Uma no cravo, outra na ferradura
Por Catarina Lima Soares*
PALAVRAS-CHAVE: álcool, despedimento, justa causa, reserva da vida privada
Comentário ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 10 de Julho de 2013
No âmbito do recurso interposto pela entidade empregadora, o Tribunal da Relação do Porto
veio confirmar a decisão do Tribunal de primeira instância que julgou ilícito o despedimento de
um trabalhador e ordenou a sua reintegração na empresa, acrescida do pagamento das
retribuições vencidas intercalares.
A decisão em causa foi polémica e amplamente noticiada. A fundamentação de direito foi
ignorada, publicitou-se a promoção gratuita ao álcool no trabalho, pretensamente gizada na
argumentação daquele colectivo de juízes. Apelou-se ao bom senso, decoro e prestígio dos
órgãos de soberania nacional.
Em verdade, os polémicos comentários que compõem esta decisão foram tão propositados e
provocatórios, como censuráveis e desmedidos. Valham-nos os argumentos jurídicos, mas já
estava montado o folclore.
Em apreço estava o despedimento de um trabalhador de uma empresa de recolha e
transporte de resíduos sólidos urbanos que, no exercício das suas funções, teve um acidente
de viação. Em face dos ferimentos sofridos, o trabalhador foi transportado para o hospital
onde lhe foram feitos exames médicos que confirmaram que, no momento do acidente,
apresentava uma taxa de alcoolémia de 2,3 gr/litro de sangue. O seu colega, o condutor do
camião de recolha de lixo em que ambos seguiam, apresentava uma taxa de 1,79 gr/litro de
sangue, e foi, igualmente, despedido.
A primeira instância confirmou estes factos, dando ainda por provado que não existia qualquer
regulamento ou norma interna na empresa que proibisse os trabalhadores de consumirem
álcool no seu período de trabalho.
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A empresa empregadora motivou o despedimento com justa causa do trabalhador imputandolhe a violação culposa de deveres laborais específicos e alegando que, com o seu
comportamento, o trabalhador contribuiu para a lesão séria dos seus interesses patrimoniais e
afectou de modo gravoso a sua imagem pública.
Cedo anunciando o desfecho jurídico desta decisão, o Tribunal da Relação do Porto invocou,
na perspectiva dos direitos, liberdades e garantias pessoais, o direito à reserva da intimidade
da vida privada, expresso no artigo 26.º da nossa Lei Fundamental, e os direitos de
personalidade ínsitos nos artigos 16.º e 17.º do Código do Trabalho, respectivamente sob as
epígrafes: “Reserva da intimidade da vida privada” e “Protecção de dados pessoais”.
Actualmente, o direito à reserva da intimidade da vida privada é entendido numa dupla
perspectiva: a de impedir o acesso a informações relativas à vida privada e a de proibir a
divulgação desses dados. Neste sentido, após salientar que o estado de saúde do trabalhador,
concretamente o seu grau de alcoolémia, assentava na esfera da intimidade da sua vida
privada – e é matéria reservada que o empregador deve respeitar -, o Tribunal esclareceu que
a entidade empregadora não pode exigir informação sobre o estado de saúde, exames ou
testes médicos aos trabalhadores, para além das situações previstas em legislação relativa a
segurança e saúde no trabalho, e salvo se a natureza das funções a desempenhar o justificar. A
Relação do Porto realçou, também, que o propósito de recolha terá de constar de documento
escrito fornecido ao trabalhador, e que, caso seja recolhida informação, essa só poderá ser
prestada a médico que, por sua vez, apenas comunicará à entidade empregadora se o
trabalhador está ou não apto a desempenhar a sua actividade.
Chamando, ainda, à colação o artigo 19.º do Código do Trabalho sobre “Testes e exames
médicos”, o Tribunal considerou que a entidade empregadora não poderia ter tido acesso à
análise de sangue do trabalhador e à taxa de álcool nela encontrada, acrescentando que a
empresa não logrou ter feito a prova necessária sobre o modo como obteve aquela
informação, o que poderia até ter invertido a conclusão decorrente. Isto porque, como
acentua o Tribunal da Relação do Porto, a reserva da intimidade da vida privada só se mantém
enquanto o beneficiário quiser fazer uso da mesma. Importará reter que o trabalhador
acidentado, para além de não conduzir o veículo no momento do acidente, não autorizou a
realização de qualquer análise ao seu sangue, nem autorizou que a sua entidade empregadora
tivesse acesso à mesma, o que levou o Tribunal a concluir que aquela era uma prova nula, pois
o acesso à mesma era ilícito. Ora, se a prova da taxa de álcool não foi validamente adquirida, o
que implica a ilicitude na sua obtenção, a factualidade imputável ao trabalhador, a
fundamentação e a licitude do despedimento ocorrido encontravam-se manifestamente
ameaçadas.
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Anulada a prova da análise ao sangue, o Tribunal da Relação do Porto entendeu que não havia
meio de prova alternativo que demonstrasse o estado de alcoolémia do trabalhador no
momento do acidente, e encerrou liminarmente a questão jurídica ao corrigir a matéria de
facto assente. O Tribunal eliminou oficiosamente o facto n.º 5, o qual fazia referência ao
estado e à taxa de alcoolémia do trabalhador. Na verdade, ao não admitir em juízo a prova da
taxa de álcool que o trabalhador apresentava no momento do acidente, não restava
factualidade censurável contra o mesmo, o que levou a Relação do Porto a reduzir a matéria
de facto assente para: “O recorrido [trabalhador] sofreu um acidente no seu trabalho”, o que
não viola ou atenta contra qualquer dever laboral e, consequentemente, não pode constituir
infracção que determine a aplicação de qualquer sanção disciplinar ao trabalhador.
Sucede que a premissa que desentranhou a referência à taxa de alcoolémia do trabalhador,
permitiu ao Tribunal da Relação do Porto estender semelhante argumentação, e idêntica
conclusão, à problemática da ausência de norma emitida pela empresa sobre segurança e
saúde no trabalho, à qual o trabalhador tivesse desobedecido, e à falta de regulamento que
proibisse o consumo de álcool por parte dos trabalhadores. Ora, apesar da pertinência desta
questão, porque esclarecedora da posição jurisprudencial sobre a exigência de formalismo das
(boas) práticas laborais, a verdade é que a sua argumentação se esfumou na perda de efeito
útil e relevante na causa, já que alegar a violação de uma regra interna que não está emitida,
não permite afirmar a violação do que não existe. Sem prejuízo, inquieta-nos o atentado à
harmonia jurídica que daí poderá resultar. É que, caso o trabalhador fosse o condutor da
viatura acidentada, e ainda que aquela prova fosse nula, o certo é que constitui crime conduzir
com taxa de álcool superior a 1,2 gr/l de sangue. Razão pela qual, não nos parece defensável
que empresas que empreguem trabalhadores com funções de condutor tenham de introduzir
normas internas a proibir o que a lei já pune – e considera crime.
De igual modo, o Tribunal da Relação do Porto estendeu os seus fundamentos à alegada
questão do cumprimento defeituoso da actividade. Eliminada a prova do estado de alcoolémia
do trabalhador durante a prestação do seu trabalho, resulta impossível a demonstração do
modo do seu cumprimento, colocando, também, em apreço a relação de causalidade entre a
taxa de álcool apresentada pelo trabalhador e o acidente ocorrido. Ora, suscitam-se-nos sérias
dúvidas quanto à possibilidade de alcance desta prova em abstracto. Ou seja, ainda que
admitindo a eventual licitude e validade da prova da taxa de álcool apresentada pelo
trabalhador, persiste a incerteza da verificação do nexo causal entre o cumprimento
defeituoso do seu trabalho e a concreta taxa de álcool no sangue. Uma determinada taxa de
álcool no sangue, tão só a taxa, desacompanhada de outros factos e provas, é insuficiente para
concluir, quanto mais demonstrar, que o trabalhador cumpriu com defeito a sua actividade,
em violação dos seus deveres laborais, tais como o zelo ou a diligência exigíveis na prestação
de trabalho. Afastamo-nos, pois, da teoria da causalidade adequada neste particular. Sem
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prejuízo do que acabámos de questionar, parece-nos por demais evidente que um trabalhador
com 2,3gr/litro de álcool no sangue não estará nas melhores condições para executar o seu
trabalho, e que a entidade empregadora, apesar de não ter as suas normas de conduta laboral
publicitadas internamente, partilhe de uma recomendação como a de Bernardo Soares: “Se
um homem escreve bem só quando está bêbado, dir-lhe-ei: embebede-se.” (Fernando Pessoa,
O Livro do Desassossego).
Por conseguinte, como, de resto, concluiu aquele colectivo de juízes, não é possível afirmar
que houve um prejuízo, real e efectivo, para a imagem da empresa, a qual não logrou
comprovar o comportamento embriagado público do trabalhador, nem os factos
desprestigiantes que daí resultaram. Tão pouco valeu à empresa apelar ao bom senso do
exercício diligente e zeloso das funções laborais, que pressupõe, naturalmente, que o
trabalhador se apresente em condições adequadas e apropriadas à prestação da actividade
para a qual foi contratado. Ora, como bem considerou o Tribunal, o bom senso não é fonte de
direito, e o raciocínio analítico desta decisão encontra-se amplamente fundamentado e
apoiado nas normas legais vigentes. Aliás, esvaziados os polémicos comentários que
prenderam a atenção mediática, o Tribunal da Relação do Porto foi até extenso no positivismo
plasmado na decisão. Anulada a prova em apreço e considerando contaminada a demais, não
subsistia infracção e norma laboral violada pelo trabalhador, o desfecho jurídico era, pois, o
expectável. Improcediam, assim, todas as questões do recurso interposto pelo empregador e
confirmava-se a sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância.
É indubitável que o direito à reserva da intimidade da vida privada deve ser entendido,
objectivamente, como a regra, devendo somente ceder em situações conflituantes com outros
direitos ou interesses superiores, dentro dos limites definidos pelo princípio da
proporcionalidade, adequação e necessidade. As restrições à liberdade e direitos do
trabalhador, cidadão titular de direitos fundamentais e de direitos de personalidade, só
deverão ser admitidas na medida estritamente necessária à prossecução de tal desiderato, o
que implica que havendo colisão de direitos deve prevalecer o que tiver interesse e finalidade
legítimos, ou por outra, o que mais prestigie a dignidade jurídica. Ademais, a orientação do
Tribunal da Relação do Porto está em perfeita harmonia com a inabalável defesa dos direitos
fundamentais e de personalidade dos trabalhadores, amplamente partilhada pela dominante
jurisprudência nacional. Além de que é ao legislador que compete limitar o âmbito dos
poderes da entidade empregadora, adoptando medidas eficazes que permitam tutelar e
assegurar a dignidade do trabalhador e o livre desenvolvimento da sua personalidade, o qual
não aliena a sua condição de cidadão ao celebrar um contrato de trabalho, e ao estar sujeito a
um poder de direcção.
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Não obstante, convenhamos que também é necessário aos Tribunais acautelar a defesa dos
meios de reacção por parte da entidade empregadora, que sejam capazes de estabelecer um
equilíbrio legítimo entre a defesa da reserva da intimidade da vida privada do trabalhador e a
tutela do seu poder de direcção, e sobretudo disciplinar. Se, por um lado, aceitamos a
inadmissibilidade da prova ilícita em defesa de um direito de igual hierarquia, por outro,
parece-nos indefensável que se exija que a entidade empregadora permaneça
inapelavelmente manietada, desprotegida e sem reacção alternativa. Neste sentido, receamos
que o escudo legal tenha limitado a iniciativa argumentativa do Tribunal da Relação do Porto
nesta matéria, tendo a fundamentação da problemática da colisão de direitos saído
prejudicada. Efectivamente, pedia-se mais ao colectivo de juízes.
No mesmo sentido, resta-nos, ainda, lamentar a falta de referência do Tribunal às teorias
doutrinárias sobre a admissibilidade da prova ilícita em juízo, que têm vindo a ganhar
expressão, ainda que tímida, na jurisprudência portuguesa. Com efeito, a tese ampla defende
a admissibilidade da prova ilícita sem restrições, tendo em vista a descoberta da verdade
material, isto é, o meio justifica-se pelo resultado, e a tese intermédia apela à ponderação
casuística, mediante a apreciação das circunstâncias concretas e consoante os valores e
direitos em jogo.
Com assento constitucional, o direito à prova vem consagrado no artigo 20º da Lei
Fundamental, como componente do direito geral à protecção jurídica e de acesso aos
Tribunais. Deste princípio decorre, por um lado, o dever do Tribunal atender a todas as provas
produzidas no processo, desde que lícitas, independentemente da sua proveniência; por outro,
a possibilidade de utilização pelas partes, em seu benefício, dos meios de prova que mais lhes
convierem e do momento da respectiva apresentação. Daí resulta que a recusa de qualquer
meio de prova deve ser devidamente fundamentada na lei ou em princípio jurídico, não
podendo o Tribunal fazê-lo de modo discricionário. Porém, como o Tribunal Constitucional já
teve oportunidade de concluir, este não é um direito absoluto, pois contém limites impostos
pela protecção de direitos que merecem do ordenamento jurídico uma tutela mais forte.
A problemática da admissibilidade da prova ilícita tem sido objecto de acesas discussões
doutrinárias, não havendo um consenso geral acerca das consequências da eventual ilicitude
dos meios de prova apresentados em juízo, seja ela conexionada com a sua obtenção, com a
sua produção ou com a sua valoração, e da eventual contaminação às demais provas. O
Tribunal da Relação do Porto adoptou a tese restrita, a que não admite a prova ilícita em juízo,
mas não teria sido despiciendo o desenvolvimento dos argumentos que lhe permitiram aplicar
analogicamente ao processo laboral, o preceito constitucional de garantia dos cidadãos em
processo criminal, que dispõe no n.º 8 do art. 32.º da nossa Constituição: “São nulas todas as
provas obtidas mediante (…) abusiva intromissão na vida privada (…)”. Era este o busílis da
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questão. Ignorou-se, pois, uma oportunidade para uma interessante fundamentação, um
arejar da certeza e da estabilidade jurídicas.
*[email protected]
001/2013
www.ace.pt
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