REPUBLICANISMO
E
LIBERALISMO
-
DA
RELAÇÃO
ENTRE
CONSTITUCIONALISMO E DEMOCRACIA NO MARCO DAS TRADIÇÕES
DO PENSAMENTO POLÍTICO MODERNO
Marcelo Andrade Cattoni de Olivreira
Mestre e Doutor em Direito Constitucional (UFMG)
Professor Adjunto de Filosofia do Direito, Sociologia Jurídica, Teoria Geral do Direito e
Hermenê u tica e Teoria da Argument ação Jurídica (PUCMinas)
Professor Adjunto de Teoria da Constituição, Teoria Geral do Estado e Direito
Constitucional (UFMG)
Professor de Teoria Geral do Direito do Curso de Direito da Escola Superior Dom Helder
Câmara
Membro do Comitê de Ética na Pesquisa (PUCMinas)
Membro da Associação Brasileira de Filosofia e Sociologia do Direito
Membro do Instituto Brasileiro de Direito Processual
Membro do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos Humanos da Secretaria de Estado da
Justiça e Direitos Humanos de Minas Gerais
Membro da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção
Minas Gerais
1 – INTRODUÇÃO
Na introdução à sua tradução de Faktizität und Geltung (Direito e
Democracia: Entre facticidade e validade ), de Jürgen Habermas, Manuel
Jiménez Redondo (1998) parte do pressupos to segundo o qual se poderia
considerar a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
como uma das expressões mais significativas do conteúdo normativo da
Modernidade política. Analisando a Declaração, seria possível reconhecer a
marca das duas grandes tradições do pensamento político moderno, a liberal
e a republicana, representa das, respectivamente, nos embates políticos da
Revolução Francesa, pelos girondinos e pelos jacobinos (ELSTER 1994: 57ss.).
Após o seu preâmbulo, que procura explicitar as razões pelas
quais os “representantes do povo francês” julgaram necessário “expor em
uma declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do
home m” - ou seja, o esquecimento, a ignorância e desapreço pelos direitos
do homem como causa de toda corrupção dos governos - , a Declaração de
1789 passa a especificar uma série de princípios e de direitos, dentre os
quais, os direitos
à igualdade
jurídica, à liberdade,
à propriedade,
à
segurança e à resistência à opressão (arts.1º e 2º); e o objetivo de toda
sociedade política, a conservação desses direitos “naturais e imprescritíveis
do home m” (art. 2º). O art. 4º esclarece que “a liberdade consiste em poder
fazer tudo aquilo que não prejudique a outrem; por isso, o exercício dos
direitos naturais do homem não tem outro limite que aqueles que assegurem
aos demais membros de uma sociedade o gozo dos mesmos direitos”.
Até esse ponto, a Declaração nada mais seria que a expressão da
idéia liberal lockeana funda me ntal, segundo a qual haveria um conjunto de
direitos pré - políticos, verdadeira fonte normativa natural, que precederia,
limitaria e condicionaria a lei, devendo essa ser tão- somente a encarnação e
a expressão daqueles direitos. Assim, o art. 5º dirá que não cabe à lei senão
proibir as ações nocivas à sociedade, que desrespeitem os fins para os quais
a sociedade civil se constitui: a garantia e a conservação dos direitos naturais
do homem. E o restante do art. 5º, “tudo o que não está vedado pela lei não
pode ser impedido, e ninguém pode ser forçado a realizar o que a lei não
ordena”, e, ainda, o art. 3º, “a soberania reside essencialmente na nação.
Nenhu m indivíduo ou corporação poderão realizar o exercício de autoridade
que não emane expressame nte dela”, podem, também, ser interpretados no
sentido liberal segundo o qual,
...“para evitar os inconvenientes do ‘estado de
natureza’ e com o objetivo de uma melhor conservação dos
direitos, se institui por pacto uma com monwealth para cujo
govern m e nt se delega a faculdade que no ‘estado de natureza’
cada indivíduo tinha de fazer valer coercivamente seus
direitos; ao govern me nt dessa com monwealth compete agora
com exclusividade a função de fixar, interpretar e impor os
direitos.”(JIMÉNEZ REDONDO 1998: 21)
Todavia, segundo Jiménez Redondo, o art. 6º irá introdu zir uma
outra fonte de normatividade e de legitimidade bastante distinta daquela
que representa m os direitos naturais que precederiam a sociedade política,
na linha do pensa mento não mais de Locke, mas de Rousseau: “A lei é a
expressão da vontade geral. Todos os cidadãos têm o direito de concorrer
para a sua formação pessoalmente ou por seus representa ntes”; e, sendo
assim, a lei “deve ser a mesma para todos, seja que proteja, seja que
castigue”. O art. 6º levanta a questão acerca do que deveria ocorrer com a lei,
que podendo considerar - se expressão da vontade geral, vulnere os direitos
naturais. Com base no art. 5º, a lei que desrespeitasse direitos naturais
deveria ser nula. Mas, desde a perspectiva do art. 6º, obter - se- ia, por sua
vez, um sentido bastante diferente que, inclusive, poderia estar mais de
acordo com o disposto no art. 3º. A questão é que, da perspectiva do art. 6º,
explica Jiménez Redondo,
“A liberdade não consiste primeira mente, como
disse o artigo quarto da Declaração, ‘em poder fazer tudo o
que não prejudique a outrem; por tanto, o exercício dos
direitos naturais do homem não têm outros limites que
aqueles que assegurem aos demais membros da sociedade o
gozo desses mesmos direitos’ (art. 4); tampouco consiste em
estar permitido a qualquer um tudo aquilo que as leis do
soberano não proíbem; senão que primariamente consiste
naquilo a que se faz referência n’O contrato social [de
Rousseau] ao assinalar o problema que o contrato resolve:
‘Encontrar una forma de associação que defenda, com toda a
força comum, a pessoa e os bens de cada associado e pela
qual cada um, unindo - se a todos, não obedeça, todavia, senão
a si mesmo’, isto é, a liberdade consiste primariamente em
autonomia pública, quer dizer, em havendo de estar
submetido a leis, não estar submetido a outras leis que as que
qualquer um haja podido impor a si mesmo, conjunta mente,
com cada um de todos os demais, podendo valer para todos e
para qualquer um.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23)
Todavia, segundo Jiméne z Redondo, (grifos meus )
“Deste conceito positivo de liberdade deriva,
certamente, outro inteiramente subordinado a ele: ‘Tudo o
que não está vedado pela lei não pode ser impedido, e
ninguém pode ser constrangido a fazer o que ela não ordena’
(art. 5), mas disso não resulta necessariamente o conceito
do artigo quarto.” (JIMÉNEZ REDONDO 1998: 23)
Afinal, um argume n t o é dizer que a lei não pode ferir os direitos
hu ma n o s naturais (ou funda m e n t ais), baseados na noção de liberda d e
segun d o a qual essa consiste em fazer tudo o que não prejudique o igual
exercício da mes m a liberdade pelos outros, e outro argume nt o consiste em
afirmar que a lei é a expressão da liberdade enquant o autono mia política
de cada um, que se exerce no interior ou no todo da socieda de política.
Para se pontuar a importância de tal problemática, e da força que essas duas
concepções ainda possue m na atualidade, basta abrirmos a Constituição
brasileira de 1988 para notar mos, a princípio, um certo paralelismo com a
Declaração de 1789. Por um lado, o art.5º da Constituição brasileira dispõe
que todos são iguais perante a lei, sendo garantidos os direitos à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade; e o art. 60, §4º, inciso IV,
torna esses direitos um limite ao exercício do Poder Legislativo, inclusive do
Poder Constituinte de Reforma da Constituição, ao determinar que não
deverá ser (o texto, em tom de declaração, diz, literalmente, “não será”)
objeto de apreciação por parte do Poder Legislativo proposta de Ementa
tendente a abolir direitos e garantias individuais (isso, sem nos esquecer mo s
da normativa do inciso XXXVI, do art.5º, que determina que a lei não deverá
prejudicar - “não prejudicará”, como está no texto – o direito adquirido, o
ato jurídico perfeito e a coisa julgada). Por outro lado, o art. 1º, parágrafo
único, da Constituição, dispõe que a fonte de legitimidade do poder político
é o povo , que o exerce por meio de seus representantes
eleitos ou
diretamente; e o art.5º, II, estabelece que “ninguém será obrigado a fazer ou
deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Como, ontem e hoje,
compreender adequada me nte esses dispositivos normativos?
Diante dessa problemática, Isaiah Berlin, como outros autores, no
terreno da Filosofia Política, buscou sintetizar o que seria o grande e
duvidoso legado da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, com as seguintes palavras:
“A relação entre democracia e liberdade individual é
bem mais tênue do que pareceu a muitos defensores de
ambas. O desejo de ser governado por mim mesmo ou, pelo
menos, de participar do processo através do qual minha vida
deve ser controlada, pode ser um desejo tão profundo quanto
o de uma área livre para a ação, e talvez historicamente mais
antigo . Mas não é um desejo relativo à mesma coisa . Na
realidade, é tão diferente, que levou, em última instância, ao
grande conflito de ideologias que domina nosso mundo. Pois
é isto – a concepção “positiva” de liberdade: não liberdade de,
mas liberdade para – de levar uma forma de vida prescrita –
que os adeptos do conceito de liberdade “negativa” imaginam
seja, algumas vezes, nada mais do que um ilusório disfarce
para a tirania brutal.” (BERLIN 1981: 142)
Mas será essa a forma mais adequada, ao paradigma do Estado
Democrático de Direito, de se reconstruir o conteúdo normativo moderno,
que se expressa, por exemplo, através do disposto pela Declaração dos
Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, e que encontra ecos até hoje,
como no Direito Constitucional brasileiro?
Tal indagação se impõe não somente por uma questão teórica mas
também por uma questão prática, operacional, do Direito, fundamental para
a
questão
acerca
de
uma
justificação
do
controle
judicial
de
constitucionalidade das leis e do processo legislativo. Pois é algo bastante
diferente tentar justificar, por um lado, de uma perspectiva liberal, que tal
controle se sustenta em razão da garantia dos direitos liberais fundamentais
frente ao legislador, e, por outro lado, buscar justificar, se é que é possível
justificar, de uma perspectiva republicana, que esse controle se baseia na
garantia da manifestação de uma cidadania ativa.
Será impossível compreender de forma não concorrente o que
estaria disposto nos arts. 4º e 6º, da Declaração, os direitos do home m e os
direitos do cidadão ? Ou, em outras palavras, será possível conectar a fonte
normativa que emprestaria legitimidade às leis, que é representada pelos
direitos humanos (“naturais”), de liberdade, de propriedade e de segurança,
que o liberalismo buscou consagrar, e a fonte normativa, destacada pelos
republicanos, que representa o exercício democrático da autodeter minação
política, da qual as leis deveriam emanar?
Cabe dizer, desde já, que a tentativa histórica de solucionar tal
questão, através da divisão de papéis entre home m membr o da sociedade
civil e cidadão membr o da socieda de política não resolve o proble m a, que
poderia ser colocado por uma lei expressã o da autono mia política dos
cidadãos que pudesse violar direitos huma no s naturais (portanto, comun s
a todos, cidadãos ativos ou não), já que, em princípio, a possibilidade de
violação desses direitos per ma neceria.
A fim
indagações,
controle
de
todas
buscar
contribuir
elas centrais
jurisdicional
de
para
para uma
a reflexão
justificação
constitucionalidade
das
leis
acerca
dessas
democrática
e do
do
processo
legislativo, teremos de reconstruir os conceitos de autonomia pública e de
autono mia privada, bem como os de constitucionalismo e de democracia, a
eles relacionados, e mostrar que, no paradigma do Estado Democrático de
Direito, à luz de uma teoria discursiva do Direito e da Democracia, tais
conceitos não se opõem mas, ao contrário, estão intimamente implicados.
Mas, antes disso, neste capítulo, procurarei explicitar como as
tradições
político- democráticas
modernas,
a
republicana
e
a
liberal,
buscaram enfrentar esses problemas. E, também, como resultam, de suas
construções, compreensões político- constitucionais divergentes, acerca da
relação entre constitucionalismo e democracia. Como veremos, ao referir a
Constituição a valores éticos tradicionais de uma nação, sempre carentes de
estabilização, ou ao considerá - la um limite jurídico - moral à atuação do
legislador político, respectivamente, os republicamos darão prioridade à
autono mia pública em detrimento da privada e os liberais darão prioridade à
autono mia
privada
em
detrimento
da
pública.
Ao vincular - se, como
veremos, a uma noção de liberdade positiva, o Republicanismo acentuará a
autono mia pública e a interpretará em termos de autorrealização ética; e o
Liberalismo, ao vincular - se a uma noção de liberdade negativa, acentuará a
autono mia privada e a interpretará como autonomia moral ou, então, como
“escolha racional”. Nesse sentido, a Democracia surgirá ou como uma forma
político - instrume ntal que legitima um governo que representa os interesses
majoritários, como considerarão os liberais, ou como a forma política de
autorrealização ética de uma nação, como compreenderão os republicanos.
Todavia, como veremos, essas tentativas empreendidas tanto por
liberais quanto
por republicanos
são extrema me nte
reducionistas. Pois
buscar solucionar o conflito entre autonomia pública e autonomia privada,
através de uma pretensa fundamentação ética, ou então moral, da relação
entre constitucionalismo
e democracia que, em última análise, leva à
prioridade de uma sobre a outra concepção da liberdade, “negativa” ou
“positiva”, é permanecer cego à conexão interna entre autonomia pública e
autono mia privada, à sua co- originalidade e à sua equiprimor dialidade.
2 - REPUBLICANISMO E LIBERALISMO
A tradição política republicana 1 remete - se a Aristóteles, através da
filosofia
romana
republicana
e
do
pensa mento
político
italiano
do
Renascimento (Humanismo Cívico) 2 . É recepcionada pelo pensamento de
James Harrigton 3 , o famoso opositor de Thomas Hobbes, e, através da obra
de Harrigton e de outros, influenciou os debates norte - americanos da
Convenção
de Filadélfia. Essa tradição
do
Maquiavel dos Discursos sobre a primeira
Republicanismo
década
Cívico, do
de Tito Lívio 4 , foi
1
Para uma pequena genealogia da tradição republicana, ver MOUFFE 1996: 85. E,
sobretudo, SANDEL 1982.
2
3
4
Sobre o Humanismo Cívico, ver BIGNOTTO 1991: 9ss. Também SKINNER 1996: 91ss.
Sobre James Harrington, ver SABINE in HARRIGNTON 1996.
Sobre Maquiavel e o Republicanismo
SKINNER 1996: 176- 177; 201ss.
renascentista
ver BIGNOTTO 1991. Também
transposta para a linguagem moderna do Jusnaturalismo, na recepção e
atualização realizadas pela obra de Jean- Jacques Rousseau, influenciando
grandes nomes da Revoluções Francesa e Americana. Mereceu as reflexões
de G.W.F. Hegel e do jovem Karl Marx, e despertou, já no século XX, a
admiração e a recepção crítica nos escritos políticos e filosóficos de Carl
Friedrich (1967) e de Hannah Arendt (1958; 1990; 1992), dentre outros.
Contemporanea m e nte, são considerados republicanos autores como Charles
Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e
Alasdair McIntyre, além de juristas como Neil MacCormick (1995), Michael
Perry (1990; 1994) e Frank Michelman (1988).
A tradição política liberal, de John Locke a Immanuel Kant, de
Emmanuel Sieyes e Thomas Paine, a Benjamin Constant ou a John Stuart Mill,
e passado por Jeremy Benthan e outros, chega aos nossos dias através dos
ensaios de Isaiah Berlin e de obras tão diversificadas como as de John Rawls
(1971; 1993a), Robert Nozick (1991), Charles Larmore (1996) ou Ronald
Dworkin (1978; 1993). Mas é a obra filosófico - política e moral de John Rawls
que, atualizando o jusnaturalismo de matriz kantiana e não- utilitarista,
reacendeu nos Estados Unidos o debate 5 , que mais tarde se alastrou pelo
mundo, entre Republicanos (comunitaristas ou não) e Liberais (sociais ou
não).
Essas duas tradições, enquanto tradições do pensamento político
moderno, compartilham a idéia segundo a qual todos os cidadãos são livres
e iguais. Assim,
5
ambas
defendem,
não
apenas
a existência
de uma
Sobre o debate ver, MOUFFE 1996: 37ss; 83ss., KUKATHAS- PETTIT 1995, HABERMAS
1997b, em várias passagens, TOURAINE 1996 , em várias passagens, APEL in BLANCO
FERNÁNDEZ- PÉREZ TAPIAS- SÁEZ RUEDA 1994.
Constituição
e
de
um
regime
democrático,
mas,
também,
a
constitucionalização de direitos fundame ntais. Todavia, isso não significa
que
a Constituição,
a Democracia
e os direitos
fundame ntais
sejam
interpretados da mesma forma por elas. Ao contrário, o que há entre essas
tradições políticas é uma série de divergências 6 , nem sempre conciliáveis,
quanto aos conceitos de processo político, cidadania (VIEIRA, J.R. 1997: 220),
direitos, constituição, democracia, etc.(HABERMAS 1997b: 2: 19ss.).
Tomemos, de início, o pensamento de Jean- Jacques Rousseau e de
John Locke, autores, esses, que podem ser compreendidos como aqueles
que, em primeiro lugar, fixaram
– e a Declaração de 1789 pode ser
considerada como reflexo disso – os termos das questões filosófico - políticas
que, à essa altura das nossas indagações, devem ser discutidas.
Jean - Jacques Rousseau, assim como John Locke, é muito conhecido, dentre
outros motivos, por ser um grande representante do "contratualismo" 7 . Em
6
Divergências, essas, que são muito bem apresent a d a s ao longo de toda reflexão
empreen dida em CITTADINO 1999. Ver, p. ex., a explicação da nota 10, na p.5, dessa obra.
7
Para uma visão geral do "contratualismo", e de que "por tal termo se entende uma escola
que floresceu na Europa entre os começos do século XVII e os fins do século XVIII e teve seus
máximos expoentes em J.Althusius (1557- 1638), T.Hobbes (1588- 1679), B.Spinoza (16321677), S.Pufendorf (1632- 1694), J.Locke (1632- 1704), J.- J.Rousseau (1712- 1778), I.Kant
(1724- 1804)", ver o verbete de Nicola Matteucci, in BOBBIO- MATEUCCI- PASQUINO 1994:
272. Matteucci adverte para o fato, bastante relevante para o presente estudo, de que por
escola entende "não uma comum orientação política, mas o uso comum de uma mesma
sintaxe ou de uma mesma estrutura conceitual para racionalizar a força e alicerçar o poder
no consenso". Mas se vai tornando inegável, à medida que a análise de Matteucci avança, a
influência dessas referidas "orientações políticas divergentes" (verdadeiras pragmáticas)
nessa "estrutura conceitual", que pouco resta como sendo a mesma, ainda mais em se
tratando da busca de "uma racionalização da força" ou de "um fundament o consensual do
poder". Sobre as teorias contratualistas hoje, ver, por exemplo, KERN- MÜLLER 1992.
seu livro, Do Contrato Social 8 , Rousseau (1983a) traça uma grande tese
acerca da organização, ou do que deveria ser a organização, política legítima.
"O homem nasce livre, e por toda parte encontra - se a ferros"
(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 22). Não há uma organização política que, não tendo
sido erguida em respeito à liberdade e à igualdade civis, exerça um domínio
legítimo sobre os homens. Somente um Pacto ou Contrato social que, ao
contrário de Hobbes, e num certo sentido na linha de Locke , não aliena a um
Leviathan , mas transfor ma e assegura, os direitos naturais, poderá fundar
uma organização política legítima.
Assim, não há como concor da r com Bobbio (1992b: 46) e outro s,
quan d o simples me n t e afirma m que Rousseau se afastaria de Locke e se
aproximaria de Hobbes 9 , por compree n d e r o contrato social como um "ato
de renúncia coletiva aos direitos naturais", pois isso é desconside r ar as
críticas de Rousseau ao Absolutis m o. Cabe lembrar que, em primeiro lugar,
para Rousseau, o Direito não pode advir da força (ROUSSEAU 1983a: 25 -
8
A tradução do francês ao português, na publicação feita pela Abril Cultural, em sua
coleção "Os Pensadores", é de Lourdes Santos Machado, com notas também redigidas por
Paul Arbousse - Bastide. Na primeira nota, os organizadores advertem, de modo, como se
verá, bastante significativo: "Na edição Dreyfus - Brisac, famosa por ser a primeira a tentar a
reposição do texto segundo as fontes originais, figura um fac- símile da primeira folha do
Manuscrito de Genebra , primitivo esboço do Contrato Social. Aí se encontra m as muitas
variantes por que passou o título da obra. Primeiro, foi mesmo "Do Contrato Social". Depois,
provavelmente para fugir ao sabor individualista dessa expressão, foi ela riscada e
substituída por "Da Sociedade Civil". A seguir, consciente da originalidade de sua
interpretação do esquema contratual, Rousseau retoma o primeiro título. Quanto ao
subtítulo, encontram os sucessivamente "Ensaio sobre a Constituição do Estado", "Ensaio
sobre a Formação do Corpo Político", "Ensaio sobre a Formação do Estado" e "Ensaio sobre a
Forma da República". "Princípios do Direito Político" é novidade que só surge na versão
definitiva do Contrato ."
9 Mesmo assim, a própria leitura
de Hobbes, empreen di da por Bobbio, carece de
maiores aprofun d a m e n t o s. Como demos t ra m os estudos mais recentes, Hobbes poderia
ser visto como um paradoxal defensor da esfera privada, que seria garantida por um
governo autoritário. Mas esse autoritaris m o possui limites. O soberano somente realizaria
suas ações através da linguagem abstrat a do Direito moder no, o que viabilizaria, portant o,
o direito de todos a iguais liberda de s subjetivas. Assim, Napoleão Bonaparte corporificaria
a figura de um soberano como esse, e muito melhor do que qualquer um dos reis Stuart.
26), e que “renunciar à liberda de é renunciar à qualidade de home m”
(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 27). E em segundo lugar, considero ser possível
compree n d e r o que Bobbio referindo - se a Rousseau chama de "renúncia
não em favor de um terceiro mas em favor de todos", não como uma
alienação pura e simples de direitos, mas como uma transfigur ação dos
direitos naturais, em razão da institucionalização jurídica desses no plano
da comunida de política do Estado. Porque tal institucionalização visa a
assegu rar e realizar esses direitos e não a uma mera transferência de
poder em favor do Estado, Rousseau aproxima - se de Locke, já que ambos
compree n d e m,
ao contrário de Hobbes, que o contrato social visa a
assegu rar os direitos naturais, através da sua institucionalização jurídico política. Isso, inclusive, pode ser ilustrado com as mesmas passagens da
obra rousseauniana citada por Bobbio (1992b: 47), as duas primeiras do
capítulo VI e a última do capítulo VIII, Do Contrato Social:
"Encontrar uma forma de associação que defenda e
apóie com toda a força coletiva a pessoa e os bens de cada um
dos membros e por meio da qual, cada um unindo - se a todos,
obedeça somente a si mesmo e permaneça livre como antes".
"Cada um oferecendo - se a todos não se oferece a
ninguém, e porque não existe membro algum sobre o qual
não seja adquirido o mesmo direito que lhe é concedido
acima de nós, ganha - se o equivalente de tudo aquilo que se
perde, e mais a força para conservar o que se tem".
"O que o homem perde através do contrato social é
a sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo aquilo
que causa desejo e que ele pode obter: o que ganha é a
liberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui."
Entretanto, é correto afirmar que a aproximação de ambos vai até
o ponto em que se passa a discutir o que seria assegurar e realizar direitos
naturais,
através
comu nida de
de
sua
institucionalização
jurídica,
no
nível
da
política do Estado. E, nesse sentido, cabe destacar uma
diferença funda m e n t al entre Rousseau e Locke, quanto ao “direito civil de
liberda de”, e que, com certeza, refletir - se- á na compree ns ão final que
cada um deles possui do contrato social, do Direito e da política - a razão
de tantos equívocos e análises apress ada s.
Jean - Jacques
compree n d e
o direito
Rousseau,
à liberdade
na
linha
como
da
direito
tradição
republicana,
à autode ter mi nação
política, que se realiza através do exercício da liberdade
civil e da
sobera nia do povo, na constr ução de uma comunida d e ou "corpo" ético político, enquant o John Locke, como autor do Liberalismo, compree n d e o
direito de liberdade funda m e n t al m e n t e como autodeter mi n ação privada
quan to à proprieda de e à felicidade, a ser assegura do juridica men t e frente
aos outros indivíduos e à própria organização político - estatal. Enquanto
em Roussea u a liberdade é liberdade para algo , em Locke é liberdade de ou
frente a algo 10 . Em Roussea u, a liberda de
natural se institucionaliza
juridica me n te, no âmbito da comunida de política, como liberda de civil, no
plano da e para a participação política (pertinência à pólis), e que resgata a
idéia de virtude cívica ; em Locke, a liberda de natural se institucionaliza
juridica me n te
10
no plano da comunida de
política como liberda de
civil,
Uso, aqui, mais uma vez, as express ões de BERLIN 1981. Retoman do o tema da
famosa conferência de Benjamin Constant, Berlin fala em liberda de em sentido positivo e
liberda de em sentido negativo . Todavia tal distinção é problem á tica da perspectiva de
uma teoria discursiva da democracia.
através do reconhecime nt o e da garantia, pela comunida de política - estatal,
da existência à parte de uma esfera privada (separação entre Estado e
sociedad e).
Para
organização
Locke
civil,
ou
e Rousseau,
o
sócio - política,
contrato
a
social
constituição
que
do
constitui
Estado
ou
a
a
constituição política, tem finalidades comuns e finalidades diferentes. Para
ambos, é a forma de se assegurar efetiva e legitimame nte os direitos naturais
dos indivíduos 11 . Mas em Locke o contrato ou pacto fundamental tem por
finalidade
criar
uma
organização
social através
da qual o indivíduo,
compreendido antes como sujeito de direitos privados do que como cidadão,
possa exercer com segurança e sem interferências os seus direitos à vida, à
liberdade privada e, principalmente, aos bens a que chama "propriedade" 12 :
"124.O objetivo grande e principal, portanto, da
união dos homens em comunida des, colocando - se eles sob o
governo, é a preservação da propriedade. Para esse objetivo,
muitas condições faltam no estado de natureza.” (LOCKE
1983: 84) 13 .
11
O que o empirismo político característico das análises de BOBBIO 1992b: 48 não deixa
ver é justamente o aspecto normativo da exposição tanto de Locke, quanto, e
fundamental ment e, de Rousseau, acerca do pacto social: com esse se funda a organização
política, através da institucionalização político- jurídica de direitos que passam a ser
reciprocamente reconhecidos, desde o início, quando da passagem do "estado de natureza"
para o "estado civil".
12
Sobre o conceito de propriedade em John Locke, ver JORGE FILHO 1992: 77ss. Aqui, o
contraste entre Locke e Rousseau é imenso. Basta lembrar que Rousseau considera que a
propriedade privada está na origem das desigualdades “morais” ou “políticas” entre os
homens (ROUSSEAU, J.J. 1983b: 259).
13
No original, “ The great and chief end therefore, of Mens uniting into Commonwealths,
and putting themselves under Government, is the preservation of their Property. To which in
the state of nature there are many things wanting”. (LOCKE 1963: 395- 396)
Para Locke, diferente me nte de Rousseau, há que se diferenciar o
pacto
fundamental
do
pacto
que
cria
o
governo
(um
governo
representativo 14 , eleito pela maioria dos membros da "comunidade política"
(Com mo n wealth 15 )), pois um é o processo
político fundador,
outro
o
processo eleitoral de escolha de representa ntes. A dissolução, por exemplo,
do governo, não implica necessariamente dissolução da sociedade, embora
ocorra o contrário quando se dissolve a sociedade pois, nesse caso, o
governo não encontraria como subsistir (LOCKE 1963: 454; 1983: 118). E
uma das razões pelas quais um governo pode (e deve) ser dissolvido, se não
for a razão
principal, consiste no descum pri mento
por esse de suas
finalidades e encargos, ou seja,
..."quando tenta invadir a propriedade do súdito e
tornar - se a si mesmo ou a qualquer parte da comunidade
senhor ou árbitro da vida, liberdade ou fortuna do povo".
(LOCKE 1983: 121; 1963: 460)
Já Rousseau concebe tanto o pacto fundador, quanto o processo
político e o processo eleitoral de modo diverso. O contrato social, enquanto
constituição política, consubstancia a formação de um corpo político que,
através da comunhão
de seus membros
(“fraternité”), exerce o direito
comunitário à autodeter minação, em busca da realização da felicidade, da
14
Cabe lembrar que em Locke, o governo, composto de representantes ou de um
representante do povo, é exercido fundamental mente pelo poder legislativo, existente ao
lado do poder executivo e do poder federativo, e se diferencia do seio do povo, não se
confundindo com este último. Sobre isso, ver LOCKE 1963: 401ss; 1983: 86ss.
15 É o próprio Locke quem explica o que significa Commonwealth, nessa passagem do seu
já citado livro: "133. By Commonwealth, I must be understood all along to mean, not a
democracy, or any Form of Government, but any Independent Community which the Latines
signified by the word Civitas, to which the word which best answers in our Language, is
Commonwealth, and most properly expresses such a Society of Men, which Community or City
in English does not, for there may be Subordinate Communities in a Government; and City
among us has a quite different notion from Commonwealth".
autorrealização ética 16 . "Renunciar à liberdade é renunciar à qualidade de
home m" (ROUSSEAU 1983a: 27). A garantia de cidadania, liberda de e
igualdade civis, na busca da felicidade, é a finalidade por excelência do
pacto social e da sociedade política que através dele se constitui:
"'Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo
seu poder sob a direção supre ma da vontade geral, e
recebemos, enquanto corpo, cada membro enquanto parte
indivisível do todo'. Imediatamente, esse ato de associação
produz, em lugar da pessoa particular de cada contratante,
um corpo moral e coletivo, composto de tantos membros
quantos são os votos da assembléia, e que, por esse mesmo
ato, ganha sua unidade, seu eu comum, sua vida e sua
vontade. Essa pessoa pública, que se forma, desse modo, pela
união de todas as outras, tomava antigamente o nome de
cidade e, hoje, o de república ou corpo político, o qual é
chamado por seus membros de Estado quando passivo,
soberano quando ativo, e potência quando comparado a seus
semelhantes.
Quanto
aos associados,
recebem,
eles,
coletivamente, o nome de povo e se chama m, em particular,
cidadãos, enquanto partícipes da autoridade soberana, e
súditos enquanto submetidos às leis do Estado." (ROUSSEAU,
J.J. 1983a: 33- 34)
Cada momento
confirmação
Rousseau,
em que se expressa
a vontade geral é uma
do pacto social e da constituição
não há lugar nem
para governo
do corpo político. Em
representativo
no sentido
lockeano, já que "A soberania não pode ser representada pela mesma razão
porque não pode ser alienada" 17 e porque "Há um único contrato no Estado,
16
O jacobinis m o e seu Comité de Saúde Pública represent a rá a quintessê ncia desse
ponto de vista.
17
Em Rousseau, a idéia de soberania inalienável e indivisível opõe - se ao governo
representativo no sentido de Locke. A íntegra do famoso trecho é: "A soberania não pode ser
representada pela mesma razão por que não pode ser alienada, consiste essencialmente na
vontade geral e a vontade geral absolutamente não se representa. É ela mesma ou é outra,
não há meio- termo. Os deputados do povo não são, nem podem ser seus representantes;
não passam de comissários seus, nada podendo concluir definitivamente. É nula toda lei que
o povo diretamente não ratificar; em absoluto, não é lei."(ROUSSEAU, J.J. 1983a: 108) E num
ataque frontal a Montesquieu e a Locke, afirma: "O povo inglês pensa ser livre e muito se
engana, pois só o é durante a eleição dos membros do parlamento; uma vez estes eleitos, ele
é escravo, não é nada. Durante os breves momentos de sua liberdade, o uso, que dela faz,
mostra que merece perdê - la."(p.108) E explicitando as raízes medievais do "governo
o da associação, e, por si só, exclui todos os demais"(ROUSSEAU, J.J. 1983a:
111) 18 , nem muito menos
para dissolução do autogoverno
através do
exercício de um direito individual de resistência, possível em Locke (1983:
114), porque a soberania popular não pode voltar - se contra si mesma, nem a
vontade geral pode errar 19 , embora seja possível a censura através de
julgamento público (ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 135ss.) a comissários do povo e
a atos do governo. Enquanto, pois, em Locke há lugar para dois pactos e o
processo político, após a assinatura do pacto fundame ntal, é praticamen te
reduzido a um processo eleitoral de escolha de representantes, em Rousseau
o processo político, mesmo o que institui o governo (ROUSSEAU, J.J. 1983 a:
112), é o centro que integra e constitui o social, processo em que se expressa
a vontade geral e se confirma o pacto social, no sentido das suas finalidades
ético - políticas.
Assim, é nesse sentido que podemos dizer que o processo político,
segundo o modelo liberal, ilustrado pelo pensamento lockeano, realiza a
tarefa de programar o governo de acordo com o interesse da sociedade ,
compreenden do - se o primeiro como um aparato administrativo e a segunda
como uma rede de interações entre sujeitos privados organizada na forma
do mercado. A política , como em Locke, tem a função de reunir os interesses
privados e encaminhá - los à Administração Público- Estatal, cuja finalidade é
utilizar - se do poder político para atingir objetivos coletivos majoritários.
Uma formação democrática da vontade e da opinião tem, nesse contexto, a
representativo", considera - o incompatível com o direito e com a liberdade civil.
18
19
Não há lugar, portanto, para um pacto secundário entre povo e governantes.
ROUSSEAU, J.J. 1983 a: 46: "... a vontade geral é sempre certa e tende sempre à utilidade
pública."
função de legitimar o exercício do poder político: os resultados eleitorais são
a concessão para se assumir o governo, ao passo que o governo deve
justificar o uso do poder ao público.
Já o Republicanismo, ilustrado pelo pensamento de Rousseau,
concebe a política para além dessa função de mediação social, pois ela é, em
primeiro lugar, constitutiva dos processos societários em geral: é a forma em
que se reflete a vida ética real, o meio através do qual os indivíduos
solidariamente se tornam conscientes de que depende m uns dos outros e,
agindo
como
cidadãos,
reconhecimento
modelam
recíproco,
e
desenvolvem
transfor ma n d o - se numa
suas
relações
associação
de
de co-
associados livres e iguais perante o Direito. Segundo Habermas,
"Com isso, a arquitetura liberal de governo e
sociedade sofre uma mudança importante: além das normas
hierárquicas do Estado e das regras descentralizadas do
mercado, ou seja, além do poder administrativo e dos
interesses pessoais, a solidariedade e a orientação para o bem
comum aparecem como uma terceira fonte de integração
social(...) Na concepção republicana, a esfera público- política
adquire, juntamente com sua base na sociedade civil, uma
importância estratégica." (HABERMAS 1995b: 108)
Com base nessas
duas compressões
concorrentes, é possível
traçar, em termos esquemáticos, duas concepções diferentes de cidadania . O
status de cidadão, para o Liberalismo, é fundame ntalme nte determinado por
direitos negativos perante o Estado e em face dos outros cidadãos. Como
titulares desses direitos, eles gozam da proteção estatal na medida em que
buscam realizar seus interesses privados dentro dos limites estabelecidos
pela lei, e isso inclui a proteção contra intervenções estatais. Direitos
políticos, como o direito ao voto ou à liberdade de expressão, não têm
apenas
a mesma
enquanto
direitos
pragmáticas,
estrutura,
mas
civis
fornecem
através
tornam - se livres
que
de um
também
um
um
espaço
agir estratégico
de coerção
externa,
significado
qual
questões
funcionalmente
regulado,
fundando
um
no
semelhante
processo
político
moldado no funcioname nto do mercado. Esses direitos
..."dão aos cidadãos a oportunidade para afirmar
seus interesses privados de tal modo que, por meio de
eleições, da composição de corpos legislativos e da formação
de um governo, esses interesses são finalmente agregados
numa vontade política que provoca um impacto sobre a
Administração." (HABERMAS 1995b: 109)
O processo democrático se dá, para o Liberalismo, exclusivamente
sob a forma de compromissos entre interesses divergentes, devendo a
igualdade civil ser assegurada pelo direito geral e igualitário de votar, pela
composição
representativa
dos
corpos
parlamentares,
pelas
normas
decisórias, etc., normas, essas, justificadas em termos de direitos liberais
fundame ntais. Segundo Habermas:
“Na interpretação liberal, a política é essencialmente
uma luta por posições mais favoráveis no âmbito do poder
administrativo. O processo de formação da opinião e da
vontade na esfera pública e no parlamento é determinado
através da concorrência de atores coletivos que agem,
estrategicamente, a fim de obter ou manter posições de
poder. O sucesso se mede pelo assentimento qualificado
pelos votos de eleitores, dados a pessoas e programas. Em seu
voto, os eleitores expressa m suas preferências. Suas decisões
eleitorais têm a mesma estrutura que os atos de escolha de
participantes
do mercado, orientados
pelo sucesso.”
(HABERMAS 1997b: 1: 337)
Segundo
determinada
pelo
o modelo
modelo
republicano,
das
liberdades
a cidadania
negativas
não
que
é apenas
podem
ser
reivindicadas
pelos cidadãos
enquanto
sujeitos
de direito privado. Os
direitos políticos são, antes de tudo, liberdades positivas, pois garantem não
a liberdade de coerção externa mas a possibilidade de participação política
comu m pela qual os cidadãos, na construção de uma identidade éticopolítica comum, reconhecem - se como co- associados livres e iguais:
“Enquanto a interpretação liberal vê o sentido de
uma ordem jurídica no fato de ela permitir constatar, no caso
concreto, quais direitos competem a quais indivíduos, a visão
republicana considera que esses direitos subjetivos resultam
de uma ordem jurídica objetiva, a qual não somente torna
possível, como também garante a integridade de uma
convivência autônoma, com iguais direitos e que repousa no
respeito mútuo.”(HABERMAS 1997b: 336)
Ao contrário do Liberalismo, o Republicanismo considera que o
processo político não serve apenas para programar e fiscalizar a atividade
administrativa do Estado por cidadãos que já adquiriram uma autonomia
privada pré - social e pré - política, nem é um simples elo entre Estado e
sociedade, pois a autoridade da Administração Pública não é també m algo
dado. Essa autoridade, escolhida através de um processo eleitoral que
conserva a lembrança do ato de fundação da sociedade como comunidade
política, emerge da práxis de autolegislação dos cidadãos e se legitima no
fato de ela proteger essa práxis, através do processo de institucionalização
da autonomia cívica, das liberdades públicas.
"Para a política, no sentido de práxis de autolegislação cívica, o paradigma
não é o mercado, mas o diálogo" (HABERMAS 1995b: 110), um diálogo que
gira não meramente em torno de preferências e interesses mas de valores
comunitariamente compreendidos. Para o Republicanis mo,
“”Política” é entendida como forma de reflexão de
um contexto vital ético - como medium no qual os membros
de comunida des solidárias, mais ou menos naturais, tornam se conscientes de sua dependência recíproca e, na qualidade
de cidadãos, continuam e configuram, com consciência e
vontade, as relações de reconhecimento recíproco já
existentes.” (HABERMAS 1997b: 1: 333)
Um governo republicano nunca estaria somente incumbido de
exercer um mandato amplamente aberto, como no modelo liberal, mas
também
obrigado
programa ticamente
a
cumprir
certas
políticas,
permanecendo ligado à comunidade política que se autogoverna.
"Assim, a raison d'être do Estado não reside
funda mentalmente na proteção de direitos privados iguais,
mas na garantia de uma formação abrangente da vontade e da
opinião, processo no qual cidadãos livres e iguais chegam a
um entendimento em que objetivos e normas se baseiam no
igual interesse de todos." (HABERMAS 1995b: 109)
A formação
democrática da vontade
se daria, pois, para o
Republicanis mo, sob a forma de um discurso ético- político que conta com
um consenso de fundo estabelecido culturalmente e compartilhado pelo
conjunto dos cidadãos.
Quais são as visões de Estado e de Sociedade subjacentes a essas
compressões de processo político, cidadania e direitos? E, enfim, quais os
reflexos
dessas
concepções
na
compreensão
da
Constituição
e
da
Democracia , à luz das tradições republicana e liberal?
Tanto a tradição liberal quanto a republicana pressupõe m uma
visão de sociedade centrada no Estado. Mas enquanto para a primeira, o
Estado é o guardião de uma sociedade de mercado, para a segunda o Estado
é a institucionalização autoconsciente de uma comunidade ética.
De acordo com os republicanos, a formação política da vontade e
da opinião dos cidadãos cria o meio através do qual a sociedade se constitui
como uma totalidade política, onde não faz sentido distinguir - se o Estado e
a sociedade, pois
"A sociedade é desde sempre, uma sociedade
política - societas civilis. Daí o fato de a democracia tornar - se
equivalente à auto - organização política da sociedade como
um todo" (HABERMAS 1995b: 116) 20 .
Assim, a Constituição é compreendida como a consubstanciação
axiológica concreta da identidade ética e da auto - organização total de uma
sociedade política, verdadeira “medida material da sociedade” ou “ordem
fundame ntal jurídica da coletividade”, para usar a conhecida expressão do
constitucionalista alemão Konrad Hesse (1998: 37). Sua realização se dá
através do exercício conjunto da autonomia pública dos seus membros.
Diferente me nte, de acordo com os liberais, a separação entre
Estado e sociedade, que desperta uma reação polêmica por parte dos
republicanos, não pode ser eliminada, mas somente diminuída pelo processo
democrático. Assim, a Constituição , enquanto mecanismo ou instrume nto de
governo (“instrument of governm ent” ) tem uma função de compatibilização.
O equilíbrio regulado entre poder político e interesses sociais diversos
necessita de um canal constitucional :
"Espera - se que a Constituição controle o aparato
estatal por meio de restrições normativas (tais como os
direitos fundame ntais, a separação de poderes, etc.) e o
obrigue, mediante a competição de partidos políticos, por um
lado, e a competição entre governo e oposição, por outro, a
levar em conta, adequada me nte, os interesses concorrentes e
as orientações de valor (...) O modelo liberal depende não da
20
Acerca dessa compreensão de democracia, ver ARENDT 1990, fundamental ment e, caps.
4 e 5.
autodeter minação democrática de cidadãos capazes de
deliberação, mas da institucionalização jurídica de uma
sociedade econômica encarregada de garantir um bem
comum essencialmente apolítico por meio da satisfação de
preferências particulares." (HABERMAS 1995b: 117)
Tais compreensões acerca da relação entre Estado e sociedade,
segundo uma visão republicana ou liberal do processo político, também
projetam
duas compreensões concorrentes da soberania popular e da
Democracia .
Como em Rousseau, a tradição republicana reavalia e se apropria
do conceito de soberania inicialmente associada aos regimes absolutistas e a
transfere para a vontade do povo unido,
..."ao fundir a força do Leviatã com a idéia clássica
da auto - regulamentação dos cidadãos livres e iguais e ao
combiná - la com seu conceito moderno de autonomia."
(HABERMAS 1995b: 120)
Apesar disso, o conceito de soberania permaneceu ligado, como
em Rousseau, à noção de uma encarnação no povo fisicamente presente e
reunido, o que levou à concepção segundo a qual a soberania é, por
princípio, indelegável e, portanto, irrepresentável, como já analisado.
A isso se opõe o Liberalismo, segundo o qual, no Estado de Direito,
toda
autoridade
emana
do
povo,
que
a exerce
por
meio
de
seus
representantes políticos eleitos, no quadro das competências atribuídas
constitucionalmente
aos órgãos legislativos, executivos e judiciários do
Estado.
Em termos esque m ático - comparativos , a tradição republicana,
por
um
lado, press u p õe
uma
concepção
política segundo
a qual a
Constituição,
enquant o
expressão
da
autono mia
política
signatário de um pacto funda m e n t al , reflete uma orde m
do
povo
concreta de
valores, que materializa a identida de ético- cultural, de uma sociedade
política que se quer homogê nea, e a Democracia é a forma política de plena
realização dessa identidade, através de um processo de auto - reflexão
conjun ta e do diálogo entre os cidadãos. O acento é, porta nt o, dado à
auton o mia
pública
enqua nto
meio
para
a
autorrealização
ética
da
comu nida de. E a tradição liberal, por outro lado, press u p õe uma concepção
política segundo a qual a Constituição é um mecanis mo ou instru m e nto de
governo (“instru m e n t of govern m e n t”), capaz de regular o embate entre os
vários atores políticos que concorre m entre si, e a Democracia é um
processo através do qual se elege e se estabelece o exercício de um
governo legitima do por decisão da maioria. O acento é dado, agora, pelo
Liberalis mo, à autono mia privada enqua nt o exercício da autono mia moral
e da escolha racional.
Acentuando, assim, compreensões divergentes acerca do Direito (e
dos direitos), bem como da política, da Constituição e da Democracia, as
tradições republicana e liberal contribuíram para a formação da linguagem e
do imaginário políticos dos últimos séculos.
Entretanto, se, nos próximos capítulos, quisermos levar a sério
tanto a autonomia pública quanto a autonomia privada, dos co- associados
jurídicos,
em
sua
co- originalidade
e equiprimor dialidade,
teremos
de
renunciar ao reducionismo representado pelas tentativas republicanas e
liberais de fundame ntação ética ou então moral do constitucionalismo e da
democracia e, nesse sentido, reconstruir mos a relação entre esses últimos e a
autono mia, em todas as suas dimensões, de forma a que tais conceitos não
mais se oponha m, nem se excluam. Teremos, justame nte, de superar o
paradoxal legado
das duas
grandes
tradições
do pensamento
político
moderno.
DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO NO MARCO DO ESTADO
DEMOCRÁTICO DE DIREITO: DA NECESSIDADE DE SUPERAÇÃO DAS
TRADIÇÕES REPUBLICANA E LIBERAL ATRAVÉS DE UMA VISÃO
PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICA DELIBERATIVA
1 - INTRODUÇÃO
Republicanis mo e Liberalismo são duas tradições do pensamento
político moderno que informa m
séculos.
Como
preocupados
vimos
não
tanto
o debate político- jurídico dos últimos
no capítulo
anterior,
em explicar
apresenta m
ou descrever
modelos
processos
que,
políticos
concretos, levantam a pretensão de fundar a política em termos normativo idealizantes.
Tais modelos têm perdido muito do seu poder de convencimento
que, por não levarem em consideração a complexidade da sociedade atual,
ao manterem,
indivíduos
por
exemplo,
e centrada
um
modelo
no Estado,
de sociedade
ou, mais
composta
especificamente,
por
no caso
republicano, ao pressupor uma homogeneidade ético- cultural como base da
democracia, pouco ou nada são capazes de articularem - se a uma análise
empírica no nível dos processos políticos concretos, em nossas sociedades
complexas, descentradas e pluralistas.
Assim, apesar de o modelo liberal levar a sério o chamado “fato
do pluralis mo razoável”(John Rawls), ele é excessivame n t e céptico, porque,
como vimos, tende a reduzir o debate político, à luz de um modelo
econô mico do mercado, a uma mera disputa entre os atores políticos, e
não explica, de modo consistente, como atores voltados exclusivame n te
para a satisfação de interesse s próprios pode m concor da r acerca das
normas que irão reger, de forma imparcial, sua vida em comu m.
Essa afirmação deve ser toma da
com certo cuidado, em se
tratan d o da posição de John Rawls, apresenta d a em Political Liberalism
(1993a) , pois ela tende a rompe r com uma concepção “mercadológica” da
política, presente em outros autores liberais . Embora não seja necessário
analisar, aqui, de modo exaustivo a teoria política de Rawls, cabe ressaltar
que a Teoria Política da Justiça como Equani midade (“Justice as Fairness”)21 ,
em sua versão mais atual, tende
a abando na r
uma perspectiva, tão
presen te em 1971 (RAWLS 1971: 4), de uma teoria da escolha racional. A
partir de trabalhos posteriores (RAWLS 1993b) à obra A Theory of Justice
(1971), a teoria de John Rawls tem procurad o tornar - se o que esse filósofo
norte - americano
chama
Constructivis m ”)
(RAWLS
de
1993a:
“Constr utivis m o
89ss.),
em
Político”
que
a
(“Polítical
linguage m
do
contrat ualis m o ressurge como estratégia de exposição, a fim de explicar,
através da idéia de “posição original” (“original position”), que como um
todo é um “mecanis m o de represe ntação” (“device of representation” ) dos
cidadãos livres e iguais em uma socieda de bem ordena da (RAWLS 1993a:
21
Traduz o o term o inglês “fairness” por equani mi da de e não por eqüidade, para marcar
o contexto não - aristotélico da Teoria da Justiça apresent a d a por John Rawls, uma
concepção que se preten de procedime n t al e não substa n tivista.
22ss.), como os princípios da justiça 22 pode m ser selecionado s e não
escolhidos
pelas
“partes”.
Assim,
um
modelo
do
mercado
estaria
aband o n a d o, já que, para John Rawls ,
...“o que é funda m e n t al [para a democracia] é um
procedime n to político que assegure a todos os cidadãos
plena e efetiva voz em um esque m a equâni me de
represe nt ação (“in a fair sche me of representation”). Tal
esque m a é funda m e n t al porque a proteção adequa da de
outros direitos funda m e n t ais [além das liberdade s de base]
depen de dele. A igualdade formal não é suficiente.” (RAWLS
1993a: 361)
O Liberalismo
Político, com essa compree n s ã o
do processo
político, preten de apresentar uma concepção política e liberal de justiça, a
fim de buscar resolver o que seria o grande tema da Filosofia Política atual:
o de como ordenar a socieda de de modo a que seja justa, estável e
democrá tica, dado o fato do pluralism o razoável de visões de mundo e
modo s de vida (RAWLS 1993a). Uma concepção política de justiça, segund o
Rawls, é caracteriz ad a
respeito
por três elementos. O primeiro
ao seu objeto: embora
contenha
certos
elemento
ideais, princípios
diz
e
“standards ”, e que esses ideais, princípios e “standards ” articule m certos
valores (nesse caso, valores políticos ), Rawls esclarece que uma concepção
política de justiça não se aplica a qualquer coisa, mas tão somente à
22
Segundo Rawls, os princípios da justiça selecionados pelas partes na posição original
devem ser, assim, enunciados: “a. Toda pessoa tem igual direito a um esquema plenamente
adequado de liberdades fundamentais iguais, o qual seja compatível com um esquema
similar de liberdades para todos; b. As desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer
a duas condições. Primeiro, devem estar associadas a cargos e a posições abertos a todos, em
condições de uma eqüitativa igualdade de oportunidades; e, segundo, devem proporcionar o
maior benefício aos membros menos favorecidos da sociedade” (RAWLS 1993a: .291) A
mudança em relação à anterior formulação do primeiro princípio, explica Rawls, está em que
a expressão “um esquema plenamente adequado” substitui a expressão “o sistema total o
mais extenso“, tal como se encontra em Theory (RAWLS 1971: 250; :302), o que leva à
inserção dos termos “o qual” antes de “compatível”. Tais alterações visam, segundo Rawls,
afastar um “critério de maximização” (“maximin”) das liberdades, que poderia estar
subjacente à formulação original (RAWLS 1993a: 331).
“estrutura de base da sociedade” e, no seu caso, à estrut u r a de base de uma
sociedad e democrática moder na (RAWLS 1993a: 11). O segundo elemento
refere - se a uma concepção política de justiça que se apresent a como uma
“visão
independente”
(“freestanding
view”)
de
qualquer
doutrina
compreensiva (RAWLS 1993a: 12). Já o terceiro elemento é o de que o
conteú d o de tal concepção é expres so por certas idéias funda m e n t ais,
implícitas, segundo Rawls, na cultura política pública de uma socieda d e
democrá tica: a sociedade é um siste ma de cooperação no tempo, de
geração em geração; os cidadãos que coopera m são pessoas livres e iguais;
uma sociedade bem - ordena da é uma sociedade efetivame n te regulada por
uma concepção política de justiça (RAWLS 1993a: 13- 14). Tais idéias,
ainda, segundo Rawls, pode m apoiar - se num “consenso por sobreposição”
(“overlapping
consensus”), o que garantiria
estabilidade
e viabilidade
(RAWLS 1993a: 15). E o que caracteriza, segundo Rawls, o conteú do de
uma concepção política liberal de justiça? Primeiro, o fato de especificar
certos
direitos, liberda des
priorida de
especial
que
e oportu ni da d e s
atribui
a
esses
funda m e n t ais; segundo, a
direitos,
liberdade s
e
oportu ni da d e s, especialme nte frente a pretensõe s do bem geral e a valores
perfeccionistas; e, terceiro, por estabelecer meios que assegure m a todos
os cidadãos as condições adequa da s para o uso efetivo desses direitos,
liberda de s e oportu ni da de s (RAWLS 1993a: 6).
Todavia, um acentua d o caráter monológico parece persistir, pois
o que, em última análise, garantiria a “razoabilidade” (o senso de justiça e
a capacida de de honrar os termos da cooperação social) nos processos de
justificação / co n s t r u ç ã o
e de aplicação / e s t a bilização
dos princípios da
justiça seriam restrições formais e materiais impostas e dadas, desde o
início (RAWLS 1993a: 103), à ”racionalida de” (capacidade para se ter uma
concepção de vida boa), tanto dos cidadãos, no debate político, quanto das
partes que os represe nt a m, na posição original. Pois ainda que a posição
original seja tão somente um “mecanis m o de represen t açã o”, no sentido de
se
esclarecer
o que
seria
o ponto
de
vista
político
ou
moral
da
imparcialidade, ela torna o raciocínio prático extrem a m e n t e solitário e
limitado
quanto
aos temas. Segundo
Rawls, “pode mo s
adentra r
essa
posição a qualquer momen t o, simples m e n t e raciocinan d o por princípios
de justiça, de acordo com as restrições (...) de infor mação” RAWLS 1993a:
27) acerca da nossa própria concepção do bem e da situação social e
cultural
em
que
nos
encontr a m o s.
Assim,
també m,
a
concepção
desenvolvida por Rawls de “Public Reason ”, ou de “uso público da razão”.
Ela remete a política e a esfera pública ao Estado e aos seus fóruns oficiais,
excluindo de um “uso público da razão” os debates empreen di do s pela
sociedad e civil, bem como constrange as questões públicas e políticas a
uma agenda fechada e pré - definida de temas, que exclui qualquer questão
que esteja relaciona da às diversas formas ou modos de vida presentes na
sociedad e
(RAWLS
1993a:
212ss.).
Faltam
diálogo,
abertur a
e
discursividade à concepção da política e do público propos ta por Rawls
(HABERMAS- RAWLS 1997; CATTONI DE OLIVEIRA 1998b; KUKATHASPETIT 1995).
A posição rawlsoniana poderia ser criticada, també m, no sentido
de que press u p õe uma noção bastante restritiva, típica do Liberalismo, do
que sejam “questõe s constitucionais essenciais”, inclusive e apesar de
Rawls dizer que seu objeto de análise é filosófico - político e não uma
“questão de Direito”.
O modelo
republicano,
por
outro
lado,
embora
possua
a
vantage m de compreen de r a política como algo mais que uma simples
concorrê ncia entre atores políticos, que visam a satisfazer
próprios, diversos e divergentes, e procure resgatar
política”
(ARENDT), considera n d o - a
como
uma
interesses
a “dignidade da
forma
dialógica
de
integração social, é um modelo excessivame nt e normativo, pois tende a
redu zir o debate político a um proces so de auto - esclarecimento coletivo,
acerca de um modo ou projeto de vida que se pressu p õe comu m, com base
nu m
forte
consenso
ético.
Assim,
embora
autores
republicanos
comu nita rista s como Michael Walzer (1993; 1997) e Charles Taylor (1993;
1997) se considere m defensore s do pluralism o social e cultural, é preciso
lembrar que para eles as decisões políticas só se justificam de forma
relativa e à luz de valores comunitários prevalecentes, e nunca de forma
imparcial. A justiça é, assim, considera da tão somente como um bem
coletivo dentre outros, comunitaria m e n t e interpre ta d o. A importância do
pluralis mo residiria, no máximo, apenas na necessida de da tolerância e do
desenvolvimento de uma “política de reconhecime nt o” de identida des e de
diferenças entre as diversas comunida de s ético - políticas (TAYLOR 1993;
HABERMAS 1998b: 203ss.; APEL 1994). Ora, como veremos no presen te
capítulo, os discursos éticos acerca do bem faze m parte do debate político,
mas este não se redu z àqueles: Como assevera Haberma s (1995b: 107 121), no contexto das sociedade s complexas moder na s, marcadas por uma
pluralida de
de formas de vida racionais, bem como por imperativos
sistêmico - funcionais, argume n t o s
éticos acerca do que é o bem são
temper a d o s por questõe s pragmá ticas de interesse, à luz de razões morais
acerca do que é justo, possibilitando, senão a constr ução de consensos, ao
menos a formação de compro mis s o s políticos sob condições equâni mes.
Para o modelo republicano, a Democracia só seria possível em sociedade s
ou em
comunida de s
educação
culturalme n te
cívica possibilitaria
homogêneas,
a formação
em
de cidadãos
que
uma
forte
conscientes
e
virtuosos, capazes, por isso, de realizar os valores consagra do s e refletidos
na Constituição.
Com isso, não quero dizer que a análise de processos políticos
possam prescindir de uma perspectiva normativa e renunciar, quer em
termos da teoria da ação, como é o caso da Teoria da Escolha Racional 23 ,
quer
em
termos
da
Teoria
dos
Sistemas 24 , a
qualquer
abordagem
participante, ou que não seja possível (re- ) construir uma visão alternativa
aos modelos liberal e republicano, já que, com Habermas (1997b: 2: 9),
acredito
que qualquer
um que queira compreender
funcioname nto
de um sistema
político organizado
inclusive num
nível empírico, não pode
deixar
adequada m e nte
o
constitucionalmente,
de referir - se à força
legitimadora da gênese democrática do Direito. Para isso, não é preciso
compreender,
quer em termos
de um hiato entre ideal e real a ser
preenchido, quer em termos de uma filosofia da história fundada numa
dialética que tudo reconcilia porque tudo suprime, a relação entre idealidade
e faticidade dos processos jurídicos e políticos em geral.
23 Para uma crítica ao realismo da Teoria da Escolha Racional, ver HABERMAS 1997b: 2:
65ss.
24
Para uma crítica à Teoria dos Sistemas, ver HABERMAS 1997b: 2: 63- 65; 74ss.
O presente capítulo tratará, em primeiro lugar, de expor e de
desenvolver a teoria habermasiana da Democracia, que visa superar os
modelos
normativos
de
política
deliberativa
legados
pelas
tradições
republicana e liberal. Isso será feito a partir da crítica ao que Habermas
chama de “sobrecarga ética dos discursos políticos”, levada a cabo pelo
republicanismo comunitarista. Num segundo momento, a partir do marco
teorético - discursivo, buscará construir uma visão não- conflitiva da relação
entre autonomia pública e autonomia privada, e entre constitucionalismo e
democracia, já apontando para uma certa mudança de perspectiva, a ser
realizada no próximo capítulo, com o desenvolvimento de uma teoria da
Constituição e uma teoria do Processo Constitucional constitucionalmente
adequadas
ao paradigma
do
Estado
Democrático
construir uma compreensão, também
de Direito, visando
constitucionalmente
adequada
ao
paradigma do Estado Democrático de Direito, da Jurisdição Constitucional e
do controle judicial de constitucionalidade das leis e do processo legislativo.
2 – A TEORIA DISCURSIVA DA DEMOCRACIA, DE JÜRGEN HABERMAS
Jürgen
Habermas
introdu z,
reconstrutivame nte,
uma
nova
concepção de política deliberativa e de Democracia, através da crítica a o que
ele chama de “sobrecarga ética da visão republicana” (HABERMAS 1995b:
111).
Num certo sentido, como vimos, quando comparado ao modelo
liberal, o modelo republicano de política deliberativa tem a vantagem de
preservar
o
significado
original
da
democracia,
no
sentido
da
institucionalização de um uso público da razão , exercida, conjunta mente,
pelos
cidadãos,
em
sua
prática
política
de
autodeter minação.
O
Republicanis mo leva, assim, em conta, as condições comunicativas que
legitimam o processo político de formação da vontade e da opinião públicas,
condições, essas, sob as quais se pode esperar que o processo político
produ za resultados razoáveis. A confiança republicana na força legitimadora
do uso público da razão contrasta com o ceticismo do modelo liberal que,
como vimos no capítulo 2, compreende o processo político nos moldes de
uma
disputa,
jurídico
e
moralmente
regulada,
entre
interesses
estrategicamente orientados. Tal uso público da razão teria por objetivo,
segundo o modelo republicano, permitir que se discutam interpretações e
orientações de valor, bem como possíveis projetos de superação de carências
e de necessidades comuns.
Para
Habermas,
republicanos
contem porâneos,
como
Charles
Taylor (1993; 1997), Michael Walzer (1993; 1997), Michael Sandel (1982) e
Alasdair McIntyre (1984; 1991), no entanto, tendem a dar uma interpretação
comunitarista a essa prática comunicativa (MULHALL- SWIFT 1997). Segundo
Habermas, o modelo comunitarista seria excessivamente idealista, mesmo à
luz de uma análise puramente normativa. Sob tal modelo, o discurso político
estaria reduzido, tão- somente, a questões éticas de auto - esclarecimento e
auto - realização, em virtude de uma assimilação da política a um processo
hermenêutico de auto - reflexão, acerca de uma forma de vida ou de uma
identidade coletiva tidas como compartilhadas. O processo democrático
estaria, assim, dependente das virtudes de cidadãos, devotados ao bem comu m, e assegurado, em última análise, por um consenso ético de fundo.
Haveria, segundo
a visão comunitarista, uma conexão necessária entre
democracia e comunidade ética concreta consolidada pois, de outro modo,
não se poderia explicar como a orientação dos cidadãos para o bem - comum
seria possível.
Segundo a corrente comunitarista do Republicanismo, uma pessoa
não poderia tornar - se consciente de sua co- participação em uma forma de
vida específica e, com isso, de seu vínculo social anterior, senão em virtude
de uma prática política exercida em comum com outras pessoas. Seria
através dessa prática que se obteria um sentido claro das identidades e
diferenças, de quem se é e de quem se gostaria de ser, da sua pertinência ou
não à comunidade política, ou seja:
...“por meio do intercâmbio público com outros que
devem suas identidades às mesmas tradições e a processos
formativos semelhantes”.(HABERMAS 1995b: 112)
Assim, essa é a concepção comunitarista pressupos ta à crítica, por
exemplo, apresentada a John Rawls e ao Liberaismo em geral, por Michael
Sandel (1982). Segundo Kukathas e Pettit, a essência do argumento de Sandel
é a seguinte:
“Para os liberais como Rawls a justiça é a primeira
das virtudes das instituições sociais. Mas para que isso seja
assim certas coisas devem ser verdade: devemos ser ‘criaturas
de um determinado tipo, relacionadas de uma certa forma
com as circunstâncias humanas’(Sandel). Temos de ser
pessoas independentes dos nossos interesses e afectos
particulares, capazes de recuar para os perscrutar m o s,
apreciarmos e revermos. Contudo, não é plausível que
possa mos olhar - nos dessa forma. No mundo real não
podemos libertar - nos dos interesses e lealdades que não só
determina m as nossas obrigações, mas também estabelecem
as nossas identidades. Os liberais como Rawls insistem em
que nos libertemos para poder mos identificar os princípios
através dos quais organizamos a nossa associação e
defende m
que devemos julgar essa associação pela
conformidade com princípios justos. Ao fazê - lo, vivemos
segundo uma moral que escolhemos ou construímos e, por
isso, somos livres. No entanto, esta pretensão não faz sentido
porque pressupõe uma capacidade que não possuímos: a
capacidade de escolher ou de construir uma moral sem
autoconhecimento ou, na verdade, sem experiência moral. Os
argumentos de Rawls que defende m o primado da justiça
baseiam - se numa concepção do eu (self ) que não faz sentido
e que, por isso, não pode fornecer as bases para avaliar as
nossas instituições sociais ou práticas morais.”(KUKATHASPETIT 1995: 116)
Para
Sandel
e para
os demais
comunitaristas,
a finalidade,
portanto, para qual se deve voltar o “raciocínio moral e político” não é a da
formulação de uma normativa independente e neutra perante questões
éticas, como defende m os liberais. Esse “raciocínio” deve voltar - se para a
finalidade da autocompreensão, que só pode ser alcançada pela auto reflexão conjunta das pessoas, enquanto membros de uma sociedade, que
molda as identidades de cada uma delas. O que importa, segundo os
comunitaristas,
não
é
pretender
construir
princípios
que
nada
corresponderia m à nossa identidade ou à nossa comunidade, até mesmo
porque isso seria impossível; mesmo os princípios de justiça formulados por
Rawls pressupõe m uma determinada forma de vida, correspon dente ao
“atomismo do século XVII” (TAYLOR 1997: 253- 254). O que importa antes
de tudo é perguntar m o - nos a respeito de quem somos e do que é bom para
nós, enquanto membros de uma comunidade concreta, enquanto seres cujas
identidades são moldadas por essa comunidade. Quem somos e, daí, o que é
bom para nós, essas devem ser consideradas as indagações centrais da
política e os objetos centrais de nossas reflexões práticas.
É bastante longa a crítica de Habermas (1995b: 111ss.) à concepção
comunitarista de política deliberativa, mas que pode ser resumida através
dos seguintes pontos:
a) Tal redução dos discursos políticos a questões éticas não combina com a
função dos processos legislativos em que tais discursos surgem. Razões
éticas são levadas em consideração no processo legislativo democrático, a
legislação contém elementos teleológicos, mas isso não significa que as leis
represente m meramente a explicação hermenêutica de orientações de valor
compartilhadas. Por sua própria estrutura, as leis são determina das, antes de
tudo, pela questão de se saber quais normas os cidadãos devem adotar para
regular sua vida em comum;
b) As questões éticas são certamente parte importante da política. Mas
devem estar subordinadas às questões morais (de justiça) e ligadas às
questões pragmáticas (de interesse). Se por um lado, na política legislativa,
deve- se levar em consideração o que é bom não somente para nós, enquanto
comunidade concreta, mas abrir - se a o que é justo, no igual interesse de
todos, uma questão que transbor da particularismos, por outro há de se
reconhecer que compromissos constituem a maior parte dos processos
políticos,
sob
as
condições
políticas
determinada s
pelo
pluralismo
axiológico, cultural, religioso, etc., nas atuais sociedades complexas. Muitos
objetivos políticos acabam por ser selecionados com base em interesses e
orientações de valor que não são, por vezes, compartilhados por todos,
dando margens a negociações e a orientações estratégicas, cujos âmbitos
devem encontrar - se previamente regulados. Segundo Habermas:
“Diferente me nte da constrição ética do discurso
político, o conceito de política deliberativa somente adquire
referência empírica quando levamos em consideração a
multiplicidade das formas comunicativas da formação
política e racional da vontade (...) a política deliberativa deve
ser concebida como uma síndrome que depende de uma rede
bem regulamenta da de processos de negociação e de várias
formas de argumentação, incluindo discursos pragmáticos,
éticos e morais, cada um deles tendo como base diferentes
pressupostos e procedimentos comunicativos. Na política
legislativa, o fornecimento de informação e a escolha racional
de estratégias estão entrelaçados com o equilíbrio de
interesses, com a consecução de uma auto - compreensão ética
e a articulação de fortes preferências, e com a justificação
moral e as provas de coerência legal.”(HABERMAS 1995b: 114)
Partindo - se
desse
conceito
procedimentalista
da
política
deliberativa, à Teoria Discursiva da Democracia corresponde um modelo de
sociedade descentrada.
"A teoria do discurso apropria - se de elementos
dessas duas visões [liberal e republicana], integrando - os no
conceito de procedimento ideal para deliberação e tomada de
decisão.
Entrelaçando
considerações
pragmáticas,
compro missos, discursos de autocom preensão e de justiça,
esse procedimento democrático tem a presunção de que,
dessa maneira, se obtêm resultados razoáveis e justos. De
acordo com essa visão procedimentalista, a razão prática
afasta - se dos direitos humanos universais, ou da substância
ética concreta de uma comunidade específica, para adequar se às regras do discurso e às formas de argumentação. Em
última análise, o conteúdo normativo surge da própria
estrutura das ações comunicativas." (HABERMAS 1995b: 115)
É nesse sentido que, segundo Habermas (1995b: 117), a Teoria
Discursiva da Democracia reveste o processo democrático de conotações
normativas mais fortes que as encontradas no modelo liberal, mas mais
fracas que as encontradas no modelo republicano:
"Em consonância com o Republicanismo, a teoria do
discurso dá destaque ao processo de formação política da
vontade e da opinião, sem, no entanto, considerar a
Constituição como elemento secundário. Ao contrário,
concebe os princípios do Estado Constitucional como
resposta consistente à questão de como podem ser
institucionalizadas as exigentes formas comunicativas de
uma formação democrática da vontade e da opinião."
(HABERMAS 1995b: 117)
Portanto,
como
afirma
Habermas
(1995b:
120), as tradições
republicana e liberal esgotariam as alternativas, se tivéssemos de conceber o
Estado e a sociedade em termos do todo e suas partes, sendo o todo
constituído ou por um corpo soberano de cidadãos, como no modelo
republicano, ou por uma Constituição mecanicamente reguladora de um
processo político, pensado nos moldes do mercado, como no caso do
modelo liberal. Mas isso não é correto, nem necessário.
3 – DA INTERRELAÇÃO ENTRE DEMOCRACIA E CONSTITUCIONALISMO
NUMA VISÃO PROCEDIMENTALISTA DO DIREITO E DA POLÍTICA
DELIBERATIVA – UMA APROXIMAÇÃO
A perspectiva desenvolvida pela Teoria Discursiva da Democracia é
fundame ntal para a reconstrução de uma visão não- conflitiva tanto da
relação entre autonomia pública e autonomia privada, quanto da relação
entre Constitucionalismo e Democracia.
A Teoria Discursiva da Democracia sustenta que o êxito da política
deliberativa
depende
procedimentos
considera,
como
e
das
da
institucionalização
condições
de
vimos, os princípios
jurídico - constitucional
comunicação
do Estado
dos
correspon de ntes,
Constitucional
e
como
resposta consistente à questão de como podem ser institucionalizadas as
exigentes formas comunicativas de uma formação democrática da vontade e
da opinião políticas.
Uma
soberania
popular
reconstruída
em
termos
procedimentalistas e um sistema político ligado às redes periféricas da
esfera pública andam de mãos dadas com uma imagem de sociedade
descentrada. O modelo procedimental reinterpreta a esfera público- política
enquanto arena para a detecção, identificação e interpretação dos problemas
que afetam a sociedade.
“No paradigma procedimental do direito, a esfera
pública é tida como a ante - sala do complexo parlamentar e
como periferia que inclui o centro político, no qual se
originam os impulsos: ela exerce influência sobre o estoque
de argumentos normativos, porém sem a intenção de
conquistar partes do sistema político. Através dos canais de
eleições gerais e de formas de participação específicas, as
diferentes formas de opinião pública converte m - se em poder
comunicativo, o qual exerce um duplo efeito: a) de
autorização sobre o legislador, e b) de legitimação sobre a
administração reguladora; ao passo que a crítica do direito,
mobilizada
publicamente,
impõe
obrigações
de
funda mentação mais rigorosas a uma justiça engajada no
desenvolvimento do direito.” (HABERMAS 1997b: 2: 187)
A idéia de um "eu" coletivo, tanto uma “volonté générale” que
reflete a totalidade e age em seu nome, como no modelo republicano, quanto
o de conjunto de atores individuais que atuam como variáveis depende ntes
em processos sistêmicos que se desenvolvem aleatoriamente, como no
modelo liberal, desaparecem nas “formas de comunicação sem sujeito”25 que
regulam o fluxo das deliberações, de um modo tal que seus resultados
falíveis se revestem da presunção de racionalidade.
25
Segundo Haber mas, “Só uma democracia entendi da nos termos da teoria da
comunicação é també m possível sob as condições das sociedades complexas” (HABERMAS
1997a: 147).
“[N]o Estado democrático de direito, tido como a
morada de uma comunida de jurídica que se organiza a si
mesma, o lugar simbólico de uma soberania diluída pelo
discurso permanece vazio. ”(HABERMAS 1997b: 2: 188)
Como argumenta Habermas (1995b: 120), tal compreensão não
renuncia às intuições radicais ligadas à idéia de soberania popular, mas a
reinterpreta em termos intersubjetivos 26 :
"A soberania popular, mesmo quando se torna
anônima, retrocede aos procedimentos democráticos e à
implementação legal de seus exigentes pressuposto s
comunicativos só para se fazer sentir como um poder
engendrado comunicativamente. No sentido estrito da
palavra, esse poder comunicativo deriva das interações entre
a formação da vontade institucionalizada juridicamente e os
públicos mobilizados culturalmente. Estes últimos, por seu
turno, encontra m fundame nto nas associações de uma
sociedade civil completamente distinta tanto do Estado
quanto do mercado."(HABERMAS 1995b: 120)
É nesse sentido que, sob o paradigm a do Estado Democrático de
Direito e com base numa visão procedime n t alista do Direito e da política
deliberativa, constitucionalis mo e democracia não mais se opõem.
O constitucionalis mo e, portant o, a própria Constituição, não
pode mais ser compree n did o, quer em termos liberais, como a defesa de
uma esfera privada e do exercício da autono mia enquanto “liberda d e
negativa”, naturalisticame n te
concebida s,
contra
o público,
quer
em
termos republicanos, como a defesa de uma estabilidade ético - política,
que se realiza através do exercício da autono mia enquant o “liberda de
positiva”.
26
Para uma crítica fundada na Teoria dos Sistemas às "semânticas" da soberania popular,
liberal ou republicana, no sentido, inclusive, da sua superação, ver MAGALHÃES, J. N. 1998:
361- 369.
E a democracia não pode ser concebida, quer em termos liberais,
como uma mera disputa de mercado regulada mecanica me n t e por regras,
que legitima m a escolha de um governo compr o m e ti do com os interesse s
majoritários
daqueles
que suposta m e n t e
represent a, quer em termos
republicanos, como um processo autocom p r e e n sivo através do qual a
identida de
ética
presu mi da m e n t e
homogêne a
de
uma
comunida d e
concreta se realiza.
A partir do momento
em que se supera
tanto a concepção
republicana de política deliberativa, como autorrealização ética, quanto a
concepção liberal de política deliberativa, como mera disputa de interesses, a
Constituição, sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, para
articular - se com uma visão procedimentalista da Democracia, não pode ser
reduzida, como no quadro do paradigma do Estado Liberal (BARACHO
JÚNIOR 1998: 13ss.; CARVALHO NETTO 1996: 128- 131; CATTONI DE
OLIVEIRA 1998 a: 37ss.), a um mero "instrument of govern ment ", garantidor
de uma esfera privada de livre- arbítrio perante o poder administrativo estatal. Sob as condições de uma sociedade complexa como a atual, o
sistema de direitos fundamentais não pode mais ser interpretado à luz dos
históricos direitos liberais de defesa da esfera privada contra o Estado. O
exercício da autonomia privada encontra - se ameaçado não apenas por uma
Administração Público- Estatal, tantas vezes privatizada e desvinculada da
formação do poder comunicativo, mas também por posições de poder social
e econômico (HABERMAS 1997b: 1: 326). Estes últimos devem ser, també m,
domesticados pelos princípios do Estado Democrático de Direito, através da
garantia de maior igualdade de oportunidades sociais, de acesso ao processo
de formação
público
do poder
e do
privado,
político- estatal, da permanente
redefinição
através
novos
do
reconhecimento
de
do
direitos
fundame ntais e da abertura constitucional a um processo público e plural da
interpretação jurídica.
Todavia, com isso não se pode conceber a Constituição, nos
termos do paradigma do Estado de Bem- Estar Social (BARACHO JÚNIOR
1998: 64ss.; CARVALHO NETTO 1996: 138- 140; CATTONI DE OLIVEIRA
1998
a:
40ss.),
como
uma
ordem
jurídica
total
que
estabeleceria,
aprioristicamente, uma única forma de vida à sociedade como um todo,
como pretensa condição para o exercício das liberdades
individuais e
políticas. Como considera Habermas:
“Se ‘utopia’ é o nome do projeto ideal que configura
uma forma de vida concreta, então a constituição, entendida
como um projeto, não é uma utopia social, nem um
substitutivo para ela.”(HABERMAS 1997b: 2: 189)
Com o paradigm a procedi me n t alista do Estado Democrático de
Direito 27 , a partir do mome n t o em que se supera tanto a concepção de
liberda de
pública,
“positiva”,
(Republicanis m o),
quanto
a
autod eter mi naçã o
moral
ou
de
como
liberdade
como
escolha
autodeter mi nação
privada,
racional
“negativa”,
ética
como
(Liberalismo),
e,
juridicamente , passa - se a compreen de r a liberda de pública e a liberdad e
27
Segundo Haberma s, o paradigm a procedime n t alist a do Direito se apoia nas seguintes
premiss a s: “a) o caminho de volta, propalado pelo neoliberalis m o através do mote ‘retorno
da sociedade burguesa e de seu direito’, está obstruído; b) o apelo que nos incita a
‘redescobrir o indivíduo’ é provocado por um tipo de juridificação no interior do Estado
social, que impede reconst ruir a autono mia privada; c) o projeto do Estado social não
pode ser simples m e n t e congelado ou interro m pi do: é preciso continuá - lo num nível de
reflexão superior. O que se tem em mente é domes ticar o sistem a econô mico capitalista,
‘transfor m a n d o - o’, social e ecologicamen te, por um caminho que permita ‘refrear’ o uso
do poder administr a tivo, sob dois pontos de vista: o da eficácia, que lhe permit a recorrer a
formas mitigadas de regulação indireta, e o da legitimida de, que lhe permita retroligar - se
ao poder comunicativo e imunizar - se contra o poder ilegítimo.” (Haberma s 1997b: 2: 147 148)
privada como faces da mes ma moeda (BARACHO JÚNIOR 1998: 237ss.), a
Constituição 28 , para articular - se com uma visão procedi me n t alista
política
deliberativa
e
da
Democracia,
deve
ser
da
compreen di d a,
funda m e n t al m e n t e, como a interpretação e a prefiguração de um sistema de
direitos funda mentais 29 , que apresenta as condições procedimentais de
institucionalização jurídica das formas de comunicação necessárias para
uma legislação política autônoma; ou seja, das condições procedimentais que
configuram e garantem, em termos constitucionais, um processo legislativo
democrático (HABERMAS 1998b: 259).
Assim, a soberania popular assume forma jurídica, através do
processo
legislativo
democrático, que faz valer o nexo interno
entre
autono mia pública e autonomia privada dos cidadãos, concebidas, desde o
início, como dimensões
co- originárias e equiprimor diais da autonomia
jurídica (HABERMAS 1997b: 2: 310- 311; 1998b: 260). Em outros termos, uma
soberania popular interpretada procedimentalme nte garante que as duas
dimensões da autonomia jurídica se articulem reciprocamente, pois os
destinatá rios das nor mas jurídicas vigentes, enquant o sujeitos jurídicos
privado s, pelo processo legislativo democrá tico, que se realiza através da
mediação
jurídica
institucionaliza do s
entre
de
canais
formação
da
institucionaliza do s
vontade
e da
opinião
e
não -
políticas,
enqua n to cidadãos, torna m - se os autores dos seus próprios direitos e
deveres (HABERMAS 1997b: 1: 113ss.; 1998b: 260 - 261). Nesse sentido, é
28
29
Sobre tal compreens ã o de Constituição, ver també m o próximo capítulo.
Reconst ru tiva m e n t e, segundo Haberm as, esses direitos funda m e n t ais são os
seguintes: a) direitos a iguais liberdades subjetivas; b)a iguais direitos de pertinência; c) à
garantia do direito de ação; d)à elaboração legislativa autôno m a; e e) direitos
participatórios (HABERMAS 1997b: 1: 159ss.).
que se pode dizer que a separação entre autonomia privada e autonomia
pública, as duas dimensões da autonomia jurídica, resulta apenas do fato do
caráter positivado, institucional, do Direito moderno, exigir uma separação
de papéis não presente, por exemplo, na Moral (que apresenta um conceito
unitário de autonomia).
Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, o exercício da
auton o mia jurídica ramifica - se, assim, no uso público das liberdade s
políticas (“liberda des comunicativas”) e no uso privado das liberdade s
individuais (“liberdade s subjetivas”), sem que se reduz a à autono mia moral
ou à escolha racional, como considera m os liberais, e sem poder ser
interp ret a d o simples me n t e à luz do direito à autorrealização ética, como
advoga m os republica mos. Vista em toda sua integridade, a autono mia
jurídica, em suas dimens ões pública e privada, compõe - se, então, de três
elemen tos distintos: da autono mia dos cidadãos, exercida em comu m, da
capacidade para uma escolha racional e do direito à auto - realização ética
(HABERMAS 1997b: 2: 311), cujo nexo deve ser garantido pelo processo de
mediação jurídica que represe nt a o processo legislativo democrático 30 .
Sob o paradigma do Estado Democrático de Direito, por um lado,
a Constituição e o Direito Constitucional não limita m a Democracia; esta
pressu p õe aqueles, já que é através da mediação jurídica entre canais
institucionais
sobera nia
e não - institucionais, regulados
popular
se
manifesta
enquan to
e não - regulados,
poder
que a
comunicativo.
Ao
30 Nesse sentido, pode - se dizer
que, para uma teoria discursiva do Direito e da
Democracia, diferente m e n t e da tradição republicana e de sua corrente comunitaris ta, a
autono mia jurídica é um direito e não um bem, dentre outros, que tenha por finalidade
satisfazer a necessida des huma na s, ainda que primordiais. O seu exercício, enquant o
garantia do direito à autorrealização, é que pode viabilizar a satisfação de necessida de s
primor diais e de vida digna. Sobre a complexidade do tema e acerca das múltiplas
dimensões da autono mi a, ver GUSTIN 1997.
contrário de uma visão típica do Liberalismo, os direitos funda m e n t ais,
assim
como
os
demais
princípios
constitucionais,
não
pode m
ser
considerad o s como uma restrição externa me n t e imposta ao exercício da
sobera nia
popular,
pois
são
justa me n t e
esses
princípios
e direitos
constitucionais que possibilitam a institucionalização jurídica do exercício
de um uso público das liberdades políticas dos cidadãos em sua prática
cívica de autodeter mi nação (HABERMAS 1998b: 259).
Assim,
por
um
lado,
no
marco
da
Teoria
Discursiva
da
Democracia, "[s]omente as condições processuais para a gênese democrática
das leis asseguram a legitimidade do direito" (HABERMAS 1997b: 1: 326) e
que, por outro lado:
“O substrato social, necessário para a realização do
sistema de direitos, não é formado pelas forças de uma
sociedade de mercado operante espontanea me nte, nem pelas
medidas
de
um
Estado
do
bem - estar
que
age
intencionalmente, mas pelos fluxos comunicacionais e pelas
influências públicas que procedem da sociedade civil e da
esfera pública política, os quais são transfor ma dos em poder
comunicativo pelos processos democráticos.” (HABERMAS
1997b: 2: 186)
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republicanismo e liberalismo - Faculdade Mineira de Direito