentais com o Deus de
Israel. O êxodo e a dádiva da terra, como experiências constitutivas da relação com
Deus, manifestam-se na liberdade jurídica, política e social dos agricultores
israelitas em suas terras”92.
Neste aspecto, opta-se pelas experiências anteriormente vividas em terras
de Canaã, no período pré-estatal, quando Israel buscava compor-se como uma
nação independente. Israel não nasceu como uma cidade-estado, mas vivenciou
um período tribal, em que a preocupação com a sustentação física de seus
membros foi, frequentemente, uma meta. Kramer argumenta que tais leis foram
criadas para fortalecer, intensificar e institucionalizar as relações de partilha, de
solidariedade e fraternidade/irmandade, na realidade socioeconômica do povo
israelita93. Nota-se que o teor das leis visa transformar “o povo de Israel numa
sociedade de irmãos/irmãs ou no povo santo de YHWH”94.
Pela partícula negativa al{ “não”, no v.17a, inaugura-se um aspecto
imperativo diante do conjunto de leis em defesa da manutenção do direito aos
grupos sociais desfavorecidos, representados pelos estrangeiro, o órfão e a viúva.
Trata-se que, em hipótese alguma, deve acontecer a negação da prática do direito.
Tal alerta é sustentado pela referência ao Egito e pela observância do
mandamento.
No conjunto da narrativa, nota-se a existência de um conjunto de leis
voltado para garantir o jP;Þv.mi “direito”, dos grupos socialmente desprotegidos e
dele merecedores. Verifica-se que o termo não é citado aleatoriamente. A
Crüsemann: "O mais antigo indício de prescrições divinas, em forma escrita, encontra-se em
Oséias, portanto no Reino do Norte em Israel, no séc. VIII aC. Os 8,12 é parte integrante da
composição de Os 8,1-14, que inicia com o som da trombeta diante dos inimigos perigosos
(8,13b). A clamorosa reação de Israel (8,2) é desmascarada como "enganosa". Cf. CRÜSEMANN,
F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit., p.36.
92
Cf. Ibidem, p. 316.
93
Cf. KRAMER, P. Origem e Legislação do Deuteronômio, p. 90.
94
Cf. Ibidem, p. 87.
105
evidência está no uso do verbo hj'n", "desviar, afastar, torcer"95. A forma da
segunda pessoa do hifil, no imperfeito, coloca em observação um aspecto ético96
diante do não cumprimento da lei impondo parâmetros e limites durante a
realização
da colheita97. No Código da Aliança (Ex 23,2.6) a referência é
explicita: não se deve ter a mínina intenção de "perverter, desviar" os rumos do
direito dos pobres e operários. O ato de burlar o direito é violentamente
condenado na pregação profética98 (Is 10,1-4; 5,25; 9,11.16.20; Am 2,7.8; 5.12).
Em Dt 24,17-21 o modo insistente pela busca da prática do direito é
apresentado de maneira entrelaçada às outras esferas da vida cotidiana. Agir com
base na prática do direito implica a lembrança dos tempos vividos no Egito (v.
18a, 22a) e na disposição em agir conforme a palavra (vv. 18b, 22b). Fica evidente
que agir com base no direito implica uma malha de outras atitudes a serem
executadas, cujo fim último é agradar a YHWH e, consequentemente, os membros
da comunidade. Os vv.19-22 retomam antigos costumes tribais, priorizando não a
ética individual, mas os grupos familiares. As colheitas anuais são vistas como
oportunidade no restabelecimento, não da igualdade, mas da garantia de que os
produtos da terra, como vinho, azeite e cereais fossem fundamentais na
sustentação dos grupos mais pobres.
. i “direito”,
Kramer destaca inúmeras semelhanças no uso do binômio jP;Þvm
e ‫ ְצדָ קָ ה‬, “justiça retidão”, com os textos da profecia de Ezequiel. Para ele, ocorrem
tantas similitudes que chega a propor total dependência literária de Dt 24,10-18
das afirmações expostas em Ez 18,5-2099. O binômio não se sustenta diante da
argumentação de Krašovec100, para quem o termo ‫ ְצדָ קָ ה‬, "justiça", sempre teve,
desde os antigos códigos até sua compreensão na Bíblia Hebraica, uma
interpretação unilateral.
95
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 432.
Cf. Ibidem.
97
No hifil o verbo ocorre 77 vezes no AT. Cf. LISOWSKY, G., Konkordanz zum Hebräischen
Anten Testament, pp. 922-923.
98
"O 'ai' (hōy) típico dos rituais fúnebres normalmente é usado com relação às pessoas mortas.
Aqui, no entanto, é entoado diante de pessoas que, através da escrita, causam desgraças com
procedimentos legais". Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá:Teologia e história social da lei do Antigo,
p. 40.
99
Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, op. cit. p. 171.
100
Cf. KRAŠOVEC, J., La justice (ṣdq) de Dieu dans la Bible Hébraïque et l`interprétation juive
et chrétienne, Freiburg Scheweiz, Vandenhoeck & Ruprecht Göttingen, 1988, pp. 47-58.
96
106
Crê-se que o aspecto mais adequado no contexto de Dt 24,17-22 seja o uso
desse termo técnico no cenário jurídico apresentando critérios balisadores nas
relações pessoais. Este contexto facilita compreender a relação entre a prática da
colheita e o ato de respigá-la, hábito garantido aos grupos socialmente
desfavorecidos. Agir com base no direito é um atributo do ser divino e,
consequentemente, implica o comportamento humano. Nesta interação entre o
atributo divino, que age, tendo o direito como princípio, a instauração do direito
passa necessariamente pelo processo de garantir a sustentabilidade dos pobres. No
texto percebe-se tal prolongamento no critério que deve nortear as épocas da
colheita.
Estão presentes, também, no texto duas referências ao Egito. Há duas
distintas citações: ~yIr:c.miB. t'yyIh' db,[, yKiä, “que escravo foste no Egito”, (v. 18a) e
um acréscimo no v. 22a: ~yIr"c.mi #r<a,B. t'yyIh' db,[,-yKi T'êr>k;z"w>, “lembrarás que escravo
foste na terra do Egito”, (v. 22a). Salvo o acréscimo do termo #r<a,B., “na terra”, o
local de sofrimento é marcado, tendo como referência, o Egito101. Dessa realidade,
Israel foi libertada pela mãos de YHWH. O verbo hd'P' "resgatar, redimir,
libertar"102, no qal, realça a ação ativa da divindade. Considerando o contexto do
uso desse verbo Nelson103 salienta que "a expressão 'te libertou (pādâ) YHWH,
teu Deus, de lá' é, virtualmente uma pequena profissão de fé com as implicações
do poder e justiça social". No livro do Dt há seis referências ao uso do verbo hd'P'
(Dt 7,8; 9,26; 13,6; 15,15; 21,8; 24,18), sendo que, em todas elas, há uma
explícita analogia envolvendo o gesto de YHWH em prol de Israel, e a terra da
escravidão, o Egito.
O narrador atualiza o sofrimento de épocas passadas com o momento
histórico atual, vivenciado pela comunidade; daí se pode compreender a defesa
dos grupos socialmente pobres com a condição dos filhos de Israel, outrora vivida
no Egito.
101
“A intervenção de Yhwh na história é considerada – evitando-se ou reduzindo-se, em
consequencia, outros modelos tradicionais – a partir de um único modelo, ou seja, o modelo do
auxílio prestado em uma situação de calamidade em vista da lamentação cultual”. Cf. LOHFINK,
N., Grandes manchetes de ontem e de hoje. São Paulo, Paulinas, 1984, p. 104.
102
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P. p. 529.
103
Cf. NELSON, R. D., Deuteronomy: a commentary, op. ct., p. 292.
107
O ~yIr"+c.mi, “Egito” evoca o local, por excelência, do êxodo104. Mas não é
difícil afirmar também as múltiplas interpretações, ao se relacionar o país do Egito
com os filhos dos hebreus. Já no II milênio a.C., durante a idade do ferro, os
egípcios se vêem diante de um grupo de pessoas de
característica nômade,
formado por escravos sazonais e mercenários, provavelmente chamados Hapirus,
participando das construções situadas na região leste do Delta do Nilo, onde são
edificadas as pirâmides de Piton e Ramsés (Ex 1,11)105. Mais tarde, os patriarcas
Abraão e José se vêem no Egito, como se fosse preciso que a afirmação de uma
aliança divina devesse passar necessariamente pelo relacionamento com a figura
emblemática do Faraó. A saga de Moisés irá imprimir um caráter definitivo aos
egípcios como eternos inimigos dos hebreus. Neste contexto de violência e
opressão, ocorre o conhecimento do Deus YHWH pelos hebreus.
São leis oriundas dos mais diferentes espaços sociais e tradições literárias
que as tornam impossíveis de serem fidedignamente identificadas, devido às
inúmeras repetições e releituras feitas durante os séculos em que as tradições
circularam, até o estágio final da redação do livro.
Antigas tradições são reutilizadas pelo narrador de Dt 24,17-22, numa
abordagem fortemente negativa servindo de motivação na aproximação entre os
membros do povo de Israel. YHWH é entendido como um Deus pessoal dos
hebreus, após a experiência de fuga do Egito. Não é difícil perceber que a
consciência religiosa de pertença a uma experiência comunitária é força
aglutinadora na identidade social, pela qual o dever de cuidar do irmão é retomado
como lembrança dos tempos de penúria.
3.5.
A não transgressão é o meio para um mundo estável: Dt 26,12-15
O capítulo 26 conclui o Código Deuteronômico. Este pode ser divido em
três distintos grupos temáticos: a) a importância com as primícias colhidas (vv. 1104
Trata-se de um evento de dimensões incomparáveis na literatura do Antigo Testamento. Cf.
ZENGER, E., Introdução ao Antigo Testamento, p. 31.
105
Na opinião de Boyer, as narrativas bíblicas realçam um tempo de pleno intercâmbio entre
egípcios e hebreus. Os hebreus chegam a ocupar lugares de relevo na sociedade egípcia, tornandose proprietários fecundos e merecedores de certa ascensão social. Cf. BOYER, F., Quand Israël
rencontre Pharaon. In: LMB hors série, 2006, pp. 40-41. Ver também as afirmações de Bennett ao
relacionar as teses de N. Gottwald e E. Tamez na identificação do período de opressão que
antecedeu o movimento do êxodo. Cf. BENNETT, H. V., Injustice made legal: Deuteronomic law
and the plight of widows, strangers, and orphans in ancient Israel, op. cit., pp.108-110.
108
11); b) o destino do dízimo e seus aspectos religiosos e sociais (vv. 12-15); c) o
desejo de realizar plenamente a aliança contraída com YHWH (vv. 16-19)106. A
narrativa de cunho eminentemente litúrgico, retoma leis já apresentadas em outras
partes do livro (Dt 18,4; 14,28-29), reafirmando os aspectos humanitários que
devem ocorrer durante a ocasião da oferta do dízimo trienal.
3.5.1.
Dt 26,12-15: tradução, aspectos filológicos e variantes
12a
Quando tiveres terminado de separar
toda a décima parte de tua colheita, no
rfe[.l; hL,k;t. ‫ִכּי‬
hn"V'B ^t.a'WbT .rf:[m. ;- lK'-ta,;
terceiro ano, a décima parte,
rfE[]M;h; tn:v. tviyliV.h
12b
darás para o levita, para o
estrangeiro, para o órfão e para a viúva.
hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;
12c
Eles comerão, em tuas portas,
ywILel; hT'ät;n"w>
fartar-se-ão.
^yr<Þ['v.bi Wlk.a'w>
`W[be(f'w>
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
13a
^yh,l{a/ hw"hy> ynEp.li T'rm> ;a'w>
separei o que é consagrado da minha casa
13b
tyIB;ªh;-!mi vd<Qåoh; yTir>[ô:Bi
e também
13c
~g:w>
o dei para o levita e para o estrangeiro,
ywILel; wyTit;n>
para o órfão e para a viúva
hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl;w>
13d
conforme teu mandamento,
que me mandaste.
Não
transgredi
^t.w"cm. i-lk'K.
ynIt"yWIci rv<a]
nenhum
dos
teus
13e
^yt,wOc.Mmi i yTir>b:['-al{
mandamentos
106
Verifica-se a presença de antigas normas sociais recolhidas e que, uma vez agrupadas, oferecem
estilo, ritmo e coesão à composição. Predomina um estilo de espiral ao compor a narrativa, onde
temas citados anteriormente são retomados oferecendo um estilo original ao livro, como acontece
no discurso de abertura: “Quando entrares na terra que YHWH, teu Deus te dará como herança”
(v. 1), aqui, retomada, mas já citado em outras partes do livro (6,10; 7,1; 11,29; 17;14; 18,2).
Verificam-se, ainda, antigos hábitos de cunho cultual e social, tais como: tradições cultuais
destacando as funções sacerdotais no gesto de cuidar dos sacrifícios (vv.2-4); a fórmula utilizada
durante o ato de ofertar a parte sagrada destinada aos grupos de necessitados (v.13); a referência a
algum tipo de divindade ligada ao mundo vegetativo (v.14); uma possível forma de dedicação do
santuário (.v15). Os vv. 16-19 formam a parte conclusiva do discurso recorrendo a solene
referência ao termo técnico “hoje”, que dá um sentido sempre atual aos preceitos divinos. As
camadas literárias, as inúmeras tradições juntaram-se na formatação do livro que possuímos hoje.
Cf. KAEFER, J. A., Un pueblo livre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la composición
del Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 2006, pp 237-238; ROFÉ, A., Deuteronomy: Issues and
Interpretacion, London/New York, T&T Clark, 2002, pp. 205-219.
109
13f
`yTix.k('v' al{ïw>
a
WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al{
b
amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w>
e não dei dele [dízimo] para um morto.
14c
tmel. WNM,mÞ i yTit;n"-al{w>
Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus.
14d
yh'l{a/ hw"hy> lAqB. yTi[m. ;v'
Eu fiz conforme tudo o que me mandaste.
14e
`ynIt"yWIci rv<a] lkoßK. ytiyfi§['
Dirige teu olhar desde tua santa morada
15a
^v.d>q' !A[M.mi hp'yqiv.h;
e não esqueci deles
Não comi disto [dízimo] no meu luto,
e não separei dele [dízimo] em estado de
14
14
impureza,
dos céus
e abençoa o teu povo,
~yIm;ªV'h;-!mi
15b
Israel,
^M.[;-ta, %rEb'W
laer"f.yI-ta,
e o solo que nos deste,
15c
Wnl'_ hT't;n" rv<a] hm'd"a]h' taew>
conforme prestaste juramento aos nossos
15d
Wnyteêboa]l; T'[.B;v.nI rv<a]K;
15e
`vb'd>W bl'x' tb;z" #r<a²,
pais,
terra que destila leite e mel.
O v. 12 recebe quatro alterações: a) a primeira refere-se à uma alteração de
leitura. Deve-se evitar ler ‫ש ֹיר‬
ִ ‫ ְל ַה ְע‬, “separar”, na forma Hif’il. Prevalece uma das
ִ ‫ ; ַל ְע‬b) a referência à frase hebraica hT'ät;n"w>
formas verbais no infinitivo: ‫שּ ֹר‬
ֵ ‫ ַל ְע‬ou ‫ש ֹר‬
rfE[]M;h;( tn:v. literalmente “ano do dízimo darás”, na LXX lê-se to. deu,teron
evpide,katon dw,seij “e novamente a décima parte
darás”, indicando uma
retroversão relacionada à frase ‫ֲש ֹר נָתַ תָּ ה‬
ֵ ‫ ;שֵׁ נִת ַה ַמּע‬o Pentateuco Samaritano grafa
‫“ וּנְתַ תּוֹ‬darás a ele”; c) em ‫ ְו ַלגֵּר‬, “e para o estrangeiro”, nota-se um acréscimo
conjuntivo, em dois manuscritos do Targum, LXX, Siríaco e Vulgata; d) poucos
manuscritos hebraicos medievais como no Targum, LXX, Siríaco e Vulgata
utilizam o acréscimo conjuntivo ‫ ְו ַליּ ָתוֹם‬, “e para o órfão”. Verifica-se que tais
variações, e não são poucas, caem sobre pequenas partículas: conjunções e
artigos. Como tantas, até aqui, assinaladas, são insuficientes no tocante a mudança
ao TM.
No v. 13, cinco outras observações ocorrem, pela ordem: a) a LXX traz
uma tradição textual nos códices cursivos em minúsculos. O mesmo acontece na
Vulgata, referente ao uso da expressão evk th/j oivki,aj mou, “da minha casa”. As
edições remanescentes da LXX usam a 2a pessoa do singular; b) em muitos
manuscritos, como o Pentateuco Samaritano, LXX e Targum Pseudo-Jônatas
110
encontra-se a grafia ‫ לגר‬e não ‫ ְו ַלגֵּר‬, como se encontra na versão do TM, omitido
junto ao códice Basiliano-Vaticano e no Códice Vêneto; c) uma ligeira alternância
de leitura é encontrada na LXX, Siríaco e na Vulgata ao fazer uso do prefixo
‫ ;וליתום‬d) a conjunção grafada no TM ‫“ ְו ָלאַ ְל ָמנָה‬e para a viúva” é omitida no
manuscrito da LXX; e) uma outra alternância de leitura surge no manuscrito 69 e
nos manuscritos: Pentateuco Samaritano, Siríaco e LXX, ao grafarem ‫מצוֺתֶ יך‬,
“nenhum dos teus mandamentos”. As nove observações encontradas entre os vv.
12-13, apresentam, em sua maioria, correções ou pequenas harmonizações de
ordem meramente gráfica não chegando a constituir uma variante.
No v. 14, verificam-se quatro pequenas nuanças: a) poucos manuscritos
hebraicos medievais e a tradição do texto grego da LXX, exceto para o códice
Basiliano-Vaticano, mais os códices Vêneto, Freer, Siríaco utilizam a conjunção
antes da partícula negativa ‫לֺא‬, “não”, na forma ‫ ;ולא‬b) a conjução ‫“ ו‬e” é omitida
na tradição do texto grego da LXX. É utilizada a partícula negativa ‫לֺא‬, “não”; c)
a omissão da conjunção ocorre também na tradição do texto grego da LXX,
exceto na recensão de Luciano; d) o uso explícito de ‫ככל אשׁר‬, “conforme o que”,
na LXX e Siríaco corresponde à conjunção kaqa,, “assim como, conforme”,
indicando uma retroversão de ‫שׁר‬
ֶ ֲ‫ ַכּא‬, “segundo o que, de acordo com o que”, a
Vulgata grafa omnia sicut como uma correção à expressão ‫כל אשר‬, “tudo o que”.
Nenhuma variante pode ser anotada, diante de pequenas variações inacapazes de
sustentar uma variação ao sentido do texto.
No v. 15, ocorre somente uma observação referente ao uso do verbo ‫שקף‬,
“dirigir o olhar”107. No Pentateuco Samaritano, utiliza-se a forma ‫ השקף‬e não no
imperativo na forma hi’fil ‫השקיפה‬, “lance teu olhar”, como no TM.
Considerando todas as respectivas observações, nenhuma variante é
registrada no conjunto de texto. As alterações ocorrem em um pequeno número
de manuscritos. Se há algo na direção de uma nova redação, ao conjunto do
texto, refere-se ao acréscimo do grupo levita à trilogia social, como apresenta
Dt 14,28-29.
107
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L, Dicionário Bíblico, p. 691.
111
3.5.2.
Delimitação, composição e estrutura
Dt 26,12-15 apresenta-se como um texto bem conservado. No texto podese justificar a coerência, a lógica interna, ao relacioná-lo com o texto antecedente
(vv. 5-10) e o texto posterior, formado pelos versículos 16-19. Nos vv. 5-10
encontra-se o que para muitos estudiosos é reconhecido como sendo o “pequeno
credo histórico”108 oriundo de tradições pré-monárquicas, num envolvimento
entre YHWH e os patriarcas, culminando com a saga dos hebreus na sua saída do
Egito. Na opinião de Kramer, ao lado de Dt 26,1-11, esse conjunto de versículos
(vv. 12-26) – “apêndices litúrgicos” -
menciona as atividades no santuário
“central de Jerusalém”, legitimando uma real ocupação da terra de Canaã, além de
uma atividade religiosa condicionando a bênção de YHWH à pratica de
disponibilizar o dízimo109.
Após os vv. 12-15, surge outro breve discurso de exortação conclamando a
comunidade a obedecer e praticar no “hoje” de sua existência (vv. 16, 17, 18) as
ordens ditas por meio de Moisés. A utilização do termo ‫“ ַהיּוֹם‬hoje” favorece a
delimitação da narrativa. A insistência sobre essa partícula temporal ‫“ ַהיּוֹם‬hoje”,
evidencia que os fatos de outrora se atualizam na história presente. Ao longo de
sua existência, a comunidade de Israel presenciou inúmeras situações de
confrontos, diante de seus inimigos, mas também presenciou a ação protetora de
seu Deus, cumprindo as promessas feitas a Moisés. A compreensão ao conceito de
‫“ ַהיּוֹם‬hoje”, não realça a especificidade de um determinado dia. Busca-se
compreendê-lo como conceito de atualidade histórica diante dos desafios
impostos ( Dt 5,10; 6,1; 11,8; 12,1). Todos os mandamentos de Deus devem ser
realizados.
108
Esta definição, até certo ponto, imposta à narrativa de Dt 26, 5-10, desde do trabalho de von
Rad, não se sustenta diante dos recentes críticos. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, Brescia,
Paidéia Editrice, 1979, p. 175; Cf. SÁNCHEZ, E., Deuteronomio, Buenos Aires, Kairos, 2002,
pp. 358-360. Mas, num cenário de debates, que ainda carece de síntese, Dt 26,1-11 liga-se às
antigas tradições cultuais destacando o direito e privilégio do Deus de Israel, constituindo normas
e evidenciando o caráter centralizador do templo, como as encontradas em Ex 34. Nada mais
evidente em declarar que o Dt passou a existir quando o direito de privilégio de Javé defendido nas
leis cúlticas foi combinado com a exigência de restringir culto e sacrifício a Javé num único local:
no lugar que Javé escolher. Critério este resultante de algo “reelaborado deuteronomisticamente”,
mediante as tensões existentes na narrativa.
109
Cf. KRAMER, P., Origem e Legislação do Deuteronômio: programa de uma sociedade sem
empobrecidos e excluídos, op. cit., p.180.
112
Anotadas as três distintas narrativas, pode-se estabelecer a seguinte
estrutura ao capítulo 26: a) vv. 1-11: as primícias; b) vv. 12-15: o dízimo trienal;
c) vv. 16-19: discurso sobre o hoje de Israel.
Os destinatários beneficiados com a partilha são formados pelos mesmos
grupos sociais: ‫“ ֵל ִוי‬levita, ‫“ גֵּר‬estrangeiro, ‫“ י ָתוֹם‬órfão” e ‫אַ ְל ָמנָה‬, “viúva”. A
diferença entre as duas perícopes recai sobre a intenção final de agir segundo as
ordens divinas. Não se trata mais de agir na intenção de receber as bênçãos de
YHWH, mas, sim, o desejo de cumprir integralmente os mandamentos, como
meios de garantir a promessa divina de Israel habitar numa terra marcada
infinitamente pela prosperidade. Nota-se a ênfase dada à prática de comer até ficar
saciado (v. 12).
O texto bíblico não estabelece critérios no modo de disponibilizar,
distribuir e, quando necessário, armazenar a quantia de 10% de toda colheita aos
grupos necessitados110. Eles recebem o direito, por vontade de YHWH, de
comerem até ficarem satisfeitos111. Depara-se com uma máxima legal a ser
colocada em prática, mas sem nenhuma clara indicação significativa sobre o modo
de efetuar a partilha de uma porção considerada de suprimentos para um número
grande de pessoas112.
Uma primeira parte da perícope se forma diante das duas referências à
prática do dízimo e outras duas determinando a partilha dos bens aos necessitados
(vv. 12-13f). Com base na elaboração de dois paralelismos sinonímicos, ocorre
uma divisão na narrativa, formada ao relacionar dízimo x grupo de necessitado,
110
Não se tem conhecimento de nenhum outro livro do Antigo Testamento que tenha estabelecido
uma norma obrigando o pagamento de um imposto, no nível de 10%, como registram os dois
textos do livro do Deuteronômio (14,22-29; 26,12-15). Sabe-se de tal prática coletora pela
pregação do profeta Amós 4,4. Mas, este a descreve como sendo uma entre inúmeras práticas de
sacrifícios realizadas nas dependências de Betel e Guilgal. Zabatiero coloca em dúvida a
compreensão da quantidade estabelecida, de 10%, como o grande número de pessoas oriundas das
camadas empobrecidas, dignas também de receber o básico para garantir sua subsistência. Cf.
ZABATIERO, J. P. T., Tempo e Espaço Sagrados em Dt 12,1 – 17,13. Uma leitura sêmiodiscursiva, São Leopoldo, 2001, p. 140.
111
A raiz ‫ אכל‬adquire o mesmo sentido em todas as culturas antigas. A comida é compreendida
como um dom supremo da divindade, sinal de pura bênção e prosperidade garantida. Adonai
cumula seu povo de bens (Dt 12,15; Os 11,4; Ecl 2,24). Cf. Ottosson, in: BOTTERWECK, G. J. e
RINGGREN, H. (Eds.), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 251-256. Comer e
beber são características marcantes da alegria pela vida. Oportuna recorrer ao senso pleno do
hábito de comer, assinalada na epopéia de Gilgamesh: “Farta o teu corpo dia e noite! Sê alegre
todo o dia! Salta e dança sempre!”. Comer juntamente com alguém sempre foi nas culturas antigas
sinal supremo de estreita amizade. No AT e no NT o gesto realça confiança e plena comunhão
diante dos desejos idealizados. Cf. Behn, J. in: KITTEL, G. e FRIEDRICH, G. (Orgs.), Grande
Lessico del Nuovo Testamento, V. III, Brescia, Paideia, 1967, pp. 975-983.
112
Cf. Ibidem, p. 140.
113
por um lado, e por outro, parte consagrada x grupo de necessitado. O grau de
importância no uso do paralelismo, ganha, ainda, mais força, com o uso dos
verbos ‫ש ֹר‬
ַ ‫ ָע‬, “separar, tomar a décima parte” e ‫נָ ַתן‬, “dar”, que se entrelaçam. Com
base nessas observações, verifica-se a seguinte estrutura:
A: separar a décima parte da colheita no campo (v. 12a).
B: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v.12b).
A1: separar o que é consagrado de minha casa (v. 13b).
B1: dar ao levita, estrangeiro, órfão e viúva (v. 13c).
Considerando-se esta estrutura, há de se verificar dois importantes
hábitos um tanto enraizados no universo religioso: a) o caráter obrigatório de
uma norma legal exaltando a obrigatoriedade na separação da décima parte dos
produtos colhidos; b) o gesto de disponibilizá-lo a um determinado grupo social
provém da décima parte conhecida como
tyIB;h;-!mi vd<Qoh; “o consagrado de
minha casa” (v. 13b).
Nos versículos 13e-f-14a-c, verifica-se uma segunda parte da mesma
unidade. São citados antigos hábitos religiosos ligados às práticas do dia-a-dia, e
aqui, relacionados à parte da colheita a ser entregue como suprimentos essenciais
à sobrevivência dos grupos desfavorecidos, como:
a não-transgressão dos
mandamentos; o não-esquecimento; o não-consumir do dízimo em momentos
fúnebres; o não-consumi-lo em estado de impureza; o não-subtrair parte do
dízimo na oferenda a um morto. Após a quíntupla negação (v. 14c), ocorre uma
dupla afirmação de retidão comportamental marcadas pelo uso dos verbos ‫שׁ ַמע‬
ָ
“ouvir” e ‫ש ֹה‬
ַ ‫“ ָע‬fazer” diante da ‫“ קוֹל‬voz” e ‫“ ַצו‬mandamento” de YHWH (v. 14ae
). No v. 15 se encontra o desfecho, a conclusão dessa segunda parte da perícope.
Trata-se da elevação de súplica, feita a YHWH, que habita num santuário – nada
garante que este templo seja o de Jerusalém -, solicitando a bênção sobre o povo
de Israel e a manutenção das promessas feitas aos patriarcas. Tais observações
possibilitam a seguinte estrutura:
A – Declaração de inocência diante dos mandamentos (v. 13e):
•
yTir>b:['-al{ “não transgredi”
•
yTix.k'(v' al{ “não esqueci”
114
B – Declaração de inocência diante do dízimo (v. 14a):
•
yTil.k;a'-al{ “não comi”
•
yTir>[:bi-al{ “não separei”
•
yTit;în"-al{ “não dei”
A1 – Declaração de inocência diante de YHWH (v. 14d)
•
yTi[.m;v' “ouvi”
•
ytiyfi[' “fiz”
B1 – Preces de solicitações (v. 15a-e)
•
hp'yqiv.h; “dirige teu olhar”
•
%rEb' “abençoa”
•
T'[.B;v.nI rv<a]K; “conforme prestaste juramento”
Encontra-se semelhante estrutura paralela, presente nos vv. 12-13a nesta
parte do texto ao relacionar A + A1, B + B1. A confirmação ética, diante dos
mandamentos de YHWH, justifica o pedido feito na primeira pessoa: não
transgredi, não esqueci (v. 13b). O mesmo se verifica na constatação da trilogia
negativa de nada violar da décima parte oferecida, com as três solicitações de
preces apresentadas a Deus. Não há como negar o caráter cultual utilizado no
momento da oferenda da décima parte da colheita, disponibilizada para saciar e
nutrir setores menos favorecidos da sociedade.
3.5.3.
Comentário e análise semântica
A obrigatoriedade do pagamento do imposto, oriundo da décima parte dos
trabalhos realizados no campo, seja na produção agrícola ou pastoril, é o tema
central nesta parte legislativa do Código Deuteronômico. Verifica-se claramente
que a preocupação com o cumprimento da lei, fixando a quantia de 10%, perpassa
todo este corpo redacional. Mas, nota-se que a prática de oferecer a quantia
estabelecida ocorre, tendo uma atividade litúrgica como instrumento. Tais
atitudes, de caráter litúrgico, acenam para a presença de antigas tradições literárias
reeditadas na formação do texto.
115
A legislação é clara ao obrigar a disponibilidade da quantia de 10%. Tratase de uma reedição de Dt 14,28-29113 nesta parte do livro em que são retomados
todos os elementos anteriormente citados, como demonstra o quadro sinótico:
Dt 14, 28-29
Época
Dt 26, 12-13a
Quando tiveres terminado de
separar toda a décima
parte de tua colheita no campo,
no terceiro ano
Ao final de três anos
Quantidade
tu farás tirar a décima parte
a décima parte
de toda a tua colheita no ano
Modo
e a colocarás à disposição nos
teus portões.
Destinatários Virá o levita,
[em tuas portas]
darás para o levita,
pois ele não tem parte da
herança contigo,
Finalidade
o estrangeiro,
para o estrangeiro,
o órfão
para o órfão
e a viúva
e para a viúva
e comerão até ficarem
e eles comerão,
em tuas portas,
saciados
e fartar-se-ão
Com referência à narrativa de Dt 26,12-13, Buis ressalta que este dízimo
“escapava ao controle do sacerdote, a partir do momento em que não havia mais
do que um santuário e que desvios de bens eram possíveis”114. Crê-se que, pelo
fato da oferta, correspondente a 10% dos produtos, não estar sob o controle do
sacerdote, seja possível compreender as inúmeras referências rituais e as
113
Cf. Prevalece uma unanimidade ao notar nesta parte conclusiva do livro a relação entre gestos
litúrgicos, tão evidenciados nesta parte do livro, e a ênfase social por meio de uma obrigatoriedade
de dispornibilizar a décima parte de todos os produtos da terra aos pobres. Cf. BUIS, P., Le
Deutéronome, p. 345; VON RAD, G., Deuteronomio,op. cit., p. 177-179; CHRISTENSEN, D. L.,
Deuteronomy, 21,10-34,1. Nashville, Thomas Nelson Publishers, 2002, pp. 639-642.
114
Cf. BUIS, P,. Le Deutéronome, Beauchense, Paris, 1969, p. 349. Esta mesma opinião tem
ressonância nas afirmações de : CAZELLES, H. RB, LV, 1948, p. 54-71. JAGERSMA. H., “The
Tithes in the Old Testament”, OTS, XXI, 1981, pp. 116-128.
116
declarações de inocência que acompanhavam, em forma de recitações e preces, o
gesto de oferecer a quantia a ser utilizada para a manutenção dos grupos
necessitados. Por outro lado, existe a possibilidade de pensar como de Vaux, para
quem “apesar do silêncio dos textos, se deve supor que uma parte ficava reservada
aos ministros”115. Detalhe compartilhado por Crüsemann, uma vez que os levitas e
sacerdotes são considerados como grupos sociais que formam parte de Israel.
“Mesmo assim, eles devem ser diferenciados claramente, às vezes explicitamente,
das pessoas a quem o texto se dirige. Eles não possuem terras (hēleq, naḥalāh; por
exemplo, 14,27; 18,1ss etc). O Deuteronômio não contém regras para
sacerdotes”116.
Os vv. 13a-15a
apresentam, pela ordem, os seguintes elementos que
compõem a cerimônia realizada durante o momento da apresentação do dízimo
trienal: a) ritual feito diante da divindade; b) oferta disponibilizada aos pobres,
segundo os mandamentos de YHWH; c) declaração de inocência diante das
ofertas; d) declaração de inocência diante dos mandamentos de YHWH; e)
pedidos de preces ao Deus de Israel. Percebe-se por meio dessas etapas, presentes
no texto, que a oferta estabelecida de 10% foi considerada como algo sagrado,
proveniente de parte de toda a colheita para ser oferecida “Diante de YHWH”,
isto é, em um santuário estabelecido.
A quantia estabelecida, na esfera de 10%, simbolizava algo razoavelmente
elevado, uma quantidade exuberante, considerando que a lei vigorava em todo país
de Israel. Eis um forte motivo para a possibilidade de ocorrerem frequentes fraudes,
se se considerar o conteúdo das declarações de inocências (vv. 13b-f-14e) que
antecedem a apresentação de súplicas a Deus presentes no versículo 15b-e.
O v. 13b-c relata duas práticas passíveis de acontecer diante do
mandamento: transgredi-lo ou esquecê-lo. Estas são as maiores de todas as faltas
que podem ocorrer diante de YHWH. Afinal, uma vez violados os mandamentos
tudo o mais é possível. Tal preocupação ocupa relativo destaque nas pregações
dos profetas que atuaram, junto ao Reino do Norte, anterior à queda da Samaria,
em 722 a.C.117. Feitas as declarações éticas diante das leis de YHWH, seguem
outras três declarações de inocência, por meio das quais é possível determinar três
115
Cf. De Vaux, Instituciones del Antiguo Testamento, op. cit., p. 490.
Cf. CRÜSEMANN, F., A Tora. Teologia e história social da lei do Antigo Testamento,op. cit.,
p. 309.
117
Cf. Os 2,15. 4,6. 6,7. 8,1. 8,14. 13,6; Am 4,1. 5,6-7,14.
116
117
diferentes tradições e possibilidades de desvios ocorridos diante da quantia
destinada aos pobres.
As três frases, embora por demais sintéticas, como as encontradas em Dt
26,14 oferecem elementos capazes de compreender a grandeza e a complexidade
dos cultos às divindades nos reinos de Israel. Impõem também a possibilidade real
de constatar que o javismo jamais foi uma unanimidade perene na comunidade
religiosa:
1) WNM,mi ynIaob. yTil.k;a'-al “Não comi disto [dízimo] no meu luto,
2) amej'B. WNM,mi yTir>[:bi-al{w> e não
queimei dele [dízimo] em estado de
impureza,
3) tme_l. WNM,Þmi yTit;n"-al{w> e não dei dele [dízimo] para um morto .
O primeiro risco (v. 14a) dá destaque ao desvio de utilizar parte do dízimo,
ainda que seja pequena, em cerimônias fúnebres em que se comemoravam a morte
de uma determinada divindade ligada ao mundo vegetal ou ao mundo animal,
especialmente animais como os carneiros, os bodes e os bois. Almejava-se, por
meio da intervenção divina, obter leite e carne com fartura118. Tais práticas
idolátricas chegaram ao nível de anormalidade em Israel. Não são inócuas as
denúncias proféticas de Oséias e Ezequiel. Embora façam parte de outro momento
histórico, as críticas desses profetas podem bem exemplificar a declaração de
pureza, esquivando-se de qualquer atividade religiosa capaz de identificar-se com
Baal119 ou a outra de nome Tammuz120. Deuses a quem Israel recorria com
frequência.
118
Segundo as denúncias anti-idolátricas proferidas pelo profeta, trata-se de uma prática cultual
oferecida a Tammuz (Ez 8,14). “As mulheres sentadas, chorando”, junto à entrada, situada ao
norte do Templo de Jerusalém, é referência a uma antiga prática encontrada num ritual acadiano
onde menciona: “No mês de Tammuz, quando Ishtar faz com que a população toda chore o seu
amante Tammuz, e a família se reúne ali, Ishtar está presente”. Cf. HARRIS, R. L., In: DITAT, p.
2519. Com base na comparação entre os textos acádicos, há diferentes abordagens, nos mais
diferentes períodos históricos, ao culto prestado à divindade de Tammuz. Cf. DER TOORN, V. K.,
BECKING, B., DER HORST, P. W. (Eds.), In: DDD, pp. 828-834;
119
O nome ‫“ ָבּ ַעל‬senhor, marido, possuidor”, muitas vezes associado ao ambiente da casa, às
relações familiares expressa também o nome de uma divindade que, em muito concorreu com a
concepção javista. Uma vez que os ritos cananeus de fertilidade e prosperidade tinham Baal como
defensor e provedor de tudo. Não há dúvidas de que este foi um forte concorrente ao conceito de
unicidade vivenciado nos quatro séculos que antecedem a pregação de Amós, Oséias, Miquéias e
Isaías. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento,
Simancas, Valladolid, 1999, pp. 321-330. Israel pode até recorrer ao nome Baal como uma
referência à supremacia de YHWH, mas análises da pregação de Oséias evidenciam relativa
condenação ao recorrer a Baal. O javismo foi arduamente defendido por Oséias. Cf. LIMA, M. L.
C., “A fidelidade de YHWH diante da infidelidade do povo: o anúncio de Os 2,18-25 no contexto
de Os 1-3”. In: AT, n. 21, 2005, p.303.
118
Oséias descreve o perigo de desintegração ética da comunidade religiosa.
Primeiramente, faz uma ameaça contra a quebra da aliança, simbolizada pela
prática da prostituição, mostrando a adesão às divindades cultuadas no reino do
Norte.121 A participação nos ritos de fertilidade cananeus faz com que YHWH
rejeite seu povo ameaçado de ser definitivamente destruído e definitivamente
ferido por outras nações (8,8; 9,3; 10,15). Somam-se ao baalismo as referências
às práticas idolátricas apontadas por Ezequiel (8,14), onde é possível perceber o
lastro cultual prestado às outras divindades que, se não chegaram a ter seus
templos e cultos estabelecidos, adquiriram espaços ainda no interior do santuário
nacional.
Um segundo risco de desvio poderia ocorrer, em tempos de oferecer
sacrifícios e holocaustos às divindades cananéias, utilizando, como oferta parte do
dízimo separado para YHWH. As liturgias marcadas pelos sacrifícios e
holocaustos foram demasiadamente denunciadas pelos profetas. Não foram
poucas as vezes em que Israel se deparou com a prática da idolatria122, pois há
harmonia entre textos bíblicos e extra-bíblicos que identificam uma divindade de
nome ‫“ ָבּ ַעל‬baʿal” como sendo deus dos Cananeus123. Baal, identificado como
120
Tammuz, também conhecido como Dumuzi, já encontrado como uma divindade, na Suméria (a
partir do 3o milênio a.C., tem seu culto ligado à fertilidade. “Tammuz morre no verão, na época da
seca, descendo ao submundo. Em julho, no mês que leva seu nome, as mulheres choram a sua
morte, com a finalidade de trazê-lo de volta, para garantir a fertilidade e a fartura, o que acontece
no início da época das chuvas”. Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de
Mulheres no Antigo Israel. Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-23. São Leopoldo, 2004, pp.
134-140.
121
A preocupação com os pobres não foi de modo algum negligenciada pelo profeta Oséias, como
analisam alguns. Por ter exercido sua atividade profética num dos poucos períodos de equilíbrio
social – reinado de Jeroboão II – Oséias deseja que sua sociedade seja “justa, adequando-se a
algumas normas de convivência que podemos sintetizar no decálogo, animada por espírito de
verdade, por afeto, por lealdade”. Cf. LUÍS SICRE, J., A Justiça social nos profetas. São Paulo,
Paulinas, 1990, p. 224.
122
Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 132-139. Na
pregação de Oséias há referências tanto no singular como no plural a esta divindade, com a qual
Israel veio a se prostituir (Os 9,10) ‫“ ַבּ ַעל ְפּעוֺר‬Baal Fegor”, certamente uma divindade relacionada à
região montanhosa de Moab (Nm 23,28).
123
Os autores bíblicos não se debruçam no aspecto negativo sobre ‫ ָבּ ַעל‬. A falta de interesse pelo
culto ao deus ‫ ָבּ ַעל‬assemelha-se ao desprezo à qualquer prática marcada por uma certa idolatria,
segundo Mulder. Os profetas visam enaltecer o culto a YHWH, um deus identificado com Israel.
Sabe-se que o culto sofreu inúmeras censuras. Cf. Mulder, in: BOTTERWECK, J. G. e
RINGGREN, H. (Ogrs), Diccionario Teologico del Antiguo Testamento, pp. 730-739. Na relação
entre Canaã e Israel há aspectos fundamentais que não podem estar à margem: a) Israel tem em sua
origem a experiência do Egito; b) O culto cananeu sempre foi uma inversão do culto ao javismo; c)
As inúmeras hostilidades denunciadas contra práticas cananéias, foram vivenciadas no interior das
comunidades israelitas. Cf. CRÜSEMANN, F., “Imaginário de violência como parte da história
das origens. A lei do anátema e ordem legal no Deuteronômio”. In: DREHER, C.A., MUGGE, E.,
HAUENSTEIN, I., DREHER, I. S. (Orgs.), Profecia e Esperança. Um tributo a Milton Schwantes.
São Leopoldo, Oikos, 2006, pp. 218-238.
119
senhor da natureza, da boa colheita e das chuvas em tempo certo, estará sempre
em contraponto com YHWH. Este último sempre o suplantará. O culto não
excluía comer parte dos sacrifícios oferecidos ao deus Baal124.
Um último desvio pode ocorrer no momento de prestar culto à morte125 de
uma respectiva divindade. Sabe-se da existência de ‫ ָמוֶת‬, “morte”126, divindade
com o poder de controlar o mundo dos mortos, “uma terra de lodo e imundícies”.
Sua morada é conhecida como sendo ‫שְׁ אוֹל‬, “sheol”127 (Jó 28,22; Am 9,2; Is
14,11). Pode-se ver também, na breve citação de Dt 26,14c, uma possível relação
com os rituais fúnebres lembrando a morte do deus Baal, celebrada na época do
verão, período em que a paisagem verde dos vales e montanhas seca, dando lugar
ao desaparecimento por completo da vegetação. Baal é o deus das montanhas, e
nelas-se localizam os inúmeros santuários edificados em seu nome128.
As declarações de inocência, indicadas nos vv. 13b-14e encontram seus
significados quando analisadas junto aos nós do sincretismo existente na vida
religiosa israelita. Tal sincretismo indica que, nem sempre, o javismo foi uma
unanimidade exclusiva. Ao seu lado, concorreram divindades como Baal, El,
Ashera129, Mot, Shemesh130 e, para agradá-los, recorriam-se, com frequência, à
profanação de partes do dízimo trienal.
A oração conclusiva (v. 15) pedindo a bênção e a prosperidade numa terra
boa e farta, tem por base as promessas seladas entre YHWH e os patriarcas (Gn
12, 2-3). Porém, a prosperidade não depende de um gesto unilateral de YHWH,
124
Cf. Sl 106, 28; Ez 20,30-43; Jr 2,23.
Na corrente religiosa javista, os cultos aos mortos foi fortemente rejeitado, bem como todo tipo
de necromancia. Cabe à comunidade lamentar, sim, seus mortos, mas sem referência alguma a um
tipo de divindade. Cf. FOHRER, G., História da Religião de Israel, Paulinas, São Paulo, 1982, pp.
265-266.
126
Não há consenso sobre se a divindade ‫“ מָ ֶות‬morte” tem seu nome escrito nas páginas do Antigo
Testamento. Para alguns, a divindade é textualmente comprovada nas duas citações de Os 13,14,
onde a personificação é claramente identificada com um lugar, e também desafiada a se manifestar
diante do poder absoluto de YHWH. A personificação da divindade da morte pode ser evidenciada
em outros dois textos proféticos: Is 5,14, Hab 2,5. Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER
HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 598-603.
127
Ibidem. pp. 598-603. O termo ‫ שְׁ אוֺל‬é por demais incerta, que segundo Gerleman refere-se a um
termo amplamente desenvolvido e, seu uso no AT, na maioria das vezes – sessenta e seis - ocorre
em textos sapienciais. O termo induz à experiencia de dor, sofrimento, estado de angústia,
desolação. Não são poucos os autores do AT a relacionar com o mundo dos mortos (Os13,14;
Sl49,16;Jo 26,6.28,22). Cf. Gerleman ‫ שְׁ אוֺל‬. In: JENNI, E. e WESTERMANN, C. (Eds.),
Diccionario Teologico manual del Antiguo Testamento, V. II, pp. 1053-1057.
128
Cf. 2Rs 23,1-20.
129
Cf. NEUENFELDT, E. G., Práticas e Experiências Religiosas de Mulheres no Antigo Israel.
Um estudo a partir de Ez 8,14-15 e 13,17-2, op. cit., p. 43.
130
Cf. DER TOORN, V. K., BECKING, B., DER HORST, P. W., (eds.), DDD, p. 764-768.
125
120
mas implica uma ação anterior que envolve a comunidade no gesto de ‫שָׁ מַ ע‬,
“ouvir” e ‫ש ֹה‬
ַ ‫ ָע‬, “agir” segundo a voz e os mandamentos de YHWH.
A memória da libertação do Egito foi, sem dúvida, a motivação, se não a
mais importante, pelo menos, uma grande força ideológica capaz de oferecer
elementos de sustentação131 para Israel trilhar seus passos na história, como nação
escolhida por YHWH e, deste modo, preservar a memória do javismo. Trata-se da
consciência de ter um deus pessoal a seu lado. Foi com esta compreensão na
divindade que as narrativas em torno da saída do Egito, foram preservadas. As
três grandes festas populares132 são marcadas pela prática da peregrinação até o
local escolhido por YHWH para ali fixar uma morada para sempre. Há um
aspecto cúltico no momento da distribuição do dízimo e, esta deve ser marcada
pelo ideal da partilha. Ao contrário, Israel não encontra meios para agradar a seu
Deus
O texto retoma, em sua primeira parte, temas já apresentados considerando
a prática do dízimo (Dt 14,28-29). Na segunda parte da narrativa (vv. 13-14)
adquirem realce as ações expressas pelos verbos xk;v' “esquecer” (v. 13f), e [m;v'
“ouvir” (v. 14d), e duas outras expressões ligadas a um local e realidade
semelhante: ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua morada santa”, mais a ação ^M.[;-ta,( %rEÜb'W,
“abençoa o teu povo”.
O verbo xk;v', “esquecer”, grafado na primeira pessoa do singular, adquire
o sentido de destacar a relação entre o ‫ ֲאנִי‬, “eu”, (Israel) e o relacionamento com
YHWH. Esta atitude de esquecer-se de Deus é não mais relacionar-se com ele.
Entende-se a transferência de atitudes, agora direcionadas a uma outra divindade,
131
A páscoa e a experiência do êxodo não são duas realidades palpáveis e objetivas, impossíveis
de serem analisadas como atos históricos. “Em termos teológicos, a relação entre o ato e
interpretação ou evento e palavra, é algo que não pode ser separado. O escritor bíblico não
concebe o fato de ser um evento primário ou ‘objetivo’ a partir de algo deduzível, dedução
subjetiva de um significado desenhado. Trata-se de um acontecimento jamais interpretado”. Cf.
CHILDS, B. S., The Book of Exodus. Louisville, The Westminster Press, 1974. p. 204. Vale
ressaltar que o povo de Israel não tem “história até não se converter em povo de Deus, isto
significa, até a revelação patriarcal e mosaica. Da época anterior, quando seus antepassados
“habitavam do outro lado do Rio e adoravam outros deuses” (Js 24,2) há vagas recordações (Gn
11,27-32; 22,20-24)”. Cf. GRELOT, P., Sentido Cristiano del Antiguo Testamento. Bilbao,
Desclée de Brouwer, 1995, p. 259.
132
Esta é a ótica expressa pelo legislador deuteronômico de que as festas devem envolver todos os
membros da família (Dt 16,11.14). Cf. HAAG, H., De la Antigua a la Nueva Pascua. Historia y
Teologia de la Fiesta Pascual, Sigueme, Salamanca, 1980, pp. 92-93.
121
que passou a ocupar o lugar de YHWH133. Eis o sentido que adquire a crítica
proferida por Oséias: Israel esqueceu-se de seu Deus, passou a não mais conhecêlo. Mesmo que Israel siga minuciosamente as práticas religiosas estabelecidas ao
cultuar seu Deus134, se não incentivar a partilha com os setores desfavorecidos,
seus gestos serão vistos como alguém que se esqueceu de sua particularidade com
YHWH.
Mais do que simplesmente escutar, o verbo [m;v', “ouvir”, induz a uma
atitude humana em relação ao Criador135. Ouvir a YHWH impõe o gesto de
obedecer-lhe, prestar-lhe culto, por meio dos decretos estabelecidos por vontade
do próprio criador. Induz a uma prática136. Trata-se de ser o mais coerente
possível. Não existe outra maneira de receber as bênçãos do Senhor, a não ser por
meio do gesto de ouvi-lo e prestar-lhe culto. A utilização do verbo ressalta a
unicidade e importância do Deus de Israel. A comunidade se vê diante de uma
divindade completamente diferente das demais existentes no Antigo Oriente. A
narrativa sublinha que não se trata apenas de tê-lo como eixo referencial, mas
combater, em seu nome, os cultos prestados ao deus Baal. Certamente, o risco de
deixar-se influenciar pelas divindades cananéias foi, sem duvida alguma, um
perigo que rondou a comunidade de Israel nas mais diferentes etapas históricas de
sua existência. Diante de tais considerações, o gesto de ouvir expressa toda a
riqueza de seu significado. A unicidade de YHWH e a pertença de Israel como
povo seu escolhido será uma idéia fundamental ao longo de toda pregação
profética, quer antes quer depois do exílio.
133
O verbo ‫ שָׁ ַכר‬na proporção do relacionamento entre YHWH e Israel será utilizado inúmeras
vezes no antônimo ‫ זָ ַכר‬. Não poucas vezes, Israel será alertada de não se esquecer de seu Deus e
das proezas por ele feitas em prol de seu povo escolhido (Dt 5,15; 8,18; 15,15; 16,12; 24,16. 22).
A “aliança” será lembrada por Deus (Ex 2,24; 6,5; Lv 26,42), mas esquecida por Israel (Am 1,9; Is
56,6; Jr 3,16; 11.3).
134
Por séculos foram utilizados inúmeros elementos provenientes da natureza na prestação de
culto a YHWH. Cf. ALBERTZ, R., História de la Religión de Israel en tiempos del Antiguo
Testamento, p. 326.
135
A expressão ‫ שָׁ מַ ע‬é soleníssima no ato de entender o relacionamento entre Israel e seu Deus.
Trata-se de uma equação de cunho exaltativa envolvendo Israel e seu Deus. Cf. BUIS, P., Le
Deutéronome, p. 128. Sabe-se que YHWH, na qualidade de ser único, sofrera concorrência com a
divindade de Baal. Não há dúvida de que o uso imperativo do verbo, em Dt 6,4-5, visa conclamar
sobre a comunidade israelita o poder impar e exclusivo do javismo. Escutar envolve a dimensão
comportamental diante das normas divinas. Por isso, a YHWH, Israel deve se dirigir com todo o
“coração, alma e força”. Cf. BLENKINSOPP, J., Deuteronοmio. In: CBSJ, Vol I, p. 309.
136
Ocorre um apelo de cunho exortativo imposto ao povo de Israel. Num mundo fortemente
marcado pelo politeísmo a fidelidade a YHWH é vista como uma maneira própria de ser. Cf.
LOHFINK, N., Ascolta, Israele – Esegesi di testi del Deuteronomio. Brescia, Paideia Editrice,
1998, pp. 67-68.
122
Os termos ^v.d>q' !A[M.mi, “desde tua santa morada”, juntamente com a ação
expressa na frase ^M.[;-ta,( %rEÜb'W, “abençoa o teu povo” são expressões nítidas de
que esta parte conclusiva do texto se refere a termos usuais de uma oração137. A
solicitação pode encontrar seu significado mais pleno nas duas promessas feitas
por YHWH, que culminaram na posse da terra prometida. Em outras palavras, as
promessas feitas ao patriarca Abraão (Gn 12,2-3) culminam com as bênçãos sobre
o povo eleito, Israel (Gn 15,8). Vê-se que o autor deuteronomista harmonizou
duas tradições antiqüíssimas em forma de súplica, na narrativa. Trata-se de uma
bênção condicionada às atitudes de Israel ouvir a voz de seu Deus e cumprir todos
os mandamentos de YHWH. Só nestas verdadeiras cláusulas da obediência,
entendida como testemunho diante dos grupos mais necessitados, Israel se
apoderará da terra da promessa, como viverá para sempre em ‫שׁלוֺם‬
ָ , “paz”; numa
“terra em que jorram leite e mel”.
3.6.
O senso cúltico contra atos que impossibilitam a realização do
projeto da bênção: Dt 27,11-26
A constatação de elementos de cunho cúltico, como a expressão: !mEa'
Wrm.a'w> ~['²h'-lk' Wnõ['w>, “e todo o povo dirá: amém”, citada doze vezes, ao longo de
toda a perícope de Dt 27,11-26, evidencia o aspecto litúrgico empreendido ao
texto, com a finalidade de dar ao conjunto de normas fixado, agora, proclamado
como Lei, uma nova e eficaz formulação138. Soma-se a referência às duas
montanhas – Garizim e Ebal – como cenário escolhido por vontade divina para
realizar uma cerimônia pela posse da terra, ao cruzar o Jordão.
3.6.1.
Dt 27,11-26: tradução, aspectos filológicos e variantes
Ordenou Moisés ao povo naquele dia,
dizendo:
137
11a
~['h'-ta, hv,mo wc;y>w:
`rmoale aWhh; ~AYB;
Muitas análises a relacionam com a frase encontrada em IRs 8,43. Cf. BROWN, R, E.,
FITZMYR, J. A., MURPHY, R. E., NCBSJ, p. 245.
138
Na opinião de L`hour, Dt 27 nos remete diretamente ao livro do Josué, no desejo de
compreender o amplo significado da assembléia de Siquém, e notar a existência de uma
equivalência entre “Ebal e Garizim”. Cf. L`HOUR, J., “L`alliance de Sichen”. In: RB, v. 70,
1962, pp. 161-184.
123
Estes permanecerão em pé
12a
para abençoar o povo sobre o monte
%rEb'l. Wdm.[;y: hL,ae
~yzIrIG> rh:-l[; ~['h'-ta,
Garizim,
quando atravessarem o Jordão:
12b
Simeão e Levi,
ywIlew> !A[m.vi
Judá e Issacar, José e Bejamim.
E estes permanecerão em pé,
!DEr>Y:h;-ta, ~k,r>b.['B.
13a
para a maldição,
`!mIy"n>biW @sEAyw> rk"XF'yIw> hd"WhywI
hL,aew>
hl'l'Q.h;-l[; Wdm.[;y:
no monte Ebal,
lb'y[e rh:B.
!beWar>
Rubem,
`yliT'p.n:w> !D" !lUWbz>W rveêa'w> dG"
Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali.
Tomarão a palavra os levitas,
14a
~YIwIl.h; Wn['w>
eles dirão
14b
Wrm.a'w>
para todo homem de Israel, com voz
`~r" lAq laer"f.yI vyai-lK'-la,
altiva:
Maldito139 o homem
que faz
15a
vyaih' rWra'
b
hf,[]y: rv<a]
15
estátua ou ídolo de metal fundido -
hw"hy> tb;[]AT hk'Sme ;W ls,p,
abominável para YHWH
obra de mãos de artista
15c
ydEy> hfe[m] ;
e a pendura às escondidas.
15d
rt,S'B; ~f'w> vr"x'
Tomarão a palavra todo o povo
15e
~['Þh'-lK' Wn[w>
e dirão: amém!
15f
`!mEa' Wrm.a'w>
Maldito quem desprezar seu pai e sua
16a
AMaiw> wybia' hl,qm. ; rWra'
todo o povo dirá: amém!
16b
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem remover a fronteira do
17a
Wh[erE lWbG> gySim; rWra'
17b
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
a
%r<D"B; rWE[i hG<vm. ; rWra'
mãe,
seu vizinho,
todo o povo dirá: amém!
Maldito quem desencaminhar um
18
cego no caminho,
139
Vale realçar a compreensão do verbo ‫“ אָ ַרר‬execrar, pronunciar uma maldição”. Uma “fórmula
de maldição”. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 79.
124
todo o povo dirá: amém!
Maldito quem desviar o direito do
18b
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
a
jP;vm. i hJ,m; rWra'
19
estrangeiro, do órfão e da viúva,
hn"m'l.a;w> ~Aty"-rGE
todo o povo dirá: amém!
19b
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem se deitar com a mulher
20a
bkevo rWra'
pois descobriu o manto do seu pai,
20b
wybia' tv,aäe-~[i
wybia' @n:K. hL'gI yKi
todo o povo dirá: amém!
20c
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem mantiver relações com
21a
bkevo rWra'
todo o povo dirá: amém!
21b
hm'heB.-lK'-~[i
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem mantiver relações
22a
bkevo rWra'
de seu pai,
todo [tipo de] animais,
com sua irmã, filha do seu pai ou filha
AMai-tb; Aaå wybia'-tB; Atxoa]-~[i
de sua mãe,
todo o povo dirá: amém!
22b
`!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>
Maldito quem mantiver relações com
23a
bkevo rWra'
todo o povo dirá: amém!
23b
ATn>t;xo-~[i
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem golpear seu próximo
24a
rt,S'B; Wh[erE hKem; rWra'
todo o povo dirá: amém!
24b
`!mEa' ~['h'-lK' rm:a'w>
Maldito quem
25a
{ rWra'
sua sogra,
em segredo,
pegar suborno para golpear a vida de
yqI+n" ~D" vp,n< tAKh;l. dx;vo x;qEl{
um sangue inocente,
todo o povo dirá: amém!
25b
`!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>
yrEb.DI-ta, ~yqIy"-al{ rv<a] rWra'
Maldito quem não cumprir as palavras
desta lei,
taZOh;-hr"ATh;
praticando-as,
26a
~t'Aa tAf[]l;
todo o povo dirá: amém!
26b
`!mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>
Ocorrem pequenas diferenças no tocante à grafia na comparação entre os
manuscritos. No v. 12 notam-se cinco ressalvas de ordem tipicamente gráfica. A
primeira refere-se ao termo “monte Garizim”. Na Bíblia Rabbinica de Jacob ben
125
Hayyim grafa-se ‫ הר גרזִּים‬como se encontra em Dt 11,29. O códice manuscrito do
Pentateuco Samaritano une os substantivos na fórmula ‫הרגרזים‬. Na Guenizá do
Cairo, encontra-se na forma ‫הר גריז)י(ם‬. Outra variante refere-se ao códice
manuscrito hebraico 9.69 e poucos outros manuscritos da LXX e Vulgata utilizam
a forma ‫לוי‬, subtraindo a conjunção ‫ו‬, e não ‫ ְו ֵל ִוי‬como apresenta o TM. Uma
terceira forma encontra-se junto ao Pentateuco Samaritano, LXX e Vulgata, que
registram a forma ‫ י ְהוּדָ ה‬subtraindo a conjunção ‫ו‬. A quarta diferença, também de
ordem gráfica, refere-se ao nome ‫שּש ָכר‬
ָֺ ִ ‫י‬, “Issacar”, sem a partícula conjuntiva
encontrada em alguns manuscritos hebraicos medievais da LXX e Vulgata. O
mesmo caráter de subtração, correspondendo à grafia ‫יוֺ ֵסף‬, “José”, sem a
conjunção, é registrado, também, em poucos manuscritos hebraicos medievais,
entre os quais, Pentateuco Samaritano, códices cursivos (minúsculos) da LXX e
Vulgata.
No v. 13, verificam-se apenas duas breves diferenças gráficas. Uma,
subtraindo a conjunção ‫ו‬, antecedendo a indicação da tribo de ‫ז ְבוּ ֻלן‬, é encontrada
no manuscrito hebraico 1, e em manuscritos medievais, divergindo do TM, ao
assinalar ‫וּז ְבוּ ֻלן‬. Já o manuscrito Siríaco/Peshitta diverge do TM ao citar a tribo de
‫“ דן‬Dan”, acrescentando a conjunção ‫ו‬.
O verbo ‫קָ ָלה‬, “desprezar”, no v. 16a, recebe algumas mudanças em sua
grafia. Dois manuscritos hebraicos medievais usam-no no tronco hif`il, no
particípio ‫מקלה‬, com o sinal vocálico em tsere e não segol, como no TM, conforme
outros dois manuscritos hebraicos que utilizam ‫ ְמ ַק ֵלּל‬, como pode ser encontrado
em Ex 21,17. Porém a LXX usa o termo o` avtima,zwn, “o que desonra”. Uma
segunda diferença é encontrada no Pentateuco Samaritano referente ao modo de
grafar o verbo, na sua forma plural, na terceira pessoa, como faz o TM no v. 15:
‫ ְואָ ְמרוּ‬, “responderão”.
Nos versículos 17 e 18, notam-se duas informações referentes à grafia do
verbo ‫אָ ַמר‬, que tem como critério a grafia usada no versículo 16: ‫ ְואָמַ ר‬,
“responderá”. Nota-se que vários manuscritos hebraicos medievais e a Bíblia
Rabbínica, de Jacob ben Hayyim, utilizam o sinal vocálico tsere e não segol ao
grafar o verbo hJ,m “desviar”, como se encontra no v. 19. A citação do verbo ‫אָמַ ר‬,
no verso 19, como nos versos 20 e 21, segue a forma usada no v. 16b: ‫ ְואָ ַמר‬.
126
No v. 22, no Códice Vaticano (séc. IV), em alguns manuscritos, ocorre
uma correção ao grafar avdelfh/j patro.j h' mhtro.j auvtou/, “irmã do seu pai e de sua
mãe” = ‫אחות אביו ואמו‬, “irmã do seu pai e sua mãe”. Neste caso, ocorre uma
variante, pois o interdito recai sobre o grau de parentesco tia e não irmã, como
salienta o TM: AMai-tb; Aa wybiÞa'-tB; Atxoa]-~[I “com a sua irmã, filha do seu pai e
filha de sua mãe”. Embora anotada a variante entre os graus de parentesco tia e
irmã, opta-se por manter o texto presente no TM. A grafia do verbo ‫אמר‬
assemelha-se à do v. 16b: ‫ואמר‬, como registram os vv. 23b, 24b, 25b e 26b.
Semelhante à expressão yqIn" ~D" “sangue inocente”, encontrada em Dt 19,10
em paralelo ao v. 25a, ocorre uma diferença registrada na Bíblia Rabbinica de
Jacob ben Hayyim que opta por ‫דם נקיא‬.
Três ressalvas são indicadas no v. 26. A primeira provém do Targum
Pseudo-Jônatas referindo-se ao uso do termo ‫“ אָרוּר‬Infame”. Mudança apenas no
aspecto da forma, sem alternância na interpretação do verbo. Poucos manuscritos,
entre os quais: Pentateuco Samaritano, alguns códices cursivos minúsculos da
LXX acrescentam o sufixo ‫ כֺּל‬antes de ‫“ ַהתּוֺ ָרה ַהזֺּאת‬estas leis”. Uma terceira
alternância é registrada na expressão ‫“ ַל ֲעשֺוֺת אוֺתָ ם‬praticando-as”, grafada no
Pentateuco Samaritano na forma: ‫ ַל ֲעשֺוֺתָ ם‬. Com exceção da observação ocorrida no
v. 22, que muda o grau de parentesco de irmã para tia – variante encontrada
somente no manuscrito do Códice Vaticano - não se encontra nenhuma nuança no
conjunto dos vv. 11-26.
Conclui-se, por meio da comparação entre os manuscritos, pequenas
diferenças no aspecto gráfico, num reduzido número de manuscritos, tendo como
parâmetro da versão do TM, sem a possibilidade de encontrar em Dt 27,11-26
nenhuma variante. Vale ressaltar a conclusão de inúmeros trabalhos que indicam
uma redação recente empreendida à perícope, datando-a de um período pósexílico mas que manteve a mais antiga informação de dimensão litúrgica – do
decálogo siquemita - conhecida no Antigo Testamento140.
140
Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introdução a la lectura de los cinco primeiros libros
de la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311; Boecker indica uma fase pós-prefácio
à redação formada pelos capítulos 27,1-30,20. Os demais capítulos foram tardiamente somados ao
livro, como: 1,1-4; 43 e 31-34. Cf. BOECKER, H. J., Law and the administration of justice in the
Old Testament and Ancient East. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1980, p. 178.
127
3.6.2.
Delimitação, composição e estrutura
Embora seja o único versículo a explicitar a trilogia do estrangeiro, do
órfão e da viúva, não há como excluir o v. 19 de todo o conjunto da perícope. Os
vv. 11-26 formam uma unidade literária. Tal estrutura pode ser delineada,
considerando duas fórmulas usuais no livro do Dt: rmoale aWhh; ~AYB; “naquele dia,
dizendo”, que, ao lado da expressão ~t'Af[]l; ~AYh; ^W>cm
; . ykiónOa' rv,a] “que eu hoje te
ordeno cumprir”, utilizada com freqüência nas introduções ou nas conclusões,
marcam a passagem de uma seção à outra141, além do bloco literário formado pelo
“dodecálogo siquemita”142 (vv. 15-26).
Nas ordens dadas por Moisés (v. 11) especificam-se dois grupos
recebendo, cada um, uma distinta tarefa: aos estabelecidos ao sul, no monte
Garizim, a responsabilidade de %r;Be “abençoar”; aos estabelecidos no monte Ebal,
ao norte, a tarefa de serem os responsáveis pela hl'l'q., “maldição” sobre o povo.
Responsáveis, porque o uso do verbo dm;[' “estar de pé, pernanecer em pé”, é
apresentado envolto em uma conotação fortemente ética.
A unidade entre as duas partes do texto (vv. 11-14 e vv. 15-26) se
estabelece pela ação dos levitas (v. 12), responsáveis de proferir, pela utilização
de um discurso eminentemente litúrgico, as doze maldições sobre todos os
homens de Israel (v.14).
Este texto (Dt 27,11-26) pode ser dividido em duas partes. Os vv. 11-14
formam um primeiro bloco e os vv. 15-26 constituem o conjunto das doze leis
proclamadas pelos levitas, sendo que a unidade entre as partes se faz pela função
exercida pela tribo de Levi.
Entre os versos 11-14, é possível encontrar elementos oriundos de outras
fontes do livro de Deuteronômio. Verifica-se que três elementos utilizados em Dt
11,26-29 sustentam a narrativa nesta parte do livro: a) bênção e maldição (v. 26);
b) cumprimento das ordens de YHWH, como instrumentos para o recebimento da
bênção ou da maldição143 (vv. 27-28); c) as indicações dos montes Garizim e
141
Dt 7,11; 8,1.11; 10,13; 11,8; 13,19; 15,5; 27,1; 27,10; 30,2; 31,22.
Termo cunhado por Von Rad diante do contexto em que Israel é chamado “hoje” a obedecer e
cumprir todo o conjunto de leis diante de seu Deus, YHWH. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio,
op.cit. p. 182.
143
Pode-se pensar que estas “maldições” não chegam a ser declaradas, mas que se tratam de uma
linguagem de caráter impositivo diante das obrigações das quais o povo não deve, em hipótese
142
128
Ebal, como lugares privilegiados para dispensar as bênçãos ou as maldições. Não
são poucos os estudos que vêem nesta parte de Dt 11,26-29 o anúncio de uma
cerimônia sobre a aliança que se soma à outras prescrições litúrgicas apresentadas
em Dt 27,11-13144.
Seguindo estas mesmas observações, Christensen opta pela seguinte
estrutura formada entre os vv. 11-14145:
A) Grupos designados para abençoar o povo no monte Garizim vv.11-12
B) Simeão e Levi, Judá e Issacar, José e Bejamin
C) Grupos designados para amaldiçoar no monte Ebal
D)
Rubem, Gad e Aser e Zabulon, Dan e Neftali.
E) Tomarão a palavra... com voz altiva
v.12d
v. 13a
v. 13d
v. 14a-b
O conjunto dos vv. 11-14 é formado por quatro grupos institucionais:
Moisés, os dois grupos tribais localizados em Garizim e Ebal, e os levitas. Cada
um deles tem uma determinada função. Pode-se verificar a seguinte dinâmica
imposta ao texto por meio de um paralelismo:
Moisés →→ ordens ao povo: v. 11
Monte Garizim →→ bênção: v. 12
Monte Ebal →→ maldição: v. 13
Levitas →→ falam ao povo: v. 14
Ao conjunto dos vv. 11-14, onde são agrupados dois grupos tribais, em
dois diferentes postos e com duas funções distintas, irá se juntar uma série de doze
normas, ligadas ao dia-a-dia. Verifica-se que este tipo de linguagem exortativa,
alguma, se esquivar. Cf. BUIS, P., “Deuteronome XXVII 15-26: Maledictions ou Exigences de
L`alliance?”. In: VT, 17, 1967, pp. 478-479.
144
Cf. BUIS, P., Le Deutéronome, op. cit., pp. 369-372. Para Alonso Schökel o aspecto
cerimonial não aparece de modo evidente, mas encontramos no texto a soma de inúmeras tradições
litúrgicas. Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., Pentateuco, op. cit., p. 364; ABBA, R., “Priests and
Levites in Deuteronomy”. In: VT, XXVII, 3, pp. 256-267; CRAIGIE, P. C., The Book of
Deuteronomy. Mich, William B. Eerdmans Publishing, 1976, pp. 330-334. “Deve ser enfatizado
que essa literatura – demasiadamente diversificada para ser analisada aqui - não inclui, somente,
discursos e narrativas sapienciais, mas sim uma série de mandamentos rituais; ordens sobre a
cerimónia de bênção e maldição entre Monte Gerizim e Monte Ebal; o cântico de bênção às tribos
reunidas em Israel, onde é dado um lugar de destaque para as tribos do norte e de Levi, enquanto
Judá desempenha mais um papel marginal”. ROFÉ, A., Deuteronomy:Issues and Interpretation.
Londo-New York, T&T Clark, 2002, p. 224.
145
Cf. CHRISTENSEN, D. L., Deuteronomy 21,10-34,12. In: WBC, Vol. 6b.
129
algo muito frequente nesta parte do livro, tem sempre a figura de Moisés como
principal mediador. A ação de sujeito principal na narrativa de Dt 11,26-29
executada pelo próprio Deus é aqui, transmitida à pessoa de Moisés.
Tais observações possibilitam estabelecer a seguinte estrutura para a
segunda parte:
1) Leis contra a prática da idolatria
•
Proibição de imagem, objeto de fundição, obra de artesanato:
(v. 15)
2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social
•
Apelo ao gesto de proteção ao pai e mãe: (v. 16)
•
Proibição de violar a propriedade do vizinho: (v. 17)
•
Proibição de desviar o cego do caminho: (v. 18)
•
Alerta em defesa do direito do estrangeiro, do órfão e da viúva
(v. 19)
3) Leis de interdito sexual
•
Não se deitar com a mulher do pai: (v. 20)
•
Não se deitar com qualquer tipo de animal: (v. 21).
•
Não se deitar com a irmã: (v. 22)
•
Não se deitar com a sogra: (v. 23)
4) Leis de cunho ético-comunitário
•
Proibição de golpear um companheiro secretamente: (v. 24)
•
Proibição do suborno para golpear um inocente: (v. 25)
5) Comportamento ético-religioso
•
Apelo para a prática das palavras da lei: (v. 26)
Ocorre uma semelhança entre a primeira e a última advertência. Os apelos
para evitar a prática da idolatria (v.15a-b) ecoam na fidelidade a todo o conjunto da
Lei que é o único meio de contemplar e conhecer os desígnios de YHWH (v. 26ab
). Os laços familiares (vv. 16-19) formam um paralelo com as normas de cunho
mais social (vv. 24-25), tendo no centro leis de impedimento sexual (vv. 20-23).
130
3.6.3.
Comentário e análise semântica
A ênfase, de caráter cúltico, pode ser encontrada nestas afirmações: a) a
existência de dois grupos tribais localizados em lugares distintos: os que se
localizam sobre Garizim, pronunciam as bênçãos (v. 12a); os do monte Ebal são
portadores das maldições (v.13a); b) pela primeira vez, o grupo sacerdotal dos
Levitas recebe uma tarefa específica: entoar e dizer, com voz forte, as leis a serem
executadas pela comunidade (v. 14a); c) os dozes refrões que intercalam as
respectivas “maldições”, sendo que todos são concluídos com a fórmula
tipicamente litúrgica e solene: o amém.
Garizim e Ebal são localidades apresentadas de modo bem definido na
narrativa de Dt 27,11-14146. Numa comparação entre este texto com outras duas
narrativas, que também se utilizam desta identificação geográfica (Dt 11,26-29 e
Js 8,33-34) também ocorre o destaque dos montes Garizim e Ebal. Verificam-se,
também, constantes acréscimos posteriores à redação. Um argumento muito forte
é o de relacionar a posse da terra prometida à observância dos mandamentos de
YHWH.
Na narrativa de Dt 27,11-26, prevalece a expectativa de receber a bênção
por parte de YHWH. Pelo binômio hk'r'B., “bênção”, e a hl'l'q., “maldição, nota-se
a existência marcante de possuir ou não a proteção divina.
“Para o indivíduo e para o povo, existem somente dois caminhos: vidabênção, morte-maldição. A ação dramática que se opta em Ebal-Garizim
pretende demonstrar que toda a história e a vida do homem estão
submetidas a estes critérios. Com sua conduta, o povo e também o
indivíduo, podem desencadear um processo melhor ou o contrário. Uma
vez na terra prometida, alcançada a paz, a bênção torna-se algo
permanente, uma opção fundamental para todos (11,26; 30,19)147.
Moisés recebe a notoriedade. Dele tudo procede. Ele é o mediador entre a
vontade de YHWH e as necessidades dos homens de Israel. Aos poucos, o caráter
146
São duas “ localidades situadas no centro da terra prometida, formando o cenário de uma
cerimônia que os israelitas devem realizar no mesmo dia em que cruzam o Jordão. Esta
circunstância marca uma diferença significativa a respeito dos demais textos do segundo discurso
de Moisés, situados além do Jordão; provavelmente, Dt 27 é uma interpolação tardia no discurso”.
Cf. GARCÍA LÓPEZ, F., El Pentateuco. Introduccíon a la lectura de los cinco primeiros libros de
la Biblia. Navarra, Editorial Verbo Divino, 2003, p. 311.
147
Cf. GUILLÉN TORRALDA, J., “Sobre el vocabulário de `bendición` del Pentateuco”. In:
FERNANDEZ MARCOS, N., TREBOLLE BARRERA, J., FERNANDEZ VALLINA, J. (Orgs.).
Simposio Biblico Espanol. Madrid: Universidad Complutense, 1984, p. 277.
131
absoluto, centralizador na figura de Moisés se dilui junto às demais instituições,
representadas pelos doze líderes tribais e na função, pela primeira vez
especificada, dos levitas. Tudo acontece na seguinte ordem: Moisés ordena, os
líderes tribais abençoam ou não e, os levitas - oriundos da tribo de Levi (v. 12b) exortam todos os homens de Israel à observância das leis proclamadas. Nota-se
que existe um crescendo no interior da narrativa, o que leva Blenkinsopp a
concluir o caráter tardio imposto à redação148.
A narrativa apresenta três elementos legitimadores desta solenidade
litúrgica: a) Siquém, embora não explicitamente indicada na narrativa mas, pelas
indicações dos montes Garizim e Ebal, é o local escolhido para reunir todo o
Israel para ouvir a leitura dos mandamentos149. Situado a uma altitude de 881 mt,
voltado para o sul, o monte Garizim sempre se apresentava revestido de
pastagens, o que não era possível no monte Ebal, com 950 metros de altura e
localizado ao norte da cidade de Siquém, onde se encontra uma terra
predominantemente árida. Possivelmente, sejam esses os motivos para ser
escolhido como local da maldição; b) Os sacerdotes, oriundos da tribo de Levi,
são apresentados, pela primeira vez, com uma função de cunho eminentemente
religioso. A este grupo cabe a missão de ler laeÞr"f.yI vyaiî-lK'-la,, “para todo homem
de Israel”, (v. 14), de modo solene, com voz firme e altaneira o conjunto das doze
leis; c) !mEa' ~['Þh'-lK' rm:a'w>, “E todo o povo responderá: Amém”. Tal participação
dos homens de Israel, convidados a responderem simplesmente !mEa', “amém”,
destoa enormemente da reedição apresentada em Js 24. Na versão deuteronômica
tudo acontece de modo mais simples. Não acontece uma declaração soleníssima
exaltando a unicidade de YHWH, bem como a fidelidade inconteste do povo (Js
24,16-18; 21-24). O amém demonstra a aceitação em acolher o mandamento
pronunciado pelo levita, bem como, estabelecer um tipo de punição ao
transgressor.
As interdições anunciadas são todas de pleno conhecimento de Israel.
Segue o anúncio dos mandamentos divididos em cinco seções:
1) Maldição contra os idólatras. A prática da idolatria é condenada em
todas as esferas. Caso o delito viesse a ser julgado, o transgressor era
148
Cf. BROWN, R. E., FITZMYER, J.A., MURPHY, R.E., NCBSJ, p. 245.
O relato será retomado e detalhado em Js 24. Garizim e Ebal exerceram relativa importância na
geo-política militar na defesa da cidade de Siquém, por suas posições tremendamente estratégicas.
Cf. AHARONI, Y. e AVI-YONAH, M., BA, Macmillan, New York, 1977, p. 43.
149
132
publicamente punido. Aqui, acentua-se o processo ou a punição feita em segredo.
Aquela que só Deus é capaz de ver e punir. A lei contra a idolatria já era
amplamente divulgada e conhecida. Aqui, o redator considera a lei apresentada no
Código da Aliança (Ex 20,23; 23,13), no Decálogo (Dt 5,8) e que será, mais tarde,
apresentada no conjunto das Leis de Santidade (Lv 19,4; 26,1)150.
2) Leis conclamando ao bom relacionamento familiar e social. Neste
conjunto, quatro leis são apresentadas. A primeira faz um apelo contra qualquer
atitude de venha amaldiçoar pai e mãe. O crime cometido contra o pai e contra a
mãe não deixa de ser uma reedição de Ex 21,17 e mantida na Lei de Santidade (Lv
20,19). Uma segunda lei, voltada para o estabelecimento da boa convivência,
proíbe usurpar a propriedade do vizinho (Dt 19,14). O direito deve também ser
estendido aos cegos e coxos. Esta terceira lei que compõe este conjunto de
normas, voltadas para o bom relacionamento familiar e social, surge pela primeira
vez em Dt 27,18, e será retomada nas Leis de Santidade (Lv 19,14). Uma quarta
lei evidencia a prática do direito ao grupo dos desvalidos (v. 19). Numa primeira
redação, no Código da Aliança, o grupo dos beneficiados parece estar mais
ampliado, além de serem apresentados como pessoas capazes de reivindicar ou
apelar contra a violação de seus direitos (Ex 22,20-23; 23,3).
3) Leis de interdito sexual. As proibições pairam na esfera dos laços
familiares: mãe (v. 20); irmã (v. 22) e sogra (v.23). A bestialidade também é
censurada no verso 21. A interdição da prática sexual com a mãe recebe uma
reedição (v.20). A proibição já fora assinalada no Código Deuteronômico (Dt
23,1) e sofrera uma reedição, uma significativa ampliação junto às Leis de
Santidade (Lv 18,7-17)151. A censura imposta à prática da bestialidade é mantida
no conjunto dos dois códigos legais (Ex 22,18; Lv 18,23.20,15). Em Dt 27,21 a
prática é tida como um gesto reconhecido como infâmia, isto é, um gesto que
desonra a pessoa. No Código da Aliança a mesma prática é apresentada como uma
grave violação em que o réu deve morrer: tm'(Wy tAmï hm'ÞheB.-~[i bkeîvo-lK', “todo
150
Nesta parte do trabalho os três Códigos serão citados e relacionados entre si. Toma-se por base
a definição exposta por Crüsemann: “Como o Código Deuteronômico busca continuar, corrigir,
complementar e substituir o Código da Aliança, assim o Código da Santidade quer proceder em
relação ao Deuteronômio”. Cf. CRÜSEMANN, F., A Torá: Teologia e história social da lei do
Antigo Testamento, op. cit., p. 383.
151
A ampliação, e até certo modo, o detalhamento na proibição sexual com mulheres na esfera
familiar, apresentada em Lv 18,7-17, evidenciam temas vividos no interior da comunidade
religiosa na época pos-exílica. Cf. Ibidem, p. 407-408.
133
aquele que se deitar com toda classe de animal, será morto” (Ex 22,18). A
condenação à morte não se mantém em Lv 18,23, em que a bestialidade deve ser
evitada para não violar a lei da pureza. Recorre-se ao verbo ‫טמא‬, “ficar impuro,
continuar impuro”, no piʿel. Retomado em Lv 20,15, a mesma prática impõe
também ao homem, como ao animal a pena capital de morte. A prática sexual
com irmã ou sogra é uma proibição (vv. 22-23). A interdição é explícita no
Código Deuteronômico e posteriormente mantida na Lei de Santidade. Em Lv
18,9 o ato recebe uma proibição, ao passo que em Lv 20,17, este tipo de falta
contra a
família, terá como pena máxima a morte de ambos. Esta mesma
dinâmica de agravamento da pena se mantém diante do homem que pratica
relação sexual com sua sogra. Em Lv 18,17 o incesto é proibido, e em Lv 20,14 o
incesto, uma vez comprovado e julgado, impõem aos delatores, homem e mulher,
a pena máxima de morte.
4) Leis de cunho ético em relação ao compatriota. A violência cometida
contra um companheiro, somada à prática de aceitar suborno, são comportamentos
que tornam o homem infame. O homicídio é citado pela primeira vez no decálogo
Ex 20,13. No Código da Aliança (Ex 21,12) causar a morte de alguém é motivo de
levar o réu também à morte. Em Dt 27,24, encontra-se um adendo: rt,S'_B; Wh[eÞrE
hKeîm; rWr§a', “Infame quem golpear seu próximo em segredo”. A inclusão do termo
rt,S'_B; “em segredo” permite perceber uma evolução, no texto do Deuteronômio,
em comparação com o Código da Aliança e a Lei de Santidade (Lv 24,17) que
estabelecem a pena de morte para quem ultrajar seu semelhante. Esta preocupação
em preservar a vida pode oferecer suporte à compreensão de não aceitar suborno
para golpear um inocente (v. 25). O crime de suborno não recebe nenhuma norma
na Lei de Santidade. Na narrativa de Dt 27,25 o suborno não deve acontecer,
tendo em vista a morte de um inocente. A ênfase ao gesto de aceitar suborno deve
ser evitada, pois se trata de um desvio de consciência, como registra o Código da
Aliança (Ex 23,8) e o Código Deuteronômico (Dt 16,19).
5) Comportamento ético-religioso. O último gesto, considerado como
infâmia, não apresenta uma lei propriamente dita, mas um solene apelo para a
comunidade religiosa não se esquecer de todo o conjunto de leis recebido de
134
YHWH (v.26)152. Trata-se de um simples apelo, uma exaltação conclamando ao
não esquecimento de nenhum dos mandamentos contidos no conjunto da lei doada
por YHWH.
Dt 27,11-26 é um texto que se apresenta como um verdadeiro diálogo
litúrgico comparado à escolha, exclusividade suprema de YHWH, proferida pela
comunidade em Siquém (Js 24,14-24). O aspecto litúrgico pode ser comprovado
por meio do gesto de “abençoar o povo” (v. 12b),
na palavra dita “para a
a
maldição” (v. 13 ) e, pela repetição, um tanto solene, da palavra ‫“ אָ ֵמן‬amém”, (vv.
15-26), pronunciada pela assembléia, por estar de acordo com todas as possíveis
infâmias a serem evitadas, proclamadas ‫“ קוֺל ָרם‬com voz forte”, pelos levitas (v.
14). As bênçãos e maldições adquirem um amplo significado quando relacionadas
aos personagens e, consequentemente, às respostas pronunciadas pelo povo, após
ouvirem as leis ditas pelos levitas. Ebal e Garizim, dois lugares de culto ligados às
antigas tradições que remontam às fases predeuteronômicas153. O ‫“ אָ ֵמן‬amém”,
reforça o caráter litúrgico impregnado em toda a perícope.
Destaca-se a utilização, por duas vezes, do verbo ‫“ ָעמַ ד‬estar de pé,
permanecer”154, que seguido das respectivas preposições: ‫“ ְל ָב ֵרְך‬para abençoar”,
(v. 12a) e ‫ ַעלˉ ַה ְקּ ָל ָלה‬, “para a maldição” (v. 13a), impõem ações bem definidas aos
dois grupos tribais instalados em Garizim e Ebal. Seguindo o contexto da
narrativa, estes se apresentam “em pé” evidenciando a atitude de intercessão, de
vigilância, de prontidão junto à assembléia reunida, num lugar previamente
determinado. Vindos da tribo de Levi, responsáveis pela bênção (v. 12b), surgem
os sacerdotes, que não proclamam as bênçãos, mas um extenso diálogo litúrgico,
tendo por base um conjunto de leis provenientes do Código da Aliança e
reeditadas na Lei de Santidade, como anotadas acima.
A doxologia imposta ao conjunto da narrativa verifica-se pelo uso ritmado
da expressão ‫“ אָ ֵמן‬amém, de fato”. Expressa uma atitude comportamental. O povo
ao ouvir a proclamação dos atos proibidos, responde de modo inconteste. A
expressão, de cunho conclusivo, ‫“ אָ ֵמן‬amém”, está unida não somente ao anúncio
152
Possivelmente Dt 27,26 é acréscimo estabelecido durante a redação final do livro. Cf.
SCHÖKEL, L. A., Pentateuco, p. 336. Ver também o parecer de Blenkinsopp. Cf. BROWN, R. E.,
FITZMYER, J. A. e MURPHY, R. E., NCBSJ, p, 246.
153
Os lugares não recebem nenhuma notoriedade durante o período da monarquia israelita. Pensase que dificilmente seria o lugar escolhido para manifestar a vontade de YHWH, e aí, perpetuar
sua memória. Cf. VON RAD, G., Deuteronomio, op. cit. p. 183.
154
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBHP, p. 504; BROWN, F., DRIVER, S. e BRIGGS, C., BDB,
p. 763; HARRIS, R. L., DITAT, p. 1637.
135
das atitudes proibitivas - idolatria, comportamento ético-social, limites à prática
sexual, comportamento religioso – mas ao enunciado qualitativo de se tornar um
“infame, amaldiçoado” na vivência comunitária. Esta condição é o fio condutor
da narrativa. O verbo ‫“ אָ ַרר‬amaldiçoar, execrar” não é inúmeras vezes citado nos
textos do Antigo Testamento155. No livro do Deuteronômio é utilizado sempre no
senso exortativo de cumprir os mandamentos, os preceitos deixados por YHWH.
Todas as afirmações se voltam para esta condição. Não importa a classificação
social; o texto é explicito ao se dirigir laer"f.yI vyaiî-lK'-la, “para todo homem de
Israel” (v. 14).
A categoria social ‫“ ָעם‬povo”, é citada na abertura (v. 11) e na conclusão
da perícope (v. 26), além de perpassar todo o corpo do texto ao responder às
proibições proclamadas. A utilização é de uso genérico e não deixa dúvida de que
o conceito de povo não se reduz a uma realidade tribal ou clã. Trata-se de um
conceito vasto, aglutinador de todas as instâncias sociais, segundo as instituições
religiosas citadas no texto, como: a liderança de Moisés (v. 11), o nome das doze
tribos (vv. 12-13), os levitas (v. 14). Além destas instituições, encontram-se os
elementos materiais na formação e constituição do povo: a família (16a), o
respeito na demarcação da propriedade (v. 17a), a manutenção do direito dos
grupos desfavorecidos (v. 18a, 19a), a convivência ética com base no grau de
parentesco (vv. 20-23), as leis para conter homicídios (vv. 24,25).
A preocupação demasiada com a infâmia ou execração pública pode estar
implicada em algum tipo de revisão ou releitura empreendida em algum
determinado período histórico das leis. Há um acento muito forte voltado para o
desejo de viver honestamente, de modo equânime no interior da comunidade. O
comportamento justo deve imperar na convivência com os pais, com os vizinhos,
junto ao deficiente e aos setores pobres da comunidade (vv. 16-19). Numa outra
série, também contendo quatro advertências, merece respaldo: evitar a
contaminação por meio de certas práticas sexuais: wybiêa' tv,aäe-~[I “com a mulher do
seu pai”, hm'heB.-lK'-~[I “com qualquer animal”, Atêxoa]-~[ “com sua irmã”, ATn>t;x)o-~[i
“com sua sogra” (vv. 20-23). O uso insistente do verbo ‫שׁ ַכב‬
ָ “deitar, reclinar,
inclinar”, que, ao longo da narrativa, adquire um sentido sexual, reforça o caráter
155
Das 32 vezes em que o verbo é citado no Antigo Testamento, 16 encontram-se nos conjuntos
dos capítulos 27,15-26 e 28,16-19.
136
de pureza cultual, acenando para um período recente na redação de autoria do
redator deuteronomista.
3.7.
Conclusão: uma prática jurídica que agrada a Deus
A existência de uma redoma de proteção em torno desses grupos, em
momentos bem específicos na vida social, religiosa e jurídica de Israel, e que
defendê-los passa a ser uma maneira de expressar o grau de relacionamento com
YHWH.
Na coletânea dos textos analisados – Dt 10,12-22; 14,28-29; 16,9-12;
24,17-22; 26,12-15; 27,11-26 – onde as narrativas empregam uma linguagem ora
litúrgica, ora jurídica, nota-se a referência à trilogia social inserida num
determinado contexto.
Pela ordem estudada, concluem-se os respectivos
resultados nos círculos narrativos:
a) A historicidade divina passa pela defesa dos marginalizados. Em
Dt 10,12-22 encontra-se uma declaração soleníssima sobre os atributos
do Deus de Israel. O texto não faz outra coisa a não ser exaltar os
poderes de YHWH, transmitidos ao longo de gerações. Apresenta a
singularidade do Deus de Israel. Uma divindade acima de todas as
outras. Incomparável em poder e realizações em defesa do povo por
ele escolhido. Entre inúmeras ações, vê-se um Deus solícito na defesa
do direito aos grupos socialmente fracos e enfraquecidos. Não é por
coincidência a insistência no uso dos verbos: faz justiça, ama o
estrangeiro, dá pão e roupa. Tais atitudes divinas devem ser repetidas
pela comunidade israelita, como prova de sua adesão filial a YHWH.
b) Existe um período definido para a prática da equidade. A narrativa
de Dt 14,28-29 realça um tempo determinado – “Ao final de três anos
– como período para disponibilizar a quantida especificada – décima
parte – aos necessitados. Tal atitude garante a bênção de YHWH. Não
existem gestos tangenciais para não pôr em prática tal determinação
divina. É clara a norma ao propor um tempo em que os pobres irão
“regojizar-se em suas portas”.
137
c) Em família, alegram-se na presença do Todo Poderoso. A Festa das
Semanas tem um tempo determinado para acontecer, segundo Dt 16,912. A contagem inicia-se a partir do ato de colher as primeiras espigas
de trigo. Na ocasião, parte dos produtos do campo será entregue em
um lugar de culto determinado. Duas são as ocasiões de alegria:
usufruir dos produtos colhidos no campo, e a ocasião de poder
observar e executar tal mandamento divino. Trata-se de um princípio
ideológico justificador de práticas gratuítas diante daquele que libertou
Israel da terra da escravidão.
d) Exercer o direito pela ocasião de colher os produtos da terra. A
ocasião da colheita dos produtos básicos da economia – trigo, azeite e
vinho – citados em Dt 24,17-21, é um momento de garantir a vigência
do
direito
dos
grupos
desprotegidos.
Nenhuma
quantia
é
exclusivamente citada na narrativa. Em três ocasiões156 o texto declara
que não se deve voltar para pegar as sobras que ficaram para trás, mas
parte do produto, quando encontrada, pertencerá, como evidencia a
narrativa, a quem dela necessitar. Assim como a acasião da colheita, a
lembrança dos anos vividos na condição social de escravo, citada duas
vezes na narrativa, é um forte argumento que obriga a comunidade de
Israel a praticar e garantir o exercício do direito.
e) A não transgressão da lei como meio de receber a bênção. Pela
segunda vez, no conjunto das perícopes, a décima parte dos produtos
da terra é mencionada como pertencente ao estrangeiro, órfão e viúva
(Dt 14,28,29 = Dt 26,12-15). O fato de pertencer a um grupo
específico passa, primeiramente, pelo gesto de dar a quantia estipulada
em lei, com a finalidade desses grupos se fartar e suprir suas
necessidades. Há uma diferença quando da comparação com o texto de
Dt 14,28-29. Desta vez, ocorre maior elucidação ao mencionar as
possíveis ocasiões em que a décima parte dos produtos, quantia esta,
diga-se de passagem, exorbitante, corre o risco de ser desviada de sua
especificidade. Não é por acaso a referência, por cinco vezes, da
partícula de negação ‫“ ֹלא‬não”. Trata-se de um comportamento pautado
156
Cf. Dt 24,19d, 20c, 21c.
138
pela ética de em tudo “ouvir a voz de YHWH”. Tal gesto exige um
comportamento voltado para praticar plenamente os princípios
expostos por Moisés, tendo assim, a garantia de viver numa situação
de paz.
f) A ação litúrgica reafirma a manutenção do direito.
Fora do
conjunto dos textos que formam o corpo primitivo do livro (12-26), Dt
27,11-26 destaca uma ação litúrgica voltada para agradar a Deus. São
recitadas realidades presentes na esfera religiosa, social e familiar da
comunidade. A ação litúrgica, tendo à frente os levitas, é
compreendida como uma ocasião de relembrar Israel a não se esquecer
de todo um conjunto de leis impostas a Israel por seu Deus. Não se
exclui, nessa ação litúrgica, a defesa do direito ao estrangeiro, órfão e
viúva.
Como é possível perceber, as leis expressas são de cunho excessivamente
apodíctico. Não deixam brechas para argumentações possíveis. Por outro lado,
vale perguntar se estas leis foram de fato praticadas. A “décima parte” foi, de fato,
disponibilizada com evidência, como é possível perceber na leitura da lei? A
defesa intransigente dos setores, socialmente desfavorecidos, foi preocupação em
destaque no conjunto das relações econômicas? Nas épocas das colheitas a
separação da décima parte foi algo empreendido por setores responsáveis em fazêla? O gesto de não voltar para respigar o campo foi lembrado, num senso
rotineiro, e praticado? São questões deste naipe que serão analisadas adiante, e
para melhor compreender os textos desta parte do livro do Deuteronômio,
escolheu-se a época dos Tanaítas, com evidência às escolas de Rabi Hillel e Rabi
Shammay, na terceira parte da pesquisa.
139
PARTE II: COMENTÁRIO DOS TEXTOS DA MISHNÁ E SUA
INTERPRETAÇÃO DO DT
140
4
Trilogia social nos textos da Mishná
4.1.
A importância da Mishná na formação do judaísmo
Na forma em que chegou até nossos dias, a Mishná está dividida em seis
principais ordens. Cada ordem (seder) contém certo número de tratados. São 63
tratados que se dividem em capítulos; neles encontramos as respectivas normas.
Na abordagem optou-se por unir tratados que, embora sendo apresentados em
ordem diferente, abordam temas semelhantes.
Ao longo de toda sua existência, as comunidades religiosas de Israel,
espalhadas nos mais diferentes centros de produção literária, sempre estiveram
sob
1
um
determinado
poder
imperialista1.
Este pequeno país, por sua posição geopolítica, enfronhado entre grandes
potências regionais, sempre recebeu influência dos movimentos políticos e
literários de além fronteiras. Os projetos políticos, movimentos de revoltas ou
contra as reformas, as relações econômicas, ofereceram elementos dos mais
variados tipos à elaboração teológica, presentes nas páginas bíblicas. Impérios e
produções literárias se interagem.
4.1.1.
A tradição judaica em meio à experiência da ‫גּוֹ ָלה‬, "desterro"
O cenário dominado pela presença romana ocupa o centro dessa parte da
pesquisa. É durante a presença desse imperialismo brutal que tem início o
processo redacional da tradição oral, culminando com a Mishná. Logo após a
1
Consideram-se, principalmente os impérios Babilônico, Persa, Grego e Romano, por serem
amplamente documentados, quer nos textos bíblicos quer em textos extrabíblicos. Cf. JOANNÈS,
F., La vie de déportés de Juda en Babylonie. In: LMB, 161, 2004, pp.27-31; SCHWARTZ, J.,
Quelques réflexions à propor de trois catastrophes. In: DAHAN, G. (Org.), Les Juifs au regard de
l`histoire, Paris, Picard, 1985, pp. 21-29.
141
conquista romana da cidade de Jerusalém, com a destruição do II Templo, em 70
d.C., e que persistiu por mais de dois séculos, os sábios judeus, exatamente em
Yavneh (Jâmnia), procuravam responder aos desafios impostos sem, no entanto,
menosprezar as máximas bíblicas.
A pujança da cidade de Jerusalém, somada às classes sacerdotais e
funcionários envolvidos nos trabalhos da corte e do templo, muito servis às
normas ditadas por Roma, não serão capazes de impedir a dispersão de parte da
população das cidades mais importantes de Israel, diante das políticas efetuadas
pelos imperadores romanos. O regime imposto pelos romanos se apresentou como
um poderio avassalador.
Os anos seguintes a 66 nada mais representam à
comunidade judaica, dentro e fora das terras de Israel - um sinônimo de destruição
em massa. A conjugação de forças, motivadas por líderes religiosos como R.
Yohanan b. Zakai, R. Akiba, R. José b. Halafta
terá um caráter de nobre
resistência. Pois, sabe-se que nem todos os grupos religiosos se uniram contra a
dominação romana. Os fariseus, por exemplo, não foram favoráveis a qualquer
tipo de movimento insurrecional, preferindo apegar-se à leitura e estudo da Lei; é
a eles que devemos o surgimento do judaísmo sobre a forma do rabinismo.
Sempre envolta com as grandes mudanças políticas do cenário
internacional2, a compreensão da experiência do termo ‫גּוֹ ָלה‬, “exílio, desterro”3,
2
“Por ser um corredor comercial, ligando o Egito com a Fenícia, o Norte da Síria, a Mesopotâmia
e a Arábia, a terra de Israel sempre despertou o interesse dos grandes impérios: egípcios, assírios
babilônicos, persas, gregos, romanos”. MARQUES, M. A., Beleza, sedução e morte: uma leitura
exegética de Judite 16,1-12. Tese de doutorado no Programa de Pós-Graduação em Ciência da
Religião, Universidade Metodista de São Paulo, 2008, p. 201. Destaque para o capítulo III, na
seção sobre o “o grupo dos hasidim”, pp. 221-226.
3
O verbo grego διασπείρω, “dispersar”, está na raiz da palavra diáspora, presente na LXX e
oriundo do III século a.C. Sob o pressuposto de dispersar, distribuir, disseminar foi possível
empregar o conceito de diáspora às comunidades espalhadas em diversas localidades fora das
terras de Israel. Segundo os textos bíblicos, o senso de ser estrangeiro, de viver em terras alheias,
muito cedo foi experimentado pelos patriarcas (Gn 15,13; 23,4). A produção literária dos
primeiros profetas, tidos como escritores, irá evidenciar as realidades históricas que submetem as
comunidades de Israel à condição de estrangeiro. No uso do conceito ‫ ָגּלוּת‬, “desterrados” será
desenvolvido as visões proféticas que visam o restabelecimento, em terras de Israel, da porção dos
exilados na Babilônia e daqueles que permaneceram em Israel. A expressão, ‫ ֵמאַ ְר ַבּע ַכּנְפוֹת ָהאָ ֶרץ‬,
“dos quatro cantos da terra” (Is 11,12), sinônimo retomados em Is 45,6: ‫ ִמ ְק ֵצה ָהאָ ֶרץ‬, “dos confins
da terra”, e em 56,7 no conceito de ‫ ִכּי ֵביתִ י ֵבּית־תְּ ִפ ָלּה י ִ ָקּ ֵרא ְל ָכל־ ָה ַע ִמּים‬, “pois a minha casa será
chamada casa de oração para todos os povos”, são nítidas referências às comunidades que vivem
fora dos limites geográficos de Israel. Tais expressões soam como um autêntico projeto social de
reconstruir uma nação espalhada pela dominação babilônica. O profeta Jeremias é outro que se
utiliza de conceitos específicos ao expor o ideal de recompor uma nação dilacerada: ‫ֵמאֶ ֶרץ ָצפוֺן‬
‫שׂ ָראֵ ל‬
ְ ִ ‫ אֲ שֶׁ ר ֶה ֱע ָלה אֶ ת־ ְבּנֵי י‬, “que fez subir os filhos de Israel da terra do norte” (Cf. Jr 16,15. 23,8).
Nota-se que a palavra diáspora, de modo algum, traduz o peso histórico do conceito ‫ ָגּלוּת‬,
“desterrados” que, na Bíblia, jamais pode ser entendida como algo abstrato quando se refere ao
142
acompanhou todas as fases históricas vivenciadas pela comunidade religiosa de
Israel. Tal experiência pode ser verificada com clareza ao longo de inúmeras
produções literárias ocorridas em Israel. Produções essas, que colaboraram na
garantia da identidade e perspectivas de verdadeira sobrevivência ao longo de toda
sua existência. O fenômeno Israel não se compreende fora dos textos sagrados
produzidos pela comunidade. Eis um fator essencial na preservação da identidade
de Israel, em meio aos grandes confrontos do cenário militar e cultural impostos
pelos dominadores. Apaziguadas as armas, é preciso conter o domínio cultural.
Na composição da Mishná, a experiência da diáspora envolve todos os
fatores da vida social, religiosa e cultural dos judeus. O processo de compilação
dos textos da Mishná coincide com o período de ocupação do império Romano4.
Os planos desse avassalador império colocaram em risco a identidade ética das
comunidades religiosas de Israel. Embora residindo em terras de Israel, ou além
fronteira, as comunidades, na época dos Tannaítas, não perderam de vista o
projeto maior de viver, em meio às contradições históricas e sociais impostas pela
política imperialista, o seguimento dos trâmites expostos nos textos sagrados.
A Mishná é o resultado final de um processo redacional, no qual os sábios
de Israel não mediram esforços para compilar leis, tradições, conceitos divinos,
por meio de um esmerado trabalho, sempre pautado pela desenvoltura no
conhecimento da Torá escrita e oral, concluído em meados do ano 219 d.C.5. A
exílio, aos errantes, aos escravos ou ainda a um tempo de alienação. Cf. PAUL, A., Une voie
d’approche du fait juif: diaspora et gālût. In: CARREZ, M.; DORÉ, J.; GRELOT, P. (Orgs.), De
la Tôrah au Messie, Paris, Desclée, 1981, pp. 367-380. Segundo Manns, o conceito diáspora
tornou-se uma realidade histórica junto às comunidades judaicas. Sua síntese apoia-se nos
informes bíblicos e nos escritos de Flávio Josefo. Cf. MANNS, F., Le Judaïsme: milieu et memoire
du nouveau testament, Jerusalém, Franciscan Printing, 1992, pp. 208-218; HORSLEY, R. A.,
Jesus e o Império: o reino de Deus e a nova desordem mundial, São Paulo, Paulus,2004, p. 22.
4
Propícia a observação de Schwartz feita sobre as comunidades religiosas atingidas no percurso
das três guerras envolvendo romanos e judeus: “O primeiro embate contra Roma se limitou à Terra
Santa. O segundo, nascido de longo ressentimento, atingiu mais nitidamente a Diáspora, se bem
que as forças não foram suficientes para impedir a terceira. A revolta, no final do reinado de
Adriano, atingiu, em certos aspectos, o pivô da primeira revolta. E foi assim que o II século d.C.
presenciou o desaparecimento de uma cultura de forma grega e a conclusão, na Judéia, do desastre
largamente iniciado em 70 d.C.”. Cf. SCHWARTZ, J. À propôs de trois catastrophes, op.cit., p.
29; MANNS, F., op. cit., pp. 35-38.
5
A abordagem é consensual entre inúmeros estudos. Verifica-se que os fatos ocorridos em meados
do ano 135, impuseram à organização rabínica novas exigências. Como bem analisam Strack e
Stemberger: “O redator colecionou as fontes, selecionou as leituras mais importantes..., transmitiu
assim o texto eclético a partir dos treze modos de halakhah como havia aprendido”. STRACK, H.
L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica,Valencia, Soler,
1989, p. 202; Cf. KÜNG, H., Ebraismo, Milano, RCS, 2005, p. 160. Uma ressalva histórica feita
por Miranda e Malca facilita compreender o surgimento da Mishná: “O cristianismo não se
expandiu e o judaísmo rabínico não se consolidou nos vazios de um Império decadente ou de uma
143
Torá exige um constante processo de renovação. Tal movimento está dividido
entre a pesquisa (Midrash) e o estudo-ensino (Talmud). Ao redigir a Mishná, os
sábios atingem um dos estágios desse processo de renovação da Torá6. O
conhecimento do passado se justifica numa harmonia e coerência com as máximas
divinas. Urge ensinar o passado, tendo em vista o futuro.
A compreensão do conceito de Torá se divide em dois aspectos que se
completam mutuamente. O termo clássico ‫שׁ ְבּ ַעל ֶפּה‬
ֶ ‫“ תּוֺ ָרה‬Torá oral” usado pela
tradição judaica é considerado antigo na moderna literatura7. No outro lado existe
a ‫ תּוֺ ָרה שֶׁ ִבּ ְכ ָתּב‬, “Torá escrita”. Por Torá oral se entende o conjunto de normas
estabelecidas pelos sábios e fielmente transmitidas na relação mestre e discípulo.
Assim, deixa transparecer o primeiro parágrafo do tratado Pirkei Abhot:
“Moisés recebeu a Torá no Sinai e a transmitiu a Josué, Josué aos anciãos, os
anciãos aos profetas, os profetas a transmitiram aos homens da Grande
Assembléia. Estes diziam três coisas: sede cautelosos no julgamento, fazei
muitos discípulos, colocai uma proteção em torno da Torá”8.
Tais normas formam a jurisprudência rabínica que recebe o nome de ‫הלכה‬,
halakhah. Aos sábios9, por meio de uma autoridade ilimitada, coube a missão de
civilização em perigo, como muitos miticamente acreditam. No que se refere ao cristianismo, foi
diante de um mundo no melhor de sua forma que ele teve, desde o início, de apresentar também o
melhor de si mesmo para garantir sua expansão e sua consolidação, como ilustra toda a literatura
patrística. Quando o Nassi Shimon morreu e sucedeu-lhe seu filho Iehudá Hanassi, nos finais do
século II d.C., a liderança palestina dos judeus cresceu de forma significativa. A posição social, a
cultura, as habilidades de organizador e qualidades de estadista e de devoção fizeram de Iehudá
um dos homens mais extraordinários de sua época. Até hoje é referido como “O Príncipe”, “Nosso
Santo Rabino” ou simplesmente “Rabi”. Sob sua orientação foi compilado e organizado o código
de leis, a Mishná”. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios Fariseus: reparar uma
injustiça,São Paulo, Loyola, 2001, p. 51; Cf. COHEN, A., Le Talmud, Paris, Payot, 1986, p. 32.
Horsley declara ser a Mishná “o fruto mais notável da atividade rabínica”. Cf. HORSLEY, R. A.,
Arqueologia histórica e sociedade na Galiléia, São Paulo, Paulus, 2000, p.166.
6
Cf. Ibidem. p. 64.
7
Uma boa definição pode ser encontrada nos trabalhos de Safrai. Na sua opinião, deve-se ter certa
precaução diante do entendimento dado à palavra torá. Na bíblia hebraica, o conceito básico dessa
palavra é “instrução”, mas pode receber também um significado mais amplo sendo compreendida
na sua forma plural: torot, ensinamentos, leis. Cf. SAFRAI, S., Oral Tora. In: SAFRAI, S. e
TOMSON, P. J. (Orgs.) The literature of the Sages, Philadelphia, Van Gorcum, Assen/Maastricht,
1987, pp. 35-119.
8
Cf. Abot 1,1. DEL VALLE, C., (Ed.), La Misna, Salamanca, Sígueme, 1997, p. 837.
9
A compreensão de Torá, como texto sagrado, doado por Deus a Israel, por meio de Moisés,
compreende sempre uma atualidade, aos desafios e problemas no hoje da existência humana.
Nessa função de atualizar os conceitos divinos, está a função dos sábios. No tratado BQ (Babá
qammá) 5,7 encontramos a seguinte afirmação, que justifica o conceito atual, em relação aos
textos sagrados: “Porque a Escritura fala de casos presentes e comuns”. Essa compreensão
transforma a jurisprudência não numa norma presa a um passado, mas inserida no universo de uma
comunidade sempre em transformação. Útil a citação de Urbach, ao recorrer à uma visão de Santo
Agostinho, alheio ao mundo cultural judaico, para enfatizar o apego incondicional à tradição e ao
exercício dos sábios, em meio aos desafios da comunidade religiosa: “É uma verdade
surpreendente que o povo judeu jamais abandonou suas leis, seja sob as normas dos reis pagãos ou
144
interpretar a Torá e garantir a execução dos princípios das halakhoth.
Tais
normas, englobando todos os aspectos da vida pessoal e comunitária, enfocavam
princípios como: nascimento, casamento, normas no trabalho na agricultura,
preceitos éticos e teológicos10.
O termo Torá implica duas diferentes conotações, compreensões. Torá
significa o trabalho de ensinar os mandamentos de YHWH e incentivar o
cumprimento das leis. Não há um grau hierárquico ao relacionar a oralidade ao
escrito. A diferença está no processo e não no valor de credibilidade ou
divergência de conteúdo.
“Rabban Yohanan ben Zakkai, com seus colegas e seus discípulos,
começou a reconstruir a vida judaica sob a Palavra de Deus, na Torá. A
Torá, para os fariseus não é somente a Escritura (Torá escrita); ela é
também e sobretudo tradição (Torá oral)”11.
Os inúmeros percalços provocados por constantes guerras e violações de
direitos é a causa maior do desencadeamento do processo redacional imposto às
leis orais. Pode-se imaginar se não fossem essas últimas realidades cercearem a
vida da comunidade religiosa, não existiriam, em seu formato atual, os textos da
Mishná, e o exercício da oralidade seria corrente, ainda, em nossos dias.
4.1.2.
A autoridade hermenêutica de Hillel
Separados por milhares de quilômetros e vivendo sempre sob os mesmos
domínios imperialistas12, a comunidade judaica instalada na região do Eufrates
jamais se distanciou culturalmente da cidade de Jerusalém13. Sabe-se que os
judeus manifestavam sua pertença ao templo de Jerusalém enviando,
sob a dominação dos cristãos. Neste aspecto, ele se distingue das outras tribos e nações. Não houve
nem imperador, nem rei que, os encontrando dentro de seu país, fosse capaz de impedir os judeus
de se separarem, pela observância de sua Lei, do resto da família dos outros povos”. Cf.
URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, Paris, CerfVerdier, 1996, p. 541. Ver também a análise de Briend sobre a vida das comunidades, privadas do
templo, em terras da Babilônia. BRIEND, J., Une communauté juive sans temple. In: LMB, 161,
2004, pp. 33-35.
10
Sobre todos os tratados na Mishná, vale conferi-los mais adiante, quando oportunamente
analisam-se os respectivos textos mishnáícos relacionando-os ao livro do Dt.
11
Cf. LENHARDT, P., “La valeur des sacrifices dans le judaïsme d`autrefois et d`aujourd`hui”.
In: NEUSCH, M. (Org.), Le sacrifice dans les religions, Paris, Beauchesne, 1994, p. 62.
12
Manns apresenta uma síntese sobre os vários impérios e suas respectivas políticas frente às
comunidades judaicas. Cf. MANNS, F., Le judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament,
op. cit., pp.25-40.
13
Salutar conferir as cidades babilônicas, bem como, suas características nos anos que seguiram o
exílio babilônico. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, op. cit., pp. 27-28.
145
periodicamente, a quantia correspondente dos frutos armazenados durante a
colheita, no cumprimento dos preceitos. Fala-se de caravanas formadas por
milhares de pessoas em marcha pelo deserto da Síria, com etapas em Palmira,
Damasco e Bashan em direção ao monte Sião14.
Seguindo a informação de Charlesworth, Hillel, cognominado “o velho”,
ou “o babilônico”, fez seus primeiros estudos sobre a Torá em sua terra natal,
Babilônia. Nasceu no ano 60 a.C. vindo a falecer em 20 d.C., vivendo sob as
políticas empreendidas por Herodes, o grande (37 – 4 a.C), sendo contemporâneo
de Jesus de Nazaré15. Não se sabe exatamente quando passou a residir em
Jerusalém no desejo de completar seus estudos, tendo como diretores os zugot,
“pares”, Shemayah e Avtalyon16.
O período da atuação de Hillel, juntamente com a escola do sábio
Shamai17, marca o surgimento da época dos tanaítas18. A novidade inaugurada por
esse brilhante sábio, do partido dos fariseus, não foi somente sua dedicação
incondicional à Torá, mas a possibilidade de estabelecer regras, relativas ao
método aristotélico19,
no estudo dos textos bíblicos. Tem início o controle
racional sobre as interpretações. As sete regras hermenêuticas compiladas por
Hillel representam não apenas um momento, mas o modelo de interpretação
14
Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, 2005, p. 18.
Ao descrever sobre a importância do “concílio” de Yabné e seu esforço em determinar os livros
canônicos ou não, Manns destaca que o crivo hermenêutico adotado considerou as regras
estabelecidas por Hillel. Cf. MANNS, F., op. cit., p.41.
15
Cf. CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. (Orgs.); Hillel and Jesus: Comparative Studies of
Two Major Religious Leaders, Minneapolis, Fortress Press, 1997, p. 4. As informações biográficas
sobre este conceituado mestre da escritura carecem de uniformidade. Miranda e Malca destacam as
316 citações feitas sobre Hillel nas páginas do Talmud, bem como, lendas que se mesclam ao seu
alto grau de importância no mundo intelectual da época. Fala-se, até, que teria vivido 120 anos,
divididos em três fases distintas: quarenta anos em Babilônia, quarenta como estudante em
Jerusalém e outros quarenta na qualidade de patriarca em Jerusalém. Cf. DE MIRANDA, E. E. e
MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit., p.121.
16
Inúmeras passagens do Talmud anotam o amor incondicional no estudo da Torá demonstrado
por Hillel. Cf. HADAS-LEBEL, M., Hillel: un sage au temps de Jésus, op. cit. p. 28; FRIEMAN,
S., Who`s who in the Talmud, op. cit., pp. 163-165. As duplas de sábios marcam um período
peculiar no cuidado das tradições. Fala-se que um estabelecia-se como nassi, “presidente”,
enquanto o outro ocupava a cadeira de av bet din, “presidente do tribunal”. Embora sendo poucas
as informações sobre a função dos pares, sabe-se que atingiram um elevado grau de
reconhecimento e admiração, junto à população, após o ano 104. Cf. STEINSALTZ, A.,
Introduction au Talmud, Paris, Albin Michel, 1987, p. 32.
17
“Estes fariseus foram os dois últimos e mais ilustres dos cinco “pares”, mestres fariseus que
trabalharam em duplas, como presidente e vice-presidente do San’hedrin”. Cf. DE MIRANDA, E.
E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, op. cit. p. 122.
18
Cf. Ibidem, pp. 34-35.
19
Cf. WIGODER, G. (Ed.), Hillel. In: DE d J, Paris, Cerf/Robert Laffont, 1996, p. 470.
146
rabínica praticada diante de qualquer texto bíblico20. Posteriormente, as regras
passam por um processo de reinterpretação chegando ao conjunto de treze regras,
na época de Rabi Yismael21 e posteriormente trinta e duas, no período da atuação
de Rabi Eliezer22. Não é de modo algum uma imposição de método a descoberta
de Hillel. Seu mérito está na capacidade de compilação de práticas interpretativas
há séculos em uso pelos sábios23. A seguir, busca-se elucidá-las tendo como
exemplos alguns versículos da Mishná, que serão estudados ao longo do
parágrafo 4.3.
a) ‫ ַקל ָוחוֺ ֶמר‬, “fácil e complexo”. Procura estabelecer certa regularidade na
interpretação dos textos e nas normas estabelecidas partindo sempre do
que é mais simples para o que é mais complicado. Um exemplo da
regra verifica-se na máxima expressa sobre a quantia que faz parte da
‫פיאה‬, “respiga”, do preceito a ser separado durante a colheita. Nota-se
que a narrativa da Mishná faz uma relação que vai do simples para o
amplo ao afirmar: “se um recolhe algo do limite e o jogar com os
demais já não tem parte dele....o mesmo vale para a rebusca e para o
feixe esquecido” (Pea 4,3). Um outro exemplo encontra-se na contenda
entre R. Aquiba e R. Eliezer ao determinar quando há ou não cachos de
rebusca a serem disponibilizados aos pobres (Pea 7,7).
b) ‫ירה שָׁ ָוה‬
ָ ֵ ‫ ְגּז‬, literalmente “sentença idêntica”. A regra ressalta que entre
duas narrativas distintas prevalece a mesma interpretação, quando se
trata da mesma analogia. Compreende-se que a Bíblia colocou tais
expressões similares com o propósito de estabelecer uma reciprocidade
20
Passeto destaca o uso feito pela geração apostólica das regras de Hillel no ato de interpretação
das escrituras. “Constatamos que o Novo Testamento, formando parte da tradição oral de Israel e a
literatura cristã dos primeiros séculos, são testemunhos da oralidade de Israel e que mais tarde
passam a serem escritos”. PASSETO, E., La influencia de la tradicíon oral de Israel en la
tradicíon cristiana. In: El Olivo, XIX, 42, 1995, pp. 7-20.
21
Rabi Yismael (ben Elisha) foi uma grande personalidade na história da exegese bíblica. Atuou
na terceira geração do tanaítas, tendo mantido inúmeros debates com R. Akiva, no cenário da
hermenêutica. Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y
midrásica, Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, p. 49; FRIEMAN,
S., Who’s Who in the Talmud, London, Jason Aronson, 1995, pp. 369-371.
22
Rabi Eliezer, conhecido como Eliezer ben José há-Gelilí, atuou na geração de Bar Kokba. Por
meio das suas trinta e duas regras se explicam não somente as haggadah, mas toda a Torá. Cf.
STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introduccíon a la literatura talmúdica y midrásica,
Valencia, Institución S. Jerónimo para la investigación bíblica, 1988, pp. 59-69.
23
Partindo da época dos pares (200 a.C. – 20 d.C), chegando à geração dos amoraítas (220 – 500
d.C.), Steinsaltz apresenta um quatro completo das quatro gerações que marcaram a tradição
rabínica até a elaboração final do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud the Steinsaltz
edition: A Reference Guide, New York, Randon House, 1989, p. 30.
147
entre ambas. Essa regra, porém, deve ser usada com muita propriedade.
Ninguém, aleatoriamente, pode-se dar ao privilégio de estabelecer uma
gezerah shawah24. Um exemplo aplicativo dessa regra está em Pea
6,4, quando está em debate a separação dos feixes que ficam para trás
durante a colheita.
c) ‫ ִבּנְי ַן אָב ִמ ָכּתוּב ֶא ָחד‬, literalmente “construção principal a partir de um
único texto”25. Trata-se de vincular a citação feita em um texto a outros
textos, uma vez que entre eles são encontrados os mesmos paradigmas
ou terminologias26. “Um texto principal oferece aos demais um caráter
comum que os vincula em uma só família”27.
d) ‫שּׁנֵי ְכתוּ ִבים‬
ְ ‫ ִבּנְי ַן אָב ִמ‬, “construção principal a partir de dois textos”.
Verifica-se esta regra quando uma conduta é definida como senso
comum. O que recebe uma validade em um determinado texto, pode
ser semelhante em outros textos. Um nítido exemplo é a defesa sempre
incondicional do órfão, do estrangeiro e da viúva nas seis narrativas do
livro do Deuteronômio: 10,17-18; 14,28-29; 16,10-14; 24,17-21;
26,12-15; 27,11-26. No conjunto dos doze textos mishnáicos o nível
de preocupação com os pobres se repete (Pea 4,3. 6,4. 7,7; Msh 5,10;
Meg 2,5; Ned 11,3. BM 9,13).
e) ‫ ְכּ ָלל וּ ְפ ָרט‬, “Geral e particular”. Segundo Steinsaltz, Strack e Stemberger
esta regra de Hillel foi detalhada em oito princípios hermenêuticos por
R. Yismael28. Estabeleceu-se um processo capaz de levar ao pleno
conhecimento
das
afirmações
presentes
nos
textos
bíblicos,
relacionando o geral ao particular e o particular ao geral. A existência
de algo válido para todos relaciona-se, inevitavelmente, com o
particular. O geral não existe a não ser numa realidade particular e
vice-versa. Tal eficácia pode ser exemplificada pelo tratado Shebi 7,1
24
O conceito é amplamente exposto na obra de Strack e Stemberger. Cf. STRACK, H. L. e
STEMBERGER, G., Introducción a la literatura talmúdica y midrásica, p. 53. Estas outras regras
são também elucidadas por Steinsaltz ao abordar os princípios hermenêuticos do Talmud. Cf.
STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 150.
25
Tradução feita considerando as informações de STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit.,
p. 53.
26
Steinsaltz ressalta a existência de três tipos de binyan ab: a) o que nós encontramos quando
olhamos para...?”; b) analogia construída a partir de um só verso; c) analogia construída com base
em dois versos. CF. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 149.
27
Cf. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., op. cit., p. 53.
28
Cf. Ibidem. pp. 53-54.
148
ao argumentar sobre os produtos sujeitos à lei do sétimo ano: “Em
relação ao ano sétimo se estabeleceu uma regra geral: tudo o que é
comestível para o homem ou para os animais, as espécies dos
tingidores e o que não se conserva na terra, ficam sujeitos às regras do
ano sétimo”. Tal afirmação envolve também as pequenas hortaliças
selvagens utilizadas no trabalho de tingir as roupas.
f) ‫ ְכּיוֺ ֶצא בוֺ ְבּ ָמקוֺם ֶא ָחד‬, “semelhante a ele em outra passagem”. O exercício
de buscar compreender um determinado texto pode ser feito tendo
como princípio um texto mais elucidativo, mais claro, mais
compreensível. O que é mais evidente pode ajudar na compreensão de
textos quase sempre ininteligíveis, num primeiro momento29. Em BM
9,13 são refletidos os inúmeros tipos de comportamento, entre credor e
devedor, quando chega o momento de cobrar uma respectiva dívida.
Nota-se que ao longo da argumentação surgem vários exemplos a
serem evitados no desefo de não violar um preceito negativo. O credor
não pode apropriar-se de um bem sem o consentimento do Tribunal. A
máxima é detalhada ao declarar que o credor não pode aproveitar-se da
situação apropriando-se de meios ligados à produção, e aos afazares do
dia-a-dia, como: arado, moinho, colchão e utensílios domésticos.
g) ֺ‫דָּ ָבר ַה ָלּמֶ ד מֵ ִענְי ָנו‬, “algo que se explica por seu contexto”. Prevalece o
contexto, a realidade como elemento primordial na interpretação de um
determinado texto.
Há uma evidência nessa regra. É preciso
compreender o contexto para se ter a exata interpretação, imposta pelo
texto ou realidade em questão. Saber quando se está ou não diante de
uma quantia a ser disponibilizada aos pobres, durante a colheita, exige
saber o modo e local onde começou a recolher os produtos do campo
(Pea 6,4).
Estar o mais próximo do texto bíblico foi a preocupação dos sábios na
aplicação e entendimento dos conceitos halákhicos. Desde o momento em que
Esdras empenhou-se, com todo o seu coração, para entender, praticar e ensinar a
Torá (Cf. Esd 7,10), os sábios vêem nele a função de sua existência: compreender
29
Um exemplo pode ser compreendido diante da prosperidade firmada com Abraão (Gn 12,3).
Trata-se de um elemento central na pregação paulina, ao garantir aos pagãos a salvação por meio
da justificação pela fé (Gl 3,8.16). Cf. PASSETO, E., La influencia de la tradición oral de Israel
en la tradición cristiana, op. cit., p. 12.
149
e não medir esforços para explicar e viver segundo os projetos da Torá. Não há
outra primazia junto aos sábios que não seja o bom exercício diante da Torá. A
primazia da Torá se impõe como um princípio natural. O que não é compreendido
num primeiro contato requererá um exercício com base no midrash - interpretação
e comentário, posterior, dos textos bíblicos. Prevalece uma interpretação literal da
escritura que, sempre, acena para um gesto concreto, como as normas expressas
pela Mishná.
4.2.
‫" סדר זרעים‬Seder Zeraim
O tema sobre a agricultura inaugura a primeira ordem da Mishná que,
segundo comentário de Maimônides, é essencial à existência humana, pois sem
alimento o homem é incapaz de viver e de servir a Deus30. Nessa ordem, 31‫זרעים‬,
"sementes", seis tratados encontram suas justificativas na utilização de textos
provenientes do livro do Deuteronômio, aqui analisados na seguinte sequência:
Pe’ah 4,3; 6,4; 7,7; Dem 1,2; Shebi 7,1 e MSh 5,10. Nota-se que todos os seis
capitítulos abordam o tema da colheita e a obrigatoriedade de disponibilizar parte
da quantia recolhida às pessoas ou grupos necessitaos.
4.2.1.
‫“ פֵּﬡָ ה‬Pe’ah”32 (córner, limite, divisa) 4,3
,‫ נטל מקצת הפיאה‬Se alguém recolhe algo (dos frutos do
preceito) do limite (de teu campo)
‫ וזרק על השאר‬e o jogar com os demais
;‫ אין לו בה כלום‬já não tem parte nela;
,‫ נפל לו עליה‬porém se jogar-se sobre eles,
‫ פירס טליתו עליה‬e estender seu manto
.‫ מעבירין אותה ממנו‬se o obriga a tirá-lo dali.
30
Cf. WIGODER, G. Sementes. In: DEdJ, p. 1103.
Nesta parte do trabalho, os conceitos da provenientes da ‫“ ֲה ָל ָכה‬Leis” não estão vocalizados, uma
vez que utilizamos uma edição da Mishná sem os sinais massoretas.
32
Todos os textos da Mishná utilizados no estudo dos doze versículos, neste capítulo, foram
encontrados na edição eletrônica, disponível em: http://kodesh.snunit.k12.il/.
Na edição
hebraica: ‫מאגר ספרות הקודש‬. Acessado pela primeira vez em out. de 2008.
31
150
,‫ וכן בלקט‬O mesmo vale para a rebusca,
.‫ וכן בעומר השכחה‬e para o feixe esquecido33.
No versículo, prevalece um vocabulário predominantemente punitivo. Está
em debate o recolhimento dos frutos, feito não pelo proprietário, nos limites do
seu campo, mas por um pobre que tem a intenção de fraudar o proprietário no
momento em que este colhe parte do produto disponibilizado no campo,
desvirtuando completamente os preceitos. Identificado o sujeito e o verbo na
narrativa, percebe-se a quem a Mishná direciona a repreensão. Os pobres acorriam
para fazer o pe`ah em sistema de pilhagem. Cada qual era resposável pelo seu
“monte”, ajuntado em determinados locais disponíveis no campo.
Seguindo a argumentação de Roth, o sujeito da frase é um “dos mais
pobres” que está colhendo o pe`ah deixado por um agricultor. Vale ressaltar que
certas pessoas ao colherem uma determinada quantia disponibilizada, segundo a
Torá, nem sempre usavam de honestidade34. O motivo da repreensão expressa na
frase visa alertar uma possível fraude. Caso um pobre esteja recolhendo sua parte
do pe`ah e venha a juntar essa quantia às outras que não foram por ele recolhidas
ou que pertençam ao proprietário ou a algum de seus companheiros, ele não
possuirá parte no montante recolhido. Afinal, seu desejo é de apossar-se de certa
quantidade de produtos que não lhe pertencem. Verifica-se a idéia de aproveitarse de uma situação, por demais corriqueira, e roubar parte de um produto alheio.
Percebe-se, nitidamente, o desejo denunciativo, diante de uma atitude não lícita.
Um pobre aproveita a situação da respiga para cometer um saque. Nessa situação,
a Mishná é clara ao acenar que o pobre que respiga ‫“ אין לו בה כלום‬já não tem parte
nela”, pois ela foi tirada da parte não estabelecida pelo preceito. Não se pode
violar a quantia estabelecida no preceito ‫פיאה‬.
Na norma, prevalece o desejo de realizar a justiça. A porção isenta do
preceito – leia-se, ‫הפיאה‬, “o pe’ah” - deve vigorar mediante o esforço do trabalho
honesto. Tal aspecto é destaque ao relacionar os frutos recolhidos ao uso dos
33
Cf. Dt 24,19-21.
“Os tribunais tem o direito de privar alguém de fazer a respiga, a fim de impor a obediencia à
lei”.
ROTH,
R.
S.,
Shiurim
Pe`ah.
Disponível
em:
<http://www.bmv.org.il/Shiurim/pe`ah/peah039.html>. Acesso em: 6 de abr. 2009.
34
151
verbos: ‫נפל‬, “cair, deitar-se, deixar cair”35, ‫ ָפּ ַרס‬, “cortar, fatiar”, ‫ ֶה ֱע ִביר‬, “transferir,
remover”. Não há meio de burlar o preceito imposto à colheita.
É intencional que a Mishná tenha relacionado a colheita dos frutos à
prática que legitima
os grupos desfavorecidos de usufruírem do preceito
determinado. Não se deve, porém, em nenhuma instância, praticar a violação do
preceito, segundo argumento exposto na Mishná: ‫וכן בלקט וכן בעומר‬, “o mesmo
vale para a rebusca e feixe”.
Nota-se que ocorre uma mescla da linguagem deuteronômica e a
linguagem normativa dos tratados. Um comportamento injusto – nesse caso a
violação do preceito – não se pode transferir para as demais instâncias
comunitárias. Há um rigor estabelecido pela Torá normatizando toda e qualquer
relação social. De Miranda e Malca destacam o posicionamento social e coletivo
dos sábios diante da situação da pobreza:
“Estender a tzedaká aos pobres com todo o coração tinha a significação intrínseca
de um ato de virtude. Daí, ter-se desenvolvido o axioma que, se os ricos fossem
realmente honestos e tementes a Deus, distribuiriam prazerosamente a riqueza
que retinham em custódia de Deus entre os inúmeros credores de Deus – os
pobres, os doentes, os desamparados, os necessitados etc.” 36.
Os sábios visam corrigir uma prática de injustiça, de violação do direito
em curso ao afirmar: ‫אין לו בה כלום‬, “já não tem parte nele” e ‫מעבירין אותה ממנו‬, “se
o obriga a tirá-lo dali”. Na narrativa em questão, os sábios acenam à primazia e
autonomia da Torá e, somente com base em seus arcabouços, é possível
reconciliar os interesses individuais e coletivos, superando conflitos em vista do
bem comum. Para os sábios, a luta para impor a primazia da Torá era, sobretudo,
uma missão ética.
Com base na narrativa deuteronômica que garante aos pobres o direito de
respigar parte dos produtos deixados no campo, a Mishná ousa denunciar pessoas,
entre o grupo dos respigadores, que se apossavam, de modo fraudulento, dos
produtos recolhidos e pertencentes a outras pessoas que se encontravam na mesma
condição social. A denúncia é legítima, pois não se pode apoiar-se num preceito
divino e fazer dele ocasião de legitimar a desigualdade entre pessoas.
35
Cf. JASTROW, M., Dictionary of Talmud Babli, Yerushalmi, Midrashic Literature, and
Targumim, p. 924.
36
Cf. DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 95.
152
4.2.2.
‫“ פֵּﬡָ ה‬Pe’ah” 6,437
38
:‫ ואלו הן ראשי השורות‬Para os extremos das linhas vale o
seguinte‫׃‬
‫ שניים שהתחילו מאמצע השורה‬se começam dois (recolher os feixes)
pelo meio da linha,
‫ זה פניו לצפון וזה פניו לדרום‬um se volta para o norte e outro se volta
para o sul,
‫ ושכחו לפניהם ולאחריהם‬esquecendo (alguns feixes) a frente ou
atrás deles,
;‫ שכחה‬,‫ שלפניהן‬os que caem diante deles são
considerados como feixes,
.‫ אינו שכחה‬,‫ ושלאחריהן‬ainda que os que caem detrás deles não
se consideram como tais.
,‫ היחיד שהתחיל מראש השורה‬Se uma pessoa só começa pelo extremo
da linha
‫ ושכח לפניו ולאחריו‬e esquece (alguns feixes) que estavam
uns adiante e outros detrás dele,
;‫ אינו שכחה‬,‫ שלפניו‬os que estão adiante dele não se
consideram como feixes esquecidos,
‫ ושלאחריו שכחה‬porém os que estão atrás são feixes
esquecidos,
.‫ שהוא בבל תשוב‬posto que a este se aplica‫ ׃‬não voltarás
atrás39.
‫ זה הכלל‬Esta é a regra geral‫ ׃‬a tudo o que se
pode aplicar
;‫ שכחה‬,‫ כל שהוא בל תשוב‬o não voltarás atrás é considerado como
feixe esquecido,
.‫ אינו שכחה‬,‫ וכל שאינו בל תשוב‬e a tudo que não se possa aplicar a ele
não voltarás atrás não é considerado
feixe esquecido.
37
Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h12.htm>, edição eletrônica, acessada em 29 de dez. de
2008.
38
A métrica na divisão dos textos da Mishná é feita considerando a edição eletrônica.
39
Cf. Dt 24,19.
153
O versículo alude a duas situações que visam esclarecer quando algo pode
ser considerado ou não na categoria de
‫שכחה‬, “considerados como feixes”,
durante a realização da colheita. Os dois exemplos distintos justificam a máxima
apresentada em Dt 24,19:
19a
^d<f'b. ^r>yci(q. rcoq.ti yKiä
e esqueceres um feixe no campo
19b
hd<F'B; rm,[åo T'óx.k;v'¥w>
não voltarás para pegá-lo.
19c
ATx.q;l. bWvt' al{Ü
Para o estrangeiro, para o órfão e
19d
hy<+h.yI hn"mß 'l.a;l'w> ~AtïY"l; rGE±l;
Deste modo,
19e
![;mÛ;l.
te abençoará YHWH, teu Deus,
19f
`^yd<(y" hfeî[]m; lkoßB. ^yh,êl{a/ hw"åhy>
Quando colheres a tua colheita
no teu campo
para a viúva será.
em toda obra de tuas mãos.
‘^k.r<b'y>
O termo utilizado para determinar a quantia a ser disponibilizada aos
grupos desfavorecidos é ‫“ ְושָׁ ַכח ָתּ‬e esqueceres”. A Mishná visa determinar quando
e como a quantia dos produtos recolhidos deve ser disponibilizada conforme a
máxima deuteronômica.
Estes exemplos são importantes na medida em que, seguindo as exigências
bíblicas deixam dúvidas sobre o que deve ser de fato disponibilizado. A máxima
necessita ser regulamentada. Não é difícil imaginar que a norma não estava sendo
praticada durante o período da colheita, o que colaborava, em muito, para o
aumento da marginalidade, penalizando, ainda mais, os pobres e endividados no
decorrer dos anos.
Por feixe, entende-se a quantia recolhida pelo agricultor e guardada como
sendo resultado de seu trabalho. A dúvida é superada com dois exemplos
distintos: a) dois homens, recolhendo os feixes, em direção opostas – um para o
norte outro para o sul – começando pelas extremidades das linhas, a quantia de
produtos que venha a cair atrás deles, no momento da colheita, não deve fazer
parte da quantia por eles guardada como resultado do trabalho. Em outras
palavras: o que ficou atrás, não lhes pertence mais. Não pode ser somada à porção
por ele recolhida inicialmente. b) apenas um trabalhador faz a colheita,
começando na divisa de sua propriedade e, durante o ato, esquece porções de
154
espigas, seja à sua frente ou atrás dele, sem ser arrancadas, apenas a porção que
ficou para trás é considerada parte do preceito. Este exemplo é, ainda, mais
esclarecedor.
Ao escolherem radicalmente as máximas bíblicas, os sábios visam meios
para pô-las em prática. Os argumentos surgidos em torno de uma máxima bíblica
nada mais refletem que os desejos de ver a justiça praticada junto aos membros da
comunidade. No texto da Mishná, fica definido, uma vez por todas, o que faz ou
não parte do feixe destinado ao preceito.
4.2.3.
‫“ פאה‬Pe’ah” 7,7
‫ כרם שכולו‬Se uma vinha tem somente cachos de
‫ עוללות‬rebusca,
,‫ רבי אליעזר אומר‬segundo R. Eliezer pertencem ao
;‫ לבעל הבית‬proprietário,
,‫ ורבי עקיבה אומר‬entretanto segundo R. Aquiba
.‫ לעניים‬pertencem aos pobres.
‫ לא‬. . . ‫ "כי תבצור‬,‫ אמר רבי אליעזר‬R. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não
"‫ תעולל‬tens que recolher os cachos da
(‫כא‬,‫ )דברים כד‬rebusca”40.
,‫ אם אין בציר‬Porém, se não há vindimas, como
.‫ מניין עוללות‬haverá cachos para a rebusca?
‫ אמר לו רבי עקיבה "וכרמך לא‬Replicou R. Aquiba: “não farás a
,(‫י‬,‫ תעולל" )ויקרא יט‬rebusca de tua vinha”41,
‫ אפילו כולו‬inclusive quando toda ela não tenha
.‫ עוללות‬mais que cachos de rebusca.
. . . ‫ אם כן למה נאמר "כי תבצור‬Se é assim, por que está
"‫לא תעולל‬
escrito:“Quando colheres a tua vinha
não farás rebusca”?
‫( אין לעניים‬Para mostrar que) os pobres não têm
40
41
Cf. Dt 24,21.
Cf. Lv 19,10.
155
,‫ בעוללות‬direito aos cachos da rebusca
.‫ קודם לבציר‬antes da vindima.
Dois ilustres sábios são citados neste versículo que procura determinar
quando existem ‫עוללות‬, “pequenos cachos de uvas que não estão completamente
formados”42. No debate entre dois tanaítas, não existe consenso se tal quantia será
ou não disponibilizada aos pobres. Embora, seguindo argumentação dos sábios,
Rabi Aquiba43 e Rabi Eliezer44, discordantes em sua definição, prevalece a tese de
que só há respiga após o trabalho da vindima.
O problema a ser solucionado apresenta uma vinha cuja produção
apresenta somente uvas qualificadas como ‫“ עוללות‬rebusca” - entenda-se uma
plantação onde as uvas são de má formação ou de péssima qualidade para serem
utilizadas no lagar. R. Eliezer argumenta, seguindo a narrativa encontrada em Dt
24,21: hy<h.yI hn"m'l.a;l'w> ~AtY"l; rGEl; ^yr<_x]a; lleA[t. al{ ^m.r>K; rcob.ti yKi,
“quando
colheres a tua vinha não farás rebusca na vinha que ficou atrás de ti. Para o
estrangeiro, para o órfão e para a viúva será”. Em sua opinião, toda a vinha, nessas
condições, pertencem ao proprietário, pois não pode ser feita, ainda, a vindima ao
longo de toda a plantação.
Em opinião contrária, R. Aquiba argumenta e defende a opinião de
entregar totalmente a vinha aos pobres, seguindo a formulação de Lv 19,10:
~k,yhel{a/ hw"hy> ynIa] ~t'ao bzO[]T; rGEl;w> ynI['l, jQEl;t. al{ ^m.r>K; jr<p,W lleA[t. al{ ^m.r>k;w>, “tua
vinha não rebuscarás nem recolherás os frutos caídos do teu pomar. Tu os
deixarás para o pobre e para o estrangeiro. Eu sou Senhor teu Deus”.
42
Um termo técnico no universo jurídico do Talmud. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: The
Steinsaltz Edition, Toronto, Random House, 1989, p. 238. O cacho de uva com defeito ou
esquecido durante a colheita é tido como “uma porção reservada ao pobre”; Cf JASTROW, M.,
Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p.
1051.
43
São inúmeros os autores que elevam ao mais alto grau do judaísmo farisaico, da época tanaítica,
a pessoa de Rabi Akiva ben Iossef (40 a 135 d.C.). Grande estudioso da Torá oral e escrita, Akiva
ordenou, por tópicos, as normas da jurisprudência, mais tarde culminando na redação da Mishná. É
considerado mestre mais influente na época de Yavne. STRACK, H. L. e STEMBERGER, G.,
Introducción a la literature talmúdica y midrásica, p.119; DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M.
S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 147; URBACH, E. E., Les sages d’Israël:
conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p.621; SAFRAI, S., The literature of the sages,
p. 71.
44
Sábio tanaíta da terceira geração, metade do século II d.C. Sua atuação foi considerável ao levar
adiante as conclusões de Yavne. DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus:
reparar uma injustiça, p. 156; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción a la literature
talmúdica y midrásica, p.117.
156
Salvo as dissonâncias entre R. Aquiba e Eliezer, a Mishná conclui, com
base na argumentação proposta pela Torá, que a rebusca não seja feita enquanto
não ocorrer a vindima. Nota-se que as argumentações visam enfrentar idéias
daqueles que se negavam a cumprir o direito, não possibilitando a prática da
rebusca, ou antecipando-a antes da vindima. Está em jogo o cumprimento do
direito de vindimar e de rebuscar. O crivo consensual provém da Torá.
4.2.4.
‫“ דמאי‬Demay” 45 1,246
‫ הדמאי‬Aos produtos do dízimo duvidoso
,‫ אין לו חומש‬não se aplica a lei do quinto
,‫ ואין לו ביעור‬nem da remoção,47
,‫ ונאכל לאונן‬podem ser comidos por um que está de
luto,48
,‫ ונכנס לירושלים ויוצא‬pode-se introduzir em Jerusalém e tirálos dali.
‫ ומאבדין את מיעוטו‬Se, no caminho, se estraga uma
,‫ בדרכים‬pequena quantidade, (não importa);
,‫ ונותנו לעם הארץ‬pode-se dar a uma pessoa não instruída,
‫ ואוכל כנגדו‬mas haverá de comer o equivalente,
‫( ומחללין אותו כסף‬o preço do resgate) pode ser convertido
,‫( על כסף‬em dinheiro) de uso comum:
,‫ ונחושת על נחושת‬prata por prata,
,‫ כסף על נחושת‬dinheiro por cobre,
,‫ ונחושת על הפירות‬prata por cobre e cobre por frutos,
.‫ ובלבד שיחזור ויפדה את הפירות‬contanto que alguém volte para resgatar
os frutos.
.‫ דברי רבי מאיר‬Esta é a opinião de R. Meir.
,‫ וחכמים אומרים‬Os sábios afirmam
45
A Mishná abre um parágrafo sobre produtos de origem desconhecida. Literalmente, a palavra
‫ דמאי‬significa “dúvida”. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 179; DEdJ,
p. 270.
46
Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h13.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de
2008.
47
Cf. Dt 26,13.
48
Cf. Dt 26,14.
157
‫ יעלו הפירות וייאכלו‬que os frutos tem que ser levados a
.‫ בירושלים‬Jerusalém e ali, devem ser consumidos .
No estudo e na interpretação das normas estabelecidas nos textos de Nm
18 e Lv 22, os sábios construíram uma jurisprudência relativa aos produtos
produzidos por pessoas tidas como incultas, identificadas como ‫“ ַעם ָהאָ ֶרץ‬povo da
terra”49 e reconhecidas como negligentes na atribuição do dízimo sobre o
resultado da colheita. Ao abordar o tema, procuram responder o que fazer quando
se está de posse de um bem ou produto de procedência desconhecida, dos quais
não há certeza de que foram recolhidos os respectivos dízimos. A Mishná
apresenta uma norma, considerando as inúmeras leis bíblicas relacionadas aos
produtos do campo e à série de dízimos neles embutidos50.
As ordens na atribuição do dízimo, segundo Valle, seguiam estes critérios:
“Uma vez descontada a oferenda e o primeiro dízimo, do restante se
separava no primeiro, segundo, quarto e quinto ano do sétimo ano outro
dízimo (=segundo dízimo), que o proprietário devia levar a Jerusalém e
consumi-lo ali. Para evitar os contratempos de transporte se permitia
vendê-lo na província e aplicar o equivalente (um quinto do seu valor) na
aquisição de alimentos em Jerusalém onde deviam ser consumidos. No
terceiro e sexto do sétimo ano, este dízimo era entregue aos pobres (Dt
14,22-29; 26,12-15) e, por isso, era chamado dízimo dos pobres”51.
A Mishná procura resolver qual deve ser o comportamento diante de um
produto suspeito de não ter passado pelas exigências de recolhimento das
respectivas cifras dos dízimos. Quais são e em que consistem a ‫חומש‬, “lei do
quinto” e da ‫ביעור‬, “remoção”, uma vez que está evidente, segundo a lei, que
parte do dízimo deve ser consumido em espécie na cidade de Jerusalém?
49
“Quem é um am há-arets? Aquele que não come do alimento não consagrado em estado de
pureza levítica – esta é a opinião de R. Meir. Mas os sábios dizem: seja quem for que não separa
corretamente o dízimo de sua produção...aquele que não recita o Shema - pela manhã e à tarde – é
a opinião de R. Eliezer. R. Yehoshua diz: aquele que não coloca os tefillin. Ben Azzai declara:
aquele que não tem mezuza à sua porta e não tem franjas em sua vestimenta. R. Yonathan bar
Yossef é da opinião que seja quem for que tem filhos e não os faz estudar a Torá. Outros dizem:
mesmo se um indivíduo estudou a Escritura e a Mishná, mas se ele não frequenta os eruditos, hão
de considerá-lo como um am há-arets”. Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et
croyances des maîtres du Talmud, p. 652.
50
Na época do Segundo Templo, “o agricultor era obrigado a separar a quinta parte de sua
produção agrícola que ele “ofertava” aos sacerdotes uma décima parte do restante, como primeiro
dízimo. Cf. DEdJ, p. 270.
51
Cf. DEL VALLE C. (org.), La Mishna, p. 67.
158
A resposta deve ser compreendida por um aprimorado sistema de
recolhimento e fiscalização posto em prática pelos sacerdotes. Há um sistema
rígido de lealdade ao Senhor (Dt 13,1). Ao apresentar-se como Deus único e
realizador de inúmeras obras em favor de seu povo escolhido, Ele passa a ser a
garantia de prosperidade e segurança. Não há outro Deus capaz de garantir a
aliança firmada. Este modo de pensar a relação Deus e Povo é levado às últimas
consequências no Código do Deuteronômio, ao fazer a releitura dos temas já
apresentados em Ex 20,22–23,33. Nada mais justo do que enfatizar a intimidade
feita por meio de uma aliança entre YHWH e seu povo, Israel. Os textos, mais do
que realçar a aliança contraída com essa divindade, visam destacar a lealdade e
exclusividade a ele prestadas. Ao associar o cumprimento do recolhimento dos
dízimos à vontade de YHWH, forjou-se, sim, um arcabouço de idéias
infindáveis52.
Há de se ter clareza de que a tributação do dízimo sobre os produtos do
campo ocorria todos os anos. Durante o primeiro, segundo, quarto e quinto ano,
tempo que compõe o conhecido ciclo da ‫שמיטה‬, os moradores do país eram
obrigados a realizar, assiduamente, o pagamento do
‫מעשר שני‬53 ou segundo
dízimo. Esses produtos ou a sua soma equivalente em dinheiro, deveriam ser
levados a Jerusalém e ali consumidos. O ‫מעשר ראשון‬54 ou primeiro dízimo, seguia
as prescrições elencadas em Nm 18,21.24, sendo destinado aos levitas. No
terceiro e sexto ano, do período da Shmîtah ou período do ano sabático, a soma
dos dízimos era destinada à população dos desfavorecidos economicamente, aos
merecedores do ‫מעשר אני‬55 ou dízimo dos pobres (Dt 14,28-29; 26,12)56.
Os autores da Mishná, diante dos produtos reconhecidos na categoria ‫דמאי‬,
“duvidoso”, optam por isentar o proprietário de uma série de normas. A primeira
refere-se ao ato de efetuar o pagamento, no quinto ano, ficando, deste modo,
isento do segundo dízimo. Fica também dispensado de levá-lo, em mercadoria ou
em espécie monetária, a Jerusalém e lá encontrar seu destino final. Uma terceira
52
Quanto à quantidade a ser oferecida no pagamento do dízimo há inúmeras abordagens. Cf.
ZABATIERO, J. P. T., Tempo e espaço sagrados em Dt 12,1-17,13, p. 137-142.
53
Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222.
54
Cf. Ibidem. p. 221.
55
Cf. Ibidem.
56
O ato de não disponibilizar os respectivos dízimos e valores correspondentes será também
denunciado no tratado Abhot 5,9. Ver análise mais adiante, p. 177.
159
isenção, proveniente de um ‫דמאי‬, privilegia a pessoa em estado de luto, a quem é
facultado o consumo de tal quantia.
Ao comentar o conceito técnico de ‫אנינות‬, “aninut” forma plural de ‫אונן‬,
“onen”, corrente na halakhah, Steinsaltz acentua um tempo de “isenção de todo
preceito positivo”, enquanto perdurar o período de luto57. A Mishná quebra esse
preceito. Ao declarar ‫ונאכל לאונן‬, “Podem ser comidos por um que está de luto” os
produtos tidos como
demay
adquirem uma norma especial, podendo ser
consumidos, mas na cidade de Jerusalém, conforme a máxima subscrita por R.
Meir58. Possivelmente, esta parte do segundo dízimo, consumido em Jerusalém,
devia coincidir com a época em que os israelitas subiam em direção à cidade de
Jerusalém para as festas de peregrinação. Sendo assim, vê-se que a
obrigatoriedade de consumo em Jerusalém servia para a subsistência dos
peregrinos nos dias em que perduravam os festejos.
4.2.5.
‫“ שביעית‬Shebiit” 7,159
:‫כלל גדול אמרו בשביעית‬
Em relação ao ano sétimo se
estabeleceu uma regra geral:
,‫ אכל שהוא מאוכל אדם‬tudo o que é comestível para o homem
,‫ וממין הצובעין‬,‫ ומאוכל בהמה‬ou para os animais, as espécies dos
‫ ואינו מתקיים בארץ‬tingidores e o que não se conserva na
terra,
‫ יש לו שביעית‬ficam sujeitos às regras do ano sétimo,
,‫ ולדמיו שביעית‬como também o dinheiro obtido em sua
venda.
‫ יש לו ביעור‬Estão sujeitos à lei da remoção60,
57
Cf. STEINSALTZ, A., op. cit., p. 162. O período de exéquias envolvia a morte de alguém
próximo ao círculo de parentesco em primeiro grau: pai, mãe, irmã, irmão, filho, filha, marido ou
esposa. De todo e qualquer mandamento positivo – orar o Shema, uso do tallit, comer carne e
beber vinho, comer da oferta do segundo dízimo e comer dos sacrifícios sagrados impunha certa
proibição, no período da vigilância fúnebre na esfera familiar.
58
Fala-se que foi o primeiro discípulo de Rabi Ushmael e posteriormente de Rabi Akiva, no
período tanaíta. Homem de memória privilegiada, escriba de profissão, deu sequência aos
ensinamentos deixados por seu mestre, Akiva. Seu trabalho foi de fundamental importância ao
compilar as tradições orais sendo indispensáveis na redação da Mishná. DE MIRANDA, E. E. e
MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 176.
59
Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h15.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de
2008.
160
.‫ ולדמיו ביעור‬e mesmo o dinheiro obtido em sua
venda.
‫ ואיזה זה‬Quais são?
,‫ זה עלי הלוף השוטה‬As folhas de ervas silvestres, as folhas
,‫ והרגילה‬,‫ והכרישין‬,‫ העולשין‬,‫ ועלי הדנדנה‬de menta, a escarola, os alhos, a flor.‫ ונץ החלב‬de- leque e a flor-de-leite.
,‫ומאוכל בהמה‬
E as ervas para o gado? As sarças e os
‫ החוחין‬espinhos, espécies que usam os
.‫ והדרדרין‬tingidores?
.‫ וקוצה‬,‫ וממין הצובעין ספחי איסטיס‬Os brotos de anil e do falso açafrão.
‫ יש להן‬Eles estão submetidos à lei do sétimo
,‫ שביעית ולדמיהן שביעית‬ano, e também o dinheiro obtido em sua
venda.
‫ יש להן ביעור‬Eles estão sujeitos à lei da remoção,
.‫ולדמיהן ביעור‬
o mesmo que o dinheiro obtido em sua
venda.
Um grande problema era definir quais os produtos que estão ou não sob as
normas estabelecidas no ano sabático. Duas diferentes realidades estão no centro
dessa norma posta em prática: o repouso da terra61 e a anulação dos casos das
dívidas financeiras62. A chegada do sétimo ano propiciava uma era de equidade,
um recomeçar de novo, entre todos os grupos sociais. Tempo de negação de
qualquer experiência acenando concentração de bens e acúmulo de riqueza.
Seguindo as orientações vindas da Torá63, a ‫שביעית‬, “Shebiit”, ou ano sabático era
o tempo por excelência da reparação das injustiças, da equiparação da
concentração de renda oriunda do acúmulo de terras ou cobranças de juros por
empréstimos realizados. Refere-se ao período da distribuição de renda àqueles
diretamente envolvidos nas tarefas do dia-a-dia: escravos e empregados e um
posicionamento objetivo e claro, por parte dos sábios, em motivar o povo a viver
sob a soberania de YHWH.
60
Cf. Dt 26,13.
Refere-se ao conceito da ‫שמיטת קרקע‬, “libertação da terra”. Todos os produtos devem
permanecer no campo e serem consumidos por animais, aves e apanhados por pessoas. Cf.
STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 260.
62
Refere-se ao conceito da ‫שמיטת כספים‬, “cancelamento das dívidas financeiras”. Cf. Ibidem, p.
261.
63
Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,2-7; Dt 15,1-6.
61
161
O texto diz que todos os produtos da terra, tidos como comestíveis pelos
homens e animais, estão sujeitos à lei . O texto da Mishná é explícito: ‫אכל שהוא‬
‫מאוכל אדם‬, “tudo que é comestível ao homem” e também ‫ומאוכל בהמה‬, “e
comestível para os animais” está disponibilizado quando da chegada do ano
jubilar. Nada deve ficar excluído da lei do sétimo ano, nem mesmo a lei da
remissão sobre qualquer produto.
Nada deve deixar de ser considerado no tempo da remissão. Neste aspecto,
compreende-se o argumento considerando, até mesmo, as pequenas ervas, ervas
selvagens, tidas como insignificantes e utilizadas para o tingimento de roupas, tais
como: ervas silvestres, folhas de menta, escalora, alho, flor-de-leque, flor-de-leite,
broto de anil, falso açafrão. Tudo deve ser disponibilizado com a chegada do ano
sabático.
Há de se evitar os abusos sociais. Esse adendo pode ser considerado pelo
uso do termo ‫ביעור‬64, “remoção”, quatro vezes corrente no versículo. Uma vez
que tudo está submetido à lei do ano sabático, também ‫יש לו ביעור ולדמיו ביעור‬,
“ficam sujeitos à lei da remoção e mesmo o dinheiro obtido em sua venda”. Isto é,
a remoção do dízimo dos produtos do ano quarto e sétimo; esse último,
coincidindo com o ano jubilar, deve estar sujeito à lei do período sabático. Nada
pode escapar da regra máxima com a chegada do ano da remissão65. O projeto
imposto é fruto da vontade divina. Os argumentos dos sábios encontram eco e
credibilidade por serem oriundos do próprio Senhor: hw"hyl;( hJ'miv. ar"q'-yKi, “pois se
chama remissão para o Senhor” (Dt 15,2).
Os sábios eram profundos conhecedores das inúmeras relações sociais
geradoras de injustiças. O posicionamento ético diante de uma situação de
injustiça é inquestionável. A primazia volta-se ao ano sabático, princípio e eixo de
toda prática na esfera social. Trata-se de uma intervenção por demais ambiciosa
por parte dos sábios, mas pautada na instância da Torá, o que lhes dava maior
credibilidade e confiabilidade junto às mais diferentes instâncias da esfera social.
Não falam em nome próprio, mas sim em nome de YHWH. A base de toda
argumentação não é outra se não a realização da vontade e palavra do Senhor.
64
Cf JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the
Midrashic Literature, p. 164.
65
Cf. Dt 15,9.
162
4.2.6.
‫“ מעשר שני‬Maaser Shení” 5,10
,‫ במנחה ביום טוב‬Na tarde do último dia
;‫ היו מתוודים‬se faz a confissão.
:‫ כיצד היה הווידוי‬Qual era a fórmula da confissão?
"‫ "ביערתי הקודש מן הבית‬Separei o que é consagrado da minha
casa
(Dt 26,13),
.‫ זה מעשר שני ונטע רבעי‬isto é, o segundo dízimo e os frutos das
árvores do quarto ano.
"‫ "נתתיו ללוי‬Dei-o para o levita (Dt 26,13)
.‫ זה מעשר לוי‬isto é, o dízimo do levita.
"‫ "וגם נתתיו‬Também fiz outra entrega (Dt 26,13).
.‫ זו תרומה ותרומת מעשר‬a saber, a oferta e a oferta do dízimo,
"‫ "לגר ליתום ולאלמנה‬Para o estrangeiro, para o órfão e para a
viúva (Dt 26,13),
,‫ זה מעשר עני‬Fiz a entrega do dízimo dos pobres
,‫ ולקט שכחה ופיאה‬o fruto da respiga, o fruto esquecido e o
da esquina,
.‫ אף על פי שאינן מעכבין את הווידוי‬ainda que isto não invalida a onfissão.
.‫ זו חלה‬,"‫ "מן הבית‬da minha casa, isto é a massa (devida ao
sacerdote).
O vocabulário predominante na perícope é cúltico, com destaque para a
oração pronunciada durante o gesto de oferecimento de um sacrifício ou de um
dos dízimos prescrito pela Torá. Ao declarar ‫במנחה ביום טוב‬, “na tarde do último
dia festivo”, a Mishná refere-se às orações que acompanhavam a entrega dos
dízimos no quarto e sétimo ano, do período sabático66.
A fórmula proposta na Mishná tem origem no texto de Dt 26,13-1567. Na
sequência, são considerados três diferentes dízimos. A primeira oferta citada é ‫זה‬
‫מעשר שני‬, “isto é o segundo dízimo” ofertado “durante o primeiro, segundo, quarto
66
O termo ‫יום טוב‬, “O grande Festival”, alude à festa da Páscoa. Cf. DEL VALLE, C., La Misna,
p.179. O termo pode também referendar as respectivas festas: Shavuot, Rosh HaShanah e Sukkot.
Em certos contextos refere-se ao dia do perdão, Yom Kippur.
67
Cf. M. Msh. 5,12-13.
163
e quinto ano do período sabático”68. Sob essa quantia era determinado seu
consumo, quando possível, em Jerusalém, podendo, de acordo com a realidade,
ser trocada pela quantia equivalente em dinheiro.
O versículo cita ‫זה מעשר לוי‬, “isto é, o dízimo do levita”, conhecido como
‫מעשר ראשון‬69, “primeiro dízimo”. Este dízimo inicial era entregue ao levita, após o
cumprimento da ‫תרומה‬, Teroumah, ”oferta” sobre o resultado de toda a colheita. O
levita, por sua vez, era obrigado a doar um décimo de todos os dízimos ao
sacerdote. Todos os moradores em Israel tinham obrigação de cumprir o preceito,
que direcionava um décimo para os sacerdotes.
Um terceiro dízimo era destinado ao estrangeiro, órfão e viúva. Pertencem
a esta trilogia os grupos dos pobres, escravos. O versículo é muito objetivo ao
apresentar os destinatários do
‫מעשר עני‬, “dízimo dos pobres”. A redação
Mishnáica segue paralela ao texto de Dt 24,19.20.21. A realidade da respiga, do
esquecimento e do ato da vindima acenam para o cumprimento de todas as
normas que não podiam ser negligenciadas pelos agricultores.
Todos os sacrifícios feitos eram seguidos de oração. A ‫וידוי מעשר‬,
“confissão do dízimo”, tinha como elemento único a recitação de Dt 26,13-15.
Seguindo a própria Mishná, e apoiado nos comentários de Del Valle e Steinsaltz70,
a prática de recitar o conteúdo desses versículos foi abolida por ordem de João
Hircano (135-104), considerando as inúmeras faltas no ato de cumprir
corretamente as prescrições ao disponibilizar a quantia dos respectivos dízimos,
segundo a cifra estabelecida.
“O segundo dízimo está destinado à comida, à bebida e à unção; para
comer o que habitualmente se come; para beber, o que realmente se bebe;
para usar como unguento, o que habitualmente se usa como unguento”71.
Os preceitos referentes ao dízimo exigiam um trabalho, empreendido por
parte do doador, e seu gesto é qualificado no momento em que ele a recita
manifestando, deste modo, de forma correta, sua confiança na soberania de Deus,
atualizada todos os anos, ao cumprir a norma estabelecida. Praticá-la é reafirmar
sua confiança nas bênçãos vindas de Deus, sinônimos de prosperidade na colheita,
68
Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, p. 222.
Um décimo da quantia recebida era entregue pelo levita ao sacerdote. Cf. STEINSALTZ, A.,
op. cit., p. 221.
70
Cf. M. Msh 5,15; DEL VALLE, C., La Misna, p.180; STEINSALTZ, A., The Talmud: the
Steinsaltz Edition, p. 185.
71
Cf. M. Msh, 2,1.
69
164
satisfação em construir uma sociedade de iguais e esperança daquele que crê no
amor de Deus. O fiel se vê na qualidade de cumpridor da vontade do Senhor. O
próprio Deus o qualifica.
4.3.
‫“ סדר מועד‬Seder Mo´ed”72
Esta ordem determina as normas para os dias festivos e como celebrá-los
do modo mais solene possível. Na época do acontecimento das festas, ocorrem as
manifestações exteriores demonstrando o grau de compreensão da Torá e das
normas estabelecidas pelos ensinamentos dos sábios.
4.4.
‫“ מגילה‬Megillah” 2,573
,‫ כל היום כשר לקרות את המגילה‬Todo dia é apto para a leitura do rolo,
,‫ ולקריאת ההלל‬para recitar o hino de louvor,
,‫ ולתקיעת שופר‬para o toque do shofar,
,‫ ולנטילת לולב‬para pegar o ramo,
,‫ ולתפילת המוספין‬para a oração adicional,
,‫ ולמוספין‬para os sacrifícios adicionais,
,‫ ולווידוי הפרים‬para a confissão no sacrifício dos
,‫ ולווידוי המעשר‬touros, para a confissão com motivo do
,‫ ולווידוי יום הכיפורים‬dízimo74, para a confissão no Dia da
,‫ לסמיכה‬Expiação,
,‫ ולשחיטה‬para a imposição das mãos
para sacrificar,
,‫ לתנופה‬para agitar,
,‫ להגשה‬para colher um punhado,
,‫ לקמיצה ולהקטרה‬para queimar o incenso,
72
Desta ordem fazem parte temas ligados às respectivas festas: Sábado, Funções exercidas durante
os festejos, Páscoa, Ciclos, Dia do Perdão, Festa das Cabanas, Dias Festivos, Ano Novo, Dias de
Jejuns, Livro de Ester, Festas menores, Sacrifício Festivo. Considera-se na pesquisa somente o
Livro de Ester por apresentar uma determinada norma no texto de Dt 26,12-15.
73
Cf. <http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h2a.htm>, edição eletrônica, acessado em 29 de dez. de
2008.
74
Cf. Dt 26,13-15.
165
,‫ למליקה‬para torcer a cabeça das aves,
,‫ לקבלה‬para receber o sangue,
,‫ ולהזיה‬para a aspersão,
,‫ להשקאת סוטה‬para fornecer a água à suspeita adúltera,
,‫ ולעריפת העגלה‬para desnucar o garrote
.‫ ולטהר את המצורע‬para purificar o leproso.
A expressão ‫כל היום‬, “todo dia”, remete às leituras obrigatórias que devem
acontecer durante a realização das respectivas festividades e atividades
religiosas75. As festas traduziam a plena convicção de estar em sintonia com a
vontade de Deus, além de oferecer, por um determinado tempo, certo
distanciamento dos dias ordinários e aprendizagem com os fatos do passado,
significativos à vida de todas as comunidades religiosas, dentro ou fora do
território76.
O versículo faz referência explícita às festas de Purim
77
‫לקרות את המגילה‬,
“para a leitura do livro”; Ano Novo, ‫ולתקיעת שופר‬, “para o toque do shofar” e Dia
de Expiação; Tabernáculo, ‫ולנטילת לולב‬, “para pegar o ramo”; Sábados e dias
festivos, ‫ולתפילת המוספין‬, “para oração adicional” além de outras inúmeras leituras
obrigatórias ao longo do dia e diante de situações específicas, como: queima de
incenso, aspergir o sangue, purificar o leproso e dar água à suspeita adúltera. O
texto agrupa uma série de vários atos sociais e religiosos, acompanhados pelas
respectivas leituras bíblicas, que especificam a recitação do texto de Dt 26,13-15
no momento da entrega dos dízimos anuais.
Embora não haja, ao longo do versículo, nenhum tipo de preferência ou grau
de importância a uma determinada prática religiosa, a recitação de Dt 26,13-15 pode
ser notada como um gesto habitual no período Tanaítico, quando da entrega dos
dízimos,
como fora mencionado no tratado sobre as normas estabelecidas ao
segundo dízimo78. Trata-se de um agir conforme as regras estabelecidas por vontade
de Deus. Gesto compreendido como um ato de amor, livre e consciente,
75
O capítulo dois esclarece dúvidas quanto à leitura do livro de Ester durante a cerimônia de
Purim, e outras leituras obrigatórias em dia de festa.
76
Manns faz uma síntese das principais festas ligadas ao cotidiano religioso. MANNS, F., Le
judaisme: milieu et mémoire du Nouveau Testament, pp. 99-132.
77
Cf. WIGODER, G. Rouleau. In: DEdJ, p. 649.
78
Cf. M. Msh. 5,10.
166
fortalecendo a unidade com Deus79.
Nota-se o grau de unidade nas normas
estabelecidas pelos sábios no desejo de mostrar o amor a Deus. A fidelidade a Deus,
bem como, a busca pela santidade expressa nos textos bíblicos, é vivenciada por
meio de gestos litúrgicos e por uma prática
social 80.
4.5.
‫“ סדר נשים‬Seder Nashim”
O tratado ‫נדרים‬, “votos” apresenta normas visando concretizar as disposições
estabelecidas em Nm 30. Centra-se nas regras indispensáveis na firmação de um voto
entre um homem e uma mulher, elucidando também as possíveis condições
favoráveis para anulá-lo. Nos seus sete tratados, esta terceira ordem versa sobre
normas de condutas em relação às mulheres, sempre com base nos textos da Torá (Cf.
Dt 20,2-9; 24,1; 25,5; Ex 22,16; Nm 5,11-31.6.30) e em Rt 4.
4.5.1.
‫“ נדרים‬Nedarim” 11,381
Diz-se:
‫קונם שאיני נהנה‬
“qonam se tiro proveito
‫ לברייות‬de qualquer pessoa”,
,‫ אינו יכול להפר‬não pode anulá-lo,
‫ ויכולה היא ליהנות בלקט‬ainda que ela possa beneficiar-se da
‫ ובשכחה‬respiga, do fruto esquecido82 e da rua de
.‫ ובפיאה‬teu campo.
Diz-se:
‫קונם כוהנים ולויים‬
“qonam os sacerdotes e levitas que se
,‫ נהנים לי‬beneficiam de mim” se o colhem pela
;‫ ייטלו על כורחו‬força.
Porém se diz: “qonam”
79
Para os Tanaítas existe a distinção entre o agir por amor e agir pela fé. Segundo Rabi Akiva, os
gestos feitos com amor são acompanhados pelas características do amor e do martírio. URBACH,
E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p. 433.
80
Cf. Ibidem, p. 383.
81
O
texto
hebraico
é
uma
reprodução
do
programa
eletrônico.
Cf.
<
http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h33.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008.
82
Cf. Dt 24,19.
167
,‫ כוהנים אלו ולויים אלו נהנים לי‬estes sacerdotes e levitas que se
.‫ ייטלו אחרים‬beneficiam de mim, outros o podem
colher (os frutos devidos).
O texto desenvolve-se no contexto em que o marido ou pai pode anular o
voto feito pela esposa ou filha83. Apelando ao conceito técnico de ‫קוֹנ ָם‬, qonam, o
voto feito por uma mulher pode ser cancelado. Segundo a definição dos sábios
“trata-se de um voto específico onde a pessoa proíbe a si mesmo de comer algo ou
visa beneficiar-se de alguma coisa ou de alguém ao dizer: “esta pessoa é para mim
um qonam”84.
O versículo apresenta três diferentes argumentações quanto ao uso do
termo qonam. Num primeiro momento, não há meio para retirar uma falta
cometida por uma mulher caso esta venha, diante de qualquer contexto social,
tirar proveito de alguém ou de algo pertencente à outra pessoa. Por se tratar de
uma violação na qual a pessoa venha se beneficiar de modo injusto, ‫אינו יכול להפר‬,
“não pode anulá-lo”, declara a Mishná. Mas a mulher, embora tendo cometido
algum delito, pode, seguindo a prescrição de Dt 24,19, usufruir da lei da respiga:
“Quando colheres a tua colheita no teu campo e lá esqueceres um feixe, não
voltarás para pegá-lo. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será. Deste
modo te abençoará YHWH, teu Deus, em toda obra de tuas mãos”.
Num segundo exemplo, a norma refere-se aos sacerdotes e levitas que, no
exercício de suas funções, venham a obter lucros indevidos. Tal violação de
direito não há como ser revocada, pois se trata de uma forma de aquisição
indevida: ‫ייטלו על כורחו‬, “se colhem pela força”. Neste caso as autoridades
religiosas estariam usurpando de um direito fixado, anteriormente pela halakhah.
Segundo o tratado sobre os produtos do campo, são quatro os tributos fixos dos
quais sacerdotes e levitas tem direitos garantidos: produtos do campo, o dízimo
oriundo da primeira colheita, os dízimos apresentados no templo, além das obras
de caridade marcadas pela disponibilidade dos produtos do campo aos grupos
sociais desfavorecidos85.
83
Os vários tipos de votos feitos por uma mulher, estando ela na qualidade de esposa ou filha, e
que podem ser anulados pelo marido ou pai, são tratado no versículo 11.
84
Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 251; JASTROW, M., Dictionary of
the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the Midrashic Literature, p. 1335.
85
Cf. M. Peá 1,1.
168
Um terceiro exemplo é apresentado considerando o mesmo caso – violação
cometida por um sacerdote ou levita. A diferença está em afirmar que, na mesma
intensidade da violação cometida sobre a pessoa, outras pessoas podem colher os
frutos devidos, retirados por sacerdotes e levitas. Nota-se aqui um conceito
fundamental de justiça (Cf. Ex 21,24; Dt 19,21).
O grau de importância diante da narrativa de Dt 24,19, por parte dos sábios
é absoluto. Mesmo diante de um caso reconhecido como qonam não existem
meios capazes de impedir a prática da respiga dos feixes esquecidos no campo
durante o tempo da colheita.
4.5.2.
‫“ גיטין‬Gittin” 5,886
As inforrmações presentes em Dt 24,1-4 fundamentam os debates no
tratado ‫גיטין‬, “Gittin”, estabelecendo regras para a plena realização do litígio
entre marido e esposa. O tratado está dividido em nove capítulos, sendo o quinto
dedicado às regras da ‫שָׁ לוֺם‬, “paz” no interior das comunidades.
:‫ אלו דברים אמרו מפני דרכי שלום‬As seguintes coisas foram ditas para
favorecer a paz.
,‫ כוהן קורא ראשון‬O sacerdote lê primeiro,
,‫ אחריו לוי‬depois dele o levita
,‫ ואחריו ישראל‬e depois dele um israelita leigo
.‫ מפני דרכי שלום‬para favorecer a paz.
,‫ מערבין בבית ישן‬O erub seja feito na casa antiga
.‫ מפני דרכי שלום‬para o bem da paz.
,‫ בור שהוא קרוב לאמה מתמלא ראשון‬A cisterna que está próxima a um canal
.‫ מפני דרכי שלום‬se enche primeiro, para o bem da paz.
,‫ מציאת חירש שוטה וקטן יש בהן גזל‬Ao encontrado por um surdo-mudo,
um idiota ou um menor, se aplica a lei
.‫ מפני דרכי שלום‬do roubo pelo bem da paz.
.‫ גזל גמור‬,‫ רבי יוסי אומר‬R. Iossef afirma: trata-se de roubo
formal.
86
O texto hebraico foi extraído do programa eletrônico< http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h36.htm>,
acessado em 29 de dez. de 2008.
169
,‫ מצודות חיה ועופות ודגים יש בהן גזל‬Ao preso na rede (o alçapão), sejam
animais, aves, peixes, se lhes aplica a
.‫ מפני דרכי שלום‬lei do roubo pelo bem da paz.
.‫ גזל גמור‬,‫ רבי יוסי אומר‬R. Iossef afirma: trata-se de roubo
formal.
,‫ העני המנקף בראש הזית מה שתחתיו גזל‬Se um pobre vareja a copa de um
oliveiral, a todo o que está debaixo (da
árvore) se lhe aplica a lei do roubo pelo
.‫ מפני דרכי שלום‬bem da paz.
‫ גזל‬,‫ רבי יוסי אומר‬R. Iossef afirma: trata-se de roubo
.‫ גמור‬formal.
‫ אין ממחין ביד עניי גויים‬Não há de proibir aos pobres não
,‫ בלקט בשכחה ובפיאה‬israelitas recolher os frutos da respiga,
‫ מפני דרכי‬do esquecido87 e do limite de teu campo
.‫ שלום‬para o bem da paz.
Ter gestos voltados para a harmonia. Essa é a tônica central desta parte do
tratado sobre o divórcio. O conteúdo do texto é claro:
‫אלו דברים אמרו מפני דרכי‬
‫שלום‬, “As seguintes coisas foram ditas para favorecer a concórdia”. São
apresentadas sete atitudes, comuns ao cotidiano, exemplificando maneiras que
devem ser imitadas para se viver em harmonia, podendo ser divididas em três
grupos distintos.
Num primeiro bloco, aparecem três práticas por demais comuns: na
Sinagoga a leitura da escritura deve seguir o grau hierárquico. Nos dias festivos:
Páscoa, Festa das Semanas, Ano Novo, Dia do Perdão e Cabanas88 não são poucos
os que se dispõem à leitura da Torá. Na finalidade de evitar debates inúteis a
Mishná estabelece uma certa ordem. A leitura seja feita na seguinte ordem:
sacerdote, levita e, em seguida, o leigo. O ‫“ עירוב‬erubh”, literalmente traduzido
por “mistura, conjunção”89, diz respeito a um processo legal, criado pelos rabinos,
para facilitar a observância de atos casuísticos, em dia de sábado, com atenção
87
Cf. Dt 24,19s.
Festas fundamentadas nos textos bíblicos.
89
Cf. JASTROW, M., Dictionary of the Targumin, the Talmud Babli and Yerushalmi, and the
Midrashic Literature, p. 1075.
88
170
centrada na não transgressão das leis90. As questões referentes ao erubh devem
ser encaminhadas na casa mais antiga entre as vizinhanças. A terceira norma
refere-se ao abastecimento de água para os moradores de uma determinada
região91. A Mishná aconselha que as cisternas próximas da fonte sejam cheias,
num primeiro momento.
Um segundo bloco visa elucidar a compreensão do ‫גזל גמור‬, “roubo
formal”. A afirmação procede de R. Iossef92, citada três vezes, após três diferentes
atos. Não importa a pessoa que venha a furtar algo: sempre será considerado um
crime, pois, se trata de uma prática abominável diante dos preceitos de YHWH:
Ex 20,15; Lv 19,11. Com vista à concórdia, mesmo que a falta venha a ser
cometida por um surdo-mudo, um idiota ou por uma criança, o ato será
considerado um “roubo formal”, devendo a pessoa sofrer as punições
estabelecidas. O material usado para prender animais, aves ou peixes pertence a
algum tipo de proprietário. Assim, apropriar-se de animais, peixes ou aves pegos
nas armadilhas, não há como não ser considerado um roubo formal. O mesmo
julgamento recai sobre o momento em que um homem pobre recolhe da copa das
árvores os frutos, colocando-os com as próprias mãos sob a árvore. Conclui-se
que, nos três exemplos ocorre a violação de uma norma negativa. O roubo, não
importa quem venha a cometê-lo, é considerado um crime, visando o
estabelecimento de uma convivência social em equilíbrio: ‫מפני דרבי שלום‬, “pelo
bem da paz”.
O versículo conclui com um realce dado ao gesto de não proibir, quer
israelita, quer pagão, de por em prática o direito de respiga expresso em Dt
24,19s. O texto é inovador ao referendar os ‫עניי גויים‬, “pobres não israelitas”.
90
Existe uma variedade de éruv. Steinsaltz realça: a) erubh do passeio/quintal: fica proibido, em
dia de sábado, transportar qualquer coisa que seja do domínio público para o privado. Segundo a
mesma lei não é proibido fazer o contrário, isto é, transportar do círculo privado ao coletivo; b)
éruv das iguarias cozidas: quando uma festa, seguindo o calendário, cai numa sexta-feira fica
proibido preparar a refeição para o sábado; c) éruv das fronteiras: a norma segue o preceito
estabelecido em Ex 16,29 determinando a medida exata a ser percorrida em dia de sábado.
STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz Edition, pp. 240-241; Cf. WIGODER, R., Érouv.
In: DEdJ, pp. 321-323.
91
O tratado ‫עירוב‬, “erubh” delimita as ações a serem consideradas quando diz respeito a uma
cisterna de domínio privado ou público.
92
Rabi Yossef (ben Chalafta) faz parte da quarta geração de tanaítas, do II século. Proveniente de
uma destacada família da Babilônia, é citado em inúmeros tratados do Talmud, exceto (Bikkurim,
Me’ilá, Tamid, Horayot e Haguigá). Era um dos cinco rabinos refugiados na Babilônia durante a
revolta de Bar Kochbá. Com o fim das restrições impostas por Adriano, retorna à Palestina tendo
grande destaque nas assembléias de Yabne e Usha. Cf. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud,
London, Jason Aronson, 1995, pp. 400-403.
171
Visando a convivência harmoniosa entre as vizinhanças os proprietários de terras
são intimados a contemplar, nos tempos da colheita, não apenas o compatriota
israelita, mas na mesma proporção o estrangeiro93.
4.5.3.
‫ סוטה‬Sotah 9,1094
Sempre na procura de adequar-se às observações determinadas pela Torá,
o tratado ‫“ סוטה‬Sotá” foi redigido no desejo de solucionar casos de infidelidade
da esposa, conforme o previsto em Nm 5,11-31.
Da confirmação das
testemunhas, passando por todo o trâmite processual, até chegar à condenação ou
absolvição da mulher, o tratado expõe em detalhes as etapas do processo.
.‫ יוחנן כוהן גדול העביר הודית המעשר‬O Sumo Sacerdote Yojanán aboliu a
confissão do dízimo95.
‫ אף הוא ביטל את המעוררים‬Também acabou com aqueles que
.‫ ואת הנוקפין‬tinham a missão de despertar e de
golpear.
.‫ היה פטיש מכה בירושלים‬,‫עד ימיו‬
Em seus dias bateu o martelo em
Jerusalém.
‫ אין אדם צריך לשאול‬,‫ ובימיו‬Em seu tempo, não havia necessidade
.‫ על הדמאי‬de perguntar (se um fruto) era dízimo
duvidoso.
Na dinastia dos Macabeus e Asmoneus, o nome de João Hircano I surge na
função de sumo sacerdote e rei em Jerusalém, durante os anos de 134 – 104 a.C.
Nesse período acontece o apogeu do estado Asmoneu, em que as decisões desse
monarca e líder religioso garantem um período de prosperidade em Jerusalém96.
Alguns de seus atos foram registrados nesse tratado da Mishná. Sob seu domínio o
governo passa a ter maior liberdade diante da Síria, constantes relações com
93
Cf. Lv 19,9-10.
Comparações são feitas considerando possíveis influências do Código de Hamurabi. Cf. DEL
VALLE,
Carlos
(ed.),
La
Mishna,
p.
569.
Página
eletrônica:
http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h35.htm, acessado em 29 de dezembro de 2008.
95
Cf. Dt 26,13.
96
Cf. BASLEZ, M-F., Les Maccabées: guerre coloniale et événement fondateur. In: LMB, 168,
2005, pp.19-23.
94
172
Roma e, às vezes, com o Egito, o que favoreceu o enriquecimento e o
fortalecimento da aristocracia, acompanhados por uma relativa crise relacionada à
prática devocional por parte dos sacerdotes97.
“Os inúmeros grupos de “piedosos” se mostravam receosos ou
permaneciam à margem. Davam-se por satisfeitos com a garantia de uma
liberdade de culto, e a segurança de poder levar uma vida de acordo com a
lei; em relação aos seus males e dificuldades presentes, não confiavam em
um solução humana, se não que esperavam uma futura e gloriosa
intervenção divina que transformaria o destino do mundo. Os caminhos,
algumas vezes tortuosos, seguidos pelos Macabeus, e especialmente por
Jónatan, para alcançar seu objetivo naqueles momentos de transtorno e nas
disputas deste mundo, é evidente que não tiveram a aprovação dos
“piedosos” 98.
O versículo apresenta um momento em que os sábios procuram repensar o
judaísmo99. A prática devocional, conforme a narrativa de Dt 26,13, deixara,
desde o tempo de Esdras, de ser praticada. Apenas os dízimos direcionados aos
sacerdotes eram efetuados, ficando o grupo dos levitas alijados de tal direito. Eis o
motivo que levou o sumo sacerdote João Hircano a abolir o gesto religioso que
direcionava o dízimo aos levitas e aos pobres100.
Outros gestos abolidos pelo sumo sacerdote foram o canto cotidiano,
entoado pelos levitas, com base no Salmo 44,24: “Desperta! Por que dormes,
Senhor?”, com a finalidade de evitar blasfêmias; o uso do bastão para ferir os
animais na testa, antes de serem mortos e a proibição de trabalhar em dias
97
Um grupo conhecido como pacifista, mas radicalmente contra os privilégios dos sacerdotes e o
elevado grau de enriquecimento da aristocracia, resultado da política expansionista empreendida
por João Hircano, se vê representado na reação dos fariseus. Cf. NODET, É., Les pharisiens sont
les héritiers des Maccabées. In: LMB, 168, 2005, pp. 24-27; DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J.
M. S., Sábios Fariseus, p. 38; PAUL, A. O judaísmo tardio: história política, São Paulo, Paulinas,
1983, pp. 34-35.
98
Cf. NOTH, M., História de Israel, Barcelona, Garriga, 1975, p. 341; HADAS-LEBEL, M.,
Hillel: un sage au temps de Jésus, Paris, Albin Michel, pp.34-39. Sievers, na tentativa de por um
fim ao estereótipo em relação aos fariseus, ressalta doze aspectos históricos, ao demonstrar o alto
grau de inserção farisaica na comunidade judaica ao longo de toda a dominação romana. Cf.
SIEVERS, J. Who were the pharisees?. In: CHARLESWORTH, J. H. e JOHNS, L. L., Hillel and
Jesus: comparative studies of two major religious leadres, Minneapolis, Fortress Press, 1977, pp.
137- 155.
99
A Mishná Sotah, como outras diversas mishnaiot, surgiu durante a época em que as práticas
cultuais e jurídicas estavam em franca atividade, na época do Templo. Análises paralelas entre
outros textos, recentes – Filon e Josefo – descrevem diferenças no modo de praticar ritos punitivos
quando se trata de denuncias de infidelidade matrimonial e punições às mulheres. Sotah,
possivelmente, teve sua redação em meados do século II. Cf. ROSEN-ZVI, I., Sotah Tractate.
Disponível em: <http://jwa.org/encyclopedia/article/sotah-tractate>. Acesso em: 25 de mar. 2009.
100
Segundo Valle, a recitação do ato de fé, segundo Dt 26,13, era um contra-senso na medida em
que não se cumpria mais o preceito, como estabeleceu a Torá. DEL VALLE, C., La Misha, p.
589.
173
semifestivos. Caiu por terra, também,
a obrigatoriedade de saber sobre
determinada quantidade de alimento pesava ou não o dízimo duvidoso.
Pelo texto não se pode afirmar se a recitação sobre os dízimos, com base
na prescrição deuteronômica, voltou ou não a ser praticada com toda a devoção
conforme manda a tradição, mas é notório que, pelo menos na época de Hircano, o
rito religioso veio a ser abandonado por falta de coerência.
4.6.
‫“ סדר נזיקין‬Seder Neziqin”
As leis versam sobre fatos ligados ao mundo da economia e transação
financeira, ao homicídio e meios para estabelecer a corte de justiça, bem como a
qualificação das testemunhas.
Esta quarta ordem da Mishná apresenta
inúmeras leis versando sobre a superação de contendas na esfera pública ou
privada. Fatos ligados ao mundo econômico, social e religioso. A ordem, salvo
qualquer anacronismo, é um verdadeiro “código civil” na superação de conflitos
na esfera econômica e social.
Primeira Porta, Porta Média e Porta Última formam um único tratado, que
devido à extensão dos 30 capítulos, foi dividido em três secções. Os danos
causados por uma pessoa a outra ocupam a Primeira Porta. As questões de ordem
econômica ocupam a Porta Média. As exigências e critérios nas relações de
compra e venda são assuntos para a Porta Última101.
4.6.1.
‫“ בבא מציעה‬Bava Metzia” 9,13
,‫ המלווה את חברו‬Se alguém faz empréstimo a seu
próximo,
‫ לא ימשכננו אלא‬não tomará dele nenhum penhor sem o
;‫ בבית דין‬consentimento do tribunal,
,‫ ולא ייכנס לביתו ליטול את משכונו‬nem entrará em sua casa para pegar a
prenda,
‫ שנאמר‬uma vez que está escrito:
101
Cf. DEL VALLE, C., La Mishna, p. 635; STRACK, H. L. e STEMBERGER, G., Introducción
a la literature talmúdica y midrásica, pp. 174-176. Texto hebraico copiado na página eletrônica:
<http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h42.htm>, acessado em 29 de dez. de 2008.
174
". . . ‫ אשר אתה נושה בו‬,‫ תעמוד; והאיש‬,‫ "בחוץ‬permanecerá fora, e o homem a quem
.(‫יא‬,‫ )דברים כד‬fizeste o emprestimo virá... (Dt 24,11).
,‫ היו לו שני כלים‬Se (o devedor) tiver dois utensílios,
‫( נוטל אחד‬o credor) poderá pegar um,
;‫ ומחזיר אחד‬porém deixará o outro.
,‫ מחזיר את הכר בלילה‬Deve devolver o colchão à noite
.‫ ואת המחרשה ביום‬e o arado ao dia.
,‫ ואם מת‬Se morre (o devedor),
‫( אינו מחזיר‬o credor) não tem que devolvê-lo aos
.‫ ליורשיו‬herdeiros.
,‫ רבן שמעון בן גמליאל אומר‬Rabán Simeão ben Gamaliel ensina:
‫ אף לעצמו אינו מחזיר אלא‬inclusive mesmo ao devedor não tem
;‫ עד שלושים יום‬que devolvê-lo antes de trinta dias.
,‫ משלושים ולהלן‬A partir de trinta dias poderá vendê-lo
.‫ מוכרו בבית דין‬com consentimento do tribunal.
,‫ אלמנה בין שהיא ענייה‬De uma viúva, seja pobre
‫ בין שהיא עשירה‬ou rica,
,‫ אין ממשכנין אותה‬não se há de pegar nada em penhor,
‫ שנאמר‬porque está escrito:
‫ בגד‬,‫ "לא תחבול‬não tomarás em penhor as roupas da
.(‫יז‬,‫ אלמנה" )דברים כד‬viúva (Dt 24,17).
,‫ החובל את הריחיים‬Se alguém toma como penhor um
;‫ עובר בלא תעשה‬moinho,
.‫ וחייב משום שני כלים‬quebrando um preceito negativo,
se torna culpado por razão de pegar dois
objetos,
‫ שנאמר‬uma vez que está escrito:
"‫ ורכב‬,‫ "לא יחבול ריחיים‬não se tomará em penhor a pedra
.(‫ו‬,‫ )דברים כד‬inferior ou superior do moinho. (Dt
24,6)
‫ולא ריחיים ורכב בלבד‬
Não disseram só a pedra inferior e
,‫ אמרו‬superior do moinho,
‫ אלא כל דבר שעושין בו אוכל‬todos estes objetos com o qual se
175
,‫ נפש‬prepara a comida,
‫ שנאמר‬uma vez que está escrito:
"‫ הוא חובל‬,‫“ "כי נפש‬porque seria pegar em prenda uma
.(‫ו‬,‫ )דברים כד‬vida”. (Dt 24,6).
A ‫בית דין‬, “corte, tribunal”,102 não era somente um espaço para julgar e
decretar respectivas sanções aos infratores por seus crimes praticados, mas uma
entidade responsável em elaborar leis para aproximar o homem ao seu Criador,
em harmonia com toda a sociedade. Este princípio pode ser verificado
considerando o uso dos textos bíblicos feito pelos magistrados.
Em sua estrutura, o versículo acena à superação de inúmeros conflitos.
Diante de um ‫מלוה‬, “empréstimo” não há meios de tirar proveito de uma possível
situação de dependência do ‫חבר‬, “próximo”, caso esse tenha solicitado um
empréstimo, seja ele em bens ou dinheiro. Compete ao tribunal definir ou não a
quantia a ser pega como penhor. Fica também estabelecido que nada o credor
tome como propriedade sua com o objetivo de saldar a dívida. Com base na
máxima bíblica: “ficarás do lado de fora, e o homem a quem fizeste o empréstimo
virá para fora trazer-te o penhor” (Dt 24,11), os sábios criaram uma
regulamentação impondo um princípio essencialmente proibitivo. Pela expressão
‫שנאמר‬, “uma vez que está dito, escrito,” é introduzida uma máxima como
resultado de um processo de interpretação determinando que tal prática é
absolutamente proibida. Nesse caso, a propriedade, a casa, era compreendida
como um espaço inviolável.
As relações comerciais não devem ser feitas com base na violação de
direitos. Este princípio pode ser notado ao longo do segundo parágrafo do
versículo, ao apresentar uma máxima, seguida de um exemplo e novamente uma
máxima. A primeira máxima trabalha com uma categoria de valor utilizando uma
comparação: ‫שני כלום‬, “dois utensílios”, ‫נוטל אחד‬, “pegar um” e ‫ומחזיר אחד‬, “deixará
o outro”. O jogo numérico visa alertar que o devedor precisa de meios para
trabalhar e quitar sua dívida. A retenção de todos os seus meios de trabalho seria a
legitimação de sua redução ao estado de pobreza permanente. O exemplo ‫מחזיר את‬
‫הכר בלילה‬, “deve devolver o colchão à noite” e ‫ואת המחרשה ביום‬, “e o arado ao dia”
102
O Talmud acena para a existência de vários níveis de tribunais formados por três, vinte e três,
setenta e um juízes, no período do segundo templo. Após a destruição de Jerusalém, o sábio
tanaíta, Yohanam ben Zakkai, transferiu o sinédrio para Yavneh. Cf. STEINSALTZ, A., The
Talmud: the Steinsaltz edition, p. 168.
176
acena novamente para o princípio da não violação de direito. Assim como o
colchão é usado para dormir, o arado é visto como instrumento essencial para
trabalhar a terra. O exemplo mostra a necessidade do trabalhador de emprestar um
determinado objeto, caso este demore a ser devolvido. Não há possibilidade de
reter um bem indispensável de alguém. A segunda máxima alerta para a proibição
de transferência dos débitos. Não existem meios de transferir para uma geração
contratos de dívidas contraídas por uma outra geração. Uma descendência não se
vê obrigada a pagar uma dívida por ela não contraída. Entre os litigantes deve
haver uma relação comercial na base do direito.
As normas estabelecidas demandam uma honestidade sem limites. Nesse
prisma deve-se compreender a citação de Raban Simeão ben Gamaliel II103. Esse
destacado fariseu, tanaíta da terceira geração, enfatiza o princípio de que, nas
relações comerciais, deve-se levar em conta a pessoa e não um desenfreado desejo
em acumular, a qualquer custo, o lucro. Ao reter algo do devedor, o credor deverá
devolver antes de um período determinado de ‫עד שלושים יום‬, “até trinta dias”.
Após esse tempo ao credor está facultada a possibilidade de vender o objeto que
está sob sua responsabilidade, mas não a qualquer preço, causando desta forma
maior dano ao devedor. A lei obriga consultar o tribunal a fim de que se faça uma
adequada avaliação do patrimônio posto à venda.
Como apelo à solidariedade, a narrativa retoma a máxima afirmada em Dt
24,17: “Não farás violar o direito do estrangeiro, do órfão e não tomarás como
penhor a roupa da viúva”. É possível perceber o desejo de ter a vida pautada pelas
máximas das leis recebidas por Israel e transmitidas pelos sábios. Seguindo o
texto bíblico, a Mishná também enfatiza a proteção aos bens pertencentes à viúva.
A novidade, e aqui não há como não perceber o desejo de viver sob as ordens de
YHWH, está no destaque dado à redação da norma legal, em especificar a
condição social: ‫שהיא ענייה‬, “seja pobre” ou ‫שהיא עשירה‬, “seja rica”.
A observância de uma ‫מצוה‬, “ordem”, proveniente da Torá e definida
pelos sábios como dom de Deus para o bem dos homens104, visa a realização do
103
Este sábio atuou durante a época de grande perseguição e sofrimento imposto pelo regime
romano. Teria estado na fortaleza de Bar Kochbá, conseguindo escapar do massacre. Simeão ben
Gamaliel foi patriarca em Jerusalém sendo seus contemporâneos: Rabi Meir, Rabi Natan, Rabi
Iehudá ben Hai, Rabi Shimon ben Yochai ilustres tanaítas. Seu filho, Rabi Iehudá Hanassi foi o
compilador da Mishná. FRIEMAN, S., Who’s who in the Talmud, pp. 278-280.
104
Urbach define a revelação de Deus por meio de ordens, autorizações e interdições. O homem é
convidado a encontrar sua plena realização no cumprimento dos preceitos divinos. O ato de
177
homem em relação a Deus e a instauração do bom relacionamento na sociedade.
Este é o motivo da observância de uma ordem negativa: “Não tomarás como
penhor as duas mós, nem mesmo a mó de cima, pois assim estarias penhorando
uma vida” (Dt 24,6). Este é o sentido da expressão: ‫ עובר בלא‬,‫החובל את הריחיים‬
‫תעשה‬, “Se um toma como penhor um moinho quebrando um preceito negativo”.
Neste versículo nota-se a busca pela harmonia na convivência social na afirmação:
‫אלא כל דבר שעושין בו אוכל נפש‬, “todos estes objetos com o qual se prepara a
comida”, garantindo, assim, o direito aos bens utilizados no trabalho.
Fica evidente que os enunciados fundamentais provenientes dos textos
bíblicos foram amplamente explicitados, passo a passo, em todo o corpo da
jurisprudência rabínica105. A ética em relação ao próximo deve se pautar pelo
cumprimento da justiça.
“A regra de ouro de seu comportamento fora dada por Hillel, cerca de uma
geração antes do nascimento de Cristo, como evolução progressiva de
Levítico 19,18.34: “O que não desejas para ti, não o faças a teu próximo”.
O conceito de próximo não se limita aos israelitas. Implica todos os
humanos e, de certa forma, toda a Criação. Segundo Rabi Iehoshua ben
Chananiá, também “os justos dos povos do mundo”, em outras palavras, os
justos não-israelitas, participarão do mundo futuro, do mundo por vir
(Olam habá) ao lado de Israel. Rabi Meir dizia: “Um não-judeu que segue
a Torá é semelhante ao sumo sacerdote”106
4.6.2.
‫“ אבות‬Avot”, 5,9
O tratado procura justificar a transmissão dos ensinamentos da Torá,
começando por Moisés até o último tanaíta, Rabi Yehudah Hanassi, editor da
Mishná, no século II d.C. As máximas sapiênciais são de autoria de vários sábios
e provenientes do III a.C.107.
‫ בארבעה פרקים הדבר מרובה‬Em quatro momentos a peste aumenta:
transgressão nada mais é do que a diminuição da personalidade humana. O gesto de cumprir um
mandamento outorga ao realizador o poder daquele que o ordenou: Deus. Um amplo estudo sobre
o tema está no capitulo treze da obra. Cf. URBACH, E. E., Les sages d’Israël:conceptions et
croyances des maîtres du Talmud, pp.229-415.
105
Por jurisprudência entenda-se o desenvolvimento do conceito ‫ ֲה ָל ָכה‬, “Halakhah”, formado pelos
mandamentos vindos da Torá, passando pela lei oral e pelo desenvolvimento dos ensinamentos dos
sábios. Cf. WIGODER, G., Jurisprudence rabbinique. In: DEdJ, pp. 412-419.
106
DE MIRANDA, E. E., e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 97.
107
Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 31. Conforme edição eletrônica:
<http://kodesh.snunit.k12.il/b/h/h49.htm> . Acessado em dez. de 2008.
178
,‫ ובשביעית‬,‫ ברביעית‬no ano quarto, no ano sétimo,
‫ ובמוצאי החג‬,‫ובמוצאי שביעית‬
ao final do ano sétimo e ao final da festa
:‫ שבכל שנה‬dos tabernáculos, todos os anos.
,‫ ברביעית‬No ano quarto
‫ מפני מעשר עני‬a causa do dízimo108 dos pobres
;‫ שבשלישית‬do ano terceiro;
‫ מפני מעשר‬,‫ בשביעית‬no ano sétimo, a causa do dízimo dos
;‫ עני שבשישית‬pobres do ano sexto;
,‫ במוצאי שביעית‬ao final do sétimo ano,
;‫ מפני פירות שביעית‬a causa dos produtos do ano sétimo;
,‫ במוצאי החג שבכל שנה ושנה‬ao final da festa anual dos tabernáculos,
‫ מפני גזל מתנות‬a causa do roubo dos dons109
‫ עניים‬dos pobres.
A expressão
‫דֶּ ֶבר‬, “pestilência, peste” é utilizada para expressar as
inúmeras ocorrências em que o não cumprimento de uma ‫מצוה‬, “mandamento,
ordem” acontece. Procura-se enfatizar um desvio feito de modo intencional. O
descumprimento da ‫ מצוה‬é violado propositadamente. Trata-se de um ‫מצוה הבאה‬
‫בעבירה‬, “um mandamento que foi diretamente transgredido”110.
Pelo uso do conceito ‫הדבר מרובה‬, “a peste aumenta” quatro tipos de
violações ocorrem com certa frequência, comprovada pela referência de tempo
‫שבכל שנה‬, “todos os anos”. Nota-se um modo elucidativo
ao indicar
primeiramente as quatro violações, na seguinte ordem: ‫ברביעית‬, “no ano quarto”;
‫ובשביעית‬, “no ano sétimo”; ‫ובמוצאי שביעית‬, “ao final do ano sétimo” e ‫ובמוצאי החג‬,
“e ao final da festa dos tabernáculos”. Listadas as violações, a Mishná passa a
explicar os motivos pelos quais ocorrem as violações. Pode-se identificar a
seguinte estrutura na composição:
Ano quarto __________________________ dízimo dos pobres
Ano sétimo __________________________ dízimo dos pobres
Final do ano sétimo ____________________ produtos do sétimo ano
Final da festa dos Tabernáculos __________ roubo dos dons
108
Cf. Dt 24,18
Cf. Dt 14,28-29.
110
Cf. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud: the Steinsaltz edition, p. 222.
109
179
Das quatro violações elencadas, três ocorrem ao longo dos sete anos que
compõem o período sabático. ‫ברביעי מפני מעשר עני‬, “No ano quarto, a causa do
dízimo dos pobres” deixa de ser realizada. A narrativa bíblica determina: “ao final
de três anos, tu farás tirar a décima parte de toda a tua colheita deste ano e farás
disponibilizar nos teus portões” (Dt 14,28). Essa quantia especificada pertenceria
aos pobres. O dízimo trienal devia ser entregue diretamente aos pobres, aos
socialmente necessitados. Eis uma maneira da jurisprudência rabínica de
contemplar a dádiva proveniente de Deus.
A segunda violação continua a ressaltar o ‫מעשר עני‬, “dízimo dos pobres”
realizado a cada triênio. No sétimo ano deveria ser entregue aos pobres a
quantia separada do dízimo do sexto ano. Há um tempo fixado para
disponibilizar aos pobres seus dízimos. Eles não têm outros meios capazes de
garantir sua sobrevivência. Esta fixação fica evidente ao relacionar ‫בשביעית‬
‫מפני מעשר‬, “no sétimo ano, a causa do dízimo dos pobres” com o período
‫שבשישית‬, “do ano sexto”. Este dízimo era sonegado duas vezes num período de
sete anos. A solidariedade para com os grupos dependentes, como meio de
expressar a dádiva libertadora recebida por seu Deus, não acontecia, por
intencional negligencia (Dt 14,29).
O conjunto das normas deuteronômicas apresenta uma regulamentação
para circunstâncias bem específicas. Há clareza sobre o que fazer ou não fazer
diante de diferentes realidades e ambientes envolvendo a sociedade judaica. Neste
prisma, a sonegação dos produtos do sétimo ano é a terceira violação denunciada
na declaração: ‫ מפני פירות שביעית‬,‫במוצאי שביעית‬, “ao final do ano sétimo, a causa
dos produtos do ano sétimo”. Trata-se, literalmente de abandonar a lavoura, bem
como os frutos, os alimentos nela cultivados, com a chegada do sétimo ano, tempo
jubilar111. A compreensão da importância do ano sabático, bem como o teor da
crítica, fica elucidada comparando com a norma estabelecida sobre o ano sabático:
“Se alguém tem frutos do ano sétimo e chega o tempo da remoção, tem
que distribuí-los como alimento para três refeições ao máximo por pessoa.
Os pobres podem comer depois que tenha começado o tempo da remoção,
porém os ricos, não. Tal é a opinião de Rabi Yehuda. Rabi Yosé ensina:
tanto o pobre como o rico podem comer deles depois que tenha chegado o
tempo da remoção” 112.
111
Cf. Ex 23,10-11; Lv 25,1s.; Dt 25,1s.
M. Shebi 9,8. As normas sobre o que fazer com os produtos da lavoura quando da chegada do
Ano Jubilar formam o tratado Shebiit “Ano Sabático”.
112
180
Fica evidente que o gesto de disponibilizar os produtos do campo no
tempo sabático foi negligenciado. Ocorre, numa falta contra as ordens de Deus e
um total desrespeito pelos direitos legítimos dos pobres. A negligência é
denunciada. A Mishná não deixa de lado as responsabilidades dos israelitas, que
sofrerão diante de sua sonegação.
Uma quarta violação, intitulada de ‫גזל‬, “roubo”, acontecia com a chegada
das festas agrícolas. Páscoa, Semanas e Sukkot eram as três importantes festas de
peregrinação marcadas por eventos históricos atrelados à realidade social da
comunidade. Sukkot113 é o cenário escolhido para a denúncia na transgressão do
mandamento que determina deixar no campo a quantia dos pobres. Na estação do
outono aconteciam as colheitas no campo e nessa ocasião deveria, com o máximo
de fidedignidade, ser abandonada, na lavoura, a décima parte, para ser consumida
pelos pobres até que esses se fartassem (Lv 19,10; Dt 14,28-29).
Chegou-se ao nível da banalização o dever de disponibilizar parte dos
frutos da terra aos grupos sociais em risco de sobrevivência. Diante disso, a
sonegação é compreendida como o meio, por excelência, de favorecer o aumento
da peste. Ao codificar os quatro meios, bem como a época em que ‫הדבר מרובה‬, “a
peste aumenta”, os sábios acenam não somente para a chegada do juízo divino,
mas para a diminuição da dignidade humana. Ao transgredir um mandamento
divino, o homem perde sua referência divina, além de possibilitar o aumento da
pobreza no interior da comunidade.
4.7.
Conclusão
Os sábios não são em nada flexíveis diante das normas oriundas da Torá.
Os casuísmos são cuidadosamente respondidos com a máxima preocupação de
não violar nenhum preceito, nenhuma vontade expressa por Deus. Os preceitos
não são compreendidos como uma regra, pura e simplesmente, mas o único meio
pelo qual a humanidade é capaz de chegar ao grau de santidade.
113
A festa é celebrada entre a última semana de setembro e a primeira quinzena de outubro,
correspondendo ao dia 15 de Tishri, pelo calendário lunar, tendo a duração de sete dias. Relembra
os anos errantes vividos por Israel em busca da terra prometida, quando a comunidade residiu em
cabanas (Lv 23,42-43).
181
Na esfera da ética social, considerando as denúncias pelo não
comprimento das práticas religiosas referentes à época da colheita114, ao
dízimo115, à chegada do ano sabático116, às respectivas leituras bíblicas durante o
período das festividades117, às anulações dos votos feitos por homens e mulheres
em seus tribunais118, frente às situações de divórcio119, em ocasiões em que
mulheres venham a ser denunciadas pela prática de adultério120, aos conflitos
diante de empréstimos em dinheiro ou em trabalhos não quitados121 ou em meio a
conselhos, vindos dos mais diversos círculos sapienciais122, são meios para a
prática da justiça. Justiça essa vivenciada na relação com o pobre e sua situação de
marginalidade. Tal gesto fica explicado nas afirmações de Miranda e Malca:
“Cientes das injustiças do mundo em que viviam, os fariseus
manifestavam uma fé indestrutível nos impulsos humanísticos do coração
humano, ao tempo em que eram realistas e lúcidos. Julgaram acertado
formular a busca pela justiça (tzedaká), a prática da caridade e da
benevolência numa obrigação religiosa. Sem a pressão da lei religiosa,
muitos poderiam desviar seu olhar dos pobres, das injustiças e dos
necessitados. Como os salmistas, os profetas e os sábios, os fariseus serão
unânimes em apresentar a justiça como uma exigência da vida social e
como fruto de uma autentica relação com Deus”123.
O tema da defesa dos pobres parece, não poucas vezes, violado em
momentos cruciais, ao mesmo tempo em que ocorre a busca em recompor as
oportunidades perdidas na relação com o próximo e com Deus. A pobreza não é
compreendida como algo natural. Natural é a fé em Deus que criou tudo e tudo
disponibilizou livremente à humanidade. Esta, por sua vez tem a função de mero
administrador dos bens recebidos.
No conjunto dos doze textos da Mishná nota-se a presença de relações
contratuais que são, em bom número, de cunho religioso. Por religioso entenda-se
a origem que levou os sábios a elaborarem uma determinada norma. Só existe a
preocupação em disponibilizar os produtos no campo porque existe um preceito
escrito da parte da divindade: dar garantias de que os pobres terão meios para
114
M. Pea. 4,3; 6,4; 7,7.
M. Dem. 1,2; MSh 5,10.
116
M. Shebi. 7,1.
117
M. Meg. 2,5.
118
M. Ned. 11,3.
119
M. Git. 5,8.
120
M. Sot. 9,10.
121
M. BM. 9,13.
122
M. Abht. 5,9.
123
DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma injustiça, p. 93.
115
182
sobreviver. Eis o projeto divino. Por meio dos textos, compreende-se o real
sentido da experiência religiosa. Experiência essa sempre vinculada ao mundo
real. É na busca de superação dos conflitos, ocasionados pelo não cumprimento de
uma máxima divina que se compreende a existência do Deus que tudo criou.
Diante da enorme quantidade de bens arrecadados a cada ano, fica evidente que os
pobres encontram garantia de subsistência. Eis o aspecto do enfoque social
existente nas leis Mishnáicas.
Há também certos preceitos de ordem contratual. Podem ser classificadas
as normas vigentes nas relações financeiras ou que sejam realizadas exigindo
previamente algum tipo de contrato entre as partes envolvidas124. Verifica-se que
os contratos, mais do que meras ideias, sustentam a equidade e visam estabelecer
e perpetuar uma convivência de paz entre os membros de um determinado grupo
social.
Embora em menor grupo, há uma norma de cunho sapiencial, como pode
ser notado nas denúncias contra os quatro tipos de sonegação dos dízimos125.
Denúncias, diante de um gesto intencional de não cumprir determinada ordem,
refletem a preocupação, sempre presente, de cumprir os preceitos da Torá, bem
como, o grau de sensibilidade pela equiparação social presente nos ensinamentos
dos sábios de Israel. Fica elucidado um princípio de causalidade: o surgimento
dos grupos sociais desfavorecidos revela o grau de apego de todos os preceitos de
Deus. Os apelos dos sábios seguem na direção de colocar a pessoa diante de sua
divindade. O uso da expressão: “a causa pelo roubo dos dons dos pobres” (Ab 5,9)
é, por demais, significativa. Ela não só acena para os bens que fazem parte natural
da “causa” dos pobres, como, com toda teimosia, apela contra aqueles que não
medem limites para desviar o que é de direito dos pobres. O “roubo dos pobres”
acontece. Mais do que uma mera força de expressão de linguagem, os sábios
procuram restabelecer o grau de sintonia entre o contribuinte e o ser de Deus.
Afinal, somente o Senhor dá garantia de segurança e prosperidade.
124
125
Cf. BM 9,13; Sot 9,10; Git 5,8 e Ned 11,3.
Cf. Ab 5,9.
183
5
A trilogia social nos textos deuteronômicos e mishnáicos
Neste capítulo, são analisados os doze versículos da Mishná, divididos em
três blocos. Com base na trilogia social: estrangeiro, órfão e viúva, procura-se
analisar os dois universos literários. Tal proposta elucida, ainda mais, o objeto
prioritário desta tese. No esforço comparativo entre as narrativas, somente as
explícitas referências aos grupos sociais marginais serão analisadas seguindo a
ordem numérica do livro do Deuteronômio. Com base nesse critério, forma-se a
seguinte ordem na apresentação: 1) O dever de disponibilizar os dízimos. Dt
26,12-15 comparado aos versículos: Dem 1,2; Shebi 7,1; MSh 5,10; Meg 2,5 e Sot
9,10; 2) O direito dos pobres pela respiga. Dt 24,19-21 comparado com os
versículos: Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13; 3) A violação do direito
dos pobres. Dt 14,28-29 comparado ao versículo Ab 5,9. A escolha dos versículos
da Mishná foi feita considerando a similaridade do respectivo texto bíblico que
oferece fundamentação a uma respectiva ordem.
5.1.
O dever de disponibilizar os dízimos
Dt 26,131
13
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
Dem 1,22
a
Aos produtos do dízimo duvidoso
separei o que é consagrado da minha
b
casa
c
não se aplica a lei do quinto
nem da remoção3.
e também o dei para o levita, para o
1
Na comparação entre as narrativas, serão considerados somente os versículos que dão
sustentação argumentativa à norma estabelecida na Mishná, uma vez que a perícope, em todo o seu
contexto já foi analisada na segunda parte do trabalho.
2
As letras dividindo o verso da Mishná são para simples conferência, uma vez que essa subdivisão
inexiste na narrativa original.
3
Cf. Dt 26,13.
184
estrangeiro, para o órfão e para a viúva,
conforme teu mandamento, que me
mandaste.
Não
transgredi
nenhum
dos
teus
mandamentos
e não esqueci.
14
Não comi disto [dízimo] no meu luto,
d
e não queimei dele [dízimo] em estado
e
de impureza,
f
e não dei dele [dízimo] para um morto.
tirá-glos dali.
Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus.
h
Eu fiz conforme me mandaste.
pequena iquantidade, (não importa);
j
Podem ser comidos por um que está de
luto4.
Pode-se introduzir em Jerusalém e
Se, no caminho, se estraga uma
pode-se dar a uma pessoa não
instruída,
k
mas haverá de comer o equivalente.
l
(O preço do resgate) pode ser
convertido m(em dinheiro) de uso
comum:
n
prata por prata, dinheiro por cobre,
o
prata por cobre e cobre por frutos,
p
contanto que alguém volte para
resgatar qos frutos.
r
Esta é a opinião de R. Meir.
s
Os sábios afirmam que os frutos tem
que tser levados a Jerusalém e ali,
devem ser uconsumidos .
A semelhança entre as narrativas está em apresentar aspectos em relação
ao dízimo. Nota-se: 1) os textos destacam a elaboração de normas para
disponibilizar certas quantias do dízimo. Dt estabelece a cifra “da décima parte”
(v. 12); 2) o tratado reconhece as leis envolvendo o dízimo, mas ressalta que,
4
Cf. Dt 26,14.
185
sobre o dízimo de procedência duvidosa, rege uma norma de aspecto negativo
(Dem 1,2a). As duas narrativas expressam a importância de separar certa quantia a
ser disponibilizada a um determinado grupo de pessoas.
As diferenças são significativas. O Dt estabelece uma lei diante do dízimo
de procedência certa, reconhecido como puro, pela lei. Ao passo que na narrativa
da Mishná a lei tem um aspecto negativo, pois apresenta normas a serem
praticadas diante de uma soma de procedência duvidosa. Não se tem certeza da
origem e do processo utilizado na aquisição de determinada mercadoria. Nessa
condição a soma pode ser consumida em qualquer lugar e por alguém não judaíta.
É possivel também ser trocada por espécie em dinheiro, desde que seja uma
quantia equivalente. Esquematicamente:
Dt 26,12-15
Dem 1,2
Consagrado
Impuro
pobres judaítas
pobres não judaítas
tuas portas/casas
Jerusalém ou em qq. lugar
motivação
cumprir o mandamento
--------------
ordem
proveniente do Senhor
estabelecida por R. Meir
Dízimo
Destinatários
local de consumo
Percebe-se a substituição em espécie monetária referente à quantia a ser
obrigatoriamente consumida por alguém não judaíta. Nota-se que esta foi uma
maneira de resolver sobre a utilização do dízimo proveniente do ‫ָאָרץ‬
ֶ ‫“ עַם ה‬povo da
terra”. A lei expressa em Dem 1,2 tem como alvo este grupo social. Sobre esta
quantia não pesa nenhuma obrigatoriedade da parte do Senhor, por isso, existe a
possibilidade de trocar a quantia do dízimo por algo equivalente em espécie. A
regra estabelecida por R. Meir atualiza um preceito negativo diante de
determinada quantia, desde que esta seja relativa ao dízimo.
Por “povo da terra” é justo ressaltar que a compreensão soa diferente
quando comparado ao conceito predominante do AT. Escrito ao longo do segundo
século da nossa era, o tratado Dem reflete as relações entre as comunidades
judaítas instaladas nas regiões de Judá e Galiléia, em meados do século II. Nesse
ambiente adverso à soberania dos fariseus, deve ser compreendida a relação das
comunidades religiosas com pessoas ou grupos sociais alheios aos seus costumes ou
traços culturais.
186
A motivação religiosa pode ser vista um alto grau de observância e apego
às leis bíblicas. O controle de todo o trabalho e produto do solo é regido pelas
normas estabelecidas pela Torá, e os sábios a veem como regra, são apenas
controladora dos trabalhos agrícolas, mas como meio de agradar a YHWH. O
possuidor de uma determinada quantia a ser disponibilizada tem a obrigatoriedade
de saber a procedência do produto. O cumprimento dessa certeza é algo intrínseco
em Deuteronômio (cf. 26,13-14), e sofreu um aspecto minucioso na redação do
tratado Dem 1,2. O que está em questão é não burlar uma lei divina. Para isso os
sábios são lúcidos ao declarar que “aos produtos do dízimo duvidoso não se aplica
a lei do quinto nem da remoção” (cf Dem 1,2a-c). Afinal, o dever de agradar e
receber a bênção de YHWH é a finalidade de todo esforço da comunidade.
5.1.1.
Produtos disponibilizados no sétimo ano.
Dt 26,13
Shebi 7,7
a
Em relação ao ano sétimo se
estabeleceu buma regra geral: tudo o
que é comestível cpara o homem ou
para os animais, as despécies dos
tingidores e o que não se fconserva na
13
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
terra,
separei o que é consagrado da minha gficam sujeitos às regras do ano sétimo,
h
casa
como também o dinheiro obtido em
sua ivenda. Fica sujeito à lei da
e também o dei para o levita, para o remoção5,
estrangeiro, para o órfão e para a viúva, je mesmo o dinheiro obtido em sua
conforme teu mandamento, que me venda.
mandaste.
Não transgredi nenhum dos teus kQuais são? As folhas de ervas
mandamentos
silvestres, las folhas de menta, a
e não esqueci.
escarola, os alhos, a mflor - de- leque e
a flor-de-leite.
n
E as ervas para o gado? As sarças e os
o
espinhos. Espécies que usam os
p
tingidores?
q
Os brotos de anil e do falso açafrão.
r
Todos eles estão submetidos à lei do
5
Cf. Dt 26,13.
187
s
sétimo ano, e também o dinheiro
obtido tem sua venda. Estão sujeitos
também à ulei da remoção, o mesmo
que o dinheiro vobtido em sua venda.
A aproximação entre as perícopes ocorre no uso do verbo ‫ ָבּ ָער‬, “remover,
separar”, utilizado na forma piel, em Dt 26,13: tyIB;h;-!mi vd<Qåoh; yTir>[ô:Bi, “separei o
que é consagrado da minha casa” (v.13) e, a expressão ‫יש לו ביעור‬, “ficam sujeitos
a lei da remoção”, em Shebi (v.c). As demais afirmações, em ambos os textos,
seguem independentes.
Nos dois textos, prevalece um longo discurso relativo ao que deve ser
disponibilizado aos pobres. O texto de Shebi apresenta um aspecto explicativo
diante do que deve ou não ser disponibilizado com a chegada do ano jubilar e do
dízimo. A narrativa não discorre em generalidades. Visa prestar um
esclarecimento ao citar espécies de vegetais sobre os quais pesam a lei do ano
jubilar. São apresentados esclarecimentos de bens sobre os quais recaem a lei do
sétimo ano e outras duas, sobre os produtos sujeitos à lei do dízimo.
Em primeiro lugar, acena para todas as espécies de comestíveis, utilizados
pelos homens e úteis aos animais. Sob esses bens recae a lei do sétimo ano. Um
segundo esclarecimento visa as espécies de ervas naturais utilizadas para o tingir
das roupas. Um outro esclarecimento ressalta as espécies de plantas que não se
conservam sob a terra. Fica também disponibilizada toda e qualquer quantia em
dinheiro recebida com a venda dos respectivos produtos.
A perícope obedece à seguinte estrutura, nessa primeira parte:
A – No sétimo ano devem ser disponibilizados:
a) Produtos comestíveis (homem e animal)
b) Produtos utilizados pelos tintureiros
c) Produtos que não se conservam na terra.
Uma segunda parte da narrativa de Shebi acentua a obrigatoriedade do
dízimo de vários produtos colhidos, serem destinados aos pobres. O texto, em tom
elucidativo, parece querer impedir possíveis fraudes de sonegação ao apresentar a
frase: quais são os produtos? E os sábios, por sua vez, demonstram um forte rigor
e apego às normas estabelecidas no Dt. São os seguintes produtos:
188
B – Produtos sujeitos à remoção:
a) Tipos de ervas silvetres
b) Ervas para os animais
c) Ervas utilizados pelos tintureiros
A clareza e objetividade marcam o texto da Mishná, impregnada de um
aspecto elucidativo, esclarecedor. Por duas vezes, afirma-se que esses produtos
estão sujeitos à lei do dizimo e do ano jubilar. Mesmo que tal quantia venha a ser
colocada a venda, o dinheiro recebido será integralmente disponibilizado para os
pobres. Está em jogo a felicidade dos pobres e, para que isso aconteça, é preciso
compreender e radicalizar a partilha dos bens. Eis algo esclarecedor, quando
comparado às normas sobre o ano jubilar, expostas nos textos bíblicos. Não é por
outro motivo que duas vezes o texto recorre à expressão ‫ולדמיו שביעית‬, “como o
dinheiro da venda do sétimo ano” (v.
b+f
), e em outras duas à expressão ‫ולדמיו‬
‫ביעור‬, “e mesmo o dinheiro obtido de venda da remoção” (v. c+g).
A narrativa de Dt 26,13, quando comparada ao texto expresso em Shebi
7,1, apresenta leis, num contexto mais geral, de modo mais amplo. Apresenta um
arcabouço legal menos contextualizado, o que não poderia ser diferente, uma vez
que a Mishná procura meios para colocar em prática os preceitos expostos no Dt.
A comparação deixa transparecer que Dt 26,12-15 trata de uma lei que se impõe
diante do resultado final da empreitada, da colheita. Tal detalhe pode ser
verificado diante da expressão: “Quando tiveres terminado de separar toda a
décima parte de tua colheita, no terceiro ano” (v. 12).
A linguagem é litúrgica e acena para uma profissão de fé diante de Deus:
“Dirás diante de YHWH, teu Deus: separei o que é consagrado da minha casa e
também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva” (v. 13).
Outro detalhe que realça o cenário litúrgico é a declaração de inocência, ainda
diante de Deus, no uso da partícula de negação ‫ֹלא‬, “não”, acompanhada de cinco
respectivos verbos, que enaltecem o grau de perfeição do fiel diante de Deus:
yTir>b:['-al{, “não transgredi”, yTix.k'v' al{w>, “e não esqueci”, yTil.k;a'-al{, “não comi”,
yTir>[:bi-al{w>, “e não queimei” e yTit;n"-al{w>, “e não dei”. O aspecto litúrgico continua
ao longo do resto do versículo exaltando o grau de inocência diante de Deus: “eu
ouvi a voz de YHWH...eu fiz conforme mandaste” (v.14) e conclui com a
189
apresentação de uma oração conclamando as bênçãos divinas sobre o povo de
Israel, sobre o solo cultivado e certeza de prosperidade (v.15).
A comparação realça o grau de comprometimento e inovação empreendido
pelos sábios da Mishná. Há que ressaltar que para elaborar as normas referentes
ao ano jubilar e ao dízimo os sábios ampararam-se num texto deuteronômico de
cunho eminentemente litúrgico, fortemente confessional. Eles retrabalharam o
texto de tal forma que chegaram a ampliá-lo, diga-se de passagem, com coragem,
somando leis regulamentadoras do ano sétimo inexistentes em Dt 26,12-15,
acarretando maior legitimidade às suas propostas.
5.1.2.
O dízimo dos pobres e a declaração no dia festivo, por excelência
Dt 26,13
a
MSh 5,10
Na tarde do último dia festivo
b
13
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
separei o que é consagrado da minha
casa
se faz a confissão6. Qual era a fórmula
da cconfissão?
d
e
Separei o que é consagrado da minha
casa (Dt 26,13),
f
isto é, o segundo dízimo e os frutos das
g
árvores do quarto ano. dDei-o para o
h
e também o dei para o levita, para o
i
levita (Dt 26,13) isto é, o dízimo do
levita. Também fiz outra entrega (Dt
26,13)
j
a saber, a oferta do dízimo,
k
Para o estrangeiro, para o órfão e para
estrangeiro, para o órfão e para a viúva,
a lviúva (Dt 26,13), (fiz a entrega) do
conforme teu mandamento, que me
m
dízimo dos pobres, o fruto da respiga,
mandaste.
o nfruto esquecido e o do limite (de teu
o
campo); ainda que isto não invalide a
Não transgredi
mandamentos
e não esqueci.
6
Cf. 26,13.
nenhum
dos
teus
p
confissão. gDa minha casa, isto é, a
q
massa (devida ao sacerdote).
190
A narrativa de MSh 5,10 é redigida com base nas afirmações presentes em
Dt 26,13, o que lhe oferece um alto grau de antiguidade, remetendo-a ao período
da assembléia de Iavne7. São citadas as três espécies de dízimo a serem
disponibilizados, cada qual, a seu tempo: a) o segundo dízimo recolhido no ano
um, dois, quatro e cinco, levado para ser consumido em Jerusalém (v.c); b) o
dízimo do levita, conhecido como o primeiro dízimo (v.d); c) o dízimo dos pobres
(v.f).
MSh acena para a tarde do último dia festivo como momento de fazer a
confissão de fé. Ou seja, de declarar diante da presença de Deus a inocência. Esse
dia é chamado de ‫יו۟ם טו۟ב‬, a saber, a tarde do último dia da grande festividade que
é “dia da Páscoa” (v.a), com a duração de sete dias. O conteúdo apresentado tem
como eixo Dt 26,13. Em torno da frase: “separei o que é consagrado da minha
casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva,
conforme teu mandamento, que me mandaste. Não transgredi nenhum dos teus
mandamentos e não esqueci” é construído MSh 5,10, que procura enquadrar neste
texto litúrgico, os três tipos de dízimos que eram acompanhados pela recitação de
Dt 26,13.
Outro detalhe similar, na aproximação dos textos, são as repetições da
trilogia social. Ambas apresentam referências à trilogia social. Em MSh ocorre
uma separação. Ao descrever a entrega do dizimo primeiro, destinado ao levita, a
frase cita somente a primeira parte na narrativa. Isto é: “o dei para o levita”, pois
ressalva o dízimo levita. Ao disponibilizar o dízimo “para o estrangeiro, para o
órfão e para a viúva”, a narrativa chama a atenção para o fato de que está se
referindo ao dízimo disponibilizado para a garantia de sustentabilidade dos
pobres. Aliás, a ressalva está no próprio texto na afirmação: ‫שׂר ָענִי‬
ַ ‫ ַמ ְע‬, “dízimo dos
pobres”. A esses foi dada a liberdade da respiga e de colher os frutos esquecidos
no campo.
No tocante às diferenças, Dt 26,13 carece de exatidão. Por ser uma
máxima,
provoca certa imprecisão quando comparado à Mishná. Dt afirma:
“Quando tiveres terminado de separar toda a décima parte” (v.12). MS precisa a
época de oferecer os dízimos ao afirmar: “Na tarde do último dia faz a confissão”
7
Ao analisar as etapas redacionais impostas à Mishná, Manns argumenta que “as mishnaiot que
são ligadas aos versos da Escritura são antigas”. Ele toma como exemplo o texto em análise: MSh
5,10. Cf. MANNS, F., Pour lire la Mishna, p. 152.
191
(v.a). A trilogia social é citada duas vezes, por completo, em Dt (vv. 12, 13) e não
é dividida em referências como acontece em MSh (vv.
d+f
). Dt não faz nenhuma
lembrança à obrigatoriedade de disponibilizar o ‫ ַח ָלּה‬, “massa”, dom dos fiéis
entregue aos sacerdotes, como faz MSh (v.G). Essa espécie de massa de fazer pão
que era ofertada aos sacerdotes, com base na narrativa de Nm 15,20: “Como
primícias da vossa massa separareis um pão; fareis esta separação como aquela
que a fez com a eira”8.
Como em Shebi 7,7 a narrativa de MSh 5,10, embora sendo muito antiga,
assemelhando-se em muito ao texto do Dt, guarda ligeiras diferenças e acentua,
embora partindo de um texto com fortes aspectos cúlticos, a obrigatoriedade para
com todos os tipos de dízimos. Nota-se um esforço da comunidade religiosa em
aproximar ao máximo, sua experiência religiosa com os preceitos das Escrituras.
5.1.3.
O dízimo lembrado nas ocasiões festivas
Dt 26,12-15
12
Quando tiveres terminado de separar
toda a décima parte de tua colheita,
no terceiro ano, a décima parte,
darás para o levita, para o estrangeiro,
para o órfão e para a viúva.
Eles comerão, em tuas portas, fartar-seão.
Meg 2,5
a
Todo dia é apto para a leitura do rolo,
para recitar o hino de louvor,
c
para o toque do shofar,
d
para pegar o ramo,
e
para a oração adicional,
f
para os sacrifícios adicionais,
g
para a confissão no sacrifício dos
touros,
b
13
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
separei o que é consagrado da minha hpara a confissão com motivo do
casa e também o dei para o levita, para dízimo9,
o
estrangeiro, para o órfão e para a ipara a confissão no Dia da Expiação,
j
viúva,
para a imposição das mãos
k
conforme teu mandamento, que me para sacrificar,
l
mandaste.
para agitar,
m
Não transgredi nenhum dos teus para colher um punhado,
n
mandamentos
para queimar o incenso,
o
e não esqueci.
para torcer a cabeça das aves,
8
Ao comentar o tratado Massa (‫) ַח ָלּה‬, Del Valle acena à atualidade dessa prática. Ainda hoje se
separa a quantia do ‫ ַח ָלּה‬, “massa”, mas por não haver quem seja digno de comê-la, tal quantia é
queimada. Cf. DEL VALLE, La Misna, p. 185.
9
Cf. Dt 26,13-15.
192
14
Não comi disto [dízimo] no meu luto, ppara receber o sangue,
e não queimei dele [dízimo] em estado qpara a aspersão,
r
de impureza,
para fornecer a água à suspeita
e não dei dele [dízimo] para um morto. adúltera, spara desnucar o garrote
t
Eu ouvi a voz de YHWH, meu Deus.
para purificar o leproso.
Eu fiz conforme me mandaste.
15
Dirige teu olhar desde tua santa
morada
dos céus e abençoa o teu povo,
Israel, e o solo que deste para nós.
conforme prestaste juramento para
nossos pais,
terra que destila leite e mel
A ‫“ ַחג פּוּ ִרים‬Festa de Purim” sustenta a referência bíblica. Nela se encontra
motivação para existir, seguindo os registros do livro de Ester10. São nas ocasiões
festivas que o povo expressa suas mais íntimas e profundas convicções sociais e
religiosas. A festa começou a ser celebrada no dia 14 do mês de Adar; somente no
século II d.C., após receber um tratado na redação da Mishná, invocando a vitória
dos hebreus, sobre os inimigos persas e, como Deus pode manifestar sua presença
diante dos revezes da vida11. No tempo dos Amoneus a festa era conhecida como
“o dia de Mardoqueu” (2Mc 15,36).
A experiência da diáspora, acelerada pela guerra contra as tropas romanas
(66-73), pôs em risco a perda total das tradições sapienciais e religiosas da
comunidade. A devastação final viria, seis décadas mais tarde, com o fracasso do
levante liderado por Bar Kochba (132-135). Essa última experiência, bélica
arruinou profundamente toda a região da Judéia. Os lastros do fracasso estão na
destruição da população, no desaparecimento de grandes escolas rabínicas e na
edificação do templo em louvor a Júpiter Capitolino, na antiga cidade divina
Jerusalém12. Tais referências históricas favorecem a compreensão do estilo
redacional presente em Meg 2,5. Ocorre um aspecto diretivo no uso dos verbos no
infinitivo que relembra inúmeras atividades sociais e religiosas: Festa do Ano
Novo (v.c), Festa dos Tabernáculos (v.d), os ritos adicionais pela ocasião dos
sábados festivos (v.c), ritos de purificação dos sacerdotes e do povo (v.g), ritos de
remissão dos pecados (v.s). As citações encontram fundamentos nos textos
10
Est 9,20-28.
Cf. Encyclopaedia Judaica, V. XIII, pp. 1390-1391.
12
Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel, pp. 295-303.
11
193
bíblicos, e ao retomá-las a Mishná lança as bases fundamentais para a vida social
da comunidade judaíta.
Os mestres rabinos crêem que há somente um meio para agradar a Deus:
conhecê-lo. Ensinar era uma obrigação dos sábios. Para isso são indispensáveis o
estudo e as obras de caridade, como acenam de Miranda e Malca:
“No seio do povo permanentemente tentado pelo politeísmo, o grande
mérito dos fariseus, por sua ação educativa e seus exemplos pessoais, foi manter
o povo numa severa fidelidade ao Deus único. Esse sistema educacional fez com
que o povo judeu tivesse um nível religioso e moral bem mais elevado do que o
das populações vizinhas”13.
A similaridade com o texto de Dt 26,12-15 poderia ser nula, se não fosse a
inclusão da frase “para a confissão com motivo do dízimo” (cf. Meg 2,5h). Com
exceção dessa frase, os dois textos correm em direção antagônicas. As inúmeras
festas e orações elencadas em seus próprios tempos, não deixam de ser uma
novidade expressa pelos sábios. Trata-se de um convite “lembrete” diante de um
círculo litúrgico sobrecarregado de símbolos e eventos.
Por último ocorre a lembrança da confissão do dízimo, citada como uma
obrigatoriedade trivial na vida de um religioso. Vale notar que os redatores da
Mishná embora longe do templo outrora destruído (70 d.C), guardam a memória
de uma prática religiosa fortemente revestida de um gesto social. A oração era
feita no exato momento em que se depositava, ou deliberava a quantia
estabelecida para os pobres. Eis o mérito expresso pela Mishná: a destruição do
templo não serve de álibi para descumprir um mandamento de Deus voltado para
amparo dos pobres.
5.1.4.
A confissão do dízimo abolida pelo Sumo Sacerdote
Dt 26,13
Sot 9,10
13
Dirás diante de YHWH, teu Deus:
separei o que é consagrado da minha
casa
e também o dei para o levita, para o
estrangeiro, para o órfão e para a
viúva,
13
a
O Sumo Sacerdote Yojanán
DE MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Os sábios fariseus, p92.
194
conforme teu mandamento, que me
b
mandaste.
aboliu a confissão do dízimo14.
Não transgredi nenhum dos teus
c
mandamentos
Também acabou com aqueles que
e não esqueci.
tinham da missão de despertar e de
golpear.
e
Em seus dias bateu o martelo em
f
Jerusalém.
g
Em seu tempo, não havia necessidade
de hperguntar (se um fruto) era dízimo
i
duvidoso.
O que facilita a comparação entre as duas narrativas é a nítida referência à
oração “separei o que é consagrado da minha casa e também o dei para o levita,
para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva, conforme teu mandamento, que me
mandaste”, baseada em Dt 26,13, proferida no momento de entrega do dízimo,
como estabelecia a lei. A recitação servia como uma espécie de “atestado de boa
procedência” do dízimo oferecido.
Conheciam-se prescrições para se evitar transações com produtos sobre os
quais pesa a suspeita do dízimo duvidoso. Oportuna a referência à descrição
encontrada no livro de Tobias15, sobre a prática em vigor, em meados do início do
século II a.C. Apesar do aspecto da canonicidade empreendido ao livro, nota-se
um peso forte dado à centralização, em Jerusalém, referente ao dízimo. Tal
observância teria ocorrido logo após a queda do segundo Templo. A quantia,
anteriormente recolhida pelos levitas nas colônias, nos lugares onde se davam as
próprias produções, passa a ser pagável num lugar central: Jerusalém16.
Possivelmente, nem todas as normas tiveram peso de lei pétrea e, por isso,
ao longo dos anos sofreram mudanças ou deixaram de ser praticadas ou se
tornaram insignificantes para a comunidade religiosa. Um exemplo de mudança
na tradição e costume foi a obrigação da prática das atividades impostas por João
14
Cf. Dt 26,13.
Cf. Tb 1,6-8.
16
Cf. SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, São Paulo, Loyola,
1998, pp. 189-190.
15
195
Hircano17 no modo de recolher o dízimo18. A prática de pesquisar sobre o dízimo
duvidoso caiu por terra. Com base nos argumentos de Schmidt, esse preceito
religioso foi suprimido, pois os “principais beneficiários são, de agora em diante,
os sacerdotes e não os levitas”19. Em Sot 9,10 pode-se notar o valor histórico
recolhido pelos sábios num período conturbado na vida social e religiosa em
Jerusalém.
João Hircano exerce o cargo gozando de total independência diante dos
selêucidas, enfraquecidos, sobretudo, após a morte de Antíoco VII, na batalha
contra os partos. Em meio a crises internas, que parecem cada vez mais
incontroláveis, o poderio beligerante selêucida cede, vertiginosamente, sua
influência sobre as terras espalhadas na Judéia, o que acaba facilitando, ainda
mais, os planos expansionistas colocados em marcha por Hircano20. Registram-se
a formação de um exército profissional, frentes de batalhas nas fronteiras de
Mádaba, na Iduméia, em Siquém e a destruição do templo de Garizim, em
meados do ano 108 a.C. A fragilidade dos reinos helenistas do leste possibilitam
17
Há suspeitas sobre a identidade do personagem citado pela Mishná, em Sot 9,10. Não são
poucos os que associam o Sumo Sacerdote Yohanan à dinastia dos Asmoneus. Matatias, filho de
João, filho de Simão, sacerdote da linhagem de Joiarib” teria dado início à revolta contra a
profanação do Templo, em 166 a.C., pelos helenistas; o que, segundo Roth, seria impossível, pois
ambos não chegaram ao posto de Sumo Sacerdote. Outro possível personagem pretendente ao
cargo seria o Sumo Sacerdote Yohanan, citado em Ne 12,22-23. Mas esse teria vivido em meados
de 410 a 370 a.C. A figura, historicamente mais próxima, ao personagem em questão, seria
mesmo um outro membro da família dos Asmoneus chamado João Hircano. Esse sim, teria
ocupado o cargo máximo na linhagem sacerdotal, entre os anos 135 a 104 a.C. Cf. ROTH, R.
Simchah,
DissertaçãoSotah,
9,
10.
Disponível
em:
<http://www.bmn.org.il/shiurim/sotah/sot105.html>. Acesso em 18 de mar. 2009.
18
Sobre os deveres de culto e exigências sociais assegurada ao Sumo Sacerdote, oportuna as
observações elencadas por Jeremias. Ao Sumo Sacerdote pesava uma representação de “santidade
eterna”, ainda que pese denúncias de usurpação no cargo. Cf. JEREMIAS, J., Jerusalém no tempo
de Jesus: pesquisas de história econômico-social no período neotestamentário, São Paulo,
Paulinas, 1969, pp. 208-223.
19
SCHMIDT, F., O Pensamento do Templo: de Jerusalém a Qumran, p. 191. Esse, por sua vez,
recorre às informações listadas por Flávio Josefo que, com base num edito de Júlio Cesar, acena
que “[Os judeus] pagarão a Hircano e a seus descendentes o dízimo que pagaram a seus
antepassados”. A reforma imposta por Hircano nada mais objetivava que o acúmulo e monopólio
total dos dízimos em mãos dos sacerdotes, inutilizando, para tal controle, qualquer investigação
sobre os dízimos recolhidos.
20
Cf. GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor
Herzl até os nossos dias, São Paulo, Teológica/Loyola, 2005, p. 269. Não são poucos os
historiadores que sublinham a atmosfera marcada por um saudosismo de cunho nacionalista sobre
a qual as grandes epopéias davídicas e salomônicas devem ser reinventadas por meio do
expansionismo posto em prática pela realeza judaica da época. Cf. NOTH, M., Histoire D’Israël,
Paris, Payot, 1970, pp. 390-392; SCHIMIDT, F., O pensamento do Templo: de Jerusalém a
Qumran, p. 187.
196
uma certa prosperidade econômica na Judéia21. O ponto alto será a destruição da
antiga capital Samaria. A governabilidade de Hircano é fortemente marcada por
um estilo helênico de governar, o que irá atrair correntes oposicionistas lideradas
pelo grupo dos fariseus, conhecido junto às camadas populares de ‫ אָח‬- irmão ou
companheiro - por serem em sua maioria doutores da Lei.
“O farisaísmo, com sua doutrina fundamentada na tradição oral, que tinha
a mesma importância que a lei escrita, conseguiu abrir-se criticamente a
novas respostas possíveis a perguntas que tinham se tornado atuais. Numa
época em que os vínculos coletivos já não sustentavam nem abrigavam de
modo natural a pessoa individual e o indivíduo tinha começado a
perguntar de modo individual pela justiça em um mundo cheio de
injustiça, perversidades e derramamento de sangue, ainda mais sob a
impressão das perseguições contra as pessoas fiéis à lei, também o
farisaísmo integrou a doutrina da ressurreição dos mortos e da
recompensa pós-morte, da alma que pode ser castigada ou recompensada
após a morte”22.
O governo de João Hircano tende favoravelmente ao grupo religioso dos
saduceus que se tornaram absolutos no controle das ações governamentais e
administração das atividades sócio-religiosas envolvendo-se não somente junto ao
Templo de Jerusalém, mas nas ações e controle do Sinédrio. Eis a possibilidade de
entender a anulação do rito sobre a pureza dos dízimos oferecidos, imposta por
Hircano que, atrelado a um grupo majoritário, representado pelos saduceus,
imprime aos hábitos religiosos um estilo altamente helenístico.
A fragilidade dos governos que se sucedem na Judéia pode ser percebida
após a morte de Hircano, em 104 a.C. Seu filho Aristóbulo sobe ao trono, mas
tendo na retaguarda um famigerado e fratricídio golpe de estado, impondo à
morte, por meio de cárcere e fome, seus irmãos e sua própria mãe, esta, sucessora
legítima ao trono, além de dar continuidade às políticas beligerantes de Hircano.
Embora tenha seu governo vigorado apenas um ano, foi tempo suficiente para
impor uma campanha contra Ituréia do Norte, e chega ao ponto de obrigar toda a
população a praticar a religião judaica, impondo o rito da circuncisão. A política
expansionista somada ao estilo helenista empreendida por Alexandre Janeu (10376 a.C.), como sucessor de Aristóbulo, segue em ritmo acelerado, ao longo do
primeiro século a.C. Uma guerra civil nos anos 96-95 a.C. não tardará a surgir,
21
GUNNEWEG, A. H. J., História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl
até os nossos dias,p. 270.
22
Ibidem, p. 277.
197
resultando na morte de mais de 800 pessoas ligadas ao partido dos fariseus. Essa
guerra foi responsável pelo total enfraquecimento cultural e social da comunidade
religiosa e terá seu final somente com o surgimento da nova política internacional
adotada por Pompeu, que se impõe como autoridade na Síria e Judéia.
Crê-se que tais aspectos históricos facilitam compreender a decisão
tomada pelos sábios, expressa em Sot 9,1. A comparação entre as duas narrativas
se justifica somente na medida em que Dt 23,13 oferece sustentação à narrativa
apresentada pela Mishná. O texto bíblico deixa de ser recitado mediante o ato da
entrega do dízimo que caíra em desuso havia mais de três séculos, e como era
benéfico aos sacerdotes do templo de Jerusalém, não havia motivo para mantê-lo,
uma vez que a primazia farisaica no final do século II era unânime. Os sábios
buscam, sim, coerência frente à respectiva norma bíblica.
5.2.
O dever de garantir aos pobres o direito da respiga
Na época em que se faz a colheita, o proprietário é obrigado a
disponibilizar os cantos da propriedade para serem colhidos pelos pobres. Esse
espaço, juntamente com os produtos do campo que se encontram sobre ele, é
conhecido como Pea. Uma prática social voltada à justiça no mundo da
agricultura23. A Torá não chega a estipular a quantia mínima, mas os rabinos
determinam o equivalente a um sexagésimo de todo o produto existente no
campo, como valor mínimo a ser disponibilizado no campo para que os pobres
encontrem porções que lhes possam garantir subsistência.
5.2.1.
O recolhimento do Pea não é ocasião de roubar o proprietário
Dt 24,19-21
19
Pea 4,3
Quando colheres a tua colheita no teu
a
campo e esqueceres um feixe no campo
b
não voltarás para pegá-lo.
c
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
d
23
Se alguém recolhe algo (dos frutos do
preceito) do limite (de teu campo)
e o jogar com os demais,
já não tem parte nela.
Cf. SPITZER, J., Peʿah: os cantos dos nossos campos. Disponível em:
<http://www.myjewishlearning.com/practices/Ethics/Tzedakah_Charity/Requirements/The_Corne
rs_of_Our_Fields.shtml>. Acessado em: 06 abr. 2009.
198
viúva será.
e
Deste modo, te abençoará YHWH, teu
f
Deus, em toda obra de tuas mãos.
g
está obrigado a tirá-lo dali.
20
h
O mesmo vale
Quando varejares tua oliveira,
Porém se jogar-se sobre eles
e estender seu manto,
não repassarás [os ramos que ficaram]
i
atrás de ti.
esquecido.
para a rebusca e para o feixe
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
viúva serão.
21
Quando colheres a tua vinha
não farás rebuscar [a vinha que ficou]
atrás de ti.
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
viúva será.
A ênfase na comparação entre Pea 4,3 e Dt 24,19-21 encontra seu motivo
no uso dos verbos ‫“ ָק ַצר‬recolher” (cf. Dt 24,19, Pea 4,3a) e o gesto adotado diante
de alguém que venha a esquecer um determinado ‫שּדֶ ה‬
ָ ‫“ ע ֹמֶ ר ַבּ‬feixe no campo”,
presente em ambos os textos (Dt 24,19, Pea 4,3i).
Enquanto Dt 24,19-21 indica para a obrigatoriedade de disponibilizar os
produtos existentes nos cantos do campo: “quando varejares tua oliveira, não
repassarás [os ramos que ficaram] atrás de ti” (v. 20), a Mishná condena o mau
uso da lei feita por grupos de pobres no momento de respigar produtos. A ocasião,
longe de proporcionar a igualdade, tornou-se ocasião de crime cometido contra o
proprietário: “Se alguém recolhe algo (dos frutos do preceito) do limite (de teu
campo) e o jogar com os demais já não tem parte nele” (a
– d
). É nítido o aceno
dado pela Mishná contra as fraudes cometidas contra o proprietário pela ocasião
da respiga e do feixe esquecido.
A Torá acena a um gesto de justiça e ocasião
dos pobres encontrarem meios para sobreviverem, e Pea alerta a “pessoa para não
roubar dos proprietários” 24.
24
Cf. Ibidem.
199
5.2.2.
A radicalidade da lei do “não voltar atrás”
Não é por mero acaso que a palavra ‫“ שכחה‬feixe esquecido”25, é seis vezes
citada pela M. Pea (g,i,n,o,t,x). Trata-se de saber o que será disponibilizado aos
pobres. A norma presente em Pea 6,4 encontra seu fundamento em Dt 24,19, ao
utilizar o termo hd<F'B; rm[o T'x.k;v'w> “e esqueceres um feixe no campo” (v. 19). A
quantia esquecida é o critério adotado para dispor ou não parte da colheita.
Dt 24,19
Pea 6,4
a
Para os extremos das linhas vale o
b
seguinte: se começam dois (a recolher
os cfeixes) pelo meio da linha, um se
Quando
volta ao dnorte e outro se volta ao sul,
colheres a tua colheita no teu campo
esquecendo e(alguns feixes) à frente e
e esqueceres um feixe no campo
atrás deles,
não voltarás para pegá-lo.
f
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
g
viúva será.
h
Deste modo,
são iconsiderados como tal.
os que caem diante deles são
considerados como feixes esquecidos,
a não ser que caem detrás deles não
te abençoará YHWH, teu Deus, em
toda obra de tuas mãos.
j
Se uma pessoa só começa pelo extremo
k
da linha e esquece (alguns feixes) que
l
estavam, uns adiante e outros detrás
dele,
m
n
os que estão adiante dele não se
consideram como feixes esquecidos,
o
porém os que estão atrás, sim,
p
posto que a este se aplica: não voltarás
q
atrás26.
r
Esta é a regra geral: a tudo o que se
pode saplicar o não voltarás atrás, é
25
Um conceito técnico no universo da legislação. Seguindo o preceito de Dt 24,19, a
disponibilização do “feixe esquecido” é compreendido como um espécie de presente
disponibilizado aos pobres. Cf. STEINSALTZ, A., The Talmud:A Reference Guide, p. 266.
26
Cf. Dt 24,19.
200
t
considerado como feixe esquecido,
u
a não ser que não se possa aplicar a ele
v
não voltarás atrás não se considera
como xfeixe esquecido.
Percebe-se como os sábios buscaram na Torá uma equação para poder
estabelecer quando algo faz ou não parte da quantia, obrigatoriamente,
disponibilizada aos pobres. Prevalece o argumento maior proveniente da Torá. Em
outras palavras, o trabalhador, no momento em que recolhe os feixes previamente
amontoados em fileiras, não deve “voltar para pegá-los” (v. 19). Essa quantia –
esquecida – já é para ser juntada pelos pobres. Prevalece a cláusula da lei: ‫ֹלא תָ שׁוּב‬
‫“ ֽל ַק ְחתּוֹ‬não voltes para pegá-lo”.
5.2.3.
Em qualquer situação os pobres serão lembrados
Os cachos de uvas reconhecidos como ‫( עוֹלֵלוֹת‬defeituosos, cachos falhos,
mal formados) devem ser disponibilizados para os pobres. Trata-se de um ‫ַמתְּ נוֹת‬
‫“ ֲענִי ִים‬presentes aos pobres”27. Porém, no caso apresentado em Pea 7,7, ficaria o
proprietário em total prejuízo ao ver toda produção disponibilizada aos pobres? A
Mishná impõe tal questionamento no desejo de impossibilitar uma possível
violação dos direitos de respiga garantido aos pobres.
Dt 24,21
Pea 7,7
a
Se uma vinha tem somente cachos de
b
rebusca, segundo R. Eliezer pertencem
Quando
ao cproprietário;
colheres a tua vinha
d
não farás rebuscar [a vinha que ficou]
pertencem eaos pobres.
atrás de ti.
f
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
g
27
entretanto segundo R. Aquiba
R. Eliezer arguiu: “se tu vindimas, não
tens que recolher os cachos da
Era comum separar parte da colheita e entregá-la aos pobres, como gesto de caridade,
cumprindo preceitos da Torá, comumente chamados de: ‫“ מַ עְשַׂ ר ָענִי‬dízimo do pobre”, ‫לֶקֶ ט‬
“respiga”, ‫“ פֵּאָה‬canto do campo, limite da plantação”, ‫“ ֶפּ ֶרט‬simples uvas caídas por terra durante a
colheita”, ‫“ עו֯ לֵלו֯ ת‬pequenos cachos de uvas”. Cf. STEINSALTZ, R, A., The Talmud: the Steinsaltz
edition, p. 225.
201
viúva será.
rebusca”, (Dt 24,21).
h
Porém se não há vindimas, como
haverá icachos para a rebusca?
j
Replicou R. Aquiba: “não farás a
rebusca kde tua vinha”, (Lv 19,10).
l
inclusive quando toda ela não tenha
mais mque cachos de rebusca.
n
Se é assim, por que está
escrito:“Quando ocolheres a tua vinha
não farás rebusca”?
p
(Para mostrar que) os pobres não tem
q
direito aos cachos da rebusca
r
antes da vindima.
5.2.4.
Não há meios de revogar o direito da Torá
O versículo apresenta três cláusulas em torno de situações em que pesam o
conceito de conam, divididas nos parágrafos: a)
a–e
, b)
f– h
, c)
i– l
. Somente no
primeiro, a – e, ocorre a nítida referência ao termo ‫שׁ ְכ ָחה‬
ִ “fruto esquecido”. Nota-se
que a narrativa de Ned 11,3 leva às últimas conseqüências o caráter defensivo dos
pobres, ao garantir à esposa o direito de respigar no campo em busca dos produtos
esquecidos. Busca-se solucionar um litígio entre as partes: mulher e marido.
Dt 24,19
Ned 11,3
Quando
a
colheres a tua colheita no teu campo
b
e esqueceres um feixe no campo
lo,
não voltarás para pegá-lo.
c
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
d
viúva será.
de eteu campo.
Deste modo,
f
te abençoará YHWH, teu Deus, em
levitas gque se beneficiam de mim” se o
toda obra de tuas mãos.
colhem hpela força.
28
Cf. Dt 24,19.
(Se diz): “conam se tiro proveito
de qualquer pessoa”, não pode anulá-
ainda que, ela possa beneficiar-se da
respiga, do fruto esquecido28 e da rua
(Se diz): “conam os sacerdotes e
202
i
(Porém se diz: “conam”)
estes
j
sacerdotes e levitas que se beneficiam
de mim, koutros o podem colher (os
frutos ldevidos).
Se a mulher diz ao seu marido: “Eu juro – conam – que não retirarei
nenhum benefício da população”. Ela declara sua disposição em não receber
nenhum bem ou quantia pertencente ao marido, pois ele não tem poder de anular
a promessa feita pela mulher, a ela cabe, segundo os princípios da Torá, o direito
de ser sustentada e beneficiar os produtos do campo em determinadas épocas. A
Guemará, ao comentar Ned 11,3, realça o direito da mulher beneficiar-se dos bens
do marido, uma vez que ela já não se encontra incluída nos pertences ou
propriedades do marido29. Ao marido cabe aceitar, pois é impossível anular um
preceito proveniente da Torá.
Essa radicalidade pode ser conferida nas afirmações feitas em benefício da
mulher: ‫“ ויכולה היא ליהנות בלקט ובשכחה ובפיאהת‬ela possa beneficiar-se da respiga,
do fruto esquecido e da rua de teu campo”. A mulher, na qualidade de divorciada e não necessariamente na condição social de viúva - passa a ter amplos poderes
de entrar e recolher a parte que lhe cabe, do campo, na época da respiga, dos
frutos esquecidos, além de beneficiar-se da pe’ah. Na época da Mishná as
cláusulas se referem aos bens ou mercadorias pertencentes ao marido e não
obrigatoriamente a um campo com plantações diversas.
Não há maiores semelhanças entre as narrativas, mas nota-se que a
prerrogativa defendendo o estrangeiro, órfão e viúva, em Dt 24,19, é agora
compreendida na pessoa da mulher divorciada.
5.2.5.
Esforços voltados para a manutenção da paz
Considerando os esforços voltados para a superação das desigualdades
sociais e a harmonia social entre diferentes grupos, a narrativa presente em M.
Gittim 5,8 demonstra, entre inúmeros hábitos marcantes na vida religiosa e social,
um grau de sensibilidade social, ao situar os direitos dos pobres, como meio para
29
Cf. GUEMARA, encontrado em <http://www.come-and-hear.com/nedarim/nedarim 83.html>.
Acessado em: 10 de Abr. 2009.
203
conviverem em paz. Verifica-se que as três práticas, garantidas na Torá: respiga,
recolhimento dos produtos esquecidos e limite do campo, são garantias dadas aos
pobres não judaítas (l. u-y).
Dt 24,19-21
Git 5,8
Quando
a
colheres a tua colheita no teu campo
b
e esqueceres um feixe no campo
c
não voltarás para pegá-lo.
d
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
e
viúva será.
f
Deste modo,
g
te abençoará YHWH, teu Deus, em
h
toda obra de tuas mãos.
i
Quando
surdo-jmudo, um idiota ou um menor,
varejares tua oliveira,
se aplica a klei do roubo pelo bem da
não repassarás [os ramos que ficaram]
concórdia.
atrás de ti.
l
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
formal.
viúva serão.
m
Quando
n
colheres a tua vinha
lei odo roubo pelo bem da concórdia.
não farás rebuscar [a vinha que ficou]
p
R. Iossef afirma: trata-se de roubo
atrás de ti.
q
formal. Se um pobre vareja a copa de
Para o estrangeiro, para o órfão e para a
um roliveiral, a todo o que está debaixo
viúva será.
(da sárvore) se lhe aplica a lei do roubo
As seguintes coisas foram ditas para
favorecer a concórdia. O sacerdote lê
primeiro, depois dele o levita e depois
dele um israelita leigo para favorecer a
concórdia. O erub seja feito na casa
antiga para o bem da concórdia.
A cisterna que está próxima a um canal
se enche primeiro, para o bem da
concórdia. Ao encontrado por um
R. Iossef afirma: trata-se de roubo
Ao preso na rede (o alçapão), sejam
animais, aves, peixes, se lhes aplica a
pelo tbem da paz. R. Iossef afirma: se
trata de uum roubo formal. Não há de
proibir aos vpobres não israelitas
recolher os frutos da xrespiga, do
esquecido30 e do limite de teu ycampo
para o bem da paz.
30
Cf. Dt 24,19s.
204
Em Dt 24,19-21 os três momentos ligados ao tempo da colheita: 1) “a tua
colheita no teu campo” (v.19); 2) “varejares tua oliveira” (v.20); 3) “colheres a tua
vinha” (v.21) direcionam-se para estarem disponíveis ao estrangeiro, órfão e viúva
(vv. 19, 20 e 21) dos círculos judaítas, embora o texto não faça nenhuma
exigência neste sentido. Gittim, pelo contrário, especifica o grupo dos pobres e,
ainda, qualificando-os como ‫“ עניי גויים‬pobres não israelitas, pobres estrangeiros”.
Para os sábios está em jogo não aspectos beligerantes na convivência social mas o
real interesse em uma convivência pacífica entre os pobres que convivem numa
mesma realidade31. A busca por uma harmonia comunitária permeia todo o
versículo. Não é em vão a definição de roubo estabelecida por R. Iossef32.
Entende-se por roubo formal a posse ilegítima dos frutos colhidos por um pobre e
sorrateiramente apropriados por um outro trabalhador. A qualificação de “roubo
formal” busca manter as boas relações comunitárias objetivando a paz, que é vista
como importante para o grupo social dos pobres.
5.2.6.
Relações comerciais sem usuras
A proibição de violar o direito em transações comerciais é um princípio
apodíctico, determinante na narrativa de Dt 24,17 e em outras partes do livro33.
Diante dessa apresentação de caráter irrefutável, a M. BM 9,13 não faz outra
coisa que não seja contextualizar, com gestos do dia a dia, tais máximas34. BM
não somente faz inúmeras exemplificações situando a aplicação das leis, como
amplia a defesa em relação à viúva. A amplitude é por demais realçada na
especificação feita em torno do sujeito ‫“ אלמנה‬viúva”. A ‫ בין‬,‫אלמנה בין שהיא ענייה‬
‫“ שהיא עשירה‬viúva, seja pobre ou rica” recebe a defesa da lei. BM defende seus
bens como algo inalienável.
Dt 24, 17
BM 9,13
a
31
Se alguém faz empréstimo a seu
Salutar a perspectiva apontada pela Guemara ao comentar Gittin, 5,8: “nós apoiamos os pobres
pagãos, juntamente com os pobres de Israel. Visitar os doentes do pagão, juntamente com os
doentes de Israel, e enterrar os pobres do pagão, juntamente com os mortos de Israel, seguindo o
interesse pela paz”. Disponível em: <http://www.come-and-hear.com/gittin/gittin_61.html>.
Acesso em 11 de Abr. 2009.
32
Conferir nota sobre a atuação de R. Iossef no § 3.5.2.
33
Cf. Dt 17,1.11.15; 18,1.9; 19,14; 22,1.4; 23,17; 26,4.
34
Conferir a análise de BM 9,13 no § 3.6.1.
205
próximo,
b
c
não tomará dele nenhum penhor sem o
consentimento do tribunal, nem entrará
d
em sua casa para pegar a prenda, uma
vez fque está escrito: permanecerá
fora35. (Dt g24,11). Se (o devedor) tiver
dois hutensílios, (o credor) poderá pegar
um, iporém deixará o outro. Deve
devolver o jcolchão a noite e o arado ao
dia. Se morre k(o devedor), (o credor)
não tem que ldevolvê-lo aos herdeiros.
Rabán Simeão mben Gamaliel ensina:
inclusive mesmo nao devedor não tem
que devolvê-lo antes ode trinta dias. A
partir de trinta dias ppoderá vendê-lo
com consentimento do rtribunal. De
Não farás violar o direito do estrangeiro uma viúva, seja pobre
[do] órfão
s
e não tomará como penhor a roupa da
t
viúva.
u
ou rica, não se há de pegar nada em
penhor,porque está escrito: não tomarás
em penhor as roupas da viúva36 (Dt
v
24,17). Se alguém toma como penhor
um wmoinho, quebrando um preceito
x
negativo, se torna culpado por razão de
y
pegar dois objetos, uma vez que está
z
escrito: não se tomará em penhor a
pedra a1inferior ou superior do
moinho.(Dt 24,6)
b1
c1
Não disseram só a pedra inferior e
superior do moinho, se não todo
objeto d1com o qual se prepara a
comida,
e1
35
36
Cf. Dt 24,11.
Cf. Dt 24,17
uma vez que está escrito:
206
f1
porque seria pegar em prenda uma
vida.
g1
(Dt 24,6).
Há sintonia em defender a causa da viúva, considerando essa máxima
bíblica, entre os rabinos37. Pois uma viúva não pode correr o risco de ficar em
descrédito diante de seus vizinhos. Em tempos em que ela ocupa a administração
da casa, a viúva era obrigada a comparecer diante do tribunal e expor os meios
disponíveis para manter seus filhos e filhas (BB 9,6).
5.3.
A violação do direito dos pobres
Se a finalidade dos ensinamentos da Torá é colocar a humanidade sob a
aceitação do reino dos céus38, a narrativa de Ab 5,9 se apóia no texto de Dt 14,2829 para acusar o desvio, no ano quarto e no final da festa dos Tabernáculos, do
direito dos pobres de recolher os produtos no campo. Por duas vezes a narrativa se
apóia em Dt 14,28-29. Num primeiro momento denuncia o não cumprimento do
preceito pelo dízimo dos pobres (v. 28), e num segundo momento, o fato de não
disponibilizar os produtos do campo, ao final da festa dos Tabernáculos (vv. 2829). “Tabernáculos” acontecia no final do ano agrícola. A Mishná denuncia que,
já nos tempos tanaíticos, a violação do direito dos pobres não foi considerada.
Dt 14,28-29
Ab 5,9
Ao final de três anos,
a
tu farás tirar a décima parte de toda a
b
tua colheita deste ano
c
e farás disponibilizar nos teus portões.
festa ddos tabernáculos, todos os anos.
Virá o levita,
f
Porque
g
ele não tem parte da herança contigo,
h
37
Em quatro momentos a peste aumenta:
no ano quarto, no ano sétimo,
ao final do ano sétimo e ao final da
No ano quarto
a causa do dízimo39 dos pobres
do ano terceiro;
Cf. FREEDMAN, H., Introduction to Baba Mezi‘a. In: EPSTEIN, I (Ed.), Soncino Babylonian
Talmud.
Disponível
em:
<http://www.come-andhear.com/babamezia/babamezia_103.html#chapter_ix>. Acesso em: 13 de abr. 2009.
38
Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, p.
417.
39
Cf. Dt 14,28
207
o estrangeiro, o órfão e a viúva,
i
que vivem nas tuas vizinhanças
j
e comerão
k
e se satisfarão.
l
Deste modo,
m
te abençoará YHWH, teu Deus
tabernáculos,
em todas as obras que
n
no ano sétimo, a causa do dízimo dos
pobres do ano sexto;
ao final do sétimo ano,
a causa dos produtos do ano sétimo;
ao final da festa anual dos
tuas mãos
realizarão.
a causa do roubo dos dons40
o
dos pobres.
5.4.
Conclusão
Estabelecer uma unidade e, ao mesmo tempo, uma interação com toda a
Torá pode ser uma equação após comparar esses dois universos literários.
Evidentemente, sobre a Torá recai toda a primazia, mas nota-se a liberdade com
que os sábios atualizam a Torá, na certeza de que nela está a vontade e as bases do
reino divino. Os sábios se esforçaram para atualizar os textos bíblicos, pelos quais
eles declaram total submissão, num gesto de profundo amor. Esse esforço impõe
um caráter profundamente místico e realmente martiriológico.
A Mishná realça a forma e a força das ordens divinas. O não cumprimento
de uma norma é sinônimo de ferir o tecido social comunitário, além de desvirtuarse dos projetos divinos. Adonai se identifica com Israel. Eis um ponto crucial na
reflexão empreendida pela tradição judaica, que oferece sentido à comunidade
religiosa. O chamado a ser “nação santa” não é passado, mas existencial, real e
atualizado.
Os sábios debruçaram-se sobre a Torá. O valor dado ao estudo, à
atualização e ao comprometimento com os preceitos divinos, presentes nos textos
do Deuteronômio não encontram outro sentido a não ser o de sempre perpetuar o
encontro com YHWH, isto é, confirmado com atualizações impostas às
comunidades, como é possível perceber na análise dos versículos Ab 5,9, Ned
11,3, Git 5,8. É imposta uma total radicalidade às comunidades para que seu agir
reflita a vontade do Criador. Eis a única maneira de atualizar e viver a aliança
contraída entre YHWH e seu povo eleito.
40
Cf. Dt 14,28-29.
208
6
Conclusão final
A análise deste trabalho insere-se em dois universos literários:
Deuteronômio e Mishná. A leitura foi feita considerando os grupos sociais
estrangeiro, órfão e viúva, identificados como trilogia social. Essa trilogia é
encontrada seis vezes no livro do Dt (10,12-22; 14,28-29; 16,9-12; 24,17-21;
26,12-15; 27,11-26). Verifica-se que, em torno desses grupos, há um determinado
corpo jurídico, normas legais, que implicam determinadas práticas religiosas e
sociais, voltadas para garantir a subsistência daqueles grupos. Há uma espécie de
redoma jurídica capaz de garantir o sucesso e evitar o infortúnio desses grupos no
interior da sociedade. Defendê-los é a expressão da fé e do amor divino. A
insistência na defesa desses grupos sociais foi a motivação primeira desta
pesquisa.
Os contextos sociais e históricos em torno do Dt e da Mishná são distintos.
Embora não se ignorem as diferentes sociedades, que forjavam o surgimento
desses conjuntos literários, é útil apresentar algumas interrogações: qual o
ambiente social que possibilitou o surgimento dos grupos sociais ‫תום‬
ֹ ‫ ָי‬,‫ ֵגר‬,‫? ַא ְל ָמ ָננ‬
Há diferenças conceituais entre a trilogia social formada por essas três categorias
no Dt, e a compreensão do conceito de ‫“ ָע ִני‬pobre, indigente”, “necessitado”1
209
1
e ‫יון‬
ֹ ‫“ ֶא ְב‬pobre, necessitado”2, defendido pela corrente profética do século VIII/VII?
Outro cenário elucidativo acena para à Mishná. Quais eram os grupos sociais que os
autores da Mishná procuraram defender, apoiando suas normas nos textos do Dt? As
camadas pobres, do século II, sob a dominação romana, estão em sintonia com os
grupos sociais desfavorecidos do Dt? Em que medida os hábitos religiosos, como o
pagamento do dízimo, o cumprimento do ano jubilar, perdão das dívidas são realces
na Mishná? Pela ordem, procura-se esclarecer, primeiro, as questões em torno do Dt.
As consequências sociais sentidas num estado beligerante, junto aos
camponeses, após a guerra de 722 a.C. e, mais tarde, com as incursões no território
de Judá, chefiadas por Senaquerib (705-681 a.C.), fornecem relevantes informes na
compreensão do surgimento de leis e práticas dos grupos sociais desfavorecidos. De
Salmanasar III (858-824 a.C.), passando por Teglat-Falasar III (745-727 a.C.), até o
episódio final de 722 a.C., quando ocorre a destruição do reino de Israel, na guerra
imposta por Salmanasar V (726-722 a.C.), as incursões do reino assírio serão
constantes em direção aos estados situados na região sul, sobretudo em direção ao
Egito3. Até meados do ano 663 a.C., quando crises internas e a perda da guerra
contra o Egito, provocam o declínio do império Assírio.
Os grupos ‫ ַא ְל ָמ ָננ‬,‫תום‬
ֹ ‫ ָי‬,‫ ֵגּר‬diferem-se dos grupos sociais defendidos pelo
movimento profético dos séculos VIII e VII. O período áureo da profecia,
inaugurado por Amós, Oséias, Miquéias, Isaías4, depara-se com uma sociedade
agrária surpreendida pelo movimento econômico e militar empreendido pelo governo
de Jeroboão II (783-743 a.C.). O aumento das fronteiras do reino de Israel, em
direção ao norte e ao sul (cf. II Rs 14, 25-27), leva às consequências inevitáveis de
um rápido processo de pauperismo imposto aos homens livres, proprietários de terras
e com heranças garantidas, pois o projeto jeroboânico visava o aprimoramento do
aumento de impostos e o controle das rotas comerciais.
1
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 509.
Cf. Ibidem. p. 22.
3
Não faltaram tentativas de opor-se ao regime imposto pelos reis assírios. As tentativas de insurreição
foram em sua maioria frustrantes. A política mercantil escravagista impôs-se de modo avassalador. Cf.
GARMUS, L., op. cit., p. 13.
4
Sicre realça o exercício da escritura inaugurado pelos profetas do século VIII. Há uma diferença da
época “reformista” representada nas atividades de Débora, Samuel, Elias e Eliseu. Tal corrente, apesar
das denúncias contra os desvios do povo, não propõe o abandono das estruturas. Após Amós e Oséias,
a problemática social é elemento central na crítica dos pecados praticados contra YHWH. Cf. LUIS
SICRE, J., Profetismo em Israel: o profeta, os profetas, a mensagem, Petrópolis, Vozes, 1996, pp.
242-243.
2
210
As instruções catequéticas exaltando a experiência de Israel com a divindade
YHWH (cf. Dt 6,21-23; 26,5b-10), consideram, e, em muito, a saída do Egito,
identificado como terra da escravidão, e a experiência tribal. Tais períodos fornecem
elementos essenciais na elaboração da teologia da terra5. São fatos que marcaram a
origem de Israel e serão utilizados pelos profetas, na apresentação de suas críticas
contra as violações e desvios do direito e da justiça impostos aos ‫“ אֲ נָשִׁים‬homens” que
veem suas situações se agravarem com a destruição do reino do norte, em 722 (cf. Is
11,1-9; Os 12,10. 13,4; Mq 6,3-4).
As descrições de Amós acenam para um cruel sistema de violação dos
direitos dos grupos socialmente desfavorecidos impostos pelos altos proprietários de
terras e atrelados à corte (cf. Am 3,9; 4,1; 5,12; 8,4.6). O panorama nacional, em
meados do ano 760 a.C., demonstra enorme atividade comercial que assegura uma
complexa estrutura econômica, nos mais diversos setores da sociedade palestinense.
Causa maior desse período de expansão acontece entre os anos de 806 a.C., época em
que Assíria surge como grande império, até o ano de 747 a.C., quando sobe ao trono
o grande Teglat-Falasar III (747-727 a.C.)6. Nesse período o reino de Israel não sofre
nenhum infortúnio. A única preocupação da realeza, seja em Judá, seja em Israel, é a
de olhar para seus próprios interesses internos. Está na crítica profética a única
corrente de oposição ao modelo político empreendido por Jeroboão II7.
As profecias defendem o ‫“ ָה ִאיש‬ο homem, ο indivíduo, ο pai, ο nobre, ο
valente”, em seu sentido mais genérico8. Este homem, visto como cidadão e
merecedor de direitos, está se tornando um ‫“ ָע ִני‬pobre, indigente” um ‫יון‬
ֹ ‫“ ֶא ְב‬pobre,
necessitado”. As elites citadinas, os proprietários dos latifúndios e os grandes
comerciantes conseguem acumular, cada vez mais, riquezas por um sistema de
extorsão das famílias camponesas, por meio de saques, empreendidos pela guerra e
5
TCHAPÉ, J. B., “A tomada de posse da terra de Cannaã por Israel no livro do Deuteronômio”. In:
CONCILIUM, n. 320, 2007/2, p. 54. “A terra não se apresenta apenas como um lugar de bênção, de
vida e de prosperidade, É o lugar onde Israel deve fazer a vontade de Deus, o lugar onde o povo é
chamado a pôr em prática as leis e os costumes que Moisés recebeu de Deus (Dt 4,5; 5,31; 6,1; 12,1).
6
O surgimento dos impérios não é novidade na história antiga. No cenário bíblico, Israel deparou-se
pela primeira vez com um poder imperial a partir dos resultados da política imposta por TeglatFalasar III. As guerras são analisadas como uma conquista executada em vários estágios. Cf.
GARMUS, L., O imperialismo: estrutura e dominação. In: RIBLA, n. 3, pp. 7-20.
7
ALBERTZ, R., op. cit., p. 299: “Nestas circunstâncias, os trabalhadores do campo sucumbiram sob a
opressão financeira da classe privilegiada, e se viram inevitavelmente submetidos a uma dependência
total dos detentores do poder econômico, logicamente o empobrecimento de um amplo setor da
população. Os profetas designam a esse grupo com os nomes típicos de “os desvalidos” (dal), “os
pobres” (ʼebyôn), ou “os indigentes” (ʿanaw/ʿaní)”.
8
Cf. ALONSO SCHÖKEL, L., DBH-P, p. 49-50.
211
pelo trabalho forçado, na cidade – na utilização de mão de obra nas grandes
construções públicas - e no campo. Nessa realidade, é possível compreender as
denúncias proféticas (cf. Mq 2,1-5; Is 5,8). Na opinião de Schwantes os homens
livres estão impossibilitados de garantir às futuras gerações o controle de suas terras.
Eis o motivo primário dos oponentes da realeza, representados pelos profetas:
“Podemos, pois, dizer que, no século VIII, em Judá e em Israel, o campesinato é um
fator político, capaz de articular sua insatisfação diante de regimes opressivos, como
o de Jeroboão II, e de decidir sucessões”. As correntes proféticas do século VIII, a de
Amós em especial, não só tem esse contexto como pano de fundo, mas ela mesma é
uma das vozes da gente do campo. A base social e organizada dessa profecia é o
campesinato”9.
O aparecimento dos grupos sociais: ‫ אַ ְל ָמנָה‬,‫ י ָתוֹם‬,‫ ֵגּר‬não se relaciona aos
anúncios condenatórios proferidos pela corrente profética do século VIII. Essa, pela
essência de seu conteúdo, se volta para a defesa do cidadão, do varão em estado de
empobrecimento ou em vias de perder a terra, a herança em decorrência de um
sistema.
O aumento do número de refugiados rumo à região Sul do país, Judá, é
considerável, após 722 a.C10. Juntamente com esse aglomerado de pessoas, migram,
também, as fortes tradições religiosas. No interior desse fluxo migratório rumo ao
estado de Judá, estariam os autores da “escola deuteronomista”, como explica
Römer:
“Os escribas também mantinham os anais, estavam envolvidos na correspondência
diplomática e compilavam leis. Sabemos que também mantinham registros de
acontecimentos memoráveis, por exemplo, de atividades proféticas em palácios ou
textos. Mas sua capacidade de escrever conferia-lhes também certa independência do
rei que, nem sempre, sabia escrever, e, como podemos deduzir de textos egípcios,
podem ter considerado a si mesmo intelectualmente superiores. É claro que os
escribas podiam também escrever por própria iniciativa e tentar, através de seus
escritos, influenciar a política da corte”11.
9
SCHWANTES, M., A terra não pode suportar suas palavras: reflexões e estudo sobre Amós”,
Paulinas, São Paulo, 2004, pp. 98-99. Oportuna a exposição gráfica apresentada por Reimer, ao
analisar as palavras do profeta relacionadas com as dimensões: social/jurídico, religioso,
administrativo. Cf. REIMER, H., “Amós: profeta de juízo e justiça”. In: RIBLA, n. 35/36, Petrópolis,
Vozes, 2000, p. 181.
10
RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária,
Petrópolis, Vozes, 2008, p.73: “O fim do reino do Norte causou importantes mudanças demográficas e
sociais em Judá. Investigações arqueológicas sugerem nitidamente um aumento da população e uma
ampliação da cidade de Jerusalém na segunda metade do século VII, provavelmente após 722”.
11
RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica, história e literária, p.
53. Lamadrid também ensaia ler os acontecimentos do Antigo Israel, à luz da escola deuteromista.
GONZÁLEZ LAMADRID, A., As tradições históricas de Israel: introdução à história do Antigo
Testamento, Petrópolis, Vozes, 1999. pp. 19-24. Os deuteronomistas não se furtam em tecer ao longo
dos importantes fatos históricos suas considerações. Assim se forma o livro do Dt: resultado de um
processo redacional sobre os fatos marcantes da vida religiosa de Israel e Judá. De modo tradicional
212
O entrave político envolvendo o rei Ezequias (727-698 a.C.) e sua fracassada
coalizão de reinos contra a Assíria, desta vez chefiada por Senaquerib (705-681
a.C.), leva a uma situação social alarmante12. Dominada a rebelião, em 701 a.C., Judá
se vê na situação de pagar pesados tributos ao reino assírio (cf. 2Rs 18,14-16), além
de lastimar a destruição de 46 cidades somadas às fortalezas de Laquis e Lebna.
Ezequias permanece no trono mas vê seu reino diminuído, transformado em CidadeEstado, e obrigado a submeter-se à categoria de vassalagem13.
Em meados do ano 605 a.C., sobe ao trono babilônico o príncipe herdeiro
Nabucodonosor. O novo império cresce em direção ao oeste. Após se recuperar de
uma derrota contra os egípcios, marchou pessoalmente contra as muralhas da cidade
de Jerusalém14. No intuito de fortalecer, cada vez mais, o império, sob sua liderança
organizou incursões militares, todas elas bem sucedidas. Em 597 a.C. tomou a cidade
de Jerusalém, contando com um exército formado por caldeus, arameus, moabitas e
amonitas (cf. 2Rs 24,2). Judá terá seu rei Joaquim deportado para Babel, juntamente
com a nobreza de Judá (cf. 2Rs 24,17). A saída dos caldeus deixa para trás um rastro
de destruição e ruína, cuja representação maior espelha-se numa comunidade
aceita-se os capítulos 12-16, sob o reinado de Josias (640-609 a.C.). O Deuteronômio josiânico não
passaria de um conjunto de leis. A esse conjunto de leis agrupam-se relatos relacionados ao decálogo
(Dt 5) e à chegada na terra (Dt 1-3), mais o relato da experiência do Sinai (Dt 9-10). Após o reinado
de Josias o Dt é compreendido como leis numa história, que comentam o Decálogo. No exílio
babilônico é acrescentado Dt 16-18, dando enfoque às instituições e constituindo um código de leis.
Os capítulos 19-25 são pós-exílicos. A eles são agrupados os capítulos 6,11 – adesão aos
mandamentos – e o discurso sobre o valor da lei: Dt 4. Época em que o Dt passa a ser compreendido
como o livro das leis de Moisés. Após o ano de 540, sob o domínio dos persas, o livro passa por um
processo editorial, formando o texto hoje conhecido. Cf. CARRIÈRE, J-M., O livro do Deuteronômio,
op. cit., pp. 32-35. Ainda considerando os importantes fatos, Kaefer acena outra possível formação do
Dt. Cf. ADEMAR KAEFER, J., Un pueblo libre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 en la
composición del Pentateuco, op. cit., pp. 238-242. Um exemplo entre acontecimento e relato é
oferecido por Römer. Cf. RÖMER, T., A chamada história deuteronomista: introdução sociológica,
histórica e literária, op. cit., p158-159.
12
Cf. NAKANOSE, S., Uma história para contar:a Páscoa d Josias: metodologia do Antigo
Testamento a partir de 2Rs 22,1-23,30, São Paulo, Paulinas, 2000, p. 155; ALBERTZ, R., História de
la Religión de Israel em tempos del Antigo Testamento, Simancas, Valladolid, 1999, p. 307. Os
argumentos sobre este período são semelhantes entre os autores.
13
A época ecoa nas profecias de Is 1,7-9; Ez 16,27.
14
Considerando as narrativas históricas e proféticas, Ludovico informa, passo a passo, as diversas
fases da presença dos caldeus nas terras de Judá, bem como os movimentos insurgentes contra a
política avassaladora empreendida no reino de Judá. Cf. GARMUS, L., “A comunidade de Israel em
Crise: o exílio da Babilônica”. In: EsBi, Petrópolis, Vozes, 1987, pp. 23-37. A partir da presença
babilônica que ocupa um cenário de mais de quarenta anos, a história das comunidades religiosas de
Judá ocupam diferentes cenários geográficos, segundo a análise de Gunneweg. Existe um grupo que
fica em Judá, outro parte é assentado em diferentes regiões na Babilônia, restando ainda aqueles que já
residiam na diáspora, a partir do evento de 722 a.C., ocorrido na Samaria. Os relatos históricos e
teológicos correm independentes um do outro. Cf. GUNNEWEG, A. H.J., História de Israel: dos
primórdios até Bar Kochba e de Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo, Teológica & Loyola,
2005, pp. 205-217.
213
religiosa exilada e sem Templo, além de fracassadas sublevações15 que colaboraram
para o total aniquilamento do estado de Judá16. A província de Judá, não somente
vivenciou sua destruição total, como amargou, por quatro décadas, humilhação e
desintegração social em terras Babilônicas. Neste cenário, ocorre um esforço literário
impregnado pela corrente deuteronomista,
resultado de um amplo trabalho de
revisão de sábios e profetas, como afirma Crüsemann:
“É a teologia do Deuteronômio e do amplo movimento deuteronômico/
deuteronomista que proporciona ao Êxodo sua posição central na Bíblia. A maneira
como ele é interpretado, para o presente, do tempo dos reis tardios e, portanto,
renarrado, foi, com razão, definida como “centro da teologia bíblica”17.
Pela tradição judaica, tendo à frente o partido dos fariseus, percebe-se o
mesmo movimento de releitura. Os autores da Mishná transformaram as máximas
bíblicas em argumentos irrefutáveis na defesa dos pobres de sua época. As diferenças
acenam para momentos significativos da vida familiar e social das comunidades
religiosas dispersas nas mais diferentes realidades. A motivação maior em reunir as
inúmeras tradições pode ter ocorrido a partir do momento em que a “ameaça mortal”,
representada no exílio babilônico, impôs aos judaítas a possibilidade total do seu
desaparecimento18.
Com base nas análises presentes no capítulo V, é possível analisar três
diferentes situações sociais, intimamente ligadas à vida social e destacadas na
Mishná dando prova de total fidelidade à Torá. Os sábios fariseus redigem as
normas, em defesa dos grupos desfavorecidos, do século II d.C, sob o regime
imperialista romano.
15
Antes, porém, julga-se salutar indicar três aspectos que
O estado de completa destruição e falta total de qualquer autonomia administrativa, considera as
três ocupações babilônicas no território de Judá: 597, 587 e 582. A deportação definitiva, visando pôr
fim a qualquer resistência, ocorre no ano de 587.
16
Cf. ALBERTZ, R., Historia de la religión de Israel en tiempos del Antiguo Testamento, Madrid,
Simancas Ediciones, v. II, 1999, p. 461.
17
CRÜSEMANN, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo Testamento, São Paulo,
Loyola, 2009, p. 309. Na mesma perspectiva segue Römer: “A novidade da história deuteronomista
consiste em revisar os textos mais antigos, e organizá-los em uma composição coerente que relata a
história de Israel, das origens ao Exílio. Para Römer o trabalho desses “Deuteronomistas” da época do
exílio prepara, assim, o caminho em direção à “religião do livro”. RÖMER, T., Naissance da la Bible.
In: LMB, n. 137, 2001, p. 19.
18
JOHNSON P., História dos Judeus, São Paulo, Imago, 1995, p. 93: “Foi no exílio que as normas da
fé começaram a parecer de importância máxima: normas de pureza, de asseio, de dieta. Tais leis eram
agora estudadas, lidas em voz alta, decoradas. É provável que desse tempo date a injunção do
Deuteronômio 6,6-8. No exílio, os judeus, privados de um estado, tornaram-se uma nomocracia – e se
submetiam voluntariamente a uma lei que só poderia ser posta em vigor por consenso. Nada dessa
espécie tinha jamais ocorrido na história”.
214
marcam qualquer leitura em torno dos textos da Mishná e que garantem a
manutenção da experiência religiosa do Antigo Israel às futuras gerações. São eles:
1) O caráter de irrevogabilidade da Torá: Analisadas as inúmeras ocasiões
bélicas que assolaram a província da Judéia, impostas por uma série de
grandes impérios, com base nos relatos bíblicos, edificou-se “uma cerca
em torno da Torá”19 o que preservou a identidade nacional de Israel. O
conceito de ‫“ דְּ ַבר י ְה ָוה‬Palavra de YHWH” (cf. Is 39,8; Jr 13,3; Ez 27,1);
foi elemento primordial para salvaguardar a identidade de Israel. A
“Palavra de YHWH” é um pleno testemunho da intervenção divina na
história. Os ensinamentos em torno do conceito da Torá, antes de ser um
cânon reunindo uma série de livros é, antes de tudo, o ato de ensinar20 a
Torá Oral. Este senso de irrevogabilidade pode ser visto na série dos doze
textos da Mishná abordados na pesquisa. À mulher não há meios de
negar-lhe o direito de respiga, ainda que ela se encontre na situação de
divorciada. Ela tem o direito de efetuar a respiga e encontrar meios para
garantir sua sobrevivência (cf. Ned 11,3). Os empenhos humanos devem
estar direcionados para edificação da paz, com base nas normas da Torá21.
A Mishná oferece os meios para implementá-los na vida da comunidade
(cf. BM 9,13p-u). Esta apego central à Torá estabelecerá o eixo em torno
do qual Israel se constituirá e encontrará sua identidade como nação22.
2) O desejo de servir a YHWH é viver em sua sintonia: No uso do
tetragrama o nome de Deus é identificado como uma real divindade,
imanente, mas ao mesmo tempo transcendente, diferentes das divindades
19
M. Ab 1,1: “Moisés recebeu a Torá no Monte Sinai e a transmitiu a Josué. Josué a transmitiu aos
anciãos e estes a transmitiram aos profetas. Os profetas a transmitiram aos homens da Grande
Assembléia. Estes disseram três coisas: “Sede cautelosos no exercício da justiça; fazei muitos
discípulos; fazei uma cerca em torno da Torá”. Simão, o justo, estava entre os homens da Grande
Assembléia. Dizia ele: “O mundo repousa sobre três coisas: sobre a Torá, sobre o Culto e sobre os
atos de caridade”.
20
Cf. <http://www.ista.edu.br/semanateologica/extras/carta_romanos.pdf>. Acessado em 10 de jun.
de 2009.
21
A aproximação tornou-se intensa a partir da destruição do Templo de Jerusalém, no ano 70 d.C. A
aproximação de relevantes mestres na Grande Assembléia teve, como eixo, prestar um serviço de
proteção à Torá Escrita e Oral. Estava em jogo a perda das tradições. Aos sábios não faltaram outra
opção a não ser de reorganizar e recontar a Torá. O resultado dessa reviravolta leva o nome de Mishná
(optar pelo estudo e ensinar por repetição). Cf. LENHARD, P. e COLLIN, M., La Torah orale des
pharisiens: textes de la Tradicion d`Israël, Paris, Cerf, 1990, pp. 8-11.
22
Crüsemann apresenta o conceito de “Pátria Portátil”. “Os judeus salvaram-se do grande incêndio do
Segundo Templo e, por assim dizer, arrastaram-no consigo ao exílio como uma pátria portátil,
atravessando toda a Idade Média”. Crüsemann, F., Cânon e História Social: ensaios sobre o Antigo
Testamento, São Paulo, Loyola, 2009, p. 345.
215
do Antigo Oriente. A fé, nessa divindade, pode ser plenamente sentida na
declaração de fé, forjada no Israel pós-exílico: ‫“ י ְה ָוה אֶ ָחד‬Deus Um” (Dt
6,4). Não resta dúvida de que, em torno da Torá, proveniente de YHWH,
Israel vivenciou, nos mais diferentes estágios de sua história, o que os
sábios chamam de “a Shekhina” ou seja a “existência de Deus no seio da
história”23. Esse YHWH, que é Um, torna-se o Deus dos pequenos.
Estudar a relação entre Deus e os pobres, ou pequenos é, antes de tudo,
optar por um tipo de aproximação: considerar a identidade dos pobres em
relação a YHWH, perceber o modo como o Deus de Israel se abaixa e
lhes dirige seu olhar preferencial (cf. Sl 113,6). Os Salmos testemunham
o privilégio do ‫ ָענ ִי‬ou ‫ ָענָו‬direcionado a esse Deus24.
3) Total submissão à administração romana: Todo o processo da redação da
Mishná coincide com a presença dominadora dos romanos na Judéia.
Roma impõe um regime hierárquico-patriarcal a todos os setores da vida
pública e familiar. Na base de um sistema econômico mercantil
escravagista, o sistema de arrecadação de vários impostos fazia crescer,
mais e mais, o endividamento e o número de escravos e escravas. O poder
político era atrelado ao religioso. A tática de aliar-se com os poderes
religiosos, nas províncias, era um dos meios para manter os privilégios
romanos em todo o vasto império25.
Nesse cenário de completa
dominação, estão todos os versículos da Mishná analisados no capítulo
23
Cf. URBACH, E. E., Les sages d`Israël: conceptions et croyances des maîtres du Talmud, pp. 4372.
24
Cf. COULANGE, P., Dieu, ami dês pauvres:Etude sur la connivence entre le Très-Haut et les
petits, Fribourg, Academic Press, 2007, pp. 12-16.
25
TÁCITO, Agrícola, 30,3-31,2. “...mais perigosos do que todos [os outros dominadores] são os
romanos, de cuja arrogância em vão pensamos poder escapar através de submissão e comportamento
leal. Esses ladrões do mundo, depois de não mais existir nenhum país para ser devastado por eles,
revolvem até o próprio mar; quando o inimigo é rico, eles são ávidos; quando é pobre, ambicionam a
sua honra; nem o oriente nem o ocidente satisfizeram a sua gula; são os únicos entre todos que, com a
mesma cobiça, querem apoderar-se da riqueza e da pobreza. Saquear, assassinar, roubar – a isso eles
chamam de dominação; e ali onde criaram um deserto – a isso eles chamam de paz. Crianças e
familiares são para todos, conforme a vontade da natureza, o que temos mais precioso; através de
recrutamento, eles são tirados de nós, para que, em algum outro lugar, façam trabalho escravo;
mulheres e irmãs, mesmo quando escapam dos desejos dos inimigos, são violentadas por aqueles que
se chamam amigos e hóspedes [=romanos]. Bens e propriedades transformaram-se em impostos; a
colheita anual dos campos torna-se tributo em forma de cereal (frumentum); sob espancamentos e
insultos, nossos corpos e mãos, são massacrados na construção de estradas através de florestas e de
pântanos...”. Tradução de Ivoni Richter. Cf. REIMER, H. e REIMER, I. R., Tempos de Graça: o
jubileu e as tradições jubilares na Bíblia, São Paulo, Sinodal/Paulus/Cebi, 1999, pp. 120-121.
Giordani oferece inúmeros editos apresentando várias maneiras punitivas e sansões físicas impostas
pelos imperadores. Cf. GIORDANI, M. C., História de Roma: antiguidade clássica II, Petrópolis,
Vozes, 1985, pp. 336-346.
216
precedente e aqui retomados, no desejo de compreendê-los em seu
contexto vital.
No âmbito literário, a Mishná, numa época drástica no cenário internacional,
mantém seu posicionamento absoluto de agradar a YHWH e cumprir os preceitos da
Torá. Segue-se a análise de diferentes práticas religiosas vivenciadas pelas
comunidades, num cenário totalmente adverso. Nota-se, aí, a importância das leis da
Torá e a comprovação de que o judaísmo mishnaico soube, não somente receber, mas
também contextualizar as normas do Dt em fatos do dia-a-dia da vida social. Sobre
isso, podem-se citar três aspectos disso:
a)
O dever de disponibilizar os dízimos: YHWH exerce sua soberania,
original e sustentadora de todas as outras realidades. Ao reconhecer a soberania de
YHWH, e sabedores das inúmeras vicissitudes históricas ocorridas no passado, os
sábios buscam meios para implementar o desejo da suprema divindade. Quando
comparado à narrativa de Dt 26,13, cinco tratados da Mishná (Dem 1,2; Shebi 7,1;
Msh 5,10; Meg 2,5 e Sot 9,10), apresentados no capítulo V, de modo descritivo,
mostram diferentes realidades sociais. É nítido o desejo de jamais violar um preceito
estabelecido pela Torá – entenda-se nesta parte do trabalho, o Dt. Os tratados deixam
claro que a prática de recolher o dízimo e destiná-lo ao templo, ou aos grupos
socialmente pobres, não caiu em desuso no período mishnaico. Sobre o dízimo
duvidoso não se aplica nenhuma lei. E não podia ser diferente. Afinal, não é sagrado
e, por isso, não pesa sobre ele nenhuma norma. A comparação revela o alto senso de
receptividade das leis expressas no Dt.
b)
O direito dos pobres pela respiga: A realidade social da comunidade
judaíta, durante o domínio romano não foi diferente de épocas passadas. Embora a
vida das comunidades, no interior do império, fosse gradativamente se tornando mais
branda, podem-se perceber, de maneira evidente, os esforços em zelar pelo bem estar
da comunidade26. As normas da Mishná visam fazer valer a prática do direito no diaa-dia dos pobres (Pea 4,3; 6,4; 7,7; Ned 11,3; Git 5,8; BM 9,13). O judaísmo do
primeiro século não se impõe como religião. Caracteriza-se mais com ações ou
práticas devocionais e sociais para garantir a sobrevivência de seus membros. Nestes
26
No governo do imperador Antonio Pio (138-161) a vida das comunidades judaicas, gradativamente,
começa a usufruir de melhores meios de sobrevivência. Tribunais são reorganizados, escolas abertas.
Os grupos espalhados pelo vasto império gozam de toda efervescência arquitetônica do final do
segundo século. Cf. de MIRANDA, E. E. e MALCA, J. M. S., Sábios fariseus: reparar uma
injustiça, p. 51.
217
tratados, nota-se que homens e mulheres são tratados com os mesmos direitos, vistos
como inalienáveis. Não se pode violar o preceito divino, muito menos o direito da
pessoa.
c)
Denúncia contra a violação dos diretos dos pobres: Nota-se um
conceito inovador da tradição judaica na defesa do direito da pessoa do pobre,
expressa de modo literário. E não poderia ser de outra maneira. O tratado Ab 5,9,
apoiando-se na lei do dízimo trienal a ser disponibilizado aos pobres, denuncia os
atos negligentes daqueles que visam arruinar a vida dos pobres, negando-lhes o
direito de usufruir da décima parte dos produtos ou bens acumulados no período de
três anos.
Os rabinos, de posse de toda essa tradição literária, optam pelo
enaltecimento da justiça. Criticam a violação dos direitos. Não se percebe, em
nenhum momento sequer, desejo de encobrir situações errôneas, em detrimento de
um possível poder local, ou na manutenção de privilégios de pessoas ou grupos. A
convivência fraterna, no interior da comunidade, deve expressar o ideal de viver e
instaurar a máxima harmonia social. O ideal de viver sob as bênçãos de YHWH é
medido na proporção em que o direito e a justiça são praticados e mantidos na vida
dos pobres. Quer para a Torá, quer para a Mishná, bem como para toda a tradição
judaica, não há outro modo de experimentar que “Deste modo te abençoará YHWH,
teu Deus, em todas as obras que tuas mãos realizarão” (Dt 14,29).
218
7
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Antonio Carlos Frizzo A Trilogia Social: estrangeiro, órfão e viúva no