SOBRE GRIOTS: POR UMA HISTÓRIA DAS MULHERES
NEGRAS, POR ELAS MESMAS.
Nzinga Mbandi (Dayane Nayara Conceição de Assis)1
Resumo: Esse trabalho pretende analisar quais as possíveis ferramentas
utilizadas pelas mulheres negras para reescrita de sua história como protagonista. Quando
interseccionado o gênero com o quesito raça as mulheres negras encontram-se
duplamente invisibilizadas uma vez que suas contribuições históricas em grande parte são
relatadas por meio de relatos orais, seja por um exercício de preservação dos segredos,
ou até mesmo pela exclusão das mesmas do sistema educacional fortemente impregnado
pela tradição da escrita. É a partir desse contexto que esse trabalho pretende resgatar
algumas narrativas que demonstram o motivo dessa dupla exclusão da história, ao mesmo
tempo indicar as estratégias para superá-la.
Palavras-chave: Mulheres Negras, História Oral, Griots, invisibilidade
QUEM SÃO ESSAS MULHERES?
Quando eu era menina o meu sonho era ser homem para defender o Brasil porque eu lia a
História do Brasil e ficava sabendo que existia guerra.
Só lia os nomes masculinos como defensor da pátria.
Carolina Maria de Jesus
Luiza Mahin, Zeferina, Dandara de Palmares, Aquatune, Akotirene e tantas
outras mulheres negras que os nomes não se encontram nos registros oficiais da história,
a pergunta que se faz é: se existiram porque não estão registradas? Esse é o retrato da
representação histórica das mulheres negras no Brasil, por fazerem parte de grupos sociais
que se encontram a margem da estrutura social, mulheres como essas que atuaram como
1
Mestranda do PPGNEIM-UFBA, Ativista da rede de mulheres negras da Bahia, [email protected]
liderança em diversas revoltas populares ao longo da história permanecem na
invisibilidade.
Contar a história é um ato extremamente poderoso, a medida em que se cria
sobre um determinado grupo fatos históricos e os torna incontestáveis, sobre isso
Chimamanda Adiche escreve:
“Poder é a habilidade de não só contar a história de uma outra pessoa, mas de fazê-la a história
definitiva daquela pessoa. O poeta palestino Mourid Barghouti escreve que se você quer destituir uma
pessoa, o jeito mais simples é contar sua história, e começar com "em segundo lugar". Comece uma história
com as flechas dos nativos americanos, e não com a chegada dos britânicos, e você tem uma história
totalmente diferente. Comece a história com o fracasso do estado africano e não com a criação colonial do
estado africano e você tem uma história totalmente diferente. (https://www.youtube.com/watch?v=ECbh1YARsc)
Em geral a representação das mulheres negras na história do Brasil, ou as
invisibiliza ou as coloca em papéis estereotipados que não só não condizem com a
realidade vivida por aquelas mulheres, como buscam reforçar o papel social que pretendese que essas mulheres ocupem. De modo geral a mulher sempre esteve ligada a papéis de
gênero a elas atribuídas que ás associavam a doçura, fragilidade ou a outros estereótipos
como loucura e histeria a fim de desqualificar suas ações, contudo a mulher negra por sua
vivência influenciada pelo marcador social de raça associado ao gênero, nunca coube o
mito da doçura e fragilidade:
“Quando falamos do mito da fragilidade feminina, que justificou historicamente a proteção
paternalista dos homens sobre as mulheres, de que mulheres estamos falando? Nós, mulheres negras,
fazemos parte de um contingente de mulheres, provavelmente majoritário, que nunca reconheceram em si
mesmas esse mito, porque nunca fomos tratadas como frágeis. Fazemos parte de um contingente de
mulheres que trabalharam durante séculos como escravas nas lavouras ou nas ruas, como vendedoras,
quituteiras, prostitutas... Mulheres que não entenderam nada quando as feministas disseram que as mulheres
deveriam ganhar as ruas e trabalhar! Fazemos parte de um contingente de mulheres com identidade de
objeto. Ontem, a serviço de frágeis sinhazinhas e de senhores de engenho tarados. “(CARNEIRO, (¿) p.2)
Não sendo então o sexo frágil, qual é então a representação que recebe essa
mulher? A da negra subserviente seja por seus atributos domésticos ou por seus atributos
físicos, que são vistos sempre como sedutores e disponíveis, observe o trecho abaixo
retirado do trabalho Casa grande e Senzala, de Gilberto Freyre:
Da escrava ou sinhá que nos embalou. Que nos deu de mamar. Que nos deu de comer, ela própria
amolengando na mão o bolão de comida. Da negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e
de mal-assombrado. Da mulata que nos tirou o primeiro bicho-de-pé de uma coceira tão boba. Da que nos
iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama –de vento, a primeira sensação completa de
homem. (Freyre,1977, p.83)
Nota-se que esse pequeno trecho descreve uma mulher sempre pronta a servir,
em primeiro lugar destaca-se a figura da mãe preta, aquela mulher negra que cuida com
seus dotes domésticos e culinários da família colonial, e que atualmente reconfigura-se
no papel das empregadas domésticas. Por outro lado a hipersexualização da mulher negra
apresenta uma mulher jovem, considerada como aquela que incita e depois satisfaz a
vontade do branco senhor, a mulata de ontem reconfigura-se na Globeleza de hoje,
embora tal descrição possa dar a entender que esse papel exercido pela mulher negra tenha
ocorrido de forma amigável, falamos aqui de relações baseadas em violências físicas e
emocionais que minavam (e assim ainda atuam) a autoestima dessas mulheres, a
responsabilização desta mulher em manter o sistema colonial, lhe retirou e no cenário
atual ainda retira a possibilidade de desfrutar de sua própria família:
Uma leitura mais profunda da literatura brasileira, em suas diversas épocas e
gêneros, nos revela uma imagem deturpada da mulher negra. Um aspecto a observar é a ausência de
representação da mulher negra como mãe, matriz de uma família negra, perfil delineado para as mulheres
brancas em geral. (Evaristo, 2005, p. 53)
Esse silenciamento da história em torno da atuação das mulheres negras, tem seu
fundamentos em uma sociedade profundamente assentada em uma ordem patriarcal de
gênero e em pressupostos racistas, ou seja, significa dizer que ser mulher negra em uma
sociedade como essa é experimentar duplamente esse sistema de opressões através da
interseccionalidade de gênero e raça. Sendo assim o desafio de resgatar quem são essas
mulheres perpassa desafiar pressupostos de dominação racistas e sexistas que impedem
que a mulher negra seja vista como indivíduo capaz de desenvolver e contar sua própria
história.
CRIATIVIDADE
NAS
ESTRATÉGIAS
DE
LUTA
E
SOBREVIVÊNCIA
O sistema pode até me transformar em empregada, mas não pode me fazer raciocinar
como criada. Enquanto mulheres convencionais lutam contra o machismo, as negras duelam pra vencer
o machismo, o preconceito, o racismo. Lutam pra reverter o processo de aniquilação, que encarcera
afrodescendentes em cubículos na prisão. (Facção Central)
A história das mulheres constituiu-se como campo de estudo na área
historiográfica de maneira recente em termos acadêmicos, entre outros motivos pelo fato
de que o androcentrismo na ciência impediu sistematicamente que tal perspectiva pudesse
se consolidar. Contudo a expansão dos movimentos feministas e a entrada gradativa das
mulheres no meio acadêmico promoveu através do pressionamento a consolidação desse
campo de estudo, sobre o assunto Joan escreve:
Por isso reivindicar a importância da mulher na história significa
necessariamente ir contra as definições de história e seus agentes já estabelecidos como “verdadeiros”, ou
pelo menos, como reflexões acuradas sobre o que aconteceu (ou teve importância) no passado. E isso é
lutar contra padrões consolidados por comparações nunca estabelecidas, por pontos de vista jamais
expressos como tais. (SCOTT, 1994)
Não há dúvidas que a consolidação do campo de estudos sobre a história das
mulheres foi fundamental para a visibilidade da atuação política das mulheres da história,
contudo ao considerarmos que a mulher não é um sujeito universal podemos afirmar que
tal consolidação exclui grande parte das mulheres que em razão de outros marcadores
sociais como raça, classe e sexualidade ficaram fora dessa construção. É o caso das
mulheres negras por exemplo, o atravessamento das questões raciais fizeram com que
essas mulheres experimentassem experiências distintas das mulheres brancas e de alta
classe que tiveram acesso ao ambiente acadêmico naquele momento:
Ás mulheres negras não coube experimentar o mesmo tipo de submissão vivido pelas mulheres
brancas de elite até o início do século XX. Tampouco seu espaço de atuação foi unicamente o privado,
reservado ás bem-nascidas, uma vez que, pobres e descriminadas, se viram forçadas a lançar mão de uma
gama de estratégia para sobreviver e fazer frente aos desafios cotidianos. A chegada do novo século
encontrou-se trabalhando como pequenas sitiantes, agriculturas, meeiras, vendedoras de leguminosas e
demais produtos alimentícios nas ruas das cidades brasileiras. Muitas delas viviam em lares sem presença
masculina, chefiando a casa e providenciando o sustento dos seus. Outras trabalhavam para as famílias de
mais posses como criadas para todo o serviço. Algumas haviam conseguido acumular patrimônio, formar
núcleos familiares estáveis, criar rede de solidariedades e comunidades religiosas. Ao contrário do prescrito
para a mulher idealizada da época, as negras circulavam pelas ruas, marcando a seu modo presença no
espaço público. (NEPOMUCENO,2012)
A denúncia do universalismo nas teorias feministas sempre foi uma
preocupação das mulheres negras ao construírem sua estratégia de luta, essa crítica
também se estende ao interior dos movimentos negros que ao desconsiderarem as
questões de gênero também silenciavam as experiências das mulheres negras. Sojourne
Truth2 em seu épico discurso Ain’t a Woman afirmou:
Aqueles homens ali dizem que as mulheres precisam de ajuda para subir em
carruagens, e devem ser carregadas para atravessar valas, e que merecem o melhor lugar onde quer que
estejam. Ninguém jamais me ajudou a subir em carruagens, ou a saltar sobre poças de lama, e nunca me
ofereceram melhor lugar algum! E não sou uma mulher? Olhem para mim? Olhem para meus braços! Eu
arei e plantei, e juntei a colheita nos celeiros, e homem algum poderia estar à minha frente. E não sou uma
mulher? Eu poderia trabalhar tanto e comer tanto quanto qualquer homem – desde que eu tivesse
oportunidade para isso – e suportar o açoite também! E não sou uma mulher? Eu pari 3 treze filhos e vi a
maioria deles ser vendida para a escravidão, e quando eu clamei com a minha dor de mãe, ninguém a não
ser Jesus me ouviu! E não sou uma mulher? (TRUTH,1851)
Promover o tensionamento tanto no interior dos movimentos feministas quanto
nos movimentos negros tem sido uma das estratégias utilizadas pelas mulheres negras
para reconstruir sua história, que de modo algum poder ser considerada como um
apêndice a esses dois movimentos acima citados. Podemos considerar as mulheres negras
por suas vivências verdadeiras Griot´s, haja vista que embora estivessem em situações de
desvantagem total foram e continuam sendo grandes guardadoras e difusoras dos
conhecimentos tradicionais da população negra, por Griot aqui consideraremos:
Termo do vocabulário franco-africano criado na época colonial para designar o narrador, cantor,
cronista e genealogista que, pela tradição oral, transmite a história de personagens e famílias importantes
para as quais, em geral, está a serviço. Presente, sobretudo na África ocidental, notadamente onde se
desenvolveram os faustosos impérios medievais africanos (Gana, Mali, Songai etc.), recebe denominações
variadas, dyéli ou diali, entre os Bambaras e Mandingas, guésséré entre os Saracolês, wambabé, entre os
Peúles, aoulombé, entre os Tucolores, e guéwel, (do árabe qawwal) entre os Uolofes. (Diáspora Africana Ney Lopes)
A ideia da mulher negra como uma Griot valoriza uma das estratégias mais
usuais para o resgate do papel desempenhado pela mulher negra na história que se refere
a valorização da memória, o compartilhamento de saberes e conhecimentos armazenados
somente na memória tem fortalecido durante séculos a trajetória de lutas das mulheres
negras, que têm conseguido romper com as barreiras acadêmicas que recusam tal
estratégia como possibilidade de construção do conhecimento. Isso ocorre entre outros
2
Sojouner Truth nasceu escrava em Nova Iorque, sob o nome de Isabella Van Wagenen, em 1797, foi
tornada livre em 1787, em função da Northwest Ordinance, que aboliu a escravidão nos Territórios do Norte
dos Estados Unidos (ao norte do rio Ohio). A escravidão nos Estados Unidos, entretanto, só foi abolida
nacionalmente em 1865, após a sangrenta guerra entre os estados do Norte e do Sul, conhecida como Guerra
da Secessão. Sojourner viveu alguns anos com um família Quaker, onde recebeu alguma educação formal.
Tornou-se uma pregadora pentecostal, ativa abolicionista e defensora dos direitos das mulheres. Em 1843
mudou seu nome para Sojourner Truth (Peregrina da Verdade). Na ocasião do discurso já era uma pessoa
notória e tinha 54 anos. A versão mais conhecida foi recolhida pela abolicionista e feminista branca Frances
Gage e publicada em 1863, essa é a versão traduzida aqui a partir de diversas fontes online.
fatores por se tratar de uma ciência que baseia-se em uma tradição ocidental de
valorização exacerbada da escrita em detrimento de outras formas do conhecimento:
A interrupção do fluxo das memórias oriundas da ancestralidade africana causa o
empobrecimento da experiência pessoal e identitária, pois, segundo Santos (2008, p.98), “a compreensão
do mundo é muito mais do que a compreensão ocidental do mundo”. E limitar nosso entendimento ao modo
ocidental de enxergar a vida, dificulta que possamos identificar forma variadas de sociabilidade, de
produção e disseminação de saberes. Precisamos criar e reconhecer outras lentes pelas quais possamos
enxergar o mundo, para além dos parâmetros estabelecidos pelo paradigma da racionalidade ocidental.
(SILVA,2013)
O uso de fontes orais como possibilidade de uma escrita da história das mulheres
negras por elas mesmas sem dúvidas tem sido muito utilizadas em diversos trabalhos
acadêmicos e outros trabalhos literários de mulheres negras, isso rompe com os
preconceitos acadêmicos em torno dessa metodologia e reforça a necessidade da
retomada do estudo de fontes orais como fontes históricas úteis. Sobre a constante recusa
a utilização das fontes orais, pode-se dizer que:
Parece se temer que uma vez abertos os portões da oralidade, a escrita (e a racionalidade junto
com ela) será varrida como que por uma massa espontânea incontrolável de fluídos, material amorfo. Mas
essa atitude cega-nos para o fato de que nosso temor respeitoso de escrever tenha distorcido nossa percepção
de linguagem e comunicação até o ponto em que não mais se entendem quer a oralidade quer a própria
natureza da escrita. Na realidade as fontes escritas e orais não são mutuamente excludentes. Elas têm em
comum características autônomas e funções específicas que somente uma ou outra podem preencher (ou
que um conjunto de fonte preenche melhor que o outra). Desta forma, requer instrumentos interpretativos
diferentes e específicos. Mas a depreciação e a supervalorização das fontes orais terminam por cancelar as
qualidades específicas, tornando essas fonte meros suportes para as fontes tradicionais escritas ou cura
ilusória para todas as doenças. (PORTELLI,1997)
Outras estratégias que colaboram para a retomada da mulher negra como sujeito
político na história tem sido a luta por uma mudança na representação do negros de modo
geral nos canais de ensino e ambientes midiático. Desde os mais primórdios ambientes
de aprendizado o continente Africano, que por vezes é resumido como se tratasse de um
país, é representado como um lugar onde o que se tem são cenários de miséria, fome e
falta de civilidade, o negro africano representado como sujeito tribal se confunde com o
cenário da selva, misturando-se a Savanah e somente o Ocidente e sua branquitude pode
salvá-lo desse terrível destino. Sobre a produção e difusão do conhecimento sobre África
Anderson Ribeiro de Oliveira escreveu:
Silêncio, desconhecimento e representações eurocêntricas. Poderíamos assim definir o
entendimento e a utilização da História da África nas coleções didáticas de História no Brasil. Das vinte
coleções compulsadas pela pesquisa, apenas cinco possuíam capítulos específicos sobre a História da
África. Nas outras obras, a África aparece apenas como um figurante que passa despercebido em cena,
sendo mencionada como um apêndice misterioso e pouco interessante de outras temáticas. Tornou-se
evidente também que, quando o silêncio é quebrado, a formação inadequada e a bibliografia limitada criam
obstáculos significativos para uma leitura menos imprecisa e distorcida sobre a questão. Percebemos, então,
que a tarefa de análise de manuais didáticos exigiria não apenas um conhecimento considerável acerca da
História e da historiografia africanas. Seria preciso fazer uso de outro suporte de análise, que permitisse o
entendimento de como esses livros influenciaram a construção das distorções e simplificações elaboradas
sobre a África e apropriadas por milhares de alunos e professores naquele Continente, no Brasil e em
Portugal. (Ribeiro,2003, p. 429)
Esse desconhecimento e silêncio sobre o continente Africano estendeu-se sobre
o negro na diáspora e a contestação assim como resgate de uma outra história possível,
vem ocorrendo através de medidas de reparação e políticas públicas que operam nesse
intuito. Aqui destaca-se a implementação da política de cotas raciais no ensino superior
público, espera-se que a maior inserção de negros e negras nas universidades torne
possível a produção e difusão de conhecimentos voltados para a cultura e costumes da
população negra que vá além da representação que já conhecemos, contudo vale ressaltar
que essa política enfrenta fortes contraposições dos grupos hegemônicos posto que sua
execução a longo prazo incide em um perda de privilégios históricos que esses grupos
detêm.
Apesar de ser extremamente importante o acesso ao ensino superior somente não
resolve o problema das representações caricatas dos negros, ainda na área da educação é
importante observar as ações que visam construir uma nova imagem sobre os corpos
negros no Brasil nas etapas básicas do ensino e na formação do profissional da educação,
a lei 10639/03 apesar das falhas ainda existentes em sua execução representa um grande
avanço nessa tentativa de desconstrução de estereótipos. Sem dúvidas o ambiente escolar
possui grande importância na formação daquilo que chamamos de identidade étnicoracial, como aponta Nilma Lino Gomes:
Como um dos espaços que interferem na construção da identidade negra, o
olhar lançado sobre o negro e sua cultura, na escola, tanto pode valorizar identidades e diferenças como
pode estigmatiza-las, segregá-las e até mesmo negá-las. (Gomes,2003, p. 171-172)
Infelizmente a aplicação da lei citada acima mesmo após de dez anos de sua
criação ainda é muito incipiente pois os profissionais na área da educação ainda não
passaram pela qualificação necessária, e mesmo a política necessita de uma atuação um
pouco mais intersetorial para que seja de fato eficiente. Essa tentativa de mudanças se
insere também na tentativa de reformulação de livros didáticos a fim de que novas
imagens possam fazer parte da educação desses alunos, os livros tradicionais infelizmente
não fogem à regra dos problemas já citados:
Os livros didáticos dialogam extensamente com a sociedade, realidade
observável quando refletimos acerca das irradiações de verdades e falsidades expressas nos mais diversos
veículos de comunicação da sociedade, moldando o cotidiano e o imaginário social, alcançando até mesmo
aqueles que não passaram pelo processo de educação formal, a escola. A afirmação acima é condicionada
a sapiência de que aqueles que possibilitados por uma gama de dispositivos, produzem programas de rádio,
Tevê, revistas e até mesmo os conteúdos educacionais, já se escolarizaram, e essa escolarização passou,
necessariamente, pelos conhecimentos de livros didáticos, pelos mesmos motivos circulares que estamos
descrevendo. (Jesus,2012, p. 168)
Ainda no campo da escrita o resgate de autores e autoras negr@s ou de literatura
que faz referência ao negro no Brasil tem sido uma das estratégias adotadas para a
mudança de paradigmas que se construíram sobre o negro no Brasil. Um grande exemplo
disso é a escritora Carolina Maria de Jesus, que no ano de seu centenário recebeu
inúmeras homenagens e eventos em sua referência, Carolina resgata a mulher negra e
pobre que consegue transgredir de sua condição desfavorável para se tornar uma grande
escritora, contudo permanecia na invisibilidade, a autora ao escrever sobre o seu cotidiano
como mulher negra torna-se protagonista de sua própria história e apesar de relatar um
cotidiano difícil fala de Si por Si .
Fui ficando triste. O mundo há de ser sempre assim? Negro praqui, negro
prali. E Deus gosta mais dos brancos do que dos negros. Os brancos têm casas cobertas de telhas. Se Deus
não gosta de nós porque nos fez nascer? Fui procurar minha mãe:
- A senhora tem o endereço de Deus?
Ela estava nervosa e me deu uns tapas. Fiquei horrorizada: Será que minha
mãe não vê a luta dos negros? Só eu! Se ela me desse o endereço de Deus, eu ia falar-lhe pra ele dá um
mundo só pros negros. (Jesus,1982, p. 192)
No debate acadêmico surgem na cena autores que até então seguiam nos guetos
do conhecimento, entre eles destaca-se Frantz Fanon, Abdias do Nascimento, Kabenguele
Munanga, entre outros, o aumento do número de trabalhos que pretendem dar visibilidade
a esses autores fortalece a imagem do negro como intelectual e habilitado para a
construção de saberes e conhecimento. Mas especificamente sobre o debate de gênero e
a representação das mulheres negras autoras como Lélia Gonzáles, Sueli Carneiro,
Jurema Werneck, Nilma Lino Gomes e tantas outras fazem com expertise uma trajetória
de subjugação da mulher negra, mas também do seu empoderamento sobretudo com o
fortalecimento de um feminismo negro, sobre o processo de aniquilamento da identidade
da mulher negra Sueli Carneiro escreveu:
No Brasil o estrupo colonial perpetrado pelos senhores brancos portugueses sobre negras e
indígenas está na origem de toda construção sobre a identidade nacional e construções hierárquicas de
gênero e raça presente na sociedade configurando o que Angela Gilliam define como a “grande teoria do
esperma da formação nacional’, mediante o qual segunda ela: 1) o papel da mulher negra na formação da
cultura nacional é rejeitado; 2)a desigualdade entre homens e mulheres é erotizada; 3) a violência sexual
contra mulheres é romantizada. (CARNEIRO apud GILLIAM 1996)
O papel de vítima contudo nunca coube à essa mulher as estratégias de
enfrentamento e resistência desde as senzalas manifesta-se hoje nas organizações de
mulheres negras que lutam pela construção de políticas públicas para essas mulheres, que
precisam empodera-se de forma autônoma dado também sua invisibilidade tanto no
movimento de mulheres quanto o movimento negro:
Gostanamos de deixar claro que não e nossa intenção provocar um racha nos movimentos sociais
como alguns elementos acusam. Nosso objetivo e que nos mulheres negras comecemos a criar nossos
próprios referenciais deixando de olhar o mundo pela ótica do homem tanto o negro quanto o branco ou
pela da mulher branca O sentido da expressão criar nossos próprios referenciais e que queremos estar lado
a lado com as (os) companheiras (os) na luta pela transformação social queremos nos tornar porta vozes de
nossas próprias ideias e necessidades enfim queremos uma posição de igualdade nessa luta. (BAIRROS,
1995, p.3 apud ENCONTRO NACIONAL DE MULHERES 1 Boletim Informativo Rio de Janeiro 1988)
Sem dúvidas o caminho é o da (des) construção de uma representação digna para
as mulheres negras no Brasil, não há portanto um caminho único e uma só forma de se
fazer de tão intrínseco que se encontra o racismo no Brasil, questionar a naturalidade dos
estereótipos e representações didáticas negativas a respeito das mulheres negras sem
dúvidas não se trata de um resultado que se faz visível tão logo, afinal estamos falando
de séculos de dominação e exploração a serem reparados.
O primeiro passo já foi dado e lidar com o conhecimento que é poder é a mais
árdua das tarefas, já que trata-se de oligopólios dominados por grupos restritos desde
muito tempo, e se tratando de uma população que tem seu discurso fortemente
influenciado por esses meios regulá-los é indispensável para a transformação das
representações. Como todo e qualquer discurso contra hegemônico o caminho a trilhar
certamente enfrenta todo tipo de obstáculo, porém não fazê-lo já não é mais uma opção
uma nova representação social e uma nova história das mulheres negras faz parte de uma
reparação de uma dívida histórica e também para a construção de uma sociedade
igualitária em termos de gênero e raça.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Eu sou mulher
há muito tempo
cuidado com meu sorriso
Eu sou dissimulada, mágica velha
e a fúria nova do meio-dia
com todos os teus futuros largos
em promessa
Eu sou
mulher
e não branca
Audre Lorde
Considero a mulher negra um ser em construção, sua história não é inédita e suas
trajetórias intercruzam os limites do atlântico fazendo com que mulheres negras com
trajetórias diaspóricas completamente diferentes, tenham vivido experiências marcantes
muito semelhantes entre si. Como todo ser em construção a escolha das ferramentas
corretas são imprescindíveis para o resultado final dessa história, por esse motivo a
escolha de fontes históricas com pouco prestígio na tradição acadêmica não poderia ser
mais oportuna para esse trabalho, como escreveu a poetisa negra Audre Lorde3 “As
ferramentas do mestre nunca vão desmantelar a casa grande”
Sem dúvidas que a retomada de Si tem sido fundamental nesse projeto,
apropriar-se do conhecimento e estratégias produzidas por outras mulheres negras
impulsionam esse reescrever da história como a possibilidade de um legado para as
gerações vindouras:
De todo modo, ainda nos resta a tarefa inconclusa, ou pouco valorizada, de buscar a voz própria.
Refiro-me à busca de outras formas possíveis ou desejáveis de expressão e representação do que fomos, do
que poderíamos ter sido, do que desejamos ser, antes e além do eurocentrismo e suas pressões simbolizadas
pelo racismo heterossexista, sua dominação econômica e seus ataques no plano simbólico. Ainda que nos
reconheçamos múltiplas, mutantes, inconclusas. Ou seja, nosso desafio é indagar a partir de qual ou quais
formas poderemos, radicalizando os princípios das ialodês ou os princípios feministas e suas contradições,
nos colocar na arena pública em nosso próprio nome. Sem demasiada valorização do individualismo e
tampouco reificando culturas e seus aspectos de subjugação, o que nos tornaria cúmplices das demandas da
atual avidez pelo exótico, pelo diferentes, pela alteridade de consumo. Falando a voz de nossos desejos.
Este é nosso desafio. Mas não é só nosso. (WERNECK, ¿, P.44)
Obviamente que todo processo de reescrita revela contradições internas e
revelam empecilhos que vão surgindo ao longo do caminho, em uma sociedade sexista e
3
foi uma poeta americana, nascida em Nova Iorque a 18 de fevereiro de 1934, em uma família de
imigrantes do Caribe. Começou a publicar na década de 60, na revista de Langston Hughes, New Negro
Poets, USA. Neste período, engajou-se nos movimentos Feminista, Anti-Guerra e dos Direitos Civis. Seu
livro de estreia foi The First Cities(1968)
racista o ato de protagonizar a própria história abala os fundamentos da ordem
estabelecida e questiona a hierarquia de poder imposta.
Como mulheres negras o resgate da memória ancestral nos é de fato uma
possibilidade de lembrar sempre da força que vem de nossas Yabás4 resgatando assim a
sabedoria de Nanã, a doçura de Oxum, o traquejo para batalha de Obá, a capacidade de
acolher e cuidar de Yemanjá, o poder de nos tornar invisível quando preciso de Ewá e o
ímpeto e fúria necessário de Iansã que nos mantem de pé e por isso a saudamos: Eparrei
Oyá!
ADICCHIE, Chimamanda Ngozi. O perigo das histórias únicas.
(https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc)
BAIRROS, Luiza. Nossos Feminismos Revisitados. Estudos
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141-171, jan./jun. 2012
4
Iabá, Yabá ou Iyabá, cujo significado é Mãe Rainha, é o termo dado aos orixás femininos Yemanjá e
Oxum, mas no Brasil esse termo é utilizado para definir todos os orixás femininos em geral em vez do
termo Obirinxá (Orixá feminino), que seria o termo mais correto.
NEPOMUCENO, Bebel. Protagonismo ignorado. In: Nova
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OLIVA Anderson Ribeiro. A História da África nos bancos
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(org) A escrita da História. Novas perspectivas. São Paulo: Unesp. 1992. p.63-95
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história: Laços e Entrelaços. In: Mulheres negras contam sua história. Brasília 2013
WERNECK, Jurema. Nossos passos vêm de longe! Movimento
de Mulheres Negras e Estratégias Políticas contra o Sexismo e o Racismo. IN:
Mulheres Negras: um Olhar sobre as Lutas Sociais e as Políticas Públicas no Brasil
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