CLÁUDIA VALÉRIA ALVES PEREIRA
A RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA MATERIAL
Artigo apresentado como requisito para conclusão do
curso de Pós-Graduação em Direito Processual Civil, sob
a orientação do Professor DANIEL ASSUMPÇÃO NEVES.
Fundação Escola Superior do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
Brasília – 2008
2
1. Introdução
A escolha do assunto a ser pesquisado neste artigo surgiu da firme
crença de que o Direito deve servir e se adaptar à realidade e não vice-versa.
Entretanto nosso Direito, e particularmente o Direito Processual, está
eivado de conceitos e concepções fundados em uma escala de valores que
norteavam uma forma de organização social típica de outros séculos. Não é por
outro motivo que Ovídio A. Baptista da Silva1 afirma ter o nosso sistema processual
se “congelado” no tempo, sem compromisso com a História, apegando-se a
pressupostos estruturais herdados do modelo processual do direito privado romano,
em sua versão medieval, degradada e aperfeiçoada pelo Iluminismo europeu. Por
isso, para esse ilustre doutrinador, “as grandes linhas do sistema, seus pressupostos
políticos – o processo como ciência -, aspiram, como todas as leis científicas, ao
status de ‘verdades eternas’.”
De fato, é difícil, senão impossível, negar a influência sentida até nossos
dias dos conceitos, princípios e sistemas idealizados por grandes (e genais, sem
sombra de dúvida) doutrinadores como Carnelutti, Chiovenda e Liebman, somente
para citar alguns.
No entanto, a ideologia que regeu o Iluminismo europeu inegavelmente
não reflete todas as necessidades e anseios da sociedade contemporânea.
Talvez um dos exemplos de tal inadequação mais repetidos pelos críticos
seja a lentidão do nosso sistema processual não raro relacionada ao excesso de
recursos que abarrotam os tribunais.
Sem pretender encontrar a solução do problema numa breve reflexão
feita por quem se inicia no estudo desse sistema, este artigo, seguindo a proposta
de todo o curso, pretende questionar os valores que “implantaram” no operador do
Direito a crença na “intangibilidade da coisa julgada” como um pressuposto
1
In SILVA, Ovídio Baptista da. Da função à estrutura. In: Revista Magister de Direito Civil e
Processual Civil, n. 22 (jan/fev 2008), pp. 5/16.
3
necessário à manutenção e sobrevivência do Direito, quiçá do próprio Estado
Democrático de Direito.
Pretende-se questionar se mais vale ao Direito referendar uma coisa
julgada que já não pode ser atingida pela ação rescisória, quando tal decisão judicial
proclama algo absurdo como o reconhecimento da morte de pessoa viva, ou se
melhor seria buscar uma fórmula que corrigisse, a qualquer tempo, o erro evidente,
adequando o pronunciamento judicial à realidade dos fatos.
E, como entre o branco e o preto existe uma infinidade de tons de cinza,
indagaremos quando e em que medida uma decisão meramente injusta, mas
plausível, mereceria esse mesmo tratamento.
2. Novos valores protegidos pelo Direito
Aqueles que têm acompanhado as reformas que vêm alterando nosso
Código de Processo Civil desde 1994 têm podido observar a tentativa contínua do
legislador de buscar um modelo mais ágil, prático e efetivo de prestação
jurisdicional. Dão testemunho de tais alterações o incremento das medidas liminares
(sejam elas de natureza cautelar ou antecipação de tutela), a possibilidade de
julgamento initio litis (art. 285-A2), a possibilidade de supressão de instância nos
casos do art. 515, § 3º, a crescente busca da verdade real, do direito justo no
processo
civil
e,
principalmente,
a
crescente
utilização
do
princípio
da
instrumentalidade das formas dos atos processuais3 (arts. 244, 249, § 1º, e 250,
parágrafo único), que tem servido, na jurisprudência, como meio de correção de
equívocos cometidos ao longo do feito tanto pelas partes quanto pelo próprio
julgador.
Todos esses sinais de evolução (e aqui não se afirma que evolução
implica necessariamente em progresso), a nosso ver, são respostas a necessidades
2
Art. 285-A. Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido
proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a
citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.
3
De acordo com Humberto Theodoro Júnior, “A forma traçada pela lei é o meio de garantir-se um fim.
Daí por que, em nossos dias, só se cogita de nulidade processual, quando, por desvio de forma, o fim
colimado não for atingido”. (in As nulidades no Código de Processo Civil. Revista de Processo n. 30 –
abr/jun de 1983, pp. 38/59).
4
prementes da sociedade que levaram, por exemplo, à criação do processo coletivo,
que dá voz ao direito difuso, à alteração da concepção do Direito Civil que antes
primava pela valorização da iniciativa individual4, reconhecendo a necessidade de
um direito que tenha como norte a solidariedade nas relações sociais5 e que admita
que, por vezes, a hipossuficiência de uma das partes pode justificar um tratamento
especial, seja nas relações de consumo, seja nas relações contratuais. Vemos,
ademais, a lei e a jurisprudência curvaram-se à modificação das relações familiares,
deixando de lado preconceitos que diferenciavam o filho nascido do vínculo do
casamento daquele nascido fora dele, reconhecendo a união estável, a união
homoafetiva6 etc.
É com base na concepção de que a sociedade contemporânea tem
elegido novos valores que procuraremos repensar o instituto da coisa julgada.
3. A proteção constitucional à coisa julgada material
Um dos primeiros argumentos utilizados por aqueles que se opõem à
relativização da coisa julgada é a proteção que a Constituição lhe confere no art. 5º,
XXXVI7, o que lhe daria o caráter de cláusula pétrea, intocável mesmo por presentes
e futuras emendas constitucionais.
Com efeito, a coisa julgada recebe proteção tanto constitucional como
infraconstitucional. A doutrina, entretanto, dissente em relação à extensão da
proteção constitucional à intangibilidade/imutabilidade da coisa julgada.
4
Até mesmo como reflexo de uma concepção burguesa pós revolução francesa que buscava se
liberar da ingerência do Estado, chegando mesmo a desconfiar dele e, por extensão, do julgador.
5
As cláusulas gerais que determinam a observância da boa-fé objetiva, da função social do contrato
e da propriedade, entre outras, são exemplos da busca da solidariedade mencionada.
6
Recentemente (02.09.2008), julgando o REsp 820.475/RJ, a Quarta Turma do Superior Tribunal de
Justiça (STJ) admitiu a possibilidade jurídica do pedido de reconhecimento da união estável entre
homossexuais.
7
XXXVI – a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; (grifo
nosso).
Sérgio Nojiri lembra que “No plano constitucional, a regra do respeito ao direito adquirido, ao ato
jurídico perfeito e à coisa julgada iniciou-se com a Carta Política de 1934 e foi repetida nas
Constituições de 1946, 1967, EC 1 de 1969 e na atual Constituição Federal, só não tendo sido
incorporada no texto da Constituição do ‘Estado Novo’, de 1937”. (In Crítica à Teoria da Relativização
da Coisa Julgada. In: Revista de Processo, vol. 123 [maio de 2005]. Editora Revista dos Tribunais, p.
124 – nota de rodapé n. 3)
5
Para alguns, como Márcio André Lopes Cavalcante8 e José Augusto
Delgado9, a Constituição somente vedaria que a lei viesse a alterar de qualquer
forma o conteúdo do julgado, o que, em última instância, transformaria a garantia
constitucional prevista no inciso XXXVI do art. 5º da Constituição em uma “das
muitas facetas do princípio da irretroatividade da lei”.
Parece lógico, no entanto, que, a proibição de alteração do conteúdo do
julgado se estende, também, ao Poder Judiciário, pois, do contrário, não haveria a
regra do art. 267, V, do CPC que proíbe ao julgador julgar o mérito da causa, se já
houver coisa julgada a respeito da questão. Essa é também a posição de abalizados
doutrinadores como Cândido Rangel Dinamarco10 e Barbosa Moreira11. Sérgio
Nojiri12 acrescenta, com propriedade, a esse raciocínio, que a coisa julgada também
está protegida contra os atos administrativos que tentem modificá-la.
A despeito da polêmica, é indiscutível que tanto o conceito de coisa
julgada (formal e material) quanto as possibilidades de sua revisão ou
desconsideração são previstas na norma infraconstitucional.
4. O conceito de coisa julgada material
Sobre a coisa julgada material, que mais nos interessa no estudo que nos
propomos a realizar, o art. 467 do CPC assim dispõe:
Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna
imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso
ordinário ou extraordinário.
Também o art. 6º, § 3º, da Lei de Introdução ao Código Civil associa a
coisa julgada à “decisão de qual já não caiba recurso”.
8
CAVALCANTE, Márcio André Lopes. A relativização da coisa julgada inconstitucional segundo
critérios objetivos. In: Constituição e Processo Civil – Coord.: Vallisney de Souza Oliveira. – São
Paulo: Saraiva, 2008, pp. 156 e 157.
9
DELGADO, José. Efeitos da coisa julgada e os princípios constitucionais. Texto básico da palestra
proferida, em Fortaleza, no dia 20.12.2000, no I Simpósio de Direito Público da Advocacia-Geral da
União, 5ª Região, promovido pelo Centro de Estudos Victor Nunes Leal, p. 88.
10
DINAMARCO, Cândido Rangel. Relativizar a coisa julgada material. In: Nova Era do Processo Civil.
2ª ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2007, pp. 54 e 55.
11
MOREIRA, José Carlos Barbosa. A eficácia preclusiva da coisa julgada material no sistema do
processo civil brasileiro.Temas de Direito Processual, primeira série, 2ª ed. – São Paulo: Saraiva,
1988, p. 97.
12
Op. cit. P. 124.
6
Contudo, é o art. 485 do CPC que melhor conceitua o instituto da coisa
julgada material, ao associá-la à sentença de mérito, transitada em julgado.
Vale a pena lembrar que não fazem coisa julgada material “os atos
judiciais não decisórios (p. ex., os atos executivos), as decisões interlocutórias, as
sentenças que extinguem o processo sem julgamento do mérito, as sentenças que
encerram o processo executivo (pois não julgam o mérito)”13, assim como as
sentenças de cognição sumária, nem tampouco as proferidas em processo
cautelar14. Também não são acobertadas pela coisa julgada material as sentenças
que, apesar de julgarem o mérito da causa, são excepcionadas expressamente pela
lei15.
Tomaremos aqui o conceito de Eduardo Talamini, para quem a coisa
julgada material é a “qualidade de que se reveste a sentença de cognição exauriente
de mérito transitada em julgado, qualidade essa consistente na imutabilidade do
conteúdo do comando sentencial”16.
É importante fazer alusão, também, a outra observação desse mesmo
doutrinador, quanto aos efeitos da coisa julgada material. Talamini afirma que “A
coisa julgada não estabelece presunção ou ficção de verdade dos fatos afirmados
na sentença”17, até porque não se pode negar que, em se tratando de relação
jurídica de caráter disponível, as partes podem, consensualmente, mesmo após o
trânsito em julgado18, estabelecer solução diversa daquela dada pelo juiz. O que não
13
In Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 31.
Nesse sentido o comentário de Barbosa Moreira, para quem, “Quanto ao processo cautelar, não
parece impróprio falar-se de ‘mérito’, (...). Apesar disso, não se nos afigura admissível ação rescisória
contra semelhantes decisões, por lhes faltar o requisito, (...), da idoneidade para produzir coisa
julgada material”. In Comentários ao Código de Processo Civil, Lei n° 5.869, de 11 de janeiro de
1973, vol V: arts. 476 a 565 – 12ª ed. revista e atualizada (inclusive de acordo com o novo Código
Civil e com a Emenda Constitucional n° 45). Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 113.
15
Entre elas: a) a sentença de improcedência por falta ou insuficiência de provas na ação popular
(art. 18 da Lei 4.717/1965); b) a sentença de improcedência por falta ou insuficiência de provas na
ação coletiva em defesa de direito difuso ou coletivo (CDC, art. 103, I e II; Lei 7.347/1985, art. 16); c)
a sentença de improcedência proferida no mandado de segurança, quando não há prova documental
suficiente (Lei 1.533/1951, art. 6º, c/c arts. 15 e 16; STF, Súmula 304).
16
In Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 30.
17
In Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, p. 38.
18
A referência ao consenso após o trânsito em julgado se justifica na medida em que, obtido
consenso antes do trânsito em julgado, corresponderá ele a transação, desistência, renúncia ao
direito sobre que se funda a ação ou reconhecimento da procedência do pedido, que serão
homologados por sentença.
14
7
poderão, por certo, é pretender nova declaração do órgão judicial ou qualquer
providência que não se coadune com a coisa julgada.
O mesmo não ocorre quando o direito envolvido é indisponível, pois,
nesse caso, ainda que de comum acordo, as partes não poderão dar à causa
solução diversa da fixada na sentença.
Assim, “A situação jurídica que se constitui com o advento da coisa
julgada não concerne ao direito material, mas ao processo. É a proibição de que se
emita novo comando jurisdicional sobre o mesmo objeto processual e, ainda, a
determinação de que se adote o comando anterior como premissa inafastável nos
pronunciamentos jurisdicionais proferidos nos processos subseqüentes para os
quais o objeto do processo anterior funcione como questão prejudicial”19.
Para o referido autor, a coisa julgada não é efeito da sentença, mas, sim,
do trânsito em julgado da sentença e constitui uma autoridade, atribuída por lei, e
decorrente de uma opção política entre dois valores: a segurança (representada pela
imutabilidade do pronunciamento) e a justiça.
5. Os limites objetivos e a eficácia preclusiva da coisa julgada material
Dissertando sobre os limites objetivos e sobre a eficácia preclusiva da
coisa julgada, Araken de Assis20 chama a atenção para o problema da identificação
do objeto litigioso.
Por um lado, ao nos dar a idéia de que a imutabilidade da coisa julgada
abrange o dispositivo da sentença (art. 458, III, do CPC21), que acolhe ou rejeita o
pedido (art. 269, I, do CPC22), o CPC nos faz crer que a lide ou objeto litigioso
19
In Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2005, pp. 45/46.
ASSIS, Araken de. Eficácia da coisa julgada inconstitucional. In: Revista Dialética de Direito
Processual, n. 4 (julho/2003), pp. 9/28.
21
Art. 458. São requisitos essenciais da sentença:
(...)
III - o dispositivo, em que o juiz resolverá as questões, que as partes Ihe submeterem.
22
Art. 269. Haverá resolução de mérito: (caput modificado pela Lei n° 11.232, de 22.12.2005)
I - quando o juiz acolher ou rejeitar o pedido do autor;(Redação dada pela Lei nº 5.925, de
1º.10.1973)
20
8
encontra-se no pedido formulado pelo autor, compreensão essa, que, segundo
Araken de Assis, refletia o pensamento de Buzaid e de Liebman.
Reforçam essa idéia os dispositivos do CPC que traçam os limites
objetivos da coisa julgada: arts. 12823, 46824, 46925 e 47026.
Contudo, o CPC também acolhe a teoria da tríplice identidade, no art.
301, § 2°, que propõe outra definição de objeto litigioso para efeito de identificação
de coisa julgada ou de litispendência (arts. 301, V e VI, respectivamente):
Art. 301. Compete-lhe, porém, antes de discutir o mérito, alegar:
(Redação dada pela Lei nº 5.925, de 1º.10.1973)
(...)
§ 2o Uma ação é idêntica à outra quando tem as mesmas partes, a
mesma causa de pedir e o mesmo pedido. (Redação dada pela Lei
nº 5.925, de 1º.10.1973)
§ 3o Há litispendência, quando se repete ação, que está em curso; há
coisa julgada, quando se repete ação que já foi decidida por
sentença, de que não caiba recurso. (Redação dada pela Lei nº
5.925, de 1º.10.1973)
O problema surge quando se pergunta se a coisa julgada material alcança
também a causa de pedir, principalmente tendo-se em conta o disposto no art. 474
do CPC:
Passada em julgado a sentença de mérito, reputar-se-ão deduzidas e
repelidas todas as alegações e defesas, que a parte poderia opor
assim ao acolhimento como à rejeição do pedido.
Propõe, então, o autor, os seguintes problemas:
“1.1. Mévio ajuíza uma ação de imissão na posse em face de Tício,
que, jungido ao princípio da eventualidade, previsto no art. 300 do
CPC, alega em sua defesa todas as questões de fato e de direito
23
Art. 128. O juiz decidirá a lide nos limites em que foi proposta, sendo-lhe defeso conhecer de
questões, não suscitadas, a cujo respeito a lei exige a iniciativa da parte.
24
Art. 468. A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e
das questões decididas.
25
Art. 469. Não fazem coisa julgada:
I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da
sentença;
Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença;
III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.
26
Art. 470. Faz, todavia, coisa julgada a resolução da questão prejudicial, se a parte o requerer (arts.
o
5 e 325), o juiz for competente em razão da matéria e constituir pressuposto necessário para o
julgamento da lide.
9
relativas à obrigação de prestar posse a Mévio, ignorando, todavia, a
exceção de retenção das benfeitorias necessárias (art. 516 do CC
brasileiro), que, de resto, efetivamente, realizara no imóvel. Não
obstante o julgamento de procedência proferido na demanda, onde
sequer se discutiu a questão das benfeitorias, Tício poderá
oportunamente utilizar os embargos de retenção, ex vi do art. 743 do
CPC, invocando exatamente a referida exceção?
1.2. Júlia ajuíza uma ação de divórcio em face de Tício, alegando
adultério e abandono do lar, fatos que enquadram no tipo ‘grave
violação dos deveres do casamento’, constante do art. 5°, caput, da
Lei n. 6.515, de 26.12.77. Uma vez, porém, julgada improcedente a
demanda, afigura-se lícito Júlia propor outra ação de divórcio,
afirmando, desta vez, a ruptura da vida em comum há mais de cinco
anos (art. 5º, § 1º, da Lei n. 6.515/77), contemporaneamente àquelas
violações já rejeitadas?”
Para Araken de Assis, a compatibilização entre os dois conceitos de
objeto litigioso desemboca na seguinte solução:
- caso a parte se proponha a ajuizar nova ação, no curso da primeira
demanda, fundando seu pedido em causa de pedir diversa daquela(s) já argüida(s)
no processo pré-existente, não encontrará óbice no ordenamento jurídico;
- transitando em julgado a sentença com resultado desfavorável à parte,
não poderá ela, em face da eficácia preclusiva prevista no art. 474 do CPC, ajuizar
nova ação, ainda que amparada em causa de pedir diversa da apontada no primeiro
feito.
O autor somente admite o temperamento do “julgamento implícito”
previsto no art. 474 do CPC:
a) nas causas em que a demanda primitiva não admite a utilização da
causa petendi argüida no processo subseqüente. Ex.: demandas de cognição
sumária;
b) nas hipóteses em que o autor não tem conhecimento da causa de pedir
quando ajuíza a ação, ou mesmo nas hipóteses em que nova causa de pedir surge
após o trânsito em julgado da primeira ação.
Contrariando a tese do autor, o STJ tem entendido que, mesmo tendo a
União (ré em ação de repetição de indébito tributário) se olvidado de alegar, na
contestação, a existência de pagamentos já realizados ao autor (caso em tudo
similar ao exemplo 1.1), a questão não fica acobertada pela preclusão, podendo ser
10
argüida em embargos à execução. Confira-se, a propósito, o seguinte precedente
cuja ementa cito, a título de exemplo:
TRIBUTÁRIO - IMPOSTO DE RENDA DE PESSOA FÍSICA RETIDO
NA FONTE - COMPENSAÇÃO COM VALOR APURADO NA
DECLARAÇÃO DE AJUSTE ANUAL - POSSIBILIDADE PRECLUSÃO - NÃO-OCORRÊNCIA.
1. A Primeira Seção desta Corte reconheceu a possibilidade de
compensação de valores de imposto de renda indevidamente retidos
na fonte com valores apurados na declaração de ajuste anual,
afastando a preclusão, quando a matéria é alegada em embargos à
execução.
2. Firmou-se o entendimento nesse sentido, com fundamento no teor
do art. 741, inciso VI, do Código de Processo Civil, que permite a
parte, nos embargos à execução, alegar qualquer questão
impeditiva, modificativa ou extintiva da obrigação, inexistindo, assim,
a preclusão quanto à verificação do excesso de execução quando da
apuração do quantum debeatur, na fase de liqüidação de sentença.
3. O fato de caber à União a apresentação das declarações de ajuste
anual, a fim de demonstrar fatos impeditivos, modificativos e
extintivos do direito à restituição dos valores indevidamente retidos a
título de IRPF, não exclui a possibilidade de apuração do quantum
debeatur, na fase de liqüidação de sentença.
4. Embargos de divergência providos.
(EREsp 786.888/SC, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES,
PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 27/08/2008, DJe 09/09/2008)
Ora, se como defende Araken de Assis, seria possível argüir em nova
ação uma causa de pedir que não fora alegada na primeira demanda já acobertada
pela coisa julgada, mesmo após o transcurso do prazo da rescisória, seria possível
argumentar a possibilidade de ajuizamento de nova investigação de paternidade
com arrimo em exame de DNA, que não existia ao tempo do ajuizamento da
primeira demanda.
Não haveria, assim, diante de uma nova causa de pedir que pudesse
alterar o resultado da demanda sem necessidade de se cogitar da relativização da
coisa julgada material, independentemente de ofensa à Constituição Federal, ou de
teses que sustentam a existência de julgamento secundum eventum probationis nas
demandas referentes à investigação de paternidade. Nesse sentido, já decidiu o STJ
nos seguintes precedentes: REsp 112.101/RS (Rel. Min. César Asfor Rocha, julgado
em 29.06.2000, 4ª Turma do STJ, RSTJ 137/419) e REsp 109.142/RS (Rel. Min.
César Asfor Rocha, julgado em 06.09.2001, 4ª Turma do STJ, RSTJ 153/309).
Contrário a esse entendimento, Talamini defende a existência apenas um
fundamento fático para a relação jurídica de filiação, quando se pretende seja ela
11
reconhecida com base no vínculo biológico, e tal fundamento é a existência do
próprio vínculo biológico entre pai e filho, sendo outros fatos secundários. Cita como
exemplo uma ação de indenização por acidente de trânsito, na qual a causa de pedir
seja a responsabilidade civil decorrente de um específico acidente narrado. Para ele,
os detalhes do referido acidente (excesso ou não de velocidade, embriaguez ou não,
desatenção ou não de cada um dos condutores etc.) são fatos secundários que, se
deixarem de ser alegados e discutidos no processo anterior, não poderão ser
reapresentados como pretenso fundamento de uma nova ação, entre as mesmas
partes, relativa ao mesmo acidente, pois estar-se-á diante da mesma causa de
pedir.
De toda forma, permanece a questão da possibilidade de relativização da
coisa julgada material nas demais hipóteses em que não há como se aventar o
surgimento de nova causa de pedir.
6. A relativização da coisa julgada material
Pode-se dizer que, na realidade, o princípio da imutabilidade da coisa
julgada material já sofre relativização no nosso ordenamento jurídico se se levar em
conta a possibilidade de sua desconstituição, no processo civil, por meio da ação
rescisória, da querela nullitatis27, da exceção de pré-executividade e dos embargos à
execução fundados na falta ou nulidade de citação do demandado na fase de
conhecimento, havendo ele ficado revel (arts. 475-L, inciso I, e 741, inciso I, ambos
do CPC).
Contudo, na atualidade, diversos processualistas têm defendido a
possibilidade de sua relativização, ou mesmo de sua desconsideração, ainda que
tenha se esgotado o prazo para a ação rescisória.
27
Para aqueles que questionam se ainda sobrevive a querela nullitatis no Direito Brasileiro, confira-se
o seguinte precedente do STF, cuja ementa transcrevo:
“Ação declaratória de nulidade de sentença por ser nula a citação do réu na ação em que ela for
proferida.
1. Para a hipótese prevista no artigo 741, I, do atual CPC, que é a falta ou nulidade de citação,
havendo revelia, persiste, no direito positivo brasileiro - a querela nullitatis, o que implica dizer que a
nulidade da sentença, nesse caso, pode ser declarada em ação declaratória de nulidade,
independentemente do prazo para a propositura da ação rescisória, que, em rigor, não é cabível para
essa hipótese”
(STF, Revista Trimestral de Jurisprudência, v. 107, p. 778)
12
6.1 Algumas teses favoráveis
Dissertando sobre a coisa julgada28, em sua obra “Nova Era do Processo
Civil”, Dinamarco propõe “(a) que essa garantia não pode ir além dos efeitos (da
sentença) a serem imunizados e (b) que ela deve ser posta em equilíbrio com as
demais garantias constitucionais e com os institutos jurídicos conducentes à
produção de resultados justos mediante as atividades inerentes ao processo civil.”29
Isso porque, para ele, nenhum princípio é absoluto e intangível30. Assim
sendo, tanto a garantia da coisa julgada quanto o valor da segurança das relações
jurídicas devem conviver com o direito constitucional do acesso à Justiça (art. 5º,
XXXV, CF), entendido como direito de acesso a decisões judiciárias justas.
Também negando o caráter absoluto da coisa julgada no direito
português, eis a lição de Jorge Miranda:
O princípio da intangibilidade do caso julgado não é um princípio
absoluto, devendo ser conjugado com outros e podendo sofrer
restrições. Ele tem de ser apercebido no contexto global. 31
Dinamarco defende não ser legítimo eternizar injustiças a pretexto de
evitar a eternização de incertezas.
Propõe ele que toda vez que uma sentença pretender ditar um preceito
juridicamente impossível, sobre ela não incidirá a coisa julgada32, acrescentando que
28
Para Dinamarco, a coisa julgada não é um efeito da sentença, “mas uma especial qualidade que
imuniza os efeitos substanciais desta”, assegurando estabilidade a esses efeitos e impedindo que
voltem a ser questionados depois de defintivamente estabelecidos por sentença não mais sujeita a
recurso. Tudo isso com o objetivo de conferir segurança às relações jurídicas atingidas pelos efeitos
da sentença. (In DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo:
Malheiros Editores, 2007, pp. 218 e 219)
29
In DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo: Malheiros
Editores, 2007, p. 220.
30
“nenhum princípio constitui um objetivo em si mesmo e todos eles, em seu conjunto, devem valer
como meios de melhor proporcionar um sistema processual justo, capaz de efetivar a promessa
constitucional do acesso à justiça (entendida esta como obtenção de soluções justas – acesso à
ordem jurídica justa). Como garantia-síntese do sistema, essa promessa é um indispensável ponto de
partida para a correta compreensão global do conjunto de garantias constitucionais do processo civil”
com a consciência de que “os princípios existem para servir à justiça e ao homem, não para serem
servidos como fetiches da ordem processual”. (In DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do
Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 219)
31
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 2ª ed. Coimbra: Coimbra Ed., vol. 2, 1983, p.
494-495 apud THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada
inconstitucional e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do
(Coord). Coisa julgada inconstitucional. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2000, p. 139.
13
“a desconsideração da auctoritas rei judicatæ não se legitima pela mera oposição
entre a sentença e a Constituição, mas pelos maus resultados dos julgamentos. O
repúdio a esses maus resultados, quando colidentes ao menos com a garantia
constitucional do acesso à justiça (Const., art. 5º, inc. XXXV), é o real e legítimo
fundamento
da
relativização
da
coisa
julgada
material
–
e
não
a
inconstitucionalidade em si mesma”33.
O doutrinador, contudo, não detalha seu conceito do que seria um “mau
julgamento”. Cita como exemplos de situações que autorizariam a desconsideração
da coisa julgada material os seguintes casos: a) a sentença que declara o direito de
Estado brasileiro se retirar da Federação; b) a que condena uma pessoa a dar a
outrem, em cumprimento de cláusula contratual, determinado peso de sua própria
carne; c) a que condena uma mulher a prestar serviços de prostituta ao autor.
Sua proposta, entretanto, embora perfeitamente lógica, não é imune a
críticas. Nem tudo que é juridicamente impossível a priori, seja dizer, inadmitido
expressamente pelo ordenamento jurídico ou até não admitido expressamente, é
injusto e inaceitável, não devendo, apenas por falta de uma das condições da ação
(impossibilidade jurídica do pedido), ser invalidado.
Senão vejamos, o ordenamento jurídico brasileiro ainda não reconhece a
união homoafetiva, entretanto, já se encontram em discussão no STJ e no STF
ações em que se pleiteia o reconhecimento de tais uniões e suas conseqüências.
Foi objeto de polêmica e de notícias jornalísticas a sentença que reconheceu à
companheira da falecida cantora Cássia Eller o direito de guarda do filho da cantora
com falecido guitarrista, em detrimento do direito de guarda pleiteado pelos avôs do
menino. A meu ver, tal sentença é perfeitamente legítima, por encontrar
fundamentação em princípios que tem em vista primeiramente o melhor interesse da
criança, e, apesar de conter pedido que, a priori, deveria ser rejeitado pela
ilegitimidade da parte e pela impossibilidade jurídica, deve ser mantida.
3232
“(...), como a coisa julgada não é em si mesma um efeito e não tem dimensão própria, mas a
dimensão dos efeitos substanciais da sentença sobre a qual incida (supra, n. 111), é natural que ela
não se imponha quando os efeitos programados na sentença não tiverem condições de impor-se. Por
isso, (...), da inexistência desses efeitos juridicamente impossíveis decorre logicamente a inexistência
da coisa julgada material sobre a sentença que pretenda impô-los.” (In DINAMARCO, Cândido
Rangel. Nova Era do Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo: Malheiros Editores, 2007, p. 247)
33
In DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo: Malheiros
Editores, 2007, p. 253.
14
Outro exemplo é o da sentença que reconhece o direito da concubina de
receber parte ou totalidade da pensão do falecido que, comprovadamente, não vivia
mais com a esposa há mais de 20 anos. Queira-se, ou não, essa sentença transita
em julgado e gera efeitos ainda que mais tarde venha o STF a considerar outras
sentenças como esta inconstitucionais.
Indica, ainda, como fenômeno que impediria a formação da coisa julgada
material, a violação à garantia constitucional da prévia e justa indenização devida
por desapropriação (art. 182, § 3º34, e 18435 da CF), quando afirma que “são
constitucionalmente impossíveis as determinações do valor indenizatório muito além
ou muito aquém do devido”36. Indica, como critério para identificação do que seja o
“justo” preço de uma indenização, a sua valoração em face do conceito de
moralidade administrativa – que, no seu entender, coincide com a idéia de zelo pelo
patrimônio moral e material do Estado e dos demais entes públicos -, sem o que, a
sentença que fixa indenização extraordinariamente além do valor do mercado do
bem estaria “em choque com os próprios objetivos do Estado, traçados na
Constituição”37.
Também aqui podem ser apontadas falhas no raciocínio do autor. Não há
como se considerar ilegítima uma sentença apenas porque fixou indenização aquém
do valor efetivamente justo, pois, nos casos envolvendo direitos patrimoniais, como
os estudados pelo autor (indenizações por desapropriação de terras – casos
ocorridos no STF), o direito é disponível, pelo menos o do particular maior de idade,
sendo perfeitamente viável admitir-se que o indenizado se contente em receber
menos do que lhe é devido.
Quanto à fixação de indenização em valor absurdamente acima do valor
do mercado, por mais que possa ser flagrantemente injusta e possa configurar grave
dano ao erário, a bem da verdade, protege um bem que os doutrinadores têm
classificado como de interesse secundário, em comparação com o bem-estar social
34
Art. 182, CF - § 3º - As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
indenização em dinheiro.
35
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins de reforma agrária, o imóvel
rural que não esteja cumprindo sua função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a
partir do segundo ano de sua emissão, e cuja utilização será definida em lei.
36
Idem, p. 253.
37
Idem, p. 252.
15
que é o objetivo maior da Administração. Assim sendo, não se justificaria sua defesa
além das prerrogativas de que já dispõe a Fazenda Pública no ordenamento jurídico
brasileiro.
Não se nega que a tese do ilustre doutrinador tem consistência em alguns
dos casos de impossibilidade jurídica fundada em afronta patente à Constituição.
Contudo, parece haver um componente a mais que justificaria a desconsideração da
coisa julgada material que não foi levado em conta pelo autor.
O STJ, entretanto, vem referendando a possibilidade de relativização da
coisa julgada material em casos envolvendo desapropriação, como se depreende,
entre outros dos seguintes julgados:
PROCESSUAL CIVIL. CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO.
REVISÃO DO VALOR DA INDENIZAÇÃO EM LIQUIDAÇÃO.
SUPOSTA VIOLAÇÃO E RELATIVIZAÇÃO DA COISA JULGADA.
ERRO
MATERIAL
DE
MULTIPLICAÇÃO
EXISTENTE.
RETIFICAÇÃO PELO TRIBUNAL A QUO. DESNECESSIDADE DE
NOVA PERÍCIA.
1. O Erro material não tem o condão de tornar imutável a parte do
decisum onde se localiza contradição passível de correção do
resultado do julgado.
2. É assente que a coisa julgada é qualidade consubstanciada na
imutabilidade do acertamento ou da declaração contida na sentença,
no que pertine à definição do direito controvertido.
3. Consectariamente, erros materiais ou a superestimação
intencional do valor da "justa indenização" escapam do manto da
coisa julgada, como cediço na jurisprudência do próprio STJ que
admite, sem infringência da imutabilidade da decisão, a atualização
do quantum debeatur no processo satisfativo.
4. Na hipótese, constatou-se a existência de erro material no julgado,
porquanto o laudo pericial homologado pelo juízo avaliou a área por
preço do hectare e multiplicou pela área de 6.685,245 hectares,
quando a área desapropriada, em verdade, era de 4.840,011
hectares, conforme constatado pelo levantamento topográfico da
área, não contestado pelas partes, sem prejuízo de a decisão
originária ter assentado que "não me parece razoável denegar o
pleito formulado pela autarquia em atendimento ao princípio da justa
indenização, ante a incomensurável valorização do preço do hectare
na área onde se situa o imóvel expropriado, que resulta em
simplesmente 158%, ainda que se considere o espaço temporal de
dez anos entre a data da avaliação e aquelas utilizadas como
referência pelo INCRA, nas planilhas de fls. 342/349".
5. Deveras, o E. STF tem assentado que "não ofende a coisa julgada
da decisão que, na execução, determina nova avaliação para
atualizar o valor do imóvel, constante de laudo antigo, tendo em vista
atender a garantia constitucional da justa indenização" (STF, RE.
93412/SC, Rel. Min. Clovis Ramalhete, DJ. 04.06.1982), princípio
que se estende às hipóteses de superestimativa calcada em erro
material.
16
6. Precedentes do STJ: REsp 283.321/SP, DJU 19/02/2001; REsp
37.085-0/SP, DJU 20/06/94.
7. Recurso especial provido.
(REsp 765.566/RN, Rel. Ministro LUIZ FUX, Primeira Turma, julgado
em 19.04.2007, unânime, DJ de 31.05.2007, p. 342)
PROCESSUAL CIVIL. TUTELA ANTECIPADA. EFEITOS. COISA
JULGADA.
1. Efeitos da tutela antecipada concedidos para que sejam
suspensos pagamentos de parcelas acordados em cumprimento a
precatório expedido.
2. Alegação, em sede de Ação Declaratória de Nulidade, de que a
área reconhecida como desapropriada, por via de Ação
Desapropriatória Indireta, pertence ao vencido, não obstante
sentença trânsito em julgado.
3. Efeitos de tutela antecipada que devem permanecer até solução
definitiva da controvérsia.
4. Conceituação dos efeitos da coisa julgada em face dos princípios
da moralidade pública e da segurança jurídica.
5. Direitos da cidadania em face da responsabilidade financeira
estatal que devem ser asseguradas.
6. Inexistência de qualquer pronunciamento prévio sobre o mérito da
demanda e da sua possibilidade jurídica.
7. Posição que visa, unicamente, valorizar, em benefício da estrutura
social e estatal, os direitos das partes litigantes.
8. Recurso provido para garantir os efeitos da tutela antecipada, nos
moldes e nos limites concedidos em primeiro grau.
(REsp 240.712/SP, Rel. Ministro JOSÉ DELGADO, Primeira Turma,
julgado em 15.02.2000, maioria, DJ de 24.04.2000, p. 38)
Dinamarco faz menção, ainda, a exemplo de caso concreto no qual uma
seguradora oferece embargos à execução de seguro de vida, alegando que o
segurado estaria vivo. Julgados improcedentes os embargos com trânsito em
julgado da sentença, e ultrapassado o prazo da rescisória, vem o “morto” a
reaparecer. Parece lógico que tal sentença não deve prevalecer. Contudo, nesse
caso específico, não se aplica a tese do doutrinador quanto à impossibilidade
jurídica do pedido. A impossibilidade é, na verdade, fática, ou seja, ligada a um fato
concreto da realidade que o direito não tem o poder de modificar e que, por isso,
leva à ineficácia total da decisão. Seria algo como emprestar validade jurídica a
sentença que determinasse “chover para cima”.
Também na linha dos que admitem a possibilidade de relativização da
coisa julgada material, o Min. José Delgado, do STJ, acredita que “a autoridade da
coisa julgada está sempre condicionada aos princípios da razoabilidade e da
proporcionalidade, sem cuja presença a segurança jurídica imposta pela coisa
17
julgada ‘não é o tipo de segurança posto na Constituição Federal’.”38 Afirma, ainda,
ser impossível ter-se por imutável a decisão expedida pelo juiz com referência aos
fatos, especialmente quando essa manifestação viola a realidade natural das coisas,
a situação fática verdadeira e os princípios constitucionais39.
Por sua vez, Humberto Theodoro Júnior e Juliana Cordeiro de Faria
defendem a nulidade da coisa julgada material quando a decisão judicial solidificar
situação que afronta a Constituição Federal, vício que autoriza o reconhecimento da
invalidade da sentença a qualquer tempo. Entendem, no entanto, que a certeza e a
segurança são valores suficientes para justificar a validade da coisa julgada ilegal,
quando ultrapassado o prazo da rescisória.
Para eles, “a coisa julgada inconstitucional autoriza a relativização do
princípio da intangibilidade, como instrumento hábil a garantir a integridade e
Supremacia da Constituição Federal e a própria segurança jurídica”40. Partem os
autores da premissa de que “todos os poderes e órgãos do Estado (em sentido
amplo) estão submetidos às normas e princípios hierarquicamente superiores da
Constituição”41, não se podendo conceber que uma ilegalidade possa justificar a
desconstituição da coisa julgada material (no caso da rescisória) e que, no entanto,
essa mesma sentença acobertada pelo manto da res iudicata esteja imune ao
controle de sua constitucionalidade.
O argumento, entretanto, é falacioso, na medida em que, ao admitir a
rescisão do julgado por ofensa a literal disposição de lei, o art. 485, V, do CPC
também admite a rescisão do julgado por ofensa a dispositivo da Constituição
Federal, desde que dentro do prazo de 2 anos (art. 495 do CPC), não existindo a
diferenciação de tratamento entre a sentença que afronta a lei e a que afronta a
Constituição, como quis fazer crer o autor.
38
In DINAMARCO, Cândido Rangel. Nova Era do Processo Civil. 2ª ed. – São Paulo: Malheiros
Editores, 2007, p. 226.
39
Texto básico da palestre proferida, em Fortaleza, no dia 20.12.2000, no I Simpósio de Direito
Público da Advocacia-Geral da União, 5ª Região, promovido pelo Centro de Estudos Victor Nunes
Leal.
40
In THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional
e os instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord). Coisa
julgada inconstitucional. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2006, p. 178.
41
Idem, p. 175.
18
Seu raciocínio é contraditório, inclusive, quando afirmam que todos os
valores inseridos na Constituição (dentre eles o princípio da intangibilidade da coisa
julgada) se encontrariam em plano inferior ao da Supremacia da Constituição42 –
“razão pela qual a qualquer tempo possível será retirar a validade de um ato a ela
contrário, ainda que se trate de decisão judicial sob o manto da res iudicata” -, mas,
mais adiante, admitem que a segurança jurídica pode suplantar o princípio da
constitucionalidade (Supremacia da Constituição), como acontece quando se
permite a modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade no controle
concentrado.
Ora, se o sistema admite a manutenção, ainda que em relação a
determinado período, de decisões judiciais reconhecidas como inconstitucionais pelo
STF
(seja
nos
casos
de
modulação
dos
efeitos
da
declaração
de
inconstitucionalidade, seja nos casos do art. 52, X, da CF, seja nos casos de
inconstitucionalidade por omissão, que se perpetua enquanto dura a omissão) é
porque o princípio da constitucionalidade não se encontra realmente numa escala
superior aos demais princípios constitucionais.
Particularmente, parece-nos que a validade e eficácia de qualquer norma
(e até da CF) decorrem, primordialmente, da sua razoabilidade e utilidade diante de
uma determinada realidade fática e da circunstância histórico-social em que tal
realidade se insere, e não do fato de estar posta num documento chamado
Constituição que se convencionou, desde o histórico caso Marshall x Marbury,
admitir como de hierarquia superior às demais leis. Daí decorre que, se a CF trouxer
proposição absurda, será, sim, desconsiderada, como ocorreu no caso do art. 192, §
3º, da CF que jamais foi aplicado. A par das diversas explicações jurídicas “formais”
42
“... o princípio da intangibilidade da coisa julgada, ainda para aqueles que o consideram de
natureza constitucional, e, portanto, um valor constitucional, não se insere no mesmo plano de
relevância que a Supremacia da Constituição, pelo que consideramos inexistir um verdadeiro conflito
de princípios ou valores. O conflito pressupõe que os valores estejam no mesmo plano e tenham
igual relevância, tal qual declarado no preâmbulo da Constituição Federal. Destarte, entre a liberdade,
a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça não haveria preponderância
identificável prima facie entre eles (...), razão pela qual, em uma situação concreta poderá haver
conflito entre alguns deles, a impor uma solução. E esta deverá ser ditada, caso a caso, a partir de
um juízo de proporcionalidade e razoabilidade.
Todavia, todos esses valores guardam uma limitação que é ditada pela Supremacia da
Constituição, pois é dela que extraem a sua força. Existe, assim, uma preponderância do princípio da
constitucionalidade, visto ser a Constituição Federal o valor máximo da ordem jurídica.” (In In
THEODORO JÚNIOR, Humberto e FARIA, Juliana Cordeiro de. A coisa julgada inconstitucional e os
instrumentos processuais para seu controle. In: NASCIMENTO, Carlos Valder do (Coord). Coisa
julgada inconstitucional. Belo Horizonte: Ed. Fórum, 2006, pp. 178/179)
19
que justificaram sua inaplicabilidade, a verdade é que propunha uma intervenção no
mercado financeiro cuja subsistência era inviável à época. Não há lei que acabe com
a inflação e que conserte, por si só, qualquer aspecto da realidade.
Tal proposição parece ter sido acolhida pelo ordenamento jurídico
brasileiro, ainda que com abrangência reduzida, com a norma inserida no parágrafo
único do art. 741 do CPC43.
De ressaltar-se que a hipótese descrita no art. 741 do CPC somente
reconhece a ineficácia da coisa julgada material, não se prestando a desconstituíla. Por esse motivo, somente produz efeitos ex nunc, enquanto que a
desconstituição da coisa julgada material pode gerar efeitos ex tunc, como por
exemplo, o direito a repetição de valores indevidamente pagos e até de indenização
por eventuais danos e lucros cessantes advindos do pronunciamento judicial.
Humberto Theodoro e Juliana Cordeiro, entretanto, criticam o preceito
legal, afirmando que “não tem sentido, data venia, legislar sobre a impugnação à
coisa julgada, durante o procedimento de execução, restringindo o incidente tãosomente à hipótese de aplicação de lei já declarada, em ação direta,
inconstitucional, como se operou com a recente Lei nº 11.232/05. A manter-se a
restrição proposta, a coisa julgada, quando não for manejável a ação direta, estará
posta em plano superior ao da própria Constituição”44. Ressaltam, ainda, que “Não
é, (...), o pronunciamento do STF que constitui a nulidade da norma ou ato
inconstitucional. A invalidade decorre ipso iure do próprio ato perpetrado ao arrepio
de mandamento da Lei Maior”45, razão pela qual, para eles, “Ainda que não se
admita o uso dos embargos à execução fora dos casos expressamente indicados,
para se obter a relativização e se restabelecer o império da Constituição, cabível
será a via da ação declaratória de nulidade, ou a querela nullitatis, se não for mais
43
Art. 741. Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre:
(...)
II - inexigibilidade do título;
(...)
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também
inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo
Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo
Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal. (modificado pela Lei nº
11.232, de 22.12.2005)
44
Idem, p. 191.
45
Idem, p. 193.
20
possível a ação rescisória, em virtude do prazo decadencial que o Código lhe
impõe”46.
A tese dos referidos autores também não esclarece se a coisa julgada
material chega a se formar nos casos em que uma decisão judicial se fundamenta
em preceito inconstitucional. Mencionam eles a inexistência de preclusão para a
alegação de inconstitucionalidade de lei ou ato. Ao mesmo tempo, defendem a
possibilidade de oposição de embargos à execução (ou, mais modernamente, de
impugnação ao cumprimento de sentença) em face de sentença inconstitucional, ou
mesmo a possibilidade de desconstituição do título judicial pela via da querela
nullitatis.
Os embargos à execução somente se prestam a reconhecer a
inexigibilidade de um comando sentencial. Ora, se um título judicial é inexigível, ele
existe e é válido. Apenas não gera efeitos. Em casos tais, ainda que não gere efeitos
em favor do exeqüente, aquele título judicial acobertado pela coisa julgada, se não
for desconstituído de alguma forma, impedirá a rediscussão da questão pelas
mesmas partes em Juízo. Ademais, se tal decisão judicial (inconstitucional) chegou
a gerar efeitos em favor do exeqüente, ao longo da fase de conhecimento, em
função de alguma tutela antecipada ou de alguma providência cautelar concedida
(imaginemos,
previdenciários
por
exemplo,
mais
tarde
o
recebimento
reconhecidos
de
como
proventos
fundados
ou
em
benefícios
normas
inconstitucionais), é bem provável que o mero reconhecimento da inexigibilidade do
título não autorizasse a repetição daquilo que foi pago indevidamente até a prolação
da nova decisão judicial que reconheceu a existência de coisa julgada
inconstitucional. Problema esse, que, aliás, ocorre em todas as liminares satisfativas,
pois não há como se desconsiderar o fato de que há direitos cujo exercício é
instantâneo e se exaure dentro de um lapso de tempo, não permitindo a restauração
do status quo ante.
Se assim é, é forçoso reconhecer que essa relativização mais branda
(que somente reconhece ineficácia aos efeitos da coisa julgada material) admite, em
sua essência, a permanência de efeitos (pretéritos) e de um pronunciamento
46
Idem, p. 194.
21
inconstitucional a ferirem permanentemente a Constituição Federal, o que parece
contrariar a essência do pensamento dos autores.
Por outro lado, a desconstituição do julgado, por meio de ação anulatória,
pelo menos aparentemente, restringiria ao máximo possível a possibilidade de
existência e de sobrevivência dos efeitos gerados pela sentença inconstitucional.
6.2 Algumas teses desfavoráveis
Nelson Nery Júnior, por sua vez, é contrário às propostas de relativização
da coisa julgada material. Para ele, “O risco político de haver sentença injusta ou
inconstitucional no caso concreto parece ser menos grave do que o risco político de
instaurar-se a insegurança geral com a relativização”47.
Defende, ainda, que a questão não é mais passível de discussão pois já
foi objeto de ponderações de constitucionalistas, processualistas e civilistas por mais
de um século e que, “No século XXI não mais se justifica prestigiar e dar aplicação a
institutos como os da querela nullitatis e da praescriptio immemoriabilis”. Chega a
dizer que, pelo fato de o subprincípio da segurança jurídica constituir manifestação
do Estado Democrático de Direito, “Desconsiderar a coisa julgada é eufemismo para
esconder-se a instalação da ditadura, de esquerda ou de direita, que faria
desaparecer a democracia que deve ser respeitada, buscada e praticada pelo
processo”48.
A despeito do usual brilhantismo do doutrinador, o argumento não se
sustenta. Dizer que teses novas a respeito de um assunto não podem surgir porque
ele já foi por demais discutido implicaria em que teríamos escravidão até os nossos
dias. Ameaçar com a volta da ditadura, fantasma que assombra todos os brasileiros
com mais de 40 anos que vivenciaram com algum entendimento esse período da
história brasileira, não passa de mera elucubração desprovida de fundamentos
plausíveis e concretos.
47
In NERY JUNIOR, Nelson. Teoria Geral dos Recursos. 6ª ed. atual., ampl. e reformulada. – São
Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 507.
48
Idem, p. 509.
22
O mesmo exercício de adivinhação apocalíptica faz o autor quando afirma
que “De nada adianta a doutrina que defende essa tese pregar que seria de
aplicação excepcional, pois, uma vez aceita, a cultura jurídica brasileira vai,
seguramente, alargar os seus espectros – (...) –, de sorte que amanhã poderemos
ter como regra a não-existência da coisa julgada e como exceção, para pobres e
não poderosos, a intangibilidade da coisa julgada”.
Argumentação semelhante já foi usada por aqueles que se manifestaram
contra o divórcio, prevendo o esfacelamento da célula mater da sociedade, já que
todos os casados iriam querer se divorciar.
Por outro lado, o autor admite a existência de situações em que o
ordenamento jurídico prevê hipóteses de desconsideração da coisa julgada e
reconhece a sua constitucionalidade, ao fundamento de que tais hipóteses são
“conseqüência da incidência do princípio constitucional da proporcionalidade, em
face da extrema gravidade de que se reveste a sentença com os vícios arrolados em
numerus clausus pelo CPC 485”. No entanto, somente admite o alargamento dessas
hipóteses mediante modificação da lei.
Também contrário à relativização da coisa julgada material, Sérgio Nojiri
defende que a flexibilização da res iudicata em nome da busca de justiça pode trazer
mais danos do que benefícios, pois esbarraria em critérios subjetivos. Segundo esse
autor:
“(...) a única justiça que se pode aferir com alguma dose de certeza e
de confiança, válida para o sistema jurídico-normativo, é a de justiça
formal (ou instrumental), que é aquela que se extrai do complexo de
regras do ordenamento e que resulta numa decisão final não mais
passível de recurso, ordinário ou extraordinário. Para essa justiça, o
fundamental não é a busca por uma satisfação moral, ética ou
política, difícil de ser encontrada em termos objetivos, mas uma
resposta final para que os conflitos não se perpetuem no tempo e
que sejam resolvidos de acordo com as regras instrumentais
previstas na Constituição Federal e demais normas previstas no
sistema”49.
Parte ele da premissa de que a constitucionalidade de uma decisão
judicial deriva do fato de ter sido a causa julgada por quem tem competência e
legitimidade constitucional para fazê-lo.
49
NOJIRI, Sérgio. Crítica à Teoria da Relativização da Coisa Julgada. In: Revista de Processo, vol.
123 (maio de 2005). Editora Revista dos Tribunais, p. 138.
23
O raciocínio lembra um pouco a teoria Keynesiana que justifica a validade
da norma em uma norma pré-existente (sem que se questione jamais a legitimidade
do “motor primeiro” ou da “norma originária”, o que se presta perfeitamente a
referendar as leis e atos de qualquer Estado autoritário que imponha uma
Constituição e mesmo formas de tolher futuras propostas legislativas).
Não é demais lembrar que, por mais legítimo que seja o órgão prolator da
decisão judicial, existe sim a possibilidade de que ele incorra em erro na
interpretação da norma, declarando, por sentença, a validade de uma tortura ou da
submissão de uma pessoa a condição análoga à de escravo. Poderia tal situação
ser mantida unicamente com base no preceito de que a “justiça formal” declarada
por um juiz natural (art. 5º, LIII, da CF/88) deve ser respeitada, convalidada e tida
como constitucional em nome da preservação da segurança jurídica? Creio que não.
Aponta, ainda, o autor, o problema do regresso ao infinito que poderia
surgir se, de cada nova interpretação de uma mesma norma constitucional,
derivasse o direito de se reabrir um caso.
O questionamento não é novo e já existe em relação à ação rescisória,
quando se pergunta até que ponto pode-se ajuizar uma rescisória de rescisória.
7. Conclusão
Sejam a favor ou contra a relativização feita pelo próprio Poder Judiciário,
quase todos os doutrinadores admitem a existência de situações em que a injustiça
cometida numa decisão judicial pode subsistir e ser acobertada pela coisa julgada
material.
O próprio ordenamento, admitindo a possibilidade de falha no seu
sistema, tentou identificar os vícios mais graves que autorizariam o reconhecimento
de tais falhas em momentos posteriores àquele em que ocorre o trânsito em julgado
da sentença. Ora, se assim foi, é porque, salutarmente, o sistema reconhece que
pode cometer erros, assim como o fazem muitas vezes os seus operadores, e que
deve haver uma maneira de sanar tais erros. Uma tal flexibilização mantém vivo o
24
sistema. Sua rigidez poderia levar à sua total eliminação. E o ordenamento jurídico
deve acima de tudo responder aos apelos da realidade e não vice-versa.
Se hoje em dia nos deparamos com exames de DNA que falseiam a
conclusão do juiz em sentença acobertada pela coisa julgada, é porque a realidade
está evoluindo e cabe ao sistema jurídico se adaptar a ela, sob pena de encontrar o
seu fim no esquecimento, no descrédito e na inutilidade.
Não se nega que vários dos argumentos desenvolvidos pelos defensores
da tese da desconsideração são passíveis de críticas. Mas não é porque ainda não
foi encontrada a melhor solução para um problema que se deva defender a
perenização do problema.
Se
partirmos
do
pressuposto
de
que
o
Direito
deve
buscar
primordialmente a justiça e a adequação de seus preceitos à realidade concreta e às
necessidades de uma sociedade, mais do que a pacificação dos conflitos sociais
(pacificação essa que pode ser feita mesmo com base em regras autoritárias e
dissociadas de bom senso prático), vale à pena, sim, desconsiderar a coisa julgada
material em situações em que a realidade fática venha provar o erro das conclusões
do juiz, pois a jurisprudência já decide em situações nas quais ainda não há lei a
respeito do assunto, com base em princípios gerais, analogia e eqüidade. Pior do
que ameaçar o sistema com uma relativa falta de segurança jurídica é ameaçá-lo
com a falta de prestação jurisdicional.
Quando o juiz cruza os braços e se nega a resolver um problema porque
a lei ainda não dispôs sobre o assunto, ele, de antemão, já comete uma injustiça. E
sabe-se que a lei não tem condição de acompanhar pari passu a realidade.
Portanto, se situações há que não devem ser admitidas como válidas pelo
Direito ante a sua flagrante injustiça, independentemente de já existir lei dispondo
sobre elas, deve a jurisprudência buscar uma solução que, futuramente, poderá, ou
não, vir a ser referendada por lei superveniente que disponha sobre o tema
aplicando-lhe solução idêntica à anteriormente preconizada pelo julgador.
É inegável que o melhor seria que a própria lei ampliasse as hipóteses em
que se admite a relativização da coisa julgada material, pois, juntamente com tais
hipóteses, talvez viessem os parâmetros utilizados pelo legislador para a
identificação de vícios inaceitáveis e que não deveriam ser convalidados pelo
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ordenamento. Mas, na falta de uma orientação prévia da lei, é perfeitamente
aceitável que o magistrado se negue a reconhecer a validade da coisa julgada
absurdamente injusta e contrária à realidade, e que possa desconstituí-la.
Acreditamos mesmo que a tendência seja essa, como se vê do art. 741,
parágrafo único, do CPC.
Registramos, por fim, que, a nosso sentir, a inexistência de um meio
processual pré-determinado para se veicular a pretensão de desconstituição da
coisa julgada material não pode ser usado como argumento contra tal pedido. Ora,
muito antes de o ordenamento jurídico definir o procedimento a ser seguido no
mandado de injunção, no habeas data, na ADin, na ADPF e, mais recentemente,
nos casos em que for provida a apelação contra sentença que julgou improcedente
um pedido com base no art. 285-A do CPC, eram exercitadas as ações
constitucionais e postos em prática os dispositivos constitucionais e infraconstitucionais
que
reclamavam
(alguns
ainda
reclamam)
regulamentação
procedimental.
É bem verdade que a tese gera uma série de questionamentos: caberia
desconstituição de desconstituição, como cabe rescisória de rescisória?
Talvez, para os mais preocupados com a segurança jurídica, a melhor
solução fosse o reconhecimento da ineficácia da sentença “relativizável”, pois seus
efeitos seriam ex nunc.
Melhor ainda seria abrir-se a possibilidade de utilização da ação rescisória
a qualquer tempo, como ocorre no caso da revisão criminal.
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CLÁUDIA VALÉRIA ALVES PEREIRA