Gêneros discursivos no ciclo da alfabetização
1º ao 3º ano do ensino fundamental
Não se aprende por exercícios, mas por práticas significativas.
Essa afirmação fica quase óbvia se pensarmos em como uma
criança aprende a falar com os adultos com quem convive e
com seus colegas de brinquedo e interação em geral. O domínio
de uma língua é o resultado de práticas efetivas, significativas,
contextualizadas. (POSSENTI, 2002, p. 36)
No mês de junho de 2011, participei do Seminário Regional: Progressão
Continuada na Alfabetização e Letramento dos Alunos do 1º ao 3º Ano, que aconteceu
na UNISC, Universidade de Santa Cruz do Sul. O evento foi organizado pela Secretaria
da Educação do Estado do Rio Grande do Sul, juntamente com as Coordenadorias
Regionais de Educação (Estrela, Santa Cruz, Santa Maria), tendo por objetivo socializar
e discutir “Boas Práticas de Alfabetização” desenvolvidas em escolas da rede estadual.
Esses encontros têm por finalidade criar um documento com o registro dessas práticas
para que, a partir daquilo que a escola já vem adotando como prática de alfabetização
e letramento, esta possa criar o seu próprio plano de alfabetização. Esse projeto visa
valorizar o trabalho que é realizado pelos professores em suas escolas, substituindo os
três Projetos de Alfabetização: GEEMPA, AIRTON SENNA, ALFA & BETO, adotados pelas
escolas no governo anterior. Neste texto, trago uma reflexão a partir de um desses
relatos de “Boas Práticas de Alfabetização”.
A leitura e a produção de textos nos anos iniciais
A linguagem ocupa um papel central nas relações sociais vivenciadas por
crianças e adultos. As crianças, desde cedo, convivem com a língua oral em diferentes
situações: os adultos que as cercam falam perto delas e com elas. Por meio da
oralidade, as crianças participam de diferentes situações de interação social e
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aprendem sobre elas próprias, sobre a natureza e sobre a sociedade. Na instituição
escolar, elas ampliam suas capacidades de compreensão e produção de textos orais, o
que favorece a convivência delas com uma variedade maior de contextos de interação
e a sua reflexão sobre as diferenças entre essas situações e sobre os textos nelas
produzidos.
O mesmo ocorre em relação à escrita. As crianças e os adolescentes
observam palavras escritas em diferentes suportes, como placas, outdoors, rótulos de
embalagens; escutam histórias lidas por outras pessoas, etc. Nessas experiências
culturais com práticas de leitura e escrita, muitas vezes mediadas pela oralidade,
meninos e meninas vão se constituindo como sujeitos letrados. Cabe à escola,
responsável pelo ensino da leitura e da escrita, ampliar as experiências das crianças e
dos adolescentes de modo que possam ler e produzir diferentes textos com
autonomia.
Na nossa sociedade, a participação social é intensamente mediada pelo
texto escrito e os que dela participam se apropriam não apenas de suas convenções
linguísticas, mas, sobretudo, das práticas sociais mediadas por esses textos. Bakthin
(2000, p. 279) chama a atenção de que “cada esfera de utilização da língua elabora
seus tipos relativamente estáveis de enunciados”. Ou seja, em cada situação de
interação, deparamo-nos com gêneros do discurso diferentes, que vamos (re)
conhecendo e (re) construindo para participar das práticas sociais.
Ao refletirmos sobre o uso que fazemos da escrita no dia-a-dia, sabemos
que lemos e escrevemos cumprindo finalidades diversas. A questão que fica é: como a
escola pode garantir o princípio da função social da linguagem desde o 1º ano do
ensino fundamental?
Como você, professor, tem observado essa questão em sua sala de aula?
Além das histórias infantis e juvenis, que outros textos você julga que podem ser lidos
e produzidos com nossas crianças e adolescentes? Para refletir sobre as possibilidades
de trabalho com os diferentes gêneros discursivos, apresento parte do relato de “Boas
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práticas de Alfabetização” realizado por uma professora do 1º ano do ensino
fundamental1.
Que história é essa?
Ao iniciar o ano letivo, fiz uma roda de conversa com meus
alunos para saber o que eles gostariam de aprender naquele
ano. Para a minha surpresa, muitos disseram que queriam
aprender a ler e escrever histórias. Partindo dessa fala, elaborei
o projeto denominado “Que história é essa?”. Iniciei o trabalho
com o resgate da história do nome de cada criança. Todos os
alunos tiveram que pesquisar junto à família a origem do seu
nome e levar para a sala de aula a sua certidão de nascimento,
sua carteirinha de vacinas, além de outros documentos em que
constasse o seu nome. Alguns pais foram convidados para
contar a história do nome do filho aos demais integrantes da
turma. Após, partimos para o estudo da história do nome da
escola, elaboramos uma entrevista coletiva para ser feita com a
diretora da escola. Elaborei o texto da entrevista com a
participação das crianças. Fui a escriba das crianças, tendo em
vista que elas ainda não estão alfabetizadas. Através do
questionamento: “O que queremos perguntar para a diretora
sobre a nossa escola?” é que foram elaboradas as questões da
entrevista. Durante a entrevista, as perguntas eram lidas por
mim com a ajuda das crianças e as respostas anotadas por
mim. Após, com a ajuda das crianças, foram registradas em um
grande cartaz que foi exposto na sala de aula. A partir das
palavras escritas no cartaz, vários jogos de construção da
1
Relato apresentado pela professora Ana Luísa Brandt, no Seminário Regional: progressão continuada
na alfabetização e letramento dos alunos do 1º ao 3º ano, realizado na UNISC, em junho de 2011.
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escrita foram elaborados, como exemplo: bingo de palavras,
jogo da memória e caça-palavras. (relato da professora Ana
Luísa Brandt, junho de 2011)
Percebe-se nesta tarefa a função social da escrita, ou seja, registrar algo
com o objetivo real de comunicação. As crianças, ainda em processo de alfabetização,
valem-se da escrita para descobrir algo que é de seu interesse: a história do seu
próprio nome e depois da escola.
Dando sequência ao projeto, a professora leu para as crianças a história do
Aniversário do Seu Alfabeto2.
Contada a história aos alunos, eles sugeriram a confecção
de um mascote da história. Confeccionado o mascote, as
crianças tiveram a ideia de realizar uma festa de aniversário
para o “Mascote Alfabeto”. Através de vários questionamentos,
solicitei sugestões dos alunos sobre como organizar a festa: O
que vamos fazer? Quem vamos convidar? Decidida a forma
como seria realizada a tal festa, lancei o seguinte desafio: Como
vamos fazer para convidar as pessoas para a festa que estamos
organizando? Como vocês fazem para convidar as pessoas para
a festa de aniversário de vocês? As crianças logo responderam
que deveriam fazer um convite. Assim, a turma toda se
envolveu para criar o convite. Vários convites foram levados
para a aula do dia seguinte, discuti com as crianças a forma de
como seria elaborado o convite e para quem seria enviado.
(relato da professora Ana Luísa Brandt, junho de 2011)
2
PIEDADE, Amir. O Aniversário do Seu Alfabeto. Editora Cortez, 2008.
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Aqui, novamente a escrita coletiva do texto passa a ter uma função
importante, além, é claro, da função comunicativa da produção textual: escrever um
convite para convidar algumas pessoas para a festa de aniversário do mascote criado
pela turma. Com o convite pronto e entregue para uma relação de convidados
escolhidos pelos alunos e professora, era ainda necessário pensar na organização da
festa. Novas listas foram escritas: lista do que servir aos convidados, lista do que cada
um deveria trazer para a festa.
Também surgiu a ideia de a turma fazer um bolo de laranja para ser servido
durante a festa. Para dar conta de tal tarefa, a professora solicitou que as crianças
trouxessem receitas de bolo. Assim, o gênero discursivo receita também foi explorado
pela turma. Leram várias receitas até escolherem uma delas para, efetivamente,
fazerem o bolo na cozinha da escola. Convidaram também uma merendeira da escola
para que contasse às crianças sobre os cuidados higiênicos que devemos ter durante o
preparo dos alimentos. Outras ideias de receitas foram sugeridas pelas crianças, entre
elas, a de fazer uma sopa de letrinhas. Ideia aceita e mãos à obra.
Além disso, era preciso pensar e planejar as atrações da festa. A
história do Seu Alfabeto foi dramatizada por um grupo de
alunos, outros tiveram a tarefa de recepcionar os convidados,
outros de fazer um pronunciamento dando boas-vindas e
anunciando a programação do evento. Lembrei de fazer o
registro do evento através de filmagem com o uso da máquina
fotográfica. Dias depois, essa mesma filmagem foi analisada
pelas crianças e apresentada aos pais. A partir daí, surgiu a
ideia de a turma inventar histórias em grupos a partir de livros
que apenas possuem imagens. Era preciso planejar, escolher os
livros, criar um roteiro, formar os grupos, registrar as histórias e
ensaiar para, após tudo isso, dar início às filmagens. Aí
novamente perguntei: Para quem vamos mostrar nossa
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produção? (relato da professora Ana Luísa Brandt, junho de
2011)
A turma decidiu, desta vez, convidar os pais. Era preciso então
confeccionar cartazes para divulgar o evento, produzir os convites para os pais,
escrever um bilhete para a diretora comunicando a realização do evento da turma.
Vários textos precisaram ser escritos com a ajuda da professora para dar conta da
realização do evento da turma. A professora, por meio dessa atividade, despertou nas
crianças um envolvimento intenso e ajudou-os a construir conhecimentos sobre nosso
sistema de escrita.
Um destaque que podemos fazer nessa prática de ensino é a experiência
com gêneros discursivos (orais e escritos) por crianças de seis anos de idade. Nesse
caso, elas estavam aprendendo sobre a linguagem usada para escrever e sobre as
práticas diversificadas de uso da escrita. Levar as crianças a perceber que as
capacidades e os conhecimentos dos quais elas dispõem, relativos aos textos orais,
podem ser transferidos para a produção de textos escritos é um objetivo
especialmente importante nos anos iniciais do ensino fundamental.
Fazendo um balanço
Busquei, neste texto, enfatizar que o entendimento sobre como funciona a
nossa escrita pressupõe ter familiaridade e se apropriar das diferentes práticas sociais
em que os textos circulam, ou seja, de não apenas ler e registrar palavras numa escrita
alfabética, mas de poder ler-compreender e produzir os textos que compartilhamos
como participantes de interações sociais mediadas pelo texto escrito.
Acredito que, como educadores da linguagem, devemos ampliar a perspectiva
do aluno sobre situações vivenciáveis por ele. Em outras palavras, devemos ampliar o
leque de possibilidades de experiências, trazendo o mundo para a sala de aula e
levando o aluno a vivenciar o mundo “lá fora”. Nesse sentido, a contribuição da noção
de gêneros discursivos para o ensino de línguas é chamar a atenção para a importância
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de se vivenciar na escola atividades sociais, das quais a linguagem é parte essencial, ou
seja, é com o propósito de dialogar com um leitor que se constitui a escrita como
prática social. A meu ver, a prática de alfabetização aqui apresentada cumpriu essa
função.
Referências
BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Tradução do russo por Paulo Bezerra. 4ª
ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
BRANDÃO, Helena. Gêneros do discurso na escola: mito, conto, cordel, discurso
político, divulgação científica. São Paulo: Cortez, 2003.
Ensino Fundamental de nove anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos
de idade/ organização Jeanete Beauchamp, Sandra Denise Pagel, Aricélia Ribeiro do
Nascimento. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2007.
GERALDI, J. W. (1993-1997-2003). Portos de passagem. São Paulo: Martins Fontes.
MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo:
Parábola Editorial, 2008.
POSSENTI, Sírio. Sobre o Ensino de Português na Escola. In: GERALDI, João Wanderley
(org.). O texto na sala de aula. São Paulo: Editora Ática, 2002.
Maristela Juchum – Doutoranda em Linguística Aplicada/UFRGS.
Supervisora Pedagógica da Secretaria de Educação de Lajeado/RS.
Professora de Língua Portuguesa do Centro Universitário – UNIVATES.
Ana Luísa Brandt – Mestre em Educação/UNISC. Professora do 1º Ano
do Ensino Fundamental da EEEM Guia Lopes, da cidade de
Candelária/RS.
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