ISSN 1415 - 8973
A COR
DAS LETRAS
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Universidade Estadual de Feira de Santana
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VICE-DIRETORA DO DEPARTAMENTO DE LETRAS E
ARTES
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EDITORA
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
CO-EDITOR
Cláudio Clédson Novaes
A Cor das Letras
Nº 5 - 2004
Departamento de Letras e Artes
NESTE NÚMERO
Eric Brun, Milena Brun e Paloma Marques
Marcelo Peloggio
Suani de Almeida Vasconcelos
Antônio Wilson Silva de Souza
Girlene Lima Portela
Ângela Vilma S. Bispo Oliveira
Maria Tereza Carneiro Lemos
Maria do Socorro Pessoa
Edson Rosa Francisco de Souza
Luciano Amaral Oliveira
Janete Silva dos Santos
Anselmo Peres Alós
Cláudio Novaes
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
Revisão
Marcia Tranzillo Barreto
Suani de Almeida Vasconcelos
CAPA
“Marquesa”
Antônio Brasileiro e Nanja
DIAGRAMAÇÃO E arte final
Jaciene Silva e Carvalho
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Quando a obra tiver dois ou três autores, todos poderão ser indicados,
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houver mais de 3 autores, indica-se apenas o primeiro seguido de et al
Citações destacadas do texto: As citações diretas, com mais de três linhas,
revista
A Cor das Letras
FEIRA DE SANTANA
n. 5
p. 1-225
2004
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
NORMAS EDITORIAIS
ARTIGOS
RESENHA
PRODUÇÃO LITERÁRIA
ARTIGOS
A APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA NA
ESCOLA REGULAR: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Eric Brun, Milenna Brun e Paloma Marques
11 - 25
A ORDEM DO CONCRETO N’AS MIL E UMA NOITES
Marcelo Peloggio
27 - 39
Análise de um discurso político
(ASPECTOS RETÓRICOS)
Suani de Almeida Vasconcelos
41 - 60
CAMINHOS DO DESENHO NA BAHIA DO SÉCULO
XVIII
Antônio Wilson Silva de Souza
61 - 74
CONTRIBUIÇÕES DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL PARA O
ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA/ESCRITA
Girlene Lima Portela
75 - 90
HERBERTO SALES: O ROMANCE E A BUSCA
DE SI MESMO
Ângela Vilma S. Bispo Oliveira
91 - 110
Modernismo: ética x estética
Maria Tereza Carneiro Lemos
111 - 119
O ESBOÇO HISTÓRICO-ETNOGRÁFICOLINGÜÍSTICO DE UM POVO INDÍGENA
Maria do Socorro Pessoa
121 - 135
O PAPEL DOS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES
NA MANUTENÇÃO DA ORDEM LINEAR DOS
CONSTITUINTES DA ORAÇÃO
Edson Rosa Francisco de Souza
137 - 155
Luciano Amaral Oliveira
157 - 169
PRODUÇÃO DE TEXTO NA ESCOLA: UMA PRÁTICA
DIALÓGICA
Janete Silva dos Santos
171 - 182
quando as ovelhas pastam no oriente:
espaços intersemióticos entre Caio
Fernando Abreu
e o I Ching: O Livro das Mutações
Anselmo Peres Alós
183 - 199
VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS EM TRÊS TRATADOS MEDIEVAIS PORTUGUESES
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz
201 - 215
RESENHA
Cinema brasileiro: do sertão para o mundo...
Cláudio Novaes
217 - 220
PRODUÇÃO LITERÁRIA
O Homem do Camisão
Ao município de Ipirá e à lenda do Homem do Camisão.
Cláudio Novaes
221 - 225
A APRENDIZAGEM DE LÍNGUA ESTRANGEIRA
NA ESCOLA REGULAR: DESAFIOS E
POSSIBILIDADES
Eric Brun & Milenna Brun*
Paloma Marques**
RESUMO: Neste artigo, partindo dos pressupostos de que a aprendizagem
de línguas estrangeiras é importante para o desenvolvimento integral do
indivíduo e de que o ensino precoce de línguas estrangeiras pode e deve
ser realizado na escola regular, apresentamos alguns de seus desafios
e possibilidades. O ensino precoce de línguas estrangeiras na escola é
justificado numa perspectiva humanista, socioafetiva e neurolingüística
e seus objetivos educativos, culturais e lingüísticos são discutidos.
Enfim, são propostas alternativas para as dificuldades freqüentemente
encontradas na prática dos professores de línguas baseadas em projeto
piloto atualmente em desenvolvimento.
PALAVRAS-CHAVE: Ensino de segunda língua, Ensino de línguas,
Educação.
RESUMÉ: Dans cet article, croyant que l’apprentissage de langues
étrangères est important pour le développement intégral de l’individu
et que l’enseignement précoce de langues étrangères peut et doit être
fait à l’école, nous présentons quelques uns de ces défis et possibilités.
L’enseignement précoce de langues étrangères est justifié dans une
perspective humaniste, socioaffective et neurolinguistique et nous y
analysons ses objectifs éducatifs, culturels et linguistiques. Enfin, nous
proposons des alternatives aux difficultés fréquemment rencontrées
dans la pratique des enseignants de langues, basées sur un projet pilote
en cours d’implantation.
MOTS CLÉ: Enseignement de langues étrangères, Enseignement de
langues, Education.
*Universidade Estadual de Feira de Santana
**Universidade Católica do Salvador
21
INTRODUÇÃO
Qual a melhor escola de inglês para os nossos filhos? Qual a
idade adequada para se começar a aprender línguas estrangeiras?
Tais inquietações parentais se transformam corriqueiramente em
consultas a especialistas no campo do ensino de línguas. Como
professores de línguas estrangeiras, recebemos freqüentemente
solicitações de informações acerca das possíveis vantagens e
desvantagens da aprendizagem de línguas na infância. Neste artigo,
buscaremos atender a esta crescente demanda de esclarecimento
e apresentar os desafios e possibilidades da aprendizagem precoce
de línguas estrangeiras. Partimos dos pressupostos de que (1)
a aprendizagem de línguas estrangeiras é importante para o
desenvolvimento integral do indivíduo; (2) a aprendizagem
precoce de línguas estrangeiras é possível e desejável; e, (3)
o ensino de línguas estrangeiras pode e deve ser realizado na
escola regular.
Embora ainda não sejam aceitas com grande facilidade, as
duas primeiras premissas não seriam tão rejeitadas como a terceira,
que é geralmente contemplada com muita descrença por parte de
muitos colegas e da maioria dos pais. A incredulidade dos pais não
é de todo infundada, porém não é mais cabível que profissionais
deste campo permaneçam céticos quanto às possibilidades de tal
ensino e, conseqüentemente, desistam de criar alternativas para
viabilizá-lo.
Tal ceticismo compartilhado por pais, professores e diretores
de escola é profundo e perigoso. Ele está relacionado ao mito de que
“língua estrangeira não se aprende na escola e sim no cursinho”.
Este mito instituído há décadas, no ensino de línguas estrangeiras,
no país, tem sido a peça chave para igualar os contextos público e
privado no que diz respeito ao ensino de línguas estrangeiras. De
fato, enquanto em outras disciplinas existe uma grande diferença
na qualidade do ensino e no conseqüente desempenho dos
alunos, nas aulas de língua estrangeira, os resultados das escolas
particulares são semelhantes aos das escolas públicas. Ambas têm
22
sido incapazes de aceitar o desafio proposto tanto pela nova lei de
diretrizes e bases da educação quanto pelo mundo contemporâneo.
Retardam assim a necessária desmontagem do perverso fenômeno
da paraescolarização do ensino de línguas estrangeiras ao qual
estamos tão habituados no país.
Tal desmontagem, contudo, é imprescindível porque, no
mundo atual, educar deve corresponder a contribuir para a
construção da identidade de cada indivíduo. A escola do futuro,
segundo Edgar Morin (2000, p.49):
[...] deveria oferecer um ensino primeiro e universal
tratando da condição humana. Estamos na era
planetária; uma aventura comum leva os humanos
onde que eles estejam. Devem se reconhecer na sua
humanidade comum e, no mesmo tempo reconhecer
a diversidade tanto individual que cultural.
É isso que está em jogo atualmente: a aprendizagem da
tolerância através das diferenças lingüísticas e culturais para
aniquilar os preconceitos.
A criança já tem a consciência mais ou menos desenvolvida de
que existem outras línguas, outros países e outras etnias no mundo
através do rádio, da televisão, da música, das conversas de adultos,
do turismo, do cinema, etc. Portanto, falar da diversidade e no
mesmo tempo das semelhanças no resto do planeta é uma maneira
de entender melhor a sua realidade. O ensino de línguas e culturas
estrangeiras prepara a criança à complexidade das comunidades
humanas desse planeta e do ser humano aproximando-a das
outras comunidades estrangeiras longínquas. Este ensino luta,
assim, contra o afastamento geográfico de algumas comunidades
escolares trazendo um sentimento de identificação universal. A
criança pode entender que: “as assimilações de uma cultura para a
outra são enriquecedoras” (MORIN, 2000, p. 61) e assim falar da
compreensão universal pode levar a falar de uma compreensão local
com as comunidades nativas do Brasil. O ensino precoce de língua
estrangeira é o aprender a [...] viver, dividir, comunicar também
23
como humanos do planeta Terra. Não apenas ser de uma cultura,
mas também ser terrestre (PORCHER E GROUX, 1998, p. 82).
A fim de atingir tais objetivos, a Comunidade Européia incluiu
o ensino precoce de línguas como parte das suas novas diretrizes
educativas. Infelizmente, no Brasil, embora a nova Lei de Diretrizes
e Bases da Educação assegure um lugar de destaque para o ensino
de línguas estrangeiras, ela apenas prevê tal ensino a partir da 5ª
série. Esta parece ser uma das poucas falhas dos PCNs ocorrida não
por razões teóricas, mas por evidentes questões políticas e práticas:
isentar o governo de oferecer o ensino de língua estrangeira nos
primeiros anos da educação fundamental.
Em muitos países, os sistemas educativos propõem o ensino de
línguas a partir dos 7 anos de idade. No Canadá, particularmente
no Quebec, o ensino bilíngüe (ministrado em inglês e francês) é
muito pesquisado e difundido. Na Europa em geral, o ensino de
língua está incluído no currículo do ensino fundamental há muito
tempo já que:
[...] os alunos do Luxemburgo aprendem uma primeira
língua estrangeira com 6 anos (o alemão) e uma segunda
língua estrangeira com 7 anos (o francês). Os alunos
irlandeses seguem um currículo bilíngüe (irlandêsinglês) durante a escolaridade toda (PORCHER e
GROUX, 1998, p. 29).
A Itália, a Espanha e a Áustria têm projetos pilotos propondo
um ensino precoce para crianças de 3 anos. Em 1998, a França
definiu a competência oral como objetivo principal para o ensino
de língua estrangeira, no ensino fundamental, através de uma
abordagem interdisciplinar e conhecimentos transversais.
O ENSINO PRECOCE DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS
O ensino precoce de línguas estrangeiras na escola se justifica
numa perspectiva humanista. Ele representa a possibilidade
de oferecer às crianças alternativas lingüísticas e culturais na
24
abordagem da complexidade do mundo em relação à língua franca
que se tornou o inglês. Quando Jean-Claude Beacco (2003, p. 18)
analisa a elaboração das políticas lingüísticas na Europa, ele afirma
que:
[...] as políticas lingüísticas educacionais devem definir
um projeto coerente para valorizar e desenvolver os
repertórios plurilingüísticos dos cidadãos.
Defendendo a pluralidade lingüística, ele enfoca mais a
dimensão humana do que os aspectos pragmáticos (necessidade
e utilização da língua numa visão meramente instrumental) da
aprendizagem de línguas estrangeiras.
Ensinar línguas estrangeiras significa oferecer à criança
a possibilidade de descobrir um outro modo de tratamento
interpessoal, outro modo de se relacionar com os temas universais
tais como a morte, a vida, a religião, a liberdade, o poder, as leis,
a escola, a família, os jogos, etc.; portanto, tal escolha segue uma
lógica educadora e humanista, visto que os objetivos de todo
sistema institucional de educação básica são de proporcionar ao
mundo futuros cidadãos planetários responsáveis e cívicos.
Em termos neurolingüísticos, a aprendizagem precoce de
línguas também é justificada. Claude Hagège (2001) afirma que “os
bebês são capazes de perceber uma grande diversidade de sonoridades. Mas têm
também um verdadeiro desejo de reprodução”.
O autor continua assegurando que:
Por um outro lado, algumas consoantes (h e r
vibrado especialmente) muito utilizadas nas outras
línguas, inclusive vizinhas, não existem no francês
contemporâneo. Esta estreiteza do espetro acústico
e a dificuldade de pronunciar alguns sons justificam a
aprendizagem precoce das línguas estrangeiras.
Dominique Groux (2003, p. s24) lembra que várias pesquisas
apontam a existência de uma vantagem no plano intelectual ligado
25
ao desenvolvimento da competência bilíngüe oriunda de “uma
grande flexibilidade cognitiva resultando do hábito de passar de um sistema de
símbolos para outro”. Para um cérebro jovem, a aquisição de duas
ou três línguas não é mais difícil que a de uma só. Tradução e
“ensino” são desnecessários, pois a língua estrangeira é adquirida
espontaneamente até os 6 ou 7 anos de idade. Para Claude Hagège
(1996, p. 22):
[...] os hábitos articulatórios adquiridos na infância
na língua primeira são gestos sociais [...] Por ser
limitadas ao aparelho que vai dos lábios à laringe [...]
as articulações dos sons que constituem a face fônica
das línguas humanas são condutas gestuais.
O autor continua lembrando (ibidem, 1996, p. 25) que:
[...] a criança aprende a falar muito depois que ela
aprende a ouvir. E é essa precocidade da audição, tanto
quanto a sua riqueza de abertura aos mais variados sons
que é preciso explorar na educação bilíngüe.
As oposições sonoras que não existem no ambiente lingüístico
oral da criança se tornam cada vez menos sensíveis para o seu
ouvido. Essa recessão explica-se provavelmente porque a ausência
de estímulo no ambiente induz uma esclerose das sinapses
correspondentes.
Daniel Modard apresenta razões que justificam o ensino
precoce de línguas: uma exposição mais longa aos conteúdos
lingüísticos, plasticidade dos órgãos fonatórios, ausência de
inibição e de fenômenos de bloqueio. Modard (2000) defende a
idéia de que a aprendizagem, na primeira infância, é facilitada
devido a uma melhor percepção dos fonemas antes de 6/7 anos,
ao crescimento cerebral, que ocorre até os 6 anos, e ao declínio
dos processos de imitação que acontece a partir de 8 anos. E, já
em 1988, Titone afirmava que a educação lingüística deveria fazer
parte da formação geral da criança, visto que contribuía para uma
26
consciência metalingüística capital.
Portanto, inúmeras pesquisas comprovam que é possível
ensinar línguas para crianças mesmo antes da alfabetização, pois a
aprendizagem de línguas estrangeiras não atrapalha a aprendizagem
da língua materna (muito pelo contrário, crianças bilíngües
desenvolvem sensivelmente suas habilidades metalingüísticas) e,
biologicamente, o espectro auditivo e articulatório na primeira
infância ainda é bastante flexível. Mas, onde este ensino deve
ocorrer?
O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NA ESCOLA
O texto dos Parâmetros Curriculares Nacionais responde
à tal questionamento de forma inequívoca: “o ensino de línguas
estrangeiras é função da escola, e é lá que deve ocorrer”. (PCNs,
p. 19). Tentemos esclarecer as razões de uma afirmação tão
categórica.
O ensino de línguas estrangeiras, na escola, tem três tipos de
finalidades: (1) educativas: saber ser; (2) culturais: saber – saber
conviver; e (3) lingüísticas: saber fazer.
Os objetivos educativos são indubitavelmente os mais
importantes porque estão relacionados com a ética, que deve ser
considerada elemento universal, subjacente e definidor das relações
intersociais e interpessoais.
As questões éticas se tornaram, nos últimos anos, uma
preocupação maior no conjunto da sociedade tanto devido a novos
paradigmas e formas de organização quanto à intensificação do
contato e conseqüentes conflitos entre os povos. O mundo virtual
sem lei propiciado pela Internet, faroeste da modernidade; as
descobertas genéticas e possibilidades magníficas ou monstruosas
que delas podem surgir; as urgências ecológicas e as dúvidas
pertinentes sobre a sociedade da informação nos têm forçado a
proceder a uma profunda revisão de valores morais, mas acima
de tudo a refletir sobre princípios éticos.
Conseqüentemente, uma educação ética se torna necessária na
27
medida em que possibilita uma reflexão sobre valores do mundo e
serve de base para uma reflexão pessoal e para a construção de um
mundo novo. Hoje talvez seja este o desafio filosófico e prático
essencial dos sistemas educativos, particularmente no ensino
de línguas. A escola, respondendo a uma demanda do social e
também do individual, tenta deste modo recuperar uma função
educativa propriamente dita e não apenas de ensino, ou transmissão
e construção de conhecimento. No mundo atual, educar deve
corresponder a contribuir para a construção da identidade de cada
indivíduo, ou seja, para a formação de cidadãos com identidade
própria, mas que vivem com outros, diferentes de si.
Especificamente no campo do ensino de línguas e culturas
estrangeiras, desde a década de 80 a denominada abordagem
comunicativa tem sido privilegiada. Segundo esta abordagem,
aprender uma língua estrangeira é antes de tudo aprender a
comunicar, ou seja, comunicando em língua estrangeira, o aluno
aprende a se servir desta língua. Neste tipo de abordagem, (1) os
problemas lingüísticos são teoricamente tratados apenas quando
representam um obstáculo à comunicação, e (2) as questões
(inter)culturais ganham relevo de caráter sobretudo pragmático.
Porém, quando a língua é considerada apenas como possibilidade
de gestão do real, e a comunicação que, como encontro da
alteridade, deveria ser via de enriquecimento mútuo, é reduzida à
construção de um saber e de um saber fazer, o espaço da aula de
língua estrangeira promove, inversamente às expectativas, uma
evacuação de uma reflexão ética. É exatamente isto que acontece
nos cursinhos de língua.
A aprendizagem de língua estrangeira que, na escola, deve
ocorrer de forma interdisciplinar com os conteúdos de história,
geografia, ciências naturais, artes e educação física, não é apenas
um exercício intelectual de aprendizagem de formas e estruturas
lingüísticas em um código diferente. Por razões éticas, o ensino de
línguas, na escola, se diferencia radicalmente do que é praticado
nos cursinhos de línguas porque no espaço da escola regular não
podemos compreender a língua apenas como um “instrumento”
28
de comunicação, disponível para ser usado, como um martelo ou
um computador.
A escola deve compreender a natureza sociointeracional
da linguagem, isto é, de que quando usamos linguagem, nós o
fazemos de algum lugar determinado social e historicamente. Em
outras palavras, os valores dos interlocutores são intrínsecos aos
processos de uso da linguagem, e os significados são construídos
socialmente.
Por isso, a aprendizagem de línguas deve ser uma experiência
de vida que possibilite a ação discursiva no mundo.
Além disso, a sala de aula de língua estrangeira é o lugar por
excelência do encontro com a diferença, do movimento em direção
à descoberta do outro através da descoberta de si mesmo. É claro
que é o lugar até certo ponto incômodo da estrangeiridade, o lugar do
estranho, do diferente onde os alunos se deparam, se confrontam
com o novo, se apaixonam pelo novo, ou rejeitam o novo... A
língua estrangeira e a cultura estrangeira também se caracterizam
por serem vetores capazes de conduzir o aluno à prática da
construção do binômio identidade/alteridade (descoberta de si
mesmo através da descoberta do outro).
Três aspectos que dizem respeito à identidade são
particularmente evocados na situação de aprendizagem e ensino
de línguas: em primeiro lugar, a necessidade de unidade e de
coerência interna que é desestabilizada pelo questionamento dos
valores; em seguida, o sentimento de diferença que é essencial para
a conscientização da identidade; e, enfim, o sentimento de ruptura
com a realidade externa à classe.
A aprendizagem de línguas estrangeiras vai permitir um
movimento de encontro em direção ao outro, estrangeiro, mas,
sobretudo, ao outro como indivíduo dentro de uma sociedade com
a qual ele pode ou não partilhar a mesma forma de agir, de sentir e
de pensar. No processo de aprendizagem de línguas, preconceitos
e estereótipos podem constituir objetos privilegiados para uma
abordagem intercultural permitindo que o aluno os ultrapasse e
consiga enxergar seu caráter parcial e caricatural.
29
A aprendizagem de línguas estrangeiras deve servir como
referência para os alunos pela sua condição de cidadão em formação
em um mundo onde ainda existe o fenômeno da guerra. Ao
entender o outro, o aluno aprende mais sobre si mesmo e sobre um
mundo plural, marcado por valores culturais diferentes e maneiras
diversas de organização política e social.
Enquanto os objetivos educacionais explícitos são exclusividade
da escola, os objetivos culturais fazem parte também das
preocupações dos cursinhos de língua. Contudo, como já
explicamos, no contexto extra-escolar, a preocupação é meramente
pragmática e não visa necessariamente promover uma apreciação
dos costumes e valores de outras culturas, contribuindo para o
desenvolvimento de uma competência intercultural.
Ora, no que tange o ensino de línguas estrangeiras, o principal
objetivo cultural da escola é exatamente o desenvolvimento dessa
competência intercultural, visto que ela representa uma estratégia
para gerenciar a heterogeneidade cultural, que tem sido intensificada
na maioria das sociedades como conseqüência da globalização, não
apenas econômica mais também de valores.
A abordagem intercultural, particularmente originada na
problemática da imigração e na necessidade premente de incumbir
a educação com o papel de lutar contra atitudes intolerantes,
racistas e discriminatórias, se concentra nas estratégias utilizadas
por um estrangeiro para gerenciar as discrepâncias entre suas
ações e interpretações e aquelas presentes no contexto e/ou na
comunidade que está sendo descoberta por ele. Esta abordagem
pretende responder ao desafio das nossas sociedades plurais a
partir de uma conscientização sobre atitudes e representações sobre
si mesmo e sobre o outro, sobre culturas de filiação e de adoção.
Por esta razão a educação intercultural somente tem sentido se
tiver projeção na estrutura social, integrando-se em discursos que
ultrapassam o âmbito educacional, ou seja, exercendo a função
essencial da escola: refletir e transformar a sociedade.
Assim, enquanto nos cursinhos os objetivos culturais se
restringem ao saber sobre; na escola, eles devem ser ampliados para
30
o saber conviver.
Enfim, os objetivos lingüísticos são semelhantes em ambos
contextos e talvez sejam mais conhecidos: permitir uma percepção
crítica da natureza da língua, desenvolver maior consciência do
funcionamento da língua e da cultura materna e desenvolver
habilidades comunicativas abrindo acesso às informações.
Diante do exposto, parece fundamentada a inclusão do ensino
precoce de línguas estrangeiras na escola devido não somente à
importância deste processo de aprendizagem, mas também por ser
um vetor de desenvolvimento psicossocial do indivíduo.
Porém, nos resta ainda contemplar o problema central: ainda
que estejamos convencidos das vantagens do ensino de línguas na
escola, continuamos sem acreditar nas possibilidades reais de tal
empreendimento.
O ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS NA ESCOLA:
DESAFIOS E ALTERNATIVAS
Relacionamos abaixo motivos freqüentes proferidos por
pais e professores para justificar a inviabilidade do ensino e da
aprendizagem de línguas estrangeiras na escola regular:
1. Não há livro didático adotado.
2. A carga horária é insuficiente.
3. Os professores não são formados adequadamente.
4. Só há uma professora de língua estrangeira para todas as
turmas.
5. Não há sala de língua estrangeira.
6. Não existem oportunidades para a prática.
7. Os alunos têm níveis diferentes.
8. A escola não dá valor (não há reprovação).
9. As crianças não dão valor.
10. Os pais não aprenderam línguas na escola e não acreditam
que tal aprendizagem seja possível.
31
Então, considerando que existem relatos de experiências bem
sucedidas de ensino de língua estrangeira na escola regular tanto
no exterior como no Brasil, e também levando em conta estas
dificuldades, propomos alternativas para tais dificuldades1:
Livros didáticos para o ensino de crianças estão disponíveis
nas editoras especializadas, inclusive com versões específicas para
crianças brasileiras. Como o material é relativamente caro, a adoção
de uma série didática pode ser realizada pela escola e não por
cada família. Esta prática já acontece, por exemplo, no Curso de
Licenciatura em Língua Inglesa da UEFS. Os livros didáticos foram
adquiridos pela Biblioteca Universitária e os alunos os utilizam em
regime de empréstimo longo durante todo o semestre.
A carga horária de uma hora semanal realmente é insuficiente
para a aprendizagem de línguas estrangeiras, que requer uma certa
quantidade e freqüência de input. É imprescindível um esforço para
aumentar a carga horária de língua estrangeira para pelo menos duas
horas semanais. Porém, atendendo as diretrizes curriculares que
sugerem o ensino através de temas transversais e interdisciplinares,
aulas de outras disciplinas podem ser utilizadas para complementar
os conteúdos lingüísticos e culturais. Por exemplo, nas aulas de
informática os alunos podem navegar em sites anglofones, exercitar
inglês em Cdroms especializados e organizar projetos de inglês.
A formação dos professores é um elemento crucial neste
processo. É necessário que a contratação de professores seja
realizada a partir de conhecimentos sólidos tanto da língua
estrangeira quanto da metodologia de ensino. Muitas escolas
continuam contratando professores nativos sem formação
específica como professores de língua, e vice-versa, professores
licenciados sem a adequada competência lingüística. Contudo, se
a formação continuada de professores de língua era dificultada no
passado, atualmente algumas universidades já oferecem cursos de
pós-graduação na área, a exemplo da UEFS que propôs em 2001 o
primeiro Curso de Especialização em Ensino de Língua Inglesa da
Bahia. Outras propostas de formação como aquela oferecida pela
Cultura Inglesa em convênio com o Governo do Estado, ou ainda
32
Projetos de Extensão Universitária (Palle na UEFS; Instituto de
Letras na UFBa) são alternativas para a reciclagem de professores.
As escolas que realmente se interessam pela formação de seus
professores podem se associar e contratar consultores especializados
para desenvolver projetos adaptados às suas realidades. Mesmo as
escolas públicas podem contar com tais serviços caso busquem o
apoio das universidades públicas.
Como geralmente as aulas de língua estrangeira não
preenchem a carga horária dos professores contratados, eles devem
assumir uma grande quantidade de turmas e ficam responsáveis pela
totalidade de alunos de uma série, às vezes de toda uma escola. A
contratação de estagiários ou projetos de convênio a longo prazo
com Cursos de Licenciatura poderiam aliviar a sobrecarga de
trabalho dos professores permitindo-lhes tempo para sua formação
e para a elaboração de aulas e atividades.
Habitualmente as escolas não se preocupam em oferecer
um espaço específico para o ensino de línguas estrangeiras. Isto
acontece até na universidade. A sala de aula de língua estrangeira
requer elementos ambientais peculiares: acústica adequada para as
atividades de compreensão oral, equipamento de som permanente,
cadeiras que possam ser facilmente deslocadas para atividades em
grupos e pares, entre outros. É comum visitarmos escolas com
elaborados laboratórios de informática, modernas quadras de
esporte, sala de artes plásticas arrojadas, porém sem sala específica
para o ensino de línguas. Nestes casos, as razões para a inadequação
não estão relacionadas à aspectos financeiros.
A criação de oportunidades de prática lingüística extra-classe
é uma tarefa simples. Muitas escolas já demonstraram soluções
alternativas para aumentar o input: músicas e leitura de estórias nos
intervalos, círculo de desenhos animados no recreio, etc.
Os alunos estão nivelados na educação infantil. O
desnivelamento só começa porque muitas escolas não oferecem o
ensino de línguas estrangeiras, contribuindo para a paraescolarização
das crianças que são matriculadas pelos pais em cursinhos de
idiomas. Rapidamente, nos 3º ou 4º anos, as turmas já apresentam
33
níveis variados dificultando o ensino. A solução é tão óbvia quanto
simples: adoção do ensino precoce de línguas enquanto todas as
crianças são iniciantes. Nesse contexto, as transferências serão
casos de exceção.
O valor da aprendizagem só será incorporado pelos alunos,
caso o seja também pelos adultos. É importante que as crenças de
pais e professores sejam revisitadas. Isto porque a teoria afirma que
é desejável. A prática mostra que, com criatividade, é possível. A
nossa experiência pessoal nos lembra outra coisa... Mas será que
realmente ainda acreditamos que tudo o que aconteceu conosco
na escola vai ter que se repetir com as novas gerações? Esperamos
sinceramente ter contribuído se não para modificar, ao menos
para abalar a crença daqueles que ainda pregam a inviabilidade do
ensino precoce de línguas estrangeiras na escola regular.
NOTAS
Atualmente um projeto piloto de ensino de inglês nestes moldes
com turmas de 1º e 2º anos do ensino fundamental está sendo
implantado e testado em uma escola particular de grande porte em
Salvador. E um outro projeto piloto de ensino de francês e espanhol
com crianças a partir de 2 anos de idade está sendo organizado na
Creche e no Centro da escola básica da UEFS.
1
REFERÊNCIAS
BEACCO J-C. Elaborer des politiques linguistiques éducatives en
Europe, Le Français dans le Monde, 2003, pp.330, 18-20.
BRASIL. SECRETARIA DE EDUCAÇÃO FUNDAMENTAL.
Parâmetros curriculares nacionais terceiro e quarto ciclos do ensino
fundamental: língua estrangeira. Brasília, DF, 1998.
34
GROUX D. Le meilleur âge pour apprendre. Le Français dans le
Monde, 2003, pp.330, 23-25.
HAGEGE C. L’enfant aux deux langues. Paris: Editions Odile
Jacob, 1996.
35
A ORDEM DO CONCRETO N’AS MIL E UMA
NOITES
Marcelo Peloggio*
RESUMO: Partindo do caráter relativo da noção de “realidade
concreta”, o presente ensaio busca mostrar que, sob as imagens
fantásticas dos contos d’As mil e uma noites, revela-se uma descrição
notadamente objetiva das relações humanas, o que lhe torna o
sistema de idéias universal.
PALAVRAS-CHAVE: Teoria da arte, Real/irreal, Literatura.
ABSTRACT: Based on the relative concern in relation to the idea
of a “concrete reality”, the recent study aims at illustrating that,
relying on the focus on the fantastic images of The thousand-and-one
nights’ short stories, a notably objective description of the human
relationships is revealed. This revelation makes the system of ideas
in these short stories universal.
KEY WORDS: Theory of art, Real/unreal, Literature.
*Universidade Federal Fluminense
Diz-se freqüentemente que a arte tem por empresa a “execução
37
prática de uma idéia”. Nada mais perigoso, se for o caso de se
considerar o fenômeno artístico tomado em si mesmo. Diante do
objeto estético, em toda a sua extensão e espessura, é costume, em
geral, o elogio à capacidade técnica e criativa do artista. E, sob tal
ângulo, sua sensibilidade e liberdade mais parecem traduzir um não
sei quê de meta – ainda que por meio delas as notas mais expressivas
da alma recebam luz própria. É como se o artista buscasse em algum
sítio, longe da vida, os dados com os quais elabora sua representação
do mundo, o qual aparentemente lhe diz respeito. Ora, assim
falando, dirigimo-nos mais precisamente ao idealismo.
Mas é preciso considerar, independente dessa fonte misteriosa,
na qual seu mundo interior por uma razão qualquer se radica, que
o artista não haverá de exprimir senão preceitos e valores que são
nossos, ou melhor: que nos seriam a princípio inteligíveis, ainda
que por força das circunstâncias sociais e históricas nos pareçam
inauditos, impossíveis de se classificar.
O que queremos mostrar é justamente o contrário. Ao plano
geral de uma obra não corresponderia nenhum princípio ou
ensinamento estranhos a seu público, e que, por isso mesmo, a
leva em conta como informação estética. Se nos parecem estranhos ou
difíceis de se imaginar como algo inscrito no mundo empírico, é
porque é do ser mesmo da arte oferecer, em maior ou menor grau,
“uma visão e uma descrição fabulosa da realidade”, substituindo-se,
por conseguinte, “a vida real por uma utopia” (Hauser, 1982
II, p. 829).
Muitos diriam que o motivo desta concepção reside no fato
de a arte não possuir um fim prático; que ela não manteria com
o ambiente à sua volta a menor correspondência, de vez que as
representações artísticas o transporia – posto que em alguns casos
ofereçam dele uma descrição mais direta, tal como se deu, por
exemplo, com a abordagem naturalista, cientificamente orientada,
do Quattrocento, ou com o realismo de um Courbet, na segunda
metade do século XIX, em um desejo sincero de se mostrar o real
na maneira como este se nos apresenta, isto é, no plano agudo de
suas contradições. Mas, em verdade, não lhe cura de ser a vivência
38
propriamente dita senão um “naco”, um “fragmento”, ou ainda,
se se preferir, uma “ontologia regional”.
De todo modo, a concepção de um lugar próprio às
manifestações estéticas ganhará destaque. Ainda que fosse um
instrumento teórico para o conhecimento sistemático e racional
da realidade objetiva (da “natureza”), como aconteceu no século
XV, a arte, num sentido mais amplo e geral, parece localizar-se
mesmo num tipo de
esfera isolada do resto do mundo, na qual é possível
organizar uma vida intelectual e entregar-se a prazeres
intelectuais de uma espécie inteiramente particular.
Quando alguém se move neste mundo da arte, separa-se
tanto do mundo transcendente da fé como do mundo
das realidades práticas (ibid. I, p. 438).
O terreno artístico, em outras palavras, estaria situado à
parte, destinado a um público e classe social específicos, quer dizer,
servindo ao gosto e interesse dos grupos dominantes. Aliás, este é o
conceito defendido por um estudioso contemporâneo, Kurz (1999),
para quem a arte, nos dias de hoje, por conta de fatores econômicos
e culturais, ver-se-ia desligada de todos os departamentos da vida
social: aquela não compreenderia outra coisa senão “l’art pour
l’art”, ou a idéia, tal e qual a defendida na Renascença, “de que as
formas culturais são independentes das leis externas” (Hauser,
1982 I, p. 435). Com efeito, o novo predicativo que se lhe atribui
constitui problema dos mais graves à sombra da autonomização
capitalista. O surgimento de concepções “bizarras” e sobretudo
“banais” reflete, pois, a fratura operada no seu ser próprio, naquilo
que pode e deve articular: “uma reflexão estética da sociedade e
da relação humana com o mundo” (Kurz, 1999). Na condição
de fetiche, portanto, torna-se incapaz de fazer deitar sobre o real
os elementos de uma ou outra ideologia (o que, do contrário,
designaria algo vital, dado o dinamismo que representa ante as
visões mais “fechadas” acerca do mundo e da vida).
Vistos assim, em todo o seu conjunto, os fatos estéticos
39
devem ocupar lugar novo à conta da teoria que invoca os
elementos centrais de sua produção, baseando-se no papel social
que desempenham. Ora, num tal ponto de vista, a arte não
se afastaria de sua função estética, quer dizer, do modo como
atua sobre as faculdades do espírito e a sensibilidade do homem
mediante suas formas de expressão; mas é que ela é também um
“produto social”, e que portanto o fazer artístico, ao invés de ser
considerado isoladamente – como que nos recessos de uma “jaula
de vidro” –, exprime as mais variadas demandas coletivas, antes
e depois de sua realização. Assim, é igualmente tarefa do crítico
não se distanciar das referências sociais e históricas que, de algum
modo, todo universo estético encarnará.
Desde já, contudo, é indispensável localizar outro problema
muito comum na arte em geral, assim como em todas as atividades
que, geração após geração, assistem o homem de gênio no
conhecimento reto do mundo. Não se tratando, como foi visto
a pouco, de uma concepção idealista, mas da expressão de certa
“mentalidade”, entrando aí elementos do próprio sistema social, a
representação estética parece encarar a vida com mais justeza: ela
é, segundo esse enfoque, real. Em contrapartida, à imagem artística
que, neste mundo e num só movimento, nada da experiência
corrente venha cobrir, desfalcando a razão para o entendimento
acerca das coisas, chamamos muito naturalmente de irreal.
É daí que procede todo juízo de valor com relação à obra de
arte em suas formas de expressão. No terreno próprio da dualidade
real-irreal, aquilo que o artista revela pode ser avaliado ou bem
como fantasioso, absurdo, ou bem como objetivo, “verossímil”. Ou
a obra guarda proporções que se ajustam mais facilmente ao real
(quer dizer, exibiria certo ar inteligível), ou, do contrário, escapa à
convenção e seu material é reputado incoerente, fora dos padrões.
Por isso que, no diálogo com a arte, não é possível considerar
apenas seus iniciados e o movimento mais amplo da crítica,
mas de igual modo o público leigo, pouco ou nada habituado às
ferramentas da criação estética (técnicas, idéias, prescrições). Assim,
alistada nos círculos da realidade ou do imponderável, a arte sofre
40
de um julgamento que prolonga, antes e depois, certa dimensão
ideológica; para aquela afluem valores que só podemos explicar em
função de um contexto histórico determinado. Ora, o resultado
de tudo isso é que situamos a obra dentro de condições próprias
de lugar e tempo.
De início, quando lemos os contos d’As mil e uma noites, somos
tomados por um sentimento de estranheza em relação à série
de imagens evocadas. É justamente aí que ocupará lugar central
uma maneira toda própria à exteriorização de nossa “visão de
mundo”. É porque o fazer artístico atua como fator preponderante
para desencadear sentimentos vivos: seu produto final agrada ou
desagrada, podendo exercer sobre nós uma influência diretora
importantíssima. A obra, no todo ou em parte, é sempre o modo
de ser de um valor histórico – socialmente traduzível quando
incorporado ao plano geral de uma estrutura de pensamento
previamente fixada.
Nas histórias d’As mil e uma noites, podemos, aqui e ali, e de
modo claro, apurar um sem-número de episódios que em nada
obstam nossa compreensão do mundo. Tal recolta deve-se,
fundamentalmente, à constância dos seus elementos temáticos:
inveja, ciúme, vingança, cobiça, bravura, prudência, ou seja, uma
série de noções que o leitor ocidental reconhecerá como sendo sua.
Em alguns casos, como em dado momento da “História do cavalo
encantado”, o efeito de realidade atinge um nível de coerência tão
profundo, “elementar”, que chega a nos dar a impressão de que as
circunstâncias nas quais se verifica constituem, em sentido próprio,
cópia fiel do cotidiano, e com tanta mais expressão de concretude
no comezinho das imagens. É o que mostra a passagem em que
o príncipe Firuz desperta para seu primeiro dia, como hóspede
ilustre, no palácio da princesa de Bengala:
O príncipe da Pérsia, que ganhara de dia o que perdera
de noite, e que se recompusera perfeitamente da sua
penosa viagem, acabava de se vestir quando recebeu os
bons-dias da princesa de Bengala por uma das suas aias
(As mil e uma noites, s/d, p. 61).
41
Ou ainda o sortimento do grande mercado, que a “História
do príncipe Amed e da fada Pari-Banu” nos descreve:
Depois de uma caminhada de cerca de quatro meses,
chegou finalmente a Xiraz, que era então a capital do
reino da Pérsia. Como estabelecera amizade e sociedade
pelo caminho com um pequeno número de mercadores
(...), hospedou-se com eles no mesmo khan.
No dia seguinte, enquanto os mercadores abriam os
seus fardos de mercadorias, o príncipe Ali (...), depois
de mudar de traje, fez-se conduzir ao bairro onde se
vendiam as pedrarias, as obras de ouro e prata, os
brocados, os tecidos de seda, os panos finos e as outras
mercadorias mais raras e preciosas (ibid., p. 88).
Essas descrições têm destaque, sobremaneira, por conta do
seu realismo demasiado simples. A tal ponto que podemos divisálas como sendo para nós as mais “próximas”; e mais exatamente
isso, já que coloca diante do leitor do Ocidente, por extensão,
um panorama da vida social na Idade Média. Falamos do exato
instante em que o renascimento urbano aí se impõe; quer dizer,
da ameaça que as comunas fortificadas experimentam em face
do faubourg, que não respeita seus limites, mostrando toda a
vitalidade do comércio itinerante, e que é condição básica para
se estabelecer, com exceção na cronologia, um paralelo entre o
Ocidente e o Oriente. Finalmente exibem, tal como o fizeram
nossos romances de cavalaria, as intimidades da realeza, as quais
povoaram o medievo europeu a partir das noções de luxo e volúpia,
estendendo-se até nossos dias. De tal sorte que, para o Oriente,
essas narrativas formam toda uma documentação: os contos d’As mil e
uma noites dissertam “sobre as ruas nas grandes cidades árabes, sobre
os costumes dos mercadores, sobre a vida social, sobre a religião
muçulmana” (ibid., p. 12, nota introdutória). E isso com um senso
de objetivação admirável.
Essa nossa posição, contudo, é arbitrária. Porque o leitor, as
42
mais das vezes, não atentará para associações dessa natureza. Em
geral, por causa de uma postura etnocêntrica, refuta as idéias de
outro tempo e lugar, como se estas não lhe dissessem respeito; vêse tomado comumente pela admiração, quando sua imaginação as
sobrevoa baixo, e pelo arrebatamento, em razão de não encarar
como fictícias as “evocações brilhantes”, levando todas a sério.
Com efeito, para o universo do leitor, afetado pelo excêntrico de
algumas concepções – poligamia, haréns, eunucos –, as imagens
d’As mil e uma noites acabaram por adquirir um sentido negativo
dentro de um valor profundamente real, chegando a fazer “crer à
Europa enganada que existia [no Oriente] uma região de felicidade
sem limites” (ibid., p. 13, nota introdutória).
Mas é preciso perguntar, no que concerne à dicotomia realirreal, o que, na esfera essencial da produção do discurso, é e não é
“fictício”. Ou melhor: por que, em alguns casos, compreendemos
a ficção pelo ângulo da realidade e, no caminho oposto, colocamos
aquela no lugar desta? Ora, tudo isso dependerá de uma série de
fatores; sobretudo se o discurso convence, a ponto de influir,
enfaticamente, em nosso modo de ser.
Diz Luis Filipe Ribeiro (1999, p. 125-126) que o autor
“consubstancia (...) visões de mundo que pertencem à sua
sociedade e ao seu tempo”. De forma idêntica, o leitor apóia-se
em “parâmetros adquiridos na aprendizagem em sociedade” (ibid.,
p. 126): faz correr pela obra uma série de valores que tocam as
condições gerais de determinado tempo e lugar; em relação à obra
propriamente dita, estes se lhe incorporam ao núcleo mais íntimo
através da concepção de mundo do autor, a qual se integra ou não
ao sistema simbólico de onde parte. Daí a importância das histórias
d’As mil e uma noites, do modo como foram, a pouco e pouco,
socialmente estruturadas: representam elas, em verdade, o produto
da colaboração de inúmeros artistas (iranianos, árabes, egípcios),
manifestando os preceitos desta, dessa ou daquela formação social.
Pois que, de agora em diante, tais narrativas constituem, por um
lado, um documento vivo, já que agrupam a história de vários
povos, e, por outro, a coroação de um estilo literário: o realismo
43
fantástico.
Por conta deste último ponto, a oposição real-imaginário,
mantendo intacto seu fundamento, nem tenderá à ficção nem a
descrições áridas da vida humana e natural. De modo que se eleva
até a esfera do discurso, cuja matéria é ao mesmo tempo realista e
imaginosa, tendo em vista o ser precário da linguagem em face do
que é dinâmico na cultura. Porque
quando a cultura muda, as concepções dominantes em
uma dada cultura mudam igualmente. Surgem então
necessariamente novos pontos de vista que servem para
a apreensão, a apreciação e a coordenação dos dados
(Dewey, apud Schaff, 1995, p. 271).
Em Lalo (1964), por exemplo, a dimensão social desempenha,
em toda a espessura da obra, papel fundamental – mesmo que
se valha da explicação econômica para os fenômenos de estética
(o que é bastante sugestivo, dado o mundo de mercadores d’As
mil e uma noites). De qualquer forma, vincula a produção artística
(“discursiva”) a grupos dirigentes da sociedade:
Foi um público burguês de comerciantes e de
proprietários de terras que pediu aos pintores
holandeses do século XVII seus retratos de família ou
de corporações, suas cenas de gênero popular, suas
marinhas ou suas paisagens sóbrias (...) Na literatura,
esta influência das condições econômicas gerais é ainda
mais nítida. Quando a agricultura está na ordem do
dia e passa por uma espécie de renascimento, pelo
menos nas altas classes, o gênero pastoral multiplica-se
imediatamente (apud Cuvillier, 1964, IV, p. 1983).
Por fim, é chegado o momento de se decidir pelo lado
fulgurante da moeda, em que a ficção designará também uma
“forma de discurso”. A seu abrigo, fazemos circular idéias cujas
imagens (por causa do significado social que trazem) lançam-se
a iluminar toda realidade humana. É nosso objetivo, portanto,
44
mostrar de que maneira o “irreal” – o elemento fantástico d’As
mil e uma noites –, liga-se, direta e principalmente, à ordem concreta
do mundo.
No mais das vezes, somos arrastados por uma inclinação
quase invencível de atribuir às obras de ficção um valor que é
somente estético. Muitos olvidam o lado prático que de algum
modo elas esclarecem, posto que de forma aberta. Mas talvez seja de
pouco efeito uma tomada de posição ao contrário. Isso se explica,
primeiro, em função de certo positivismo da crítica, preocupada
só com o aspecto formal das obras, com bem pouco a dizer sobre
os fatores que lhes norteiam a produção (a não ser que mostrem
a influência direta da moda vigente, ou mesmo das desaparecidas,
que refletiriam as solicitações de outro tempo social); em segundo
lugar, devido ao preconceito de se lhes indicar a ideologia do
artista, e por isso mesmo a deixando de fora nos estudos de arte.
Seja como for, a experiência estética assinala, conforme foi visto
em dada altura, o resultado concreto de determinações próprias,
exprimindo certa concepção da realidade material por meio de uma
“técnica socialmente organizada e consentida” (ibid., p. 1983).
Quanto a esse “lado prático”, ninguém melhor do que
Walter Benjamim (1994) para descrevê-lo em um de seus traços
fundamentais. À noção de praticidade corresponderia, de maneira
positiva, a pedra de toque da grande narrativa épica. Esta se situa,
pois, no campo do “discurso vivo”, em virtude de seu aspecto
utilitário; em outras palavras, ela teria por função “dar conselhos”.
E essa prática do aconselhamento se traduz na qualidade de um
“ensinamento moral”, de um “provérbio”, ou ainda de uma
“norma de vida”, até porque “o narrador é um homem que sabe
dar conselhos” (ibid., p. 200).
Mas do que isso, conclui-se que a narrativa não refletirá,
mesmo no seio do elemento fantástico, o costume freqüente de
explicar aquilo que se conta. Ora, “metade da arte narrativa está em
evitar explicações” (ibid., p. 203). Todas essas aventuras, repletas de
feitos portentosos de compleição lendária única e abrangente; ou
ainda que seja a história primordial da comunidade aldeã, montada
45
sobre o vínculo estreito entre o dado efêmero e a plenitude do
mito, conferem a seus leitores e ouvintes grande liberdade de
interpretação. De tal modo que atingem uma amplitude notável,
fundamental para a manutenção secular da narrativa.
Os contos d’As mil e uma noites nos dão uma demonstração clara
de como o senso prático é capaz de sublinhar, no curso dos fatos,
algumas noções de fundo moral, e que esclarecem, tanto quanto
possível, os meandros da vida de relação. Tomemos, como exemplo, a “História de Ali Cogia,
negociante de Bagdá”. Em um sonho (na verdade são três), um
“velho venerável, de olhar severo”, censura Ali pelo fato deste
nunca ter peregrinado a Meca – o que, evidentemente, o leva a se
decidir pela viagem. Como primeira medida, resolve por vender
todos os seus pertences, salvo algumas mercadorias que, na cidade
santa, podem ser negociadas a varejo. Uma vez tudo pronto, ocupase de pôr em acerto um último detalhe: guardar em segurança a
quantia de mil moedas de ouro. Resolve o problema depositandoas no fundo de um pote, que preenche com azeitonas. Antes de
partir, deixa-o sob os cuidados de um “negociante seu amigo” até
o dia da volta. Este, é claro, desconhece o conteúdo valiosíssimo
que tem em mãos.
Daí a tempos – sete anos depois –, Ali Cogia regressa (porque,
de Meca, segue curso livre, sempre motivado por mercadores, que
lhe anunciam as chances de lucro fácil com a venda de alguns itens;
e tudo isso mediante essa estrutura econômica simples, baseada
apenas na compra e venda de mercadorias). Para sua maior surpresa,
o pote lhe é restituído sem as moedas – o que leva a coisa toda
para o campo da dúvida, depois da desconfiança, da desavença, e,
por último, da lei.
Na presença do cádi – espécie de juiz de Direito –, ambos os
negociantes se revezam com os argumentos de acusação e defesa. O
cádi, sem aprofundar os detalhes, dá por encerrada a controvérsia:
o negociante desonesto, jurando inocência, é absolvido; isso deixa
Ali furioso.
A saída é levar o caso, sob a forma de petição, ao conhecimento
46
do califa Harun-al-Raschid, que a lê, marcando dia e hora da
audiência.
À semelhança daquilo que Todorov (1970) chamaria
“movimento entre dois equilíbrios”, a história como que dá uma
espécie de guinada.
Assim, o califa, como de costume, corre pela cidade à noite,
sob disfarce, acompanhado do grão-vizir e do chefe dos eunucos.
Em dado momento, ouve um grande número de vozes, e, dirigindose até elas, presencia um grupo de meninos, que encena um
julgamento. Na verdade, trata-se de uma representação lúdica mas
lúcida da audiência conduzida pelo cádi. Isso mostra que a história,
sem mais, já pertence ao domínio público.
Na espreita, observa tudo com muita atenção, tomando
ciência de que, no pote de Ali Cogia, recuperado após sete anos, os
frutos ainda se acham em perfeito estado. O que prova um absurdo,
já que “não valem nada ao fim do terceiro ano”, mostrando que,
desta forma, o lacre sofreu violação.
Poderíamos mesmo, com efeito, sugerir uma “sentença
moral”; ou quem sabe extrair dessas histórias, de cada situação
descrita, um pouco daquilo que corre a eito em cada um de nós;
aquilo que pode habitar, sem qualquer reserva, o âmago do nosso
ser: medo e cupidez, ódio e ressentimento. Todas essas forças
diretoras são, antes do mais, “concretas”, sendo que muitas vezes
as plasmamos em ações depreendidas no curso geral do devir.
A história, em sua forma mais sensível, aponta para alguns
valores ou elementos de objetivação: a fé operante de Ali
Cogia (“bom muçulmano”); o cinismo do mercador desonesto,
encontrando a morte na forca; a displicência no senso burocrático
do cádi, que vai no contrário das suas atribuições; e, por fim, a
inteligência e sensatez de um dos meninos atores (aquele que,
fingindo ser o cádi, leva até seu termo a audiência de faz de
conta).
Daí se concluir que essa história nada traz de fantástico e que
por isso mesmo nos é mais “familiar”. Até porque, diante de lunetas
e tapetes mágicos, cavalos voadores, reinos subterrâneos, monstros
47
e gênios, o leitor é capaz de não fazer a ligação necessária entre o
que toma à sua volta como habitual e as imagens fantasiosas que
o “desorientam”. Vistos por este ângulo, todos esses contos não
passariam senão de certa coisa pueril. Mas o que se dá de fato é
algo bem diferente, uma vez que
o confronto com as dimensões históricas de outras
sociedades e de outros tempos servirá para esclarecer
e definir, ainda mais, [nossa] inserção na trajetória
[da] sociedade, em primeiro lugar, e da humanidade
como um todo, em última instância (Ribeiro, 1999,
p. 128).
Isso significa dizer que, sob esse aspecto, as imagens d’As mil e
uma noites figuram, igualmente, como o produto de uma realidade
social e histórica considerada em todo o seu conjunto: já não
importa o texto (um dado gráfico), mas as “relações discursivas”
que elas firmam entre o passado e o presente. Em sentido profundo,
efetuam um diálogo todo próprio entre quem lê (dentro de uma
noção) e quem é lido (o autor, considerando os fatores sociais que
influíram direta e indiretamente sobre seu modo de ser, bem como
a grande chama de liberdade a qual lhe certifica originalidade,
argumentação crítica e sutileza, e o que refuta, de todo, a tese
idealista).
Isso nos dá a ver que, mesmo no interior do elemento
fantástico, os contos d’As mil e uma noites se apresentam, de pleno
direito, como “discurso vivo”. Isso nos dá a ver, por tudo o que
envolve, que seu enunciado pode ser entendido como a “expressão
material de uma passagem”, já que “por ele trafegarão as versões
48
de mundo, as indagações, as perplexidades dos atores” (ibid., p.
139). Por conseguinte, surge como um “campo onde os valores se
organizam para dar inteligibilidade ao mundo” (ibid., p. 139).
Assim sendo, cai por terra, efetivamente, a dualidade realimaginário. Como mesmo diz Todorov (1970, p. 165), “o objeto
literário é ao mesmo tempo real e irreal; por isso, contesta o
próprio conceito de real”. E porque expressa justamente uma
realidade em devir, é que pode se mostrar cada vez mais rico no
seio de suas imagens, povoando a mente dos homens, descrevendo
o mundo como aquilo que efetivamente é: um todo complexo e
contraditório, reflexo do que é concreto na experiência enriquecedora
da humanidade.
REFERÊNCIAS
AUTOR DESCONHECIDO. As mil e uma noites. Tradução:
Maria Eugênia de C. de Sá. Lisboa: Publicações Europa-América,
s/d., v. 6.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Considerações sobre a obra
de Nikolai Leskov. In: ______. Magia e técnica, arte e religião.
Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas.
Tradução: Sérgio Paulo Rouanet. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, v.
1, 1994, p. 197-221.
CUVILLIER, Armand. Estética. In: Enciclopédia Delta Larousse.
Tradução: Alberto Castiel. 2. ed. Rio de janeiro: Editora Delta, v.
4, 1964, p. 1982-1984.
49
Análise de um discurso político
(ASPECTOS RETÓRICOS)
Suani de Almeida Vasconcelos*
RESUMO: O presente trabalho possui por objetivo analisar alguns
aspectos retóricos do discurso político “Exército: nem guarda
pretoriana nem tropas da SS”, de autoria do então Deputado
Federal Francisco José Pinto dos Santos (Chico Pinto), proferido
em 08 de agosto de 1972. A fim de atingir esse objetivo, tomouse, como aporte teórico, a Nova Retórica, principalmente os
trabalhos desenvolvidos por Chaïm Perelman ou baseados neles.
São analisados alguns processos argumentativos utilizados pelo
Deputado em seu discurso, considerando as relações entre orador
e auditório e a cena enunciativa.
PALAVRAS-CHAVE: Argumentação, Ethos, Retórica.
ABSTRACT: The present work aims at analyzing some rhetorical
aspects of the political speech “Army: neither Praetorian Guard
nor SS troops”, by the then Congressman Francisco José Pinto
dos Santos (Chico Pinto), delivered on August 8, 1972. In order
to reach that aim, this paper has adopted the New Rhetoric, as its
theoretical framework, mainly the works developed by Chaïm
Perelman or the works based on his works. Some argumentative
processes used by the Congressman in his speech are analyzed, by
taking into account the relationships between speaker and audience
and the utterance scene.
KEY WORDS: Argumentation, Ethos, Rhetoric.
51
*Mestranda em Lingüística Aplicada - UFBA
Membro do Grupo de Edção de Textos - UEFS
1 INTRODUÇÃO
O presente trabalho insere-se na pesquisa de mestrado em
desenvolvimento junto ao Programa da PPGLL da Universidade
Federal da Bahia na área de Lingüística Aplicada, iniciado em
2003. Essa pesquisa tem por objetivo estudar alguns processos
argumentativos utilizados pelo, então, Deputado Federal Francisco
José Pinto dos Santos (Chico Pinto) em alguns dos seus discursos,
proferidos entre 1972 e 1974, na Câmara dos Deputados (Câmara
Legislativa Federal), possuindo como aporte teórico a Nova
Retórica.
O discurso “Exército: nem guarda pretoriana nem tropas da
SS” de 08 de agosto de 1972 faz parte de uma coletânea de outros
discursos produzidos pelo ex-deputado Francisco Pinto, os quais
se constituem num conjunto de produções que refletem a sua
resistência política às opressões da Ditadura Militar, denunciando
e revelando as ações da censura e do estado totalitário durante o
período do governo dos Generais Emílio Garrastazu Médici e
Ernesto Geisel, entre os anos de 1971 a 1974.
2 CONTEXTO SÓCIO-HISTÓRICO
Década de 60. O Brasil vivenciava um dos períodos mais
difíceis e intransigentes da política brasileira: o golpe militar no
ano de 1964, quando da deposição do, então, presidente João
Belchior Marques Goulart, - Jango - e a tomada do poder pelas
Forças Armadas.
Esse momento foi marcado por forte repressão às instituições
democráticas como, por exemplo, a imprensa e aos veículos de
comunicação, culminando com a extinção dos vários partidos
políticos (criação do bipartidarismo: ARENA – Aliança Renovadora
Nacional – e o MDB – Movimento Democrático Brasileiro),
cassação de mandatos dentre outras medidas intervencionistas
à vida política do país. Destarte, o golpe militar representou o
52
esfacelamento da representatividade popular, uma vez que proibiu
os movimentos sociais organizados, a exemplo de sindicatos e
associações, os quais defendiam reformas de ordem política e
institucionais, empreendidas pelo governo Jango. Conforme afirma
HABERT (1994, p. 09), “o golpe militar foi uma reação das classes
dominantes ao crescimento dos movimentos sociais mesmo tendo
estes um caráter predominantemente nacional-reformista”.
A criação dos Atos Institucionais, iniciados no governo do
General Castelo Branco (1964-1967), foi outra medida repressiva
de caráter intervencionista nas várias instâncias políticas e sociais,
visando a manutenção da ordem através de perseguições, torturas e
mortes daqueles considerados comunistas, terroristas e desordeiros
pelo Serviço Nacional de Informação - SNI. Os Atos Institucionais
foram implementados durante os anos subseqüentes ao golpe
militar, tendo como objetivo a implantação concreta e sólida do
regime ditatorial.
O AI 5 do governo Costa e Silva (1967-1969) configurou-se no
mais repressivo instrumento de silenciamento dos vários segmentos
da sociedade organizada, haja vista que o ano de 68 foi período no
qual aconteceram os maiores protestos conta os abusos da ditadura,
destacando-se os movimentos estudantis e operários. O AI5 deu
poderes ilimitados ao chefe de Estado, outorgando-lhe decisões
válidas e legítimas sem possibilidade de contestação que
permitiu-lhe fechar o congresso por tempo
indeterminado, continuar a cassar mandatos, suspender
por dez anos os direitos políticos de qualquer cidadão,
demitir ou aposentar qualquer funcionário público civil
ou militar, estender a censura prévia à imprensa e aos
meio de comunicação (HABERT, 1994, p. 10).
Nesse contexto nacional, particularmente na Bahia, destacase o político Francisco José Pinto dos Santos que foi eleito como
chefe do executivo na cidade de Feira de Santana, pelo partido
oposicionista – PSD, com o seguinte slongan “Chico Pinto na
Prefeitura é o povo governando”, “numa campanha violenta e
53
entusiasmada”, segundo palavras do próprio político em entrevista
cedida, para o presente trabalho, em 07 de abril de 2003. Tomou
posse em abril de 1963 e foi deposto pela ditadura em maio
do ano seguinte, exatamente por contestar os “impositivos” e
“desmandos” advindos do regime militar, denunciando torturas e
mortes de companheiros políticos, bem como criticando o regime
de força daquele momento da vida política brasileira. A partir
de sua deposição, foi preso e torturado, começando, assim, uma
série de prisões e torturas que sofreria durante sua vida política e
se estenderia até o seu mandato de deputado federal pelo MDB,
já na década de 70.
Os governos dos generais presidentes Emílio Garrastazu
Médici (outubro/69 a março/74) e Ernesto Geisel (março/74 a
março/78) deram continuidade ao processo iniciado com o golpe
militar de 64, destacando, nesse período, o aumento da repressão
política, do direito e da liberdade individual e de expressão, a
exemplo da criação, pelos generais Médici e Orlando Geisel,
irmão de Ernesto Geisel, do DOI (Destacamento de Operações
de Informações) que, segundo GASPARI (2002, p. 174), “por
mais de dez anos essas três letras foram símbolo da truculência,
criminalidade e anarquia do regime militar”.
Em março de 1970, Francisco Pinto toma posse como
Deputado Federal pelo MDB, iniciando, assim, mais um período
de fortes contestações frente aos presidentes generais e aos delitos
cometidos em nome da preservação da integridade nacional.
Nos quatro anos de mandato (1970/1974), denuncia abusos e
autoridade por parte do governo instituído, através dos seus
discursos proferidos nas sessões da Câmara dos Deputados, como,
nos seguintes discursos, “Censura: A imagem do Medo”, de 1973 e
“Pinochet: o infame”, de 1974, o qual lhe rendeu a cassação dos seus
direitos políticos pelo Supremo Tribunal Federal, bem como uma
prisão por agravo a uma autoridade internacional - Presidente do
Chile - que estava no Brasil, naquela época, em visita. Em cárcere,
no 1º Batalhão da Polícia Militar do Distrito Federal, Chico Pinto,
sabendo que receberia o indulto de natal do Presidente Ernesto
54
Geisel, escreve-lhe um documento de repúdio ao indulto, alegando
que tal medida seria cabível a um criminoso, e não para ele que
não se enquadrava com tal.
Após sua liberação em abril de 1975, quatro meses a mais do
prazo previsto de encarceramento, Francisco Pinto ingressa no
Jornal O Movimento (SP/DF), em maio do mesmo ano, a convite
do amigo Raimundo Pereira que participava do Jornal Opinião
(RJ) para, assim, continuar seu trabalho de contestação às ações
da ditadura militar. No ano seguinte, ingressa no grupo dos
“autênticos” junto com outros militantes políticos do MDB.
Volta ao cenário político em 1978, quando elege-se a deputado
federal (1978/1982) e, em 1985, participa, ao lado de Ulisses
Guimarães, do movimento pela “Diretas Já”. Cumpre outro
mandato de deputado federal no período de 1986 a 1990, ainda
pelo MDB, quando se afasta por definitivo da militância políticapartidária.
Hoje, reside em Brasília (DF), mas permanece vindo à sua
terra natal, Feira de Santana, que, mesmo passado tanto tempo,
ainda continua a ser lembrado como um símbolo do político
forte e resistente, num período trevoso da vida brasileira, contra
os desmandos da ditadura, até mesmo pelos seus opositores
políticos.
3 A RETÓRICA E A ARGUMENTAÇÃO
Em seu sentido geral, a palavra retórica indica “a arte da
utilização da linguagem para persuadir ou influenciar os outros”
(BLACKURN,1997, p. 344). Outros autores consideram a
retórica como arte de convencimento, definição que remonta à
Antigüidade Clássica, tendo os Sofistas como seus representantes
mais célebres. Posteriormente, Aristóteles lhe confere o caráter de
‘ciência’, dedicando-lhe um dos seus livros, intitulado Arte Retórica,
estabelecendo seus princípios gerais e as suas divisões básicas quanto
aos tipos de discursos retóricos. Sob essa perspectiva aristotélica, a
retórica objetiva “descobrir os meios que, relativamente a qualquer
55
argumento, podem levar a persuasão de um determinado auditório”
(SERRA, 1995, p. 5).
Passado o período de esplendor da cultura greco-romana, a
retórica vai, durante os séculos subseqüentes, perdendo seu poder
de influência nos diversos campos do saber, reduzindo-se à mera
disciplina que auxilia na construção de discursos. O declínio maior
dá-se nos primórdios do século XVI com o avanço da tendência
cartesiana e a ascensão do pensamento burguês.
OSAKABE (1999, p. 150) analisa o ressurgimento da retórica
no pensamento ocidental, salientando a figura de Chaïm Perelman
que inicia o processo de retomada da dialética e da retórica
com a publicação de uma obra significativa intitulada Tratado da
Argumentação (1996). Esse livro questiona o cartesianismo ainda
vigente como o único caminho ao conhecimento e estabelece
uma reviravolta nos estudos relacionados a análise do discurso,
pois retoma certas vertentes desvalorizadas pela secularização, a
exemplo da natureza dialética do discurso. Ainda para OSAKABE
(1999, p. 176), “trata-se de uma obra com finalidade polêmica, cujo
objetivo é relativizar a tendência unilateral da lógica e da teoria do
conhecimento de Descartes”.
No tocante à tipificação dos discursos, estabelecida por
Aristóteles, Perelman questiona essa classificação, preconizando
a atemporalidade para a aplicação dos argumentos. Para ele, a
“atemporalidade e a não compartimentalização dos fatos são
fundamentais para conhecer a natureza complexa dos objetos”
(OSAKABE, 1999, p. 178). O argumento, assim, adquire o status
antes ocupado pelas evidências matemáticas e estendido às ciências
humanas, ou seja, enquanto o discurso analítico não prescinde das
demonstrações claras e evidentes para obter o convencimento dos
ouvintes, minimizando a força argumentativa pelo caráter evidente
dos fatos, a nova retórica elege o verossímil como o caminho
possível à persuasão já que a verossimilhança propicia o caráter
dialético das idéias na interlocução.
Na concepção perelmaniana, a retórica assume a posição de
disciplina basilar no estudo e análise dos atos discursivos, uma vez
56
que a retórica, desde o final da Antigüidade Clássica, teve o seu
campo de ação progressivamente diminuído, apresentando alguma
revivescência no Renascimento, pois, na Idade Média, “a retórica
ficou sendo essencialmente a arte de apresentar verdades e valores
já estabelecidos” (PERELMAN E OLBRECHTS-TYTECA,1996,
p. 179).
Na Idade Moderna, as correntes de pensamento, particularmente
os filósofos racionalistas e empiristas, refutaram a possibilidade de
a retórica compartilhar seu campo de ação e de estabelecer-se como
uma via de acesso ao conhecimento,
entretanto, faz uns vinte anos que assistimos a um
lento renascimento da importância da retórica, e
isso seguindo a direção das correntes filosóficas que,
desde as filosofias da vida, da ação e dos valores, até o
pragmatismo, marcaram a revivescência filosófica desde
quase um século. (PERELMAN E OLBRECHTSTYTECA,1996, p. 180)
Perelman devolve à retórica o prestígio que desfrutava na
Antigüidade Clássica, elegendo-a como essencial para a análise
constitutiva do discurso. Em o Tratado da Argumentação, estabelece
as idéias fundamentais, quanto a caracterização do argumento
discursivo. Perelman então,
a) elege a verossimilhança, o plausível, o provável como
pertencentes ao campo da argumentação;
pois
ou
b) refuta a idéia de evidência, na teoria da argumentação,
aquela limita a ação argumentativa;
c) defende as técnicas discursivas que permitem provocar
aumentar a adesão dos espíritos às teses que lhes
apresentam;
57
d) ressalta a importância do auditório, pois é nele que o
argumento
se desenvolve;
e) afirma que todo discurso se dirige a um auditório.
A natureza do argumento, trazida pela Nova Retórica, rompe com
o critério da prova, da evidência, já que estabelece a proximidade
teórica com a dialética. Portanto, a oposição das teses constitutivas
dos argumentos é o critério admitido para persuadir.
A relação estabelecida entre discurso e os constituintes
da formação argumentativa, bem como as bases teoréticas que
norteiam essas relações, serão elementos indispensáveis para a
análise e estudo dos discursos que ora fazem parte desse projeto
de pesquisa.
4 O DISCURSO: PANORAMA GERAL
Neste discurso, “Exército: nem guarda pretoriana nem
tropas da SS”, o político Francisco Pinto faz uma análise,
profundamente marcada pelo caráter denunciador, da repressão e
da censura instituídas pelo sistema ditatorial. As Forças Armadas,
particularmente o exército brasileiro, é a temática central desse
discurso, constituindo-se no sistema disciplinador daquele
momento da história política do país.
É ressaltada a figura do General Augusto César Muniz
de Aragão como um dos protagonistas do regime de força na
manutenção da ordem e da disciplina. Resgata, também, trechos
do discurso do general Muniz de Aragão, no qual ratifica o
compromisso das Forças Armadas com o bem-estar social, quando
afirma que as
Forças Armadas deveriam encontrar-se disciplinadas,
adestradas e aptas, prontas para a ação contra o
desrespeito a lei, a perturbação da harmonia entre as
58
classes, e o exercício do arbítrio e a prática da violência
(ARAGÃO: In.: PINTO, 1972, p. 02)
Utilizando-se dos discursos próprios do regime de força e
opressão, Francisco Pinto reverte o sentido, naquele momento, de
que as Forças Armadas deveriam estar prontas para o esmagamento
das instituições democráticas; ao contrário, coloca-as como
defensoras de tais instituições, ressaltando as condições necessárias
para a caracterização de um estado de direito, onde “leis justas e
legítimas existam e traduzam a média da consciência coletiva”
(PINTO, 1972, p. 03).
O termo ditadura e tudo que a ele está ligado e se refere
é contestado em todo discurso do ex-deputado, já que tanto a
ditadura de direita ou de esquerda e daí a obediência ilimitada ao
sistema político imposto, fazem obscurecer a participação popular
nas decisões governamentais e, conseqüentemente, o fenecimento
da democracia. A partir dessa postura, convoca a participação
das Forças Armadas para exercerem de fato a missão que a elas
compete, ou seja, combate à violência, e a garantia da segurança
nacional, e não “para tornar-se milícia, guarda pretoriana ou
tropa de assalto SS” (PINTO, 1972, p. 03). Adiante, completa
seu argumento afirmando que, assim, “os oficiais da dignidade de
guardiães da pátria, ver-se-iam levados à condição de beleguins ou
inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de camarilhas sem
fé e sem patriotismo” (PINTO, 1972, p. 03).
Nota-se, enfim, em todo o discurso, há defesa pelo estado
democrático e de direito, no qual as leis sejam respeitadas e que a
liberdade de opinião e de expressão sejam garantidas. Enfatiza a
necessidade de que o exército deveria estar ao lado do povo e não
contra este, no cumprimento das garantias constitucionais.
Querem estes governos que os militares sejam fiéis
executores destas leis; e quando estes passam a impor
ao povo o cumprimento de leis ditadas por minorias
arbitrárias, eles se desviam de suas verdadeiras missões,
esquecendo-se ‘de suas nobres tradições’ e deformando
59
assim a prática de sua função constitucional, para
tornar-se milícia, guarda pretoriana ou tropa de assalto
da SS (PINTO, 1972, loc. cit.).
5 CONTEXTO SITUACIONAL
O AQUI da enunciação é o lugar social do qual o EU fala.
Lugar esse de autoridade, pois a enunciação não pode vir de quem
não foi legitimado a falar. Em questão, Francisco Pinto, enquanto
deputado federal, eleito por votação direta, que fala com autoridade
conferida pelo povo através da escolha popular (votação direta).
Representante popular, usa do lugar social que ocupa para falar em
nome de quem o elegeu para denunciar os abusos de autoridade
das Forças Armadas, bem como defender os interesses de ordem
social, ou seja, a liberdade de pensamento e expressão.
O AGORA corresponde ao momento da enunciação. Neste
caso, diz respeito ao discurso “Exército: nem guarda pretoriana
nem tropas da SS” de 18 de agosto de 1972, em pleno governo do
General Emílio Garrastazu Médici, considerado general “linha
dura” na condução do executivo. Esse discurso retrata a indignação
do político Francisco Pinto frente às ações da Forças Armadas
que, na verdade, deveriam estar ao lado do povo, protegendo-o e
zelando pela segurança nacional e não esmagando as conquistas
democráticas e sociais, a exemplo das perseguições e torturas.
6 OS INTERLOCUTORES
6.1 O EMISSOR
Neste discurso, o locutor (L) é representado por apenas uma
pessoa, na voz do político Francisco Pinto que ocupa a posição
de deputado federal a favor dos interesses populares. Esse EU não
fala de maneira pessoal, isto é, na primeira pessoa do singular,
mas, muitas vezes, em nome de uma coletividade, marcando,
60
entretanto, seu discurso na impessoalidade (forma pronominal),
inserindo-se também no todo social através do uso de um
vocabulário (substantivos) que dê conta dos vários segmentos
sociais. A saber:
Nos países onde impera o Estado de Direito todos
assumem responsabilidades, todos conhecem os
limites de suas atribuições,..., todos opinam livre e
despreocupadamente, todos emitem conceitos e julgam
publicamente os poderosos do dia, enfim todos fazem
opções (PINTO, 1972, p. 01).
Quando o intelectual, o estudante, o empresário,
o operário se recusam a participar da vida política
brasileira não é porque a esta negam validade e nela não
crêem, vendo-a reduzida a simples força coonestante
(PINTO, 1972, loc. cit.).
O Governo Brasileiro, como de resto todos os governos
autoritários, impõe-nos leis justas e injustas... (ibid.,
p. 03)
Utiliza-se também das marcas lingüísticas argumentativas sentenças afirmativas – constituindo-se nas modalidades assertivas
(PETRI, 1994, p. 78) que dão o tom de presencialidade da carga
ideológica que defendia, naquele momento discursivo, bem
como o tom contundente com que marca sua fala na intenção
de produzir um efeito bombástico no auditório – os operadores
argumentativos- na forma de adjetivos. Esse conjunto de
procedimentos argumentativos, segundo PETRI (1994, p. 71),
“pertencem as manobras ou estratégias discursivas, utilizadas pelo
locutor com a intenção de produzir determinadas interpretações”.
Senão vejamos:
Neste País o desrespeito à lei não é privilégio dos
terroristas, mas também do Governo( PINTO, 1972,
p. 02).
61
Seus oficiais da dignidade de guardiães da Pátria, verse-iam levados à humilhante condição de beleguins
ou inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de
camarilha sem fé e sem patriotismo”( PINTO, 1972,
loc., cit.).
O caráter polifônico também está presente em seu discurso,
uma vez que se apropria da fala do General Augusto César
Muniz e de parte do editorial do jornal O Estado de São Paulo
para consubstanciar as teses levantadas e defendidas pelo locutor.
Veja-se,
A verdade é que se o ‘País está sendo objeto da inveja,
cobiça e cupidez de outros Estados, por tradições
imperialistas e dominadoras, ora agressivos ora
subversivos na maneira de agir’ como assevera, não é
menos verdade que aquilo que para ele é, apenas uma
‘grande preocupação que me punge a alma de patriota’,
já se constitui em uma realidade em nosso País (PINTO,
1972, p. 02).
Que a transformação das Forças Armadas em milícia ou
guarda pretoriana nunca se dá por ato formal ou com
plena consciência e concordância de seus membros.
Simplesmente vai acontecendo, aos poucos, até que um
dia se verifica sua evidência, até mesmo sem culpados
ou responsáveis diretos (ibid., p. 04).
6.2 O RECEPTOR
O auditório, o TU da cena enunciativa, segundo Perelman, é
fundamental na constituição argumentativa, pois é para aonde se
dirige o discurso, objetivando a adesão das teses defendidas pelo
emissor (L).
É, portanto, a natureza do auditório ao qual alguns
62
argumentos podem ser submetidos com sucesso
que determina m ampla medida tanto o aspecto que
assumirão as argumentações quanto o caráter, o alcance
que lhe serão atribuídos (PERELMAN, 1996 , p. 33)
Nesta cena, o alocutário (AL), constituído pelo presidente da
república, no caso o General Emílio Garrastazu Médici, e pelos
outros parlamentares, integra a relação da interlocução -emissor/
receptor-, buscando influenciar nas opiniões e nas futuras decisões
parlamentares e governamentais que, porventura, tivessem que
ser tomadas.
Observa-se, outrossim, que o locutor também almeja atingir
outros receptores não explicitados nos discursos, ou seja, receptores
não-alocutários. Trata-se dos meios de comunicação que, mesmo
sofrendo os agravos da censura, poderiam, de certa forma, publicar
seu manifesto e daí atingir um auditório bem maior do que aquele
restrito à Câmara Federal.
7 CONCLUSÃO
O discurso, ora apresentado, faz parte de uma série de outras
manifestações escritas do político Francisco José Pinto dos Santos
no período que foi representante popular na Câmara Federal, nas
décadas de 70 e 80, tendo sempre como temática central a denúncia
e a irreverência frente aos governos da época.
O período da ditadura militar, iniciado na década de 60 e
estendendo-se até meados dos anos 80, tornou-se o palco central
das questões sócio-políticas trazidas por Chico Pinto em seus
discursos. O exército, particularmente, chamou mais a atenção
dos políticos de esquerda, pois representava o órgão repressor por
excelência, disseminando por todo o país terror e medo a quem se
posicionasse de forma contrária à nova ordem estabelecida.
Em toda sua produção escrita, Francisco Pinto ressalta a
importância da liberdade de opinião e de expressão, reivindicando
sempre o respeito às leis e às garantias individuais. Esse discurso,
especialmente, é o retrato dessa postura ideológica, no qual
63
combate fortemente às ações de força das Forças Armadas e o
aniquilamento do estado democrático.
Estudar, portanto, os discursos do político feirense Francisco
Ferreira Pinto dos Santos, representa, além do resgate da memória
política do país de do Estado da Bahia, uma importante fonte
histórica e uma importante fonte de estudo dos procedimentos
argumentativos, haja vista a forte tônica elocutória dos seus
discursos. O estudo retórico, assim, tem nessas produções escritas,
um farto campo de análise e pesquisa, salientando-se as marcas
lingüísticas de uma produção textual esteticamente viável.
Vale mais uma vez salientar que esse discurso faz parte do
projeto de pesquisa, iniciado no ano corrente, no programa de
pós-graduação em Lingüística Aplicada da Universidade de Federal
da Bahia e, por isso, mesmo não foi possível aprofundar as análises
no campo retórico, apresentando-se um panorama geral quanto as
análises argumentativas.
EXÉRCITO: NEM GUARDA PRETORIANA NEM TROPA
DE ASSALTO SS
18 DE AGOSTO DE 1972
O SR. FRANCISCO PINTO – MDB-BA- Sr. Presidente,
Srs. Deputados, se outros elementos não existissem para diferençar
o regime democrático dos ditatoriais ou semiditatoriais, o medo
serviria para distingui-los.
Nos países onde impera o Estado de Direito todos assumem
responsabilidades, todos conhecem os limites de suas atribuições,
do que é proibido, todos opinam livre e despreocupadamente,
todos emitem conceitos e julgam publicamente, os poderosos do
dia, enfim, todos fazem opções. Nos Estados totalitários alguns
dão ordens e poucos opinam. A maioria ou concorda com as
determinações impostas, elogiando-as sempre, ou se postam
64
silenciosas e inermes, mas sempre amendrontadas. Os que
opinam discordando, mas conscientes dos riscos, o fazem sem
esperar solidariedades. Ninguém quer se comprometer com vozes
discordantes. E o medo não está longe, ele se encontra presente
entre nós, nas mais variadas camadas da população e se apresenta
sob as mais variadas formas.
Quando o intelectual, o estudante, o empresário, o operário
se recusam a participar da vida política brasileira não é só porque
estas negam validade e nela não crêem, vendo-a reduzida a simples
força coonestante. Em verdade se utilizam deste argumento para
justificar sua passividade, diante dos riscos que não negam, mas
ficam bem com a sua consciência, porque amuletados nos seus
próprios argumentos se dedicam tão só a atividade profissional,
onde se realizam economicamente sem opinar sobre determinados
valores incorporados à civilização ocidental, mas que o governo
brasileiro teima e negar e destruir.
Se é um militar que fala, e experiência tem aconselhado a
todos que dele não se deve discordar e a prudência recomenda
nem elogiar é bom.
Mas é impossível silenciar depois de ler o pronunciamento
do General Augusto César Muniz de Aragão, conhecido pelo
seu destemor e pelas suas qualidades de disciplinador, as vezes
até exagerado no respeito aos cânones hierárquicos. Ele fez um
discurso analítico, polêmico e de certo modo angustiado, ao menos,
cheio de preocupação. Os riscos por que estamos passando no Brasil
só não enxerga quem não quer. O ilustre militar os aponta as claras
e, como conhecedor profundo das Forças Armadas e talvez por
isto mesmo, é mais otimista que muitos outros. Entende que as
tradições democráticas das Forças Armada não serão desmentidas,
esquecido apenas, que há momentos em que o medo se generaliza,
a todos atingindo indiscriminadamente.
A verdade é que se o “País está sendo objeto da inveja,
cobiça e cupidez de outros Estados, por tradições imperialistas e
dominadoras, ora agressivos ora subversivos na maneira de agir”
como assevera, não é menos verdade que aquilo que para ele é,
65
apenas uma “grande preocupação que me punge a alma de patriota”,
já se constitui em uma realidade em nosso País. Quando aconselha
que as Forças Armadas precisam “encontrar-se disciplinadas,
adestradas e aptas, prontas para a ação contra o desrespeito a lei, a
perturbação da harmonia entre as classes, o exercício do arbítrio
e a prática da violência” faz uma advertência não para o futuro
remoto, mas para o presente. Neste País o desrespeito à lei não
é privilégio dos terroristas, mas também do Governo. O que é
importante no regime democrático não é só a existência da lei e
a existência do seu respeito, porque nas ditaduras de direita ou
esquerda a lei também existe e a força querem-nas respeitada.
Nestas, determina-se obediência ilimitadas. O que caracteriza o
regime democrático é a existência de leis justas e legítimas, de
leis que traduzam a média da consciência coletiva. O Governo
brasileiro, como de resto todos os governos autoritários, impõemnos leis justas e injustas e a todas querem que juremos obediência e
de todos exigem o seu cumprimento. Querem estes governos que
os militares sejam fiéis executores destas leis; e quando estes passam
a impor ao povo o cumprimento de leis ditadas por minorias
arbitrárias, eles se desviam de suas verdadeiras missões, esquecendose “de suas nobres tradições” e deformando assim a prática de sua
função constitucional, para tornar-se milícia, guarda pretoriana
ou tropa de assalto SS. Seus oficiais da dignidade de guardiães da
Pátria, ver-se-iam levados à humilhante condição de beleguins ou
inquisitores e, mesmo de sequazes ou esbirros de camarilhas sem
fé sem patriotismo. Tal hipótese – continua – constitui terrível
dilema: para fugir ao perigo comunista seria a Nação mergulhada
em regime de extrema direita, igualmente policialesco e violento.
Tal alternativa não admite opção.
Como o ilustre general crê na sua corporação, acredita
“que isto jamais ocorreria no Brasil devido à vocação cívica e
democrática das Forças Armadas”. Externa no entanto, no início
de sua oração, “a grave preocupação que me punge a alma patriota”,
66
preocupação que é de todos que acompanham o processo a que
estamos sendo conduzidos.
Sem ser um discurso político no sentido “strito”, foi
objeto de comentário por parte de um dos maiores articulistas
brasileiros, o Senhor Carlos Castelo Branco. Não foi sem razão
que o “Estado de São Paulo”, sempre preocupado em preservar
as legítimas conquistas que a revolução burguesa nos legou, em
mais de um editorial, inclusive o de 13 do corrente, faz referência
àquele discurso que teve uma dimensão nacional, esclarecendo
“que a transformação das Forças Armadas em milícia ou guarda
pretoriana nunca se dá por ato formal que com a plena consciência
e concordância de seus membros. Simplesmente vai acontecendo,
aos poucos, até que um dia se verifica sua evidência, até mesmo
sem culpados ou responsáveis diretos”.
O que não nos desespera, nesta hora, Sr. Presidente, é a
confiança que temos no povo e na proclamada e reconhecida
tradição de inequívoca lealdade das Forças Armadas à causa
democrática. (Muito bem.)
REFERÊNCIAS
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Walter José Evangelista e Ma. Laura Viveiros de Castro. 6. ed. Rio
de Janeiro: Graal.1992.
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69
PLEBE, Armando. Manual de Retórica. São Paulo: Martins
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CAMINHOS DO DESENHO NA BAHIA DO SÉCULO
XVIII
Antônio Wilson Silva de Souza*
RESUMO: O presente texto versa sobre o desenho da Bahia do
século XVIII, fazendo um sucinto relato sobre a escolha do tema,
a realização da pesquisa, e a abordagem que lhe foi dada. Apresenta
uma sucinta análise dos desenhos coletados, destacando as suas
características e situando-os dentro do contexto social e religioso
da Bahia setecentista.
PALAVRAS-CHAVE: Desenho, Arte, Bahia.
RÉSUMÉ: Ce texte parle du dessin de la Bahia du XVIIIme. siècle,
faisant un rapport abrégé du choix de ce thème, de la réalisation de
sa recherche, et de son abordage. Il y a encore une caractérisation
de ces dessins, en même temps qu’ils sont analysés dans le contexte
social et religieux de la Bahia de ce siècle.
MOTS CLÉ: Dessin, Art, Bahia.
*Universidade Estadual de Feira de Santana
71
Dentre os diversos modos de expressão humana, encontra-se
o desenho, figurando como um dos mais antigos e constantes. O
desenrolar da história de cada sociedade e cultura deixa notar a
presença deste modo de expressão. Portanto, tornar-se-ia difícil
alcançar uma compreensão do desenvolvimento integral do ser
humano sem uma atenção particular ao desenho. Para além de
constituir uma dentre as várias formas de expressão, o desenho
apresenta-se como poderoso auxiliar de um vasto conjunto de
outras expressões e de manifestações artísticas, daí o porquê de
Gomes (1996, p. 13) concluir que o desenho “É uma das formas de
expressão humana que melhor permite a representação das coisas concretas e
abstratas que compõem o mundo natural ou artificial em que vivemos”. Desde
a fase primitiva da sua evolução, o ser humano utiliza-se do
desenho como fator colaborativo da sua capacidade de expressão
e comunicação. Presente em todas as culturas, o desenho assume
conotações variadas, visto que depende do contexto no qual
emerge, condicionando-se, inclusive, às aspirações e problemas
vigentes na sociedade. Cada cultura cria uma maneira específica
de desenhar, assim como possui uma reflexão1 própria sobre o
desenho. Portanto, o desenho diversifica-se através da pluralidade
dos estilos, ora refletindo o andamento do processo histórico, ora
preludiando mudanças e, não raro, apresentando-se como elemento
indicativo e subsidiário dos estágios de transformação pessoal e
coletiva, sempre, porém, subjuntivo das intenções humanas de
desenvolvimento pleno. No entanto, ao lado do reconhecimento
contemporâneo da importância do desenho, insurge o paradoxo,
sobretudo no meio artístico e acadêmico, da constatação de que
essa expressão vem sendo muito pouco estudada, por ter sido
considerada secundária dentro das artes até muito recentemente.
Esse longo preterir do desenho em contraposição à acentuada
atribuição de valor à outras expressões artísticas, deu incentivo, há
algum tempo, para que se procurasse desenvolver pesquisa sobre
a história do desenho. Sob a percepção da lacuna existente em
relação à história do desenho no século dezoito e por acolher uma
sugestão da professora Maria Helena Occhi Flexor, orientadora
72
dessa pesquisa, deu-se início, no limiar do ano 2000, dentro do
Mestrado em Artes Visuais do Programa de Pós-graduação da
Escola de Belas Artes da UFBA, a pesquisa sobre a temática.
Pesquisa que foi concluída satisfatoriamente, e a dissertação,
intitulada O desenho na Bahia do século XVIII, teve defesa realizada em
julho de 2002. Ora a revista A Cor das Letras torna oportuna mais
uma transmissão do conhecimento haurido em consequência do
estudo sobre a citada temática, corroborando, destarte, para que
este texto realize a socialização do saber particularmente almejada
e academicamente conveniente.
O estudo sobre a temática do mestrado foi possibilitado em
decorrência da inexistência de material bibliográfico a respeito. As
obras de historiadores da arte na Bahia, que se dedicaram ao estudo
do Barroco, versam sobre as diversas manifestações deste estilo, tais
como a arquitetura, a talha, a pintura, a escultura e a ourivesaria,
no entanto elas deixam um espaço vazio quanto à manifestação
do desenho. Pode-se comprovar tal assertiva, recorrendo-se às
obras de renomados autores na história da arte da Bahia, como
Marieta Alves, Valentim Calderon, Carlos Ott, o beneditino
Dom Clemente Maria Nigra, entre outros, ou mesmo entre os
brasilianistas como Germain Bazin, Robert Smith e Roberto
Pontual. O locus que não fora reservado ao desenho na reflexão
desses autores resultou em um pungente e significativo espaço
aberto a uma necessária busca do desenho do século XVIII.
O objetivo principal da pesquisa sobre o tema supra citado
foi analisar o desenho da Bahia setecentista, destacando as suas
principais características, buscando descrevê-lo, classificá-lo dentro
do seu contexto histórico, realizar uma análise iconográfica, além
de identificar os materiais de base, de fixação, os instrumentos de
execução, seus usos e a formação do profissional durante o período
abordado.
Necessário se faz, entretanto, explicar a que concepção de
desenho o projeto se ateve, uma vez que essa expressão artística
é ampla em suas manifestações. Por exemplo, um projeto
arquitetônico, as letras capitais iniciais de textos escritos ou
73
impressos, as assinaturas rasas e públicas, o traçado das letras em
si, entre outras, são expressões gráficas, mas que de certa maneira
têm sido estudadas, mesmo que com enfoques variados, alguns
dos quais apenas constituiu objeto de estudo deste projeto.
Não se pretendeu também, enfocar o desenho enquanto meio
educacional, mas tão somente constatar o ensino do desenho no
setecentos na Bahia, medida que serviu para explicar a sua execução
e o tipo de artista ou artesão que o executou. O desenho, alvo
principal da pesquisa, foi o desenho enquanto idéia, obra de arte
individualizada ou trabalho artístico manifestado como moldura
de documentos, como ornamentação de textos, como decoração,
aquele desenho, em geral feito à mão, e que, por isso mesmo,
evidencia um conhecimento técnico de utilização de materiais,
manuseio de instrumentos e muito mais o desenvolvimento de
habilidade manual.
O estudo sistemático do desenho da Bahia do século XVIII
exigiu pesquisa multidisciplinar e em documentação extremamente
variada. Principiou-se, então, a pesquisa por meio da busca de
acervo documental pertencente aos arquivos da Bahia. Desta
maneira foi feito levantamento de material no Arquivo Público
da Bahia, nos arquivos das Instituições religiosas, como da Ordem
Terceira do Carmo, Ordem Terceira de São Francisco, Ordem
Terceira de São Domingos, da Santa Casa de Misericórdia e do
Mosteiro de São Bento, todos sitiados na Cidade de Salvador.
Apesar de valiosa a contribuição desses arquivos, a quantidade de
material coletado foi insuficiente para que se pudesse documentar,
subsidiar e analisar o desenho com bastante profundidade, como
se requeria. Portanto, sentiu-se a necessidade de buscar maiores
subsídios para o estudo de sua manifestação na Bahia. Assim,
levantou-se imperiosa a necessidade de busca, no Arquivo Histórico
Ultramarino de Lisboa, onde se pôde coletar maior número de
documentação do século XVIII, em que se apresentasse o desenho
em quantidade suficiente para fundamentar a pesquisa com sólido
embasamento. O material obtido naquele arquivo foi vasto em
relação ao encontrado nos arquivos de Salvador da Bahia, o que
74
viabilizou um melhor desenvolvimento da pesquisa em torno
do desenho, sobretudo porque toda a documentação pesquisada
se referia especificamente à Bahia e, na sua grande maioria, eram
manuscritos.
Os desenhos levantados, nos citados arquivos, fazem parte
dos seguintes tipos de documentos manuscritos: compromissos de
irmandades religiosas, que contêm um material extenso de desenho
e pintura, mapas de carga e descarga, importação e exportação
de mercadorias, coleções cartográficas, escrituras e processos,
que trazem assinaturas rasas e públicas, tratados de arquitetura,
manuais de artilharia, figurinos militares, cadernos de desenho
da aula militar, etc. Outro material importante que subsidiou o
estudo em questão, com numerosos desenhos, foi a Nova Escola
para aprender a ler, escrever e contar2 , da autoria de Manoel de Andrade
de Figueiredo, publicado no ano de 1722. Nessa obra, o autor
apresentava inicialmente a intenção de ensinar a escrever e a contar,
posto que fizera uma cartilha, contudo, por ter acrescentado a este
objetivo algumas informações de como se usar a pena, o papel
e a tinta, terminou por ensinar também a desenhar, sobretudo,
ornamentar documentos, como se pode ver na figura 1.
figura 1
Fonte: FIGUEIREDO, Manoel Andrade de. Nova escola para
aprender a ler, escrever e contar. Lisboa: Lisboa Occidental,
75
Os desenhos encontrados nos documentos citados são, na
maioria, de caráter decorativo, mais ornamentais, aparecendo como
moldura, sobretudo naqueles dos compromissos de Irmandades.
Além de emoldurar os documentos eles aparecem também como
elementos ornamentais das capitais iniciais de textos e decoram
a folha de papel, na parte inferior, em geral encerrando textos,
capítulos. Representam figuras de anjos, querubins, elementos
zoo e fitomorfos, coroas, cavaleiros, arabescos simples ou
entrelaçados.
A maioria dos desenhos tem um traçado característico feito em
curvas entrelaçadas num traço contínuo, sem interrupção para cada
elemento realizado. As formas típicas do Barroco sobressaem e se
repetem de maneira, às vezes, automática, o que vem evidenciar que
os desenhos constituíam uma via de materialização da mentalidade
vigente na época.
Há uma padronização que se percebe como uma constante em
várias expressões. As assinaturas rasas, por exemplo, apresentam
um traçado que se repete em muitas delas. As assinaturas públicas
também têm uma forma específica de cruz da qual a haste vertical
é bem elevada e em cada extremo da haste horizontal, o nome ou
as iniciais do nome do tabelião que a tem como marca pessoal e
profissional, registrada em tabelionato para uso nos documentos
públicos. No cruzamento das hastes cada tabelião tem um
desenho peculiar. Há uma enorme variedade dessas assinaturas,
pois cada tabelião deveria criar o desenho que o identificaria
profissionalmente. Para os olhos de quem se dedica, hoje, à
pesquisa, aquelas assinaturas fazem situar o seu autor dentro de uma
determinada época, pois o seu desenho é típico de um período que
manifestava um traçado característico da expressão barroca.
76
Os desenhos encontrados, nas coleções cartográficas, são
também de cunho decorativo e complementar. O enfoque não foi
a cartografia em si, mas as legendas. Elas apresentam uma moldura
para os dados informativos dos mapas. São desenhos que mostram
detalhes de formas que caracterizam esse estilo, como composição
de folhas de acanto, e não têm finalidade senão ornamental. Os
desenhos das molduras das legendas dessas coleções cartográficas
apresentam formas típicas do estilo clássico que fora absorvido e
transformado pelo Barroco.
O desenho como idéia aparece na representação de figurinos,
desenhos coloridos, realizados para se mostrar como deveria ser
a indumentária dos militares, têm uma significação especial, não
somente por serem coloridos, mas também por constituírem
desenho da figura humana. Esses figurinos manifestam uma visão
típica do período barroco, quando o espírito de contradição
perpassava a mentalidade e o comportamento do homem daquela
época. O semblante dos militares faz alusão a um anjo tipicamente
Barroco.
Outros exemplos de desenho como idéia foram levantados
ao mesmo tempo em que se buscou exemplares que evidenciassem
o desenho como expressão autônoma, o que não foi possível
constatar. Outra busca esteve enfocada na relação do desenho, ou
risco3, com a arquitetura decorativa, pintura, talha, imaginária,
trabalhos em couro, os baixo-relevos das lápides tumulares, etc,
visto que todas as manifestações artísticas estavam intimamente
ligadas pelas formas, pela iconografia e pelo próprio desenho.
Não se deixou, evidentemente, de definir o significado do
desenho, ou significados que historicamente ele foi assumindo a
partir dos ideogramas, ou representações ideográficas, e como foi
influenciado pelas culturas, sobretudo das religiosas, especialmente
católicas.
Tendo em mãos este material, foi possível realizar uma
análise descritiva e iconográfica que, de muito, contribuiu para o
entendimento do desenho e de outras manifestações artísticas da
Bahia. Apesar de reconhecer a eficácia do método de Panofsky
77
que parte da análise dos símbolos para descortinar e interpretar
o conteúdo temático, o significado intrínseco e o conteúdo
convencional da obra de arte, deu-se preferência ao método de Ravi
Poovaiah4, visto que possibilitaria um conhecimento aprofundado
e alargado das expressões gráficas, sobretudo porque o referido
método se estrutura sobre dois pilares: na natureza sintática do
desenho, em termos de elementos, características e princípios
visuais, e na dimensão semântica e pragmática do desenho,
destacando o conteúdo, o contexto e o código da representação
visual. Por essa razão, foi o que melhor se coadunou com o intento
de analisar os desenhos do século XVIII.
A análise realizada ofereceu bases para uma reflexão sobre
o desenho e, ao mesmo tempo, corroborou para uma melhor
compreensão das expressões gráficas da Bahia setecentista. Assim,
foi possível destacar com mais nitidez as suas características dos
desenhos. Pôde-se, então, constatar que a maioria dos desenhos
estudados revelam características do estilo barroco. É forçoso
salientar que, na segunda metade da mesma centúria, houve
manifestações do estilo rococó, que também se fez evidente nos
desenhos5. A mentalidade barroca reinante na época orientava de tal
forma a maneira de viver das pessoas que as suas expressões, artísticas
ou não, revestiam-se de um caráter eminentemente barroco, como
provam as assinaturas rasas6 do período abordado.
Uma análise sócio-cultural das expressões barrocas na
Bahia setecentista mostraria que o barroco foi, mais que
um estilo artístico, uma mentalidade filosófica, estética
e religiosa da sociedade da época, foi propriamente
um estilo de vida, pois pensava-se, vestia-se, falava-se,
em realidade, agia-se barrocamente. (Souza, 2002,
p. 52)
Essa mentalidade, ou melhor, essa maneira de viver
caracteristicamente barroca propiciou inúmeras manifestações da
arte, como a talha, a pintura, a arquitetura, a música, a escultura,
fomentadas pelo espírito religioso, patrocinada pelas Ordens
78
Terceiras e, em alguns casos, pelo governo7. Contudo não se deixou
de dar mostras da expressão eminentemente gráfica, como provam
os inúmeros exemplares dos desenhos pesquisados e analisados, na
sua grande maioria, como já foi dito, de caráter ornamentativo.
Todo desenho representa em si mesmo uma forma de
comunicação, por isso constitui uma linguagem8. Dentro desta
maneira de entendimento, o desenho pode ser considerado
como um caminho através do qual o homem setecentista pôde
manifestar a sua visão de mundo. Reflexo de mentalidade e
expressão de sentimentos, o desenho utilizou signos específicos do
Barroco, ou baseados no vasto mundo de formas próprias desse
estilo. Em razão do Barroco ter-se, intrinsecamente, vinculado ao
espírito religioso da sociedade da Bahia do século em questão, o
repertório de signos pelo desenho apresentado constitui uma vasta
quantidade de elementos típicos da manifestação da fé cristã. E,
sendo a mentalidade do século dezoito, eminentemente, barroca, as
ornamentações dos documentos, mesmo civis, eram um esboço do
carácter religioso constituinte da vivência do homem da época.
O Barroco não renegou as formas clássicas, mas as
transformou de modo fantasista e subjetivo. Por esta razão, se
pôde reconhecer, nos desenhos analisados, traços da arte clássica
acrescidos de características formais propriamente barrocas, como
por exemplo, a intensa movimentação, obtida pelo predomínio de
linhas diagonais, os fortes contrastes como, por exemplo, o claro e
o escuro, as curvas, a sinuosidade, as ondulações, os entrelaçados e o
excesso de ornamentação. A decoração da capa de um compromisso
de Irmandade da Bahia do século XVIII, figura 2, serve como
ilustração comprovativa do que se acabou de afirmar.
79
80
figura 2
Capa do Compromisso da irmandade de Nossa senhora da
Ajuda da Vila de Porto Seguro, Bahia, 1778. Fonte: Códice 1668
do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa.
No Brasil, notadamente na Bahia, a arte barroca se tornou um
instrumento de manifestação do sentimento religioso, de maneira
que resulta quase que impossível dissociá-la do contexto da fé
cristã. Todavia, apesar da preponderância da fé, uma das tônicas
do Barroco é o espírito de contradição que se exprimiu inúmeras
vezes na dicotomia entre o profano e o sagrado. Assim, os desenhos
evidenciaram também essa característica do citado estilo, quando
muitos dentre eles representam em sua ornamentação uma coroa
real, símbolo do poder terreno, ao lado de anjos, símbolos da
dimensão ultraterrena, ou espiritual.
O Barroco, portanto, foi um seguro caminho que a Bahia
setecentista escolheu para manifestar de forma plurissignificativa a
linguagem do desenho, embora esta linguagem tenha permanecido
secundária em relação às outras expressões artísticas.
Sem pleitear dimensionar vantagens entre as manifestações
artísticas, o Barroco não poderia estar melhor representado do
que pelo desenho que, com mais clareza que outras expressões da
arte, materializou a mentalidade do homem setecentista. A análise
dos desenhos fez compreender que as formas e símbolos, por eles
representados, integram uma concepção de mundo especialmente
religiosa, transmitida por uma linguagem cujo código identifica o
estilo barroco e revela influência da cultura portuguesa.
Pelo exposto, uma constatação insurge para reafirmar e
reforçar, ainda mais, a concepção que se apresentou no desenrolar
deste texto: o desenho é um componente basilar do universo de
expressões do homem da Bahia setecentista, e por essa razão, fez-se
81
presente como uma manifestação dentre as outras manifestações da
arte da época. Essa constatação, porém, não impediu de reconhecer
que o desenho setecentista não possuía carácter autônomo.
Após todas as considerações e análises, estudos e reflexões,
pôde-se concluir que o desenho foi uma manifestação constante
e largamente utilizada em todo o século XVIII, reverberou a
mentalidade e a visão de mundo características da época, integrou
o universo de manifestações peculiares da arte daquela centúria e
constituiu um caminho de expressão barroca do pensamento e da
cultura material da sociedade setecentista da Bahia.
NOTAS
Usa-se aqui a expressão “reflexão” para designar não o discurso
intelectivo sobre o desenho, pois este é relativamente muito
recente, mas para referir-se a toda intenção que conduz as diversas
sociedades e culturas a desenhar.
1
Essa obra impressa, que contém desenhos feitos à mão pelo próprio
autor, passou pela aprovação de todas as instâncias necessárias, em
Portugal, inclusive pelo crivo da Mesa de Consciência e Ordens e
só assim foi publicada. Urge ressaltar que o autor nasceu no Brasil,
filho do Governador e Capitão General do Espírito Santo. Esse
material foi fornecido por Maria Helena Occhi Flexor, que obteve
cópia microfilmada no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
2
Termo comumente utilizado em Portugal e no Brasil, durante
o século XVIII, para designar os desenhos. Era um sinônimo da
palavra “desenho”.
4
Ravi Poovaiah nasceu na Índia, em 1954 e formou-se em
engenharia mecânica pelo Instituto Indiano de Madras, em 1975.
Em 1977, pós-graduou-se na área de projeto de produto no Instituto
de Tecnologia de Bombai, Índia. De 1982 à 86, foi professor do
3
82
curso de Desenho industrial de Bombai. Fez o mestrado na área de
Comunicação Visual pela Escola de Desenho da Ilha do Rhode, em
Providence, EUA. Tornou-se Professor Adjunto no Instituto de
Desenho Industrial de Bombai. Suas linhas de pesquisa, desde 1986,
são: estudo dos princípios da representação gráfica bidimensional,
estudo da linguagem visual, desenvolvimento de padrões para
sinalização urbana, desenvolvimento de sinalização de hospitais
e desenvolvimento de fontes tipográficas para computador. Hoje
ele é Phd.
5
Deu-se preferência, neste artigo, ao estudo do desenho barroco,
reservando para um próximo texto uma mais aprofundada e
detalhada explanação sobre o desenho rococó, merecedor por seu
turno, de estudo sistemático, posto que também integra o arsenal
de manifestações artísticas da Bahia do século XVIII.
Chama-se de assinatura rasa a assinatura pessoal de um
indivíduo.
6
No século XVIII as Ordens Terceiras (de leigos) eram mais
fortes que as Primeiras (de sacerdotes), visto que àquelas se
agremiavam, em geral, pessoas abastadas da sociedade da época.
Com a contribuição financeira dos Irmãos Terceiros e também
com a verba do governo para a construção do altar-mor das igrejas,
foi desenvolvida a maioria das obras da arte religiosa da Bahia
setecentista.
7
Por linguagem, neste texto, deve-se ser entendido todo e qualquer
sistema de signos que serve de meio de comunicação individual, e
entre indivíduos, e que pode ser percebido pelos órgãos dos sentidos.
Não se pretendeu, ao longo presente artigo, enfocar questões mais
profundas relativas à concepção do desenho enquanto linguagem.
Já há autores de renome que se debruçaram e vêm se debruçando
sobre esta temática assaz relevante para o desenvolvimento da
reflexão sobre a história do desenho.
8
83
REFERÊNCIAS
Manuscritos
Compromisso da Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Aflitos e
Boa Sentença, Bahia, 1778. p. 5. Fonte: Códice 1671 do Arquivo
Histórico Ultramarino de Lisboa.
Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora da Ajuda da Vila
de PortoSeguro, Bahia, 1778. Fonte: Códice 1668 do Arquivo
Histórico Ultramarino de Lisboa
Figurinos Militares da Bahia. Arquivo Histórico Ultramarino,1771,
Cod. 1510, s.n.p.
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a ler, escrever e contar. Lisboa: Lisboa Occidental, 1722. p. 155.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Pesquisa e metodologia em arte.
Salvador , 1999. (Digitado).
GOMES, Luiz Vidal Negreiros. Desenhando: uma panorama dos
sistemas gráficos Santa Maria: UFSM, 1998. p. 172.
______. Desenhismo. Santa Maria:UFSM, 1996. p. 119.
MUSEU DE ARTE MODERNA DO RIO DE JANEIRO.
Coleção Gilberto Chateaubriand: o desenho moderno no Brasil.
Rio de Janeiro: MAM, 1995.
CONTRIBUIÇÕES DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL
PARA O ENSINO-APRENDIZAGEM DA LEITURA/
ESCRITA
Girlene Lima Portela*
RESUMO: O presente texto aborda as contribuições da Lingüística
textual para o ensino-aprendizagem da leitura/escrita, por meio
de uma discussão teórica que dá conta de variados contextos,
apontando caminhos para a utilização dos postulados da matéria
em questão nas aulas de língua e redação.
PALAVRAS-CHAVE : Lingüística textual, Ensino-aprendizagem,
Escrita.
RÉSUMÉ: Le présent texte traite des contributions de la
Linguistique textuelle pour l’enseignement-apprentissage de la
lecture/écriture, au moyen d’une discussion théorique qui rend
compte de contextes variés, démontrant des cheminements pour
l’utilisation des postulés de la matière en question dans les cours
de langue et de rédaction.
MOTS CLÉ: Linguistique textuelle, Enseignement-apprentissage,
Écriture.
*Universidade Estadual de Feira de Santana
85
UM BREVÍSSIMO HISTÓRICO
História da Lingüística Textual
Europa (Anos 60, 80)
Brasil (Anos 80)
Fenômenos sintáticos e semânticos
(Alemanha, França)
São Paulo
Recife
Critérios de textualidade
(Beaugrande e Dressler)
Critérios de textualidade
(Koch, Marcuschi)
Estruturas textuais
(van Dijk)
Problemas de ordem textual
Charolles; Vigner; Adam
A partir do esquema proposto acima, podemos asseverar que
a Lingüística Textual nasceu na Europa, mais especificamente na
Alemanha, nos anos 60 e teve por objetivo “descrever os fenômenos
sintáticos e semânticos presentes nos enunciados” (Koch, 1996,
p. 11). Na década de 80, ela passou a ser conhecida no Brasil,
sobretudo a partir dos trabalhos de KOCH (UNICAMP) e de
Marcuschi (UFPE).
86
OBJETO DE ESTUDO DA LINGÜÍSTICA TEXTUAL
Objeto de estudo
O texto
Organização
Produção
Compreensão
Funcionamento no meio social
ações lingüísticas
cognitivas
sociais
Como podemos observar, no esquema acima, a Lingüística
textual preocupa-se com o texto e suas ações lingüísticas
(conhecimentos gramaticais e enciclopédicos), cognitivas
(conhecimentos guardados a curto, médio e longo termo) e sociais
(contratos e convenções determinados por uma dada sociedade),
as quais estão envolvidas em sua organização (pesquisa de idéias),
produção (planejamento), compreensão (análise e síntese) e
funcionamento (intenção/aceitação) no meio social.
Considerando-se esses postulados, podemos dizer que as
ações lingüísticas, cognitivas e sociais ajudam a explicar o objeto
de estudo da LT - o TEXTO - em sua globalidade (produção/
compreensão/reprodução), uma vez que tais dimensões nos
facultariam das condições necessárias para a compreensão dos
processos de escrita, a saber, o planejamento, a revisão e a escrita
de um texto, o que facilitaria o desenvolvimento de ilimitadas
leituras/escritas/reescritas sobre uma dada temática, enriquecendo
assim o nível de produção escolar.
Contudo, a produção de textos escolares foge totalmente a
87
observância acima proposta. Preocupados com essa desvalorização
da complexidade que encerra uma tarefa de leitura/escrita, muitas
pesquisas foram desenvolvidas sobre essa temática, a exemplo do
projeto “A circulação de textos na escola (...)” , coordenado por
Chiappini (1998).
De acordo com alguns pesquisadores do referido projeto, nos
cursos de língua portuguesa, pouquíssimos foram os professores
que demonstraram preocupação com a leitura e com a escrita
de textos ou ainda com a qualidade do material adotado pelas
escolas.
Sobre o tipo de ensino de leitura/escrita, concluiu-se que a
leitura se faz de forma magistral: o professor escolhe um texto
proposto por um livro didático e os alunos, um após outro,
decodifica os símbolos de cada parágrafo sem uma discussão ou
análise do que se está lendo.
Sobre a escrita, a situação é ainda mais grave, pois os
professores não ensinam seus alunos a escreverem nem mesmo
sugerem atividades que valorizem a escrita, como veremos mais
adiante.
Sobre a utilização do material didático adotado, verificou-se
que o tipo de texto que circulava nas escolas pesquisadas se tratava
única e exclusivamente de textos didáticos e didatizados e que os
livros adotados se constituíam em material auto-suficiente para
o estudo da língua, pois eles não incitavam a consulta de outros
materiais, como por exemplo, dicionários, gramáticas, antologias,
obras integrais, etc.
Considerando-se essa situação problemática de ensinoaprendizagem da leitura/escrita, observemos, a seguir, como os
postulados da Lingüística textual poderiam contribuir para a
mudança de atitudes dos professores de língua e redação e como a
observância desses postulados poderia melhorar o nível do ensinoaprendizagem dessas matérias.
O TEXTO E SEUS FATORES DE TEXTUALIDADE
88
Se considerarmos as palavras de Lispector (s/d), quando ela
assevera que “escrever é como construir um galinheiro de ripas no
meio de um furacão”, constataremos como é complexa a tarefa de
escrita e daríamos mais importância a essa fundamental atividade
para o desenvolvimento de escritores mais preparados não só para
o mercado de trabalho, mas também para os concursos, que eles
farão, na busca de melhores oportunidades. Assim, discutiremos,
a seguir, o que vem a ser um texto e como ele se configura num
todo coeso, coerente, eficiente e eficaz naquilo a que ele se propõe,
seja informar, persuadir, denunciar ou divertir.
O que é um texto ?
Um texto é tudo aquilo que comunica algo, seja ele oral,
escrito, visual ou musical. Do ponto de vista oral e escrito, o texto
se constrói a partir de mecanismos sintáticos e semânticos, os quais
são responsáveis pela produção do sentido.
De acordo com Chareaudeau (1992), o texto pode ser
concebido como “[...] a manifestação material (verbal e semiológica:
oral/gráfica, gestual, icônica, etc.) de um ato de comunicação, numa
situação dada, para servir de projeto de fala de um dado locutor”
(p. 645). (Tradução livre).
Texto e intertexto
Podemos ainda considerar o texto como objeto cultural,
produzido a partir de certas condicionantes históricas em relação
dialógica com outros textos (Fiorin, 1996).
Segundo Barthes (1991), o texto serve a redistribuir a língua.
Uma das vias dessa redistribuição é a permuta de textos, seus
fragmentos, que existiriam ou existem ao redor do texto fonte,
e, por fim, dentro dele mesmo; todo texto é um intertexto, uma
vez que outros textos estão presentes nele, em vários níveis, sob
formas mais ou menos reconhecíveis.
Entendido como um tecido polifônico que entrecruza fios
89
dialógicos de vozes que polemizam entre si, se completam ou
respondem umas às outras, o texto, na concepção bahktiniana, tem,
na função intertextual, uma dimensão de primazia em detrimento
do textual, pois é através dela que as vozes falam e polemizam,
reproduzindo, a partir do texto, o diálogo com outros textos.
Texto e intertextualidade
De acordo com Kristeva (1966), a intertextualidade seria o
encontro de duas vozes, ou seja, quando ocorre um diálogo entre
os muitos textos de uma (ou várias) cultura(s) que se instala no
interior de cada texto e o define ocorre tal fenômeno, que vem a
ser um ponto de intersecção de muitos diálogos, cruzamento de
vozes oriundas de práticas da linguagem socialmente diversificadas,
que têm, no texto, sua realização.
Na perspectiva da Lingüística textual, a intertextualidade
sempre foi vista como um dos critérios de textualidade de
considerável relevância. Muitos trabalhos já deram conta desse
fenômeno como coadjuvante na construção/reconhecimento da
tipologia textual e do estabelecimento de novos sentidos. Dentre
estes trabalhos, destacam-se aqueles produzidos por Koch (1986,
1991, 1994, 1997) e Portela (1999) os quais procuram estabelecer
critérios para uma melhor compreensão desse fenômeno.
Outros fatores convergem para a textura de um texto ou
enunciado, a saber, a coesão, a informatividade, a situacionalidade, a
aceitabilidade (que está atrelada à intencionalidade) e demais fatores
pragmáticos, normalmente centrados nos usuários, os quais serão
explicitados a seguir.
Texto e coesão
A coesão ocorre quando a interpretação de algum elemento do
discurso é dependente de um outro, ou seja, quando um elemento
pressupõe o outro, no sentido de que ele não pode ser efetivamente
decodificado exceto por referir-se ao outro. Quando isso ocorre,
a relação de coesão é estabelecida, e os dois elementos, o que
90
pressupõe e o pressuposto, são pelo menos integrados num texto
(Halliday e Hasan, 1979).
De acordo com Costa Val (1995), a coesão seria a manifestação
lingüística da coerência, ou seja, ela resulta da maneira como
os conceitos e relações subjacentes são expressos na superfície
textual.
Já segundo Fávero (1996), os fatores de coesão servem a dar
conta da estruturação do texto e os fatores de coerência servem ao
processamento cognitivo deste.
Texto e coerência
A coerência resulta da configuração que assumem os conceitos
e relações, os quais são preponderantes para o sentido do texto.
De acordo com Van Dijk (1973), ela está no nível global do
texto e daria conta, de um lado da macoestrutura e, de outro, da
microestrutura textual.
A macroestrutura seria a forma lógica subjacente ao texto
e que corresponderia a uma representação geral da significação
da produção, já a microestrutura se manifesta por meio de
relações localizadas de conexão mútua entre os enunciados. Esse
microcomponente seqüencial daria conta dos vínculos inter e
intrafrasais, manifestos através de fenômenos como a recorrência
de morfemas, a pronominalização, o emprego de conjunções e
verbos, que representariam, na superfície, as relações semânticas
da macroestrutura profunda.
De outro lado, podemos considerar os significados locais de
cada enunciado como dependentes do significado global articulados
na macroestrutura semântica, uma vez que a representação
semântica de um enunciado não seria determinada pelos enunciados
precedentes ou subseqüentes e sim pelo princípio global, subjacente,
que persiste em todos os enunciados do texto.
No texto “Introdução aos problemas de coerência dos
textos”, Charolles (1996) faz um estudo sobre coerência e coesão,
sem diferençá-las, uma vez que para ele a coerência é global. O
91
que, para alguns, é coesão, para Charolles, trata-se de coerência
microestrutural; o que outros chamam de coerência é, para ele,
coerência macroestrutural.
Retomando-se os estudos de Beaugrande e Dressler
(1981;1983), de Halliday e Hasan (1979) e aqueles de Charolles
(1996; 1997) constatar-se-á que o primeiro apresenta os sete
princípios da textualidade, o segundo aborda a coesão e o terceiro
prioriza a coerência.
No Brasil, encontramos muitos trabalhos sobre os fatores
de textualidade, sempre baseados nos pesquisadores ingleses
e franceses, a exemplo daqueles desenvolvidos por Koch e
colaboradores e por Fiorin que, em um de seus estudos, apresenta
cinco níveis de coerência (a narrativa, a argumentativa, a figurativa,
a espacial e a do nível de linguagem utilizado), a saber :
a) intratextual, aquela que diz respeito à compatibilidade, à
adequação, à não-contradição entre os enunciados do texto;
b) extratextual, aquela que diz respeito à adequação entre o
texto
e uma “realidade” exterior a ele.
Finalmente, ele aponta seis fatores que contribuem para dar
coerência a um enunciado: o contexto, a situação de comunicação,
o conhecimento de mundo, as regras do gênero, a conotação e o
intertexto. (Fiorin, 1997).
Os fatores pragmáticos da textualidade
Embora a maioria dos autores, aqui apresentados, considerem
a intertextualidade um fator de ordem pragmática, preferimos
destacá-lo dos demais fatores, pois a nosso ver ele se configura
num elemento essencial para a produção, apesar de considerarmos
também que os demais fatores são de extrema importância para a
construção da textualidade.
92
Uma vez que os fatores pragmáticos estão diretamente ligados
à relação produtor-interlocutor, explicitaremos abaixo, os fatores
que dão conta dessa relação dialógica.
Texto e informatividade
dos
A informatividade é avaliada em função das expectativas e
conhecimentos dos usuários. Para Beaugrande e Dressler
(1981), esse fator de textualidade tem a ver com grau de novidade e
de previsibilidade, pois quanto mais previsível, menos informativo
será o texto para determinado usuário, porque acrescentará pouco
às informações que o recebedor já tinha antes de processá-lo.
Os usuários tenderiam a rejeitar tanto os textos que têm,
para eles, informatividade alta demais, porque são muito difíceis
(ou impossíveis) de serem entendidos quanto aqueles que lhes
parecem óbvios, porque pouco acrescentam aos conhecimentos
já adquiridos pelo interlocutor do enunciado.
Segundo os autores supracitados, um grau mediano de
informatividade seria o mais confortável, porque permitiria ao
recebedor apoiar-se no conhecido para processar o novo. Por outro
lado, para os autores, funcionaria melhor um texto que alternasse
zonas de baixa informatividade com zonas de alta informatividade,
porque, no processamento desse texto, o recebedor teria que agir
no sentido de alçar ou rebaixar informações, levando-as ao nível
mediano, para integrá-las no sentido que está produzindo para o
texto, e esse trabalho o manteria envolvido com o texto, interessado
no texto.
Nessa perspectiva, a informatividade não é pensada como
característica absoluta nem inerente ao texto em si, mas como um
fator a ser considerado em função dos usuários e da situação em
que o texto ocorre.
93
O princípio da informatividade mostra até que ponto uma
informação é nova ou não no texto. Tanto o excesso como a
escassez de informações novas podem prejudicar o entendimento
do texto. Cabe destacar que é nova a informação não recuperável
no texto e que constitui um dado a que pode ser recuperada.
Facilita a compreensão do texto o conhecimento partilhado, o
conhecimento de mundo, com algum grau de similaridade, do
remetente e do destinatário.
Texto e situacionalidade
A situacionalidade refere-se a fatores que dão relevância a
um texto numa dada situação comunicativa. O texto vincula-se
às circunstâncias em que interagimos com ele e sua configuração
aponta a utilidade e a pertinência dos nossos objetivos.
Assim, a situacionalidade se configura como um princípio
importante para a constituição da textualidade, já que a coesão, a
coerência, a informatividade e as atitudes/disposições de produtor
e recebedor (intencionalidade e aceitabilidade) são funções do
modo como os usuários interpretam as relações entre o texto e sua
situação de ocorrência: o sentido e o uso do texto são decididos via situação
(Beaugrande e Dressler, 1981, p. 10).
Esse conceito não se resume às circunstâncias empíricas em
si, mas de atividade dinâmica, que envolve monitoramento e
gerenciamento contínuos da interação comunicativa, por parte
do produtor e do recebedor, uma vez que as ações discursivas
não se prendem só às evidências perceptíveis, mas sobretudo
“às perspectivas, crenças, planos e metas dos usuários”,...
(Beaugrande e Dressler, 1981, p. 179).
Texto e aceitabilidade
A aceitabilidade está relacionada à atitude do receptor frente
aos textos, se têm relevância ou utilidade para ele. Tal princípio
depende da intencionalidade, relacionada à atitude do autor
que busca apresentar um texto coerente e coesivo. O remetente
94
tenta criar um texto que tenha sentido, e o destinatário o recebe
como algo com sentido. Há quem considere que não existe texto
incoerente, uma vez que, pelo princípio da cooperação, o receptor
esforça-se para dar um sentido ao texto e tenta encontrar coerência
nele.
Assim, a aceitabilidade de um texto dependeria menos de sua
correção, em termos de correspondência ao “mundo real”, e mais da
credibilidade e relevância que lhe são atribuídas numa determinada
situação. (Sobre o assunto, consultar Koch, 1996,1997 e Costa
Val, 1996).
CONTEXTO TEÓRICO-PRÁTICO : ANÁLISE DE ALGUNS
FATORES DE TEXTUALIDADE
De acordo com Hayes et Flower (1980), para escrever/
entender um texto é preciso que se tenha uma meta, a qual deve
estar intimamente ligada a textualidade, pois os fatores nelas
expressos servirão para um planejamento e uma execução que leve
a um bom resultado.
Nessa perspectiva, o escritor precisa se ater aos princípios e
ainda se antecipar ao seu leitor na formulação de eventuais dúvidas,
revisando seu texto para eventuais correções, pois ler/escrever um
texto pode ser comparado a uma resolução de problemas, uma vez
que se deve planejar o modo pelo qual o texto escrito será lido.
Sobre as condições de produção de um texto, Geraldi (1997)
diz que, seja qual for a modalidade, o aluno precisa ter o que dizer
e ter uma razão para dizer. Assim, o interlocutor e as estratégias
do que será dito devem estar bem definidas.
O sentido de um texto está na observância dos seus fatores
de textualidade, como pudemos constatar no contexto anterior.
Observados tais fatores, teríamos condições de fazer ilimitadas
leituras/escritas/reescritas sobre um tema, o que enriqueceria o
nível de produção escolar.
Contudo, a produção de livros escolares foge totalmente
a observância acima proposta. Na maioria dos cursos de língua
portuguesa, pouquíssimos são os professores que demonstram
95
preocupação com a leitura ou com a escrita ou ainda com a
qualidade do material adotado pelas escolas.
Uma pesquisa feita por Garcez (1998), em Brasília, demonstra
que a relação dos 72 alunos pesquisados com a escrita pode ser
assim descrita:
Segundo Garcez (op. cit.), esses dados revelam que um dos
obstáculos que serve a bloquear a competência escrita dos alunos é
a falta de experiência, pois, na grande maioria dos casos, os alunos
admitem que escrevem raramente, seja em casa seja na escola.
Nesse contexto, apresentaremos, abaixo, quatro fragmentos
de textos, analisando brevemente alguns fatores de textualidade
discutidos anteriormente, considerando-se o caráter interativo e
dialógico da produção textual.
Para iniciarmos as análises, tomemos, por exemplo, o texto
Gênesis de Caetano Veloso, que retoma, através dos recursos
da informatividade e da intertextualidade, o texto bíblico de
mesmo nome, para estabelecer um diálogo entre os textos e seus
interlocutores.
Vemos, nesse fragmento, alguns argumentos (em itálico) que
se fundam na intencionalidade (refletir sobre o texto bíblico).
Nesse intuito, o autor generaliza um caso particular (a criação do
Universo) para estabelecer uma relação entre a reflexão (intenção)
e a estrutura do real socialmente construído (aceitação): (a fé nos
postulados bíblicos).
Observemos também o papel da coerência, que nesse caso seria
96
uma coerência em nível discursivo. Através do uso das palavras
parafuso e confuso e da expressão espírito de tudo, o autor parodia o
texto original.
Lembremos também o papel da informatividade. Um leitor
que desconheça o papel da paródia na produção textual dirá que
esse é um texto incoerente, pois tais escolhas estão destoantes do
contexto religioso do texto bíblico.
Assim, podemos concluir que, como defende Beaugrande
e Dressler (1981), a coerência está centrada no leitor, e também,
nesse caso, no ouvinte da canção, pois serão eles a estabelecer o
grau de coerência do texto.
Sobre a coesão, Veloso utiliza os conectivos aditivos e (para concluir
seus argumentos) e nem (para dar idéia de falta, de ausência), o
conectivo adversativo mas (significando que, apesar do caos (céu então
confuso), o espírito de tudo (ou Deus) consegue colocar ordem.
Encontramos ainda a elipse (Ø céu era então confuso), os
pronomes indefinidos tudo e nada, indicando caos e ordem, etc., entre
outros recursos que poderão ser encontrados numa análise mais
pontual, a qual será feita oportunamente.
Além desses recursos, observemos ainda a analogia (uso de
exemplos) e da metáfora (comparação) para facilitar a compreensão
do assunto. O texto em questão foi estruturado de modo a explicar
algo desconhecido ou algo não-familiar por meio de algo familiar,
estabelecendo-se uma relação de similitude entre duas relações que
unem duas entidades.
Continuando as análises, tomemos alguns fragmentos dos
textos Canção do exílio (1 e 2) e Nova canção do exílio, retiradas do manual
didático Lições de texto - leitura e redação (p. 69), de autoria de Platão e
Fiorin para exemplificar o recurso da intertextualidade.
97
Nesses exemplos, observamos a oposição ou contraste, que
visam a explicar fatos, idéias, comparando-se e apontando-lhes as
diferenças. Vejamos :
a) descreve-se o elemento comparante. Em seguida, os
elementos
comparados, apontando os contrastes (palmeira/macieiras;
Brasil/Califórnia; sabiá/gaturanos);
b) desenvolvem-se as idéias, comparando-as ao mesmo
tempo
apontando os contrastes (Beleza e exaltação da fauna e da
flora
brasileira/Degradação dessa beleza e crítica a essa
exaltação/
ingenuidade).
Nos exemplos citados, a intertextualidade se coloca como
condição prévia para a produção/recepção de textos. Neles, as
paráfrases e as paródias
constituem em fatores decisivos para o
Textose
e textualidade
processamento textual, sejam eles canções, narrativas ou poemas,
e funcionamento
Organização
osCompreensão
quais envolvem
conhecimentos, crenças
e ações explícitas e
implícitas no material verbal e aInformatividade
interpretação que Situacionalidade
o recebedor faz
delas, a partir de seus modelos prévios de mundo.
Coesão edevem
coerência
Como vimos, a produçãoIntertextualidade
e a recepção de textos
ser
observadas
a partir de funções textuais Aceitabilidade
de natureza lingüística
Intencionalidade
e extralingüística, organizadas em quatro categorias, a saber, a
contextualização, a coesão,
a coerência e a conexão de ações.
Produção
(Marcuschi (1983).
Para finalizar esse estudo, visualizemos, a partir do esquema
abaixo, como ocorre o fenômeno da textualidade.
98
CONCLUSÃO
Como pudemos perceber, a observância dos fatores de
textualidade, propostos pelos analistas textuais, assim como os
fatores cognitivos, propostos pela Didática da escrita, poderiam
contribuir grandemente para a melhoria da qualidade das aulas de
escrita, através de métodos mais sistemáticos de análise de textos
e de estratégias que valorizassem a tessitura textual.
REFERÊNCIAS
CHIAPPINI, L. et al. A circulação de textos na escola: Um projeto
de formação-pesquisa. v. 1, 2, 3. São Paulo: Cortez, 1998.
FIORIN, J. L. Elementos de Análise do Discurso. Análise de
textos de 2° grau e vestibular. Como aproveitar a leitura e a
produção de texto literário. São Paulo: Contexto, 1996.
99
______. e SAVIOLI, F. P. Lições de texto: Leitura e redação. São
Paulo: Ática, 1997.
______. Para entender o texto. Leitura e redação. São Paulo:
Ática, 1992.
GARCEZ, L. H. C. A escrita e o outro. Brasília : Editora
Universidade de Brasília, 1998.
GERALDI, J. W. Escrita, uso da escrita e avaliação. In: Geraldi
(Dir.) O texto na sala de aula. São Paulo : Ática, 1997.
HALLIDAY, M. A. K. e HASAN, R. Cohesion in spoken and
written English. London: Longman, 1976.
KOCH, I. G. V. O texto e a construção de sentidos. São Paulo:
Contexto, 1997.
______. O desenvolvimento da Lingüística textual no Brasil. In:
D.E.L.T.A., v. 15, n.º especial, p. 165-180, 1999.
______. Text Linguistics. In: Revista Virtual de Estudos da
HERBERTO SALES: O ROMANCE E A BUSCA DE SI
MESMO
Ângela Vilma S. Bispo Oliveira*
RESUMO: O presente artigo pretende estudar o romancista
baiano Herberto Sales nas relações que permeiam e entrecruzam
vida e obra. Trata-se de estabelecer uma visão panorâmica da obra
romanesca do escritor para, a partir daí, encontrarmos o autor
nas particulares do sujeito biográfico; o memorialista, pois que
sua obra ficcional traz cifrados rastros e vivências particulares em
meio a memória de uma coletividade; e, principalmente, o prosador
– homem que, na busca incansável de si mesmo, transforma o que
viveu e o que poderia ter vivido em objeto estético.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção, Memória, Autobiografia.
RESUMEN: Este texto pretende estudiar al novelista bahiano
Herberto Sales, en las relaciones que atraviesan su vida y su obra.
Se trata de estabelecer una vision panorámica de la obra novelística
del escritor para, a partir de ese punto, encontrar al autor en las
particularidades del sujeto biográfico; el memorialista, ya que su
obra ficcional trae cifrados rastros y vivencias particulares aliadas
a la memoria de una coletividad; y, principalmente, el prosador
– hombre que, en busca incansable de si mismo, transforma lo que
vivió y lo que podria haber vivido en objeto estético.
PALABRAS-CLAVE: Ficción, Memoria, Autobiografía.
*Mestre em Teoria da Literatura (UFPE)
Doutoranda em Teoria da Literatura (UFPE)
Foi no primeiro livro de memórias que Herberto Sales
101
revelou o quão autobiográficas se faziam a sua relação com o conto,
gênero no qual se firmou utilizando alguns dos instrumentos de
romancista. Disse ele que para fazer um conto bastava-lhe “escrever
um dos mil e um desimportantes episódios” com que ao longo do
tempo vinha compondo a sua autobiografia, permitindo com que
nelas tomassem parte as pessoas que conheceu e que recordava.1
Tal afirmação vem ilustrar as nítidas relações autobiográficas
existentes na obra desse escritor - fato que nós já constatamos na sua
contística, quando percebemos como o conto e o romance, assim
como toda sua obra, estão entrelaçados, revelando a forte ligação
às suas raízes e aos lugares em que viveu.2 É como prolongamento
de estudo que podemos conjecturar o que abarca a obra desse
romancista – sua vida, memória e arte literária se conjugam numa
fronteira movediça e instigante.
Sabe-se o quanto as relações entre a biografia de um escritor
e a narrativa curta se estreitam, haja vista as pulsações individuais
que as cercam; nesse caso, lembramos também a poesia - formas
idiossincráticas em que se denotam com mais evidência as relações
de parentesco entre os acontecimentos existenciais e a literatura. Já o
romance não nos permite, com muita evidência, tal afirmação, pois
que a afluência de vias e percursos, aquela multiplicidade romanesca
que possibilita várias histórias se entrelaçarem e personagens
diversos se delinearem, nos põe num certo distanciamento da voz
autoral, pessoal. O escritor como que se dissemina em diversidade
de vozes e pessoas, desdobrando-se em muitos, em outros, em diversos,
tornando quase que impossível encontrar sua fisionomia, aquela
que costumamos chamar de biográfica. Nos labirintos do espelho
– que é o romance – o escritor e sua imagem se transformam em
fragmentos, onde por instantes pensamos vê-lo e o que detectamos
são outros, ou quiçá ele mesmo, o autor, encarnado numa legião.
Herberto Sales sempre afirmou “escrever com sinceridade”.
Nas entrevistas, constantemente relatou as relações presentes
entre seus livros e sua própria vida. Neles, fatos emergem como
de um sonho: voláteis e presentes, os acontecimentos de sua
existência permeiam a narrativa, seja ela romance, conto, ensaio e
102
aquilo que, em falta de um outro nome, chamamos de literatura
infanto-juvenil. Nessa vasta obra, caminhos e descaminhos do
escritor se encontram, e o romancista é mesmo o homem - naquilo
que busca de possível unidade diante do múltiplo e indecifrável de
sua condição; memorialista – pois que não consegue esquecer o seu
passado, sua família, seus mortos; e, principalmente, é o prosador,
porque transforma em material estético o que viveu, perseguindo
a “verdade da alma” nos meandros feéricos daquilo que poderia
ter sido e que não foi.
Tudo o que quero é ser realmente eu mesmo. Tenho de
voltar de mim mesmo, para em mim mesmo ficar.3
Sou um habitante do passado, estrangeiro em terras do
presente e do futuro.4
Literatura não é apenas o que é feito com arte literária.
É, também, o que se faz com a verdade da alma.5
Nos restos perdidos de mim busco o outro que não fui
e que não sou.6
“Um homem em busca de si mesmo, indisfarçável e puro”,
assim o definiu Austregésilo de Athayde,7 quando da publicação
da trilogia herbertiana de memórias. Depois de uma constante
perseguição de si na obra ficcional, Herberto Sales resolve pôr
termo em suas confissões, existenciais e factuais, nos três volumes
memorialísticos de sua bibliografia. Neles, o homem assina
deliberadamente a confissão, permeada muitas vezes da literariedade
que a deixa suspensa e da verdade crua que a desestabiliza. Na
obsessão pela sinceridade, mostra-se assim como é, e dele, do
homem Herberto Sales, podemos endossar aquela definição que
o mesmo fez a respeito de um outro escritor, amigo seu.
... Era um homem inteiro em suas duas metades:
nas suas antipatias e nas suas simpatias. Um raro
ser humano fiel a si mesmo nos seus extremos. Não
brincava em serviço nos seus ódios. E dava plantão
em sua gratidão.8
103
Como reiterou Cid Seixas, “Herberto xinga com raiva e
beija com amor” e “não abraça quando brigar devia, pois que,
“assim como o escritor, o homem não é invernizado por fora”.9
Essa personalidade forte vai influenciar a divulgação da obra,
explicando talvez o silêncio atual que desce sobre sua literatura e
seu nome. O homem e o escritor pagam um preço “alto” por dizer
“certas verdades”, sendo legado, pela mídia e mercados editoriais,
a um esquecimento que nos perturba, motivando-nos ao trabalho
amoroso e justo de “dizê-lo”, “contá-lo”. Essa é uma reação natural
do leitor que se encontra na memória do outro, na literatura que
promove o reencontro “com o que temos em nós de mais profundo
e verdadeiro”, como bem assinalou Herberto,10 sendo que nela,
na obra que lemos, “nos identificamos em nossas convicções mais
profundas, em nossas dúvidas e inquietações”.11 Assim, nessa
relação crítica, que também permeia o autobiográfico, nos situamos
como seres que se ficcionalizam, adentrando como personagens da
narrativa que se encontra em permanente construção.
Como leitores, o escritor escolhido por nós se transforma
num ser especial, pois que é muito difícil separar a obra, que
nos identificamos, do autor que a escreveu. Estamos, quase todo
o tempo, buscando a pessoa em meio a escrita; sabemos que o
homem é o arquiteto dos vestígios, diluindo suas pegadas nas
fronteiras, seja do sonho, seja da palavra materializada. Por mais
que o autor tente se esconder entre as páginas, intuímos que sua
história pessoal de alguma maneira se espraia e flui, evanescente
ou cristalizada. Simulacro que encena a própria alteridade,12 a
literatura aqui funciona como enigmática busca do autor. A
variante da crítica como história policial, proposta pelo argentino
Ricardo Piglia, situando o crítico como “decifrador de oráculos”
e o escritor como “o delinqüente que apaga suas pegadas e cifra
seus crimes”,13 nos possibilitará a investigação de Herberto Sales,
que, nas interfaces do romance, busca a si mesmo e se esconde.
Sua presença persiste, não atrás do texto - como bem assinalou
Roland Barthes - mas perdido no meio dele.14 A vida do autor
104
torna-se a composição da ausência, rastro que não autentica sua
passagem, tampouco legitima acontecimentos vividos, mas que, ao
tempo em que flutua e se dissipa, permanece como uma sombra.
E é essa sombra que perseguimos ao revisitarmos seus diários,
documentos, entrevistas dadas, e, principalmente, em meio a seu
romance. Perscrutando aquelas “verdades da alma” – enviesadas e
perversas – que coabitam os enredos e artifícios literários, notamos
que sua figura se impõe e a relação que temos com ela é tão espessa
quanto a tentativa de totalizá-la. É assim que entramos no reino
do romanesco, configurando as formas enigmáticas e múltiplas das
leituras que empreendemos sobre o mundo.
Numa entrevista, ao ser questionado sobre a sua relação
com o garimpo, projeto do primeiro livro (Cascalho – 1944), e se o
mesmo acreditava na feitura romanesca a partir de uma pesquisa
deliberada ou, ao contrário, a partir de uma experiência natural,
espontânea, de fatos vividos e assistidos, Herberto Sales afirmou
que “cada pessoa que tem que escrever um romance”, na verdade,
de alguma maneira, ela “já traz dentro de si os romances que tinha
de escrever”. Esses romances surgem a partir de circunstâncias que
envolvem o escritor, configurando-se como uma “superposição,
uma sedimentação de vivências”.15 Explicando, com tal afirmação,
a gênese de Cascalho, dela nos apropriamos para agregá-la à gênese
de todos os seus outros romances, tão bem contados por ele na
sua trilogia memorialística.
É imperioso dizermos aqui, mais uma vez, que a obra de
Herberto Sales, em temas e formas, acompanhou seus percursos
biográficos. De Cascalho (1944) a A Prostituta (1996) – último romance
-, visualizamos aqueles caminhos por ele percorridos. Nascida de
uma relação visceral com a vida, tal obra vem confirmar a posição
do escritor diante de uma época, de sua existência e de sua criação
literária. Nesta se insere, sim, o autor que a escreveu, munido de
uma identidade particular, a despeito de tal identidade ser quase
sempre - em sua narrativa, como em todas as narrativas - uma
procura constante e, possivelmente, sem solução. Muito mais,
nessa literatura se insere, sim, o homem, seus personagens são todos
105
nós, impressos nos abismos da perplexidade e da mais compassiva
ironia, pois que é a tessitura humana que a perpassa.
Pouco sabemos de nós – e vivemos. É o que nos sugerem as
entrelinhas da prosa herbertiana, que, dizendo passado e presente,
possibilita-nos visualizarmos os caminhos do homem, do prosador
e do memorialista, confirmando a certeza de que a obra literária
traz a vida do escritor, mas ultrapassa-a, vai além. Essa mobilidade
do eu, que se mostra e se esconde, e que faz da biografia uma
encenação é o que mais nos interessa. Aqui Herberto Sales dá a mão
a Mnemosyne, a deusa da memória, e canta o que foi, mas também
o que poderia ter sido. Ou melhor, o que poderá ainda acontecer.
Nesse tríplice caminho, presente, passado e futuro se encontram
eivados de possibilidades, iluminados pela ficção.
Encontrar Herberto Sales, o andaraiense que viveu e
testemunhou uma época, e que buscou retratá-la num romance
comprometido com a denúncia social, nas linhas e entrelinhas de
Cascalho, livro de 1944, totalmente reescrito em 1951, torna-se tarefa
instigante quando, debruçados sobre sua obra, percebemos nele já
nítidos aqueles “sinais particulares” que irão marcar a sua dicção
literária - não obstante a tentativa de desaparecimento - a partir de
romances tão aparentemente distintos entre si. Nesse livro, escrito
quando o autor tinha 24 anos, vimos a história centrada na sua
terra natal, Andaraí, na qual histórias de garimpos e garimpeiros
são contadas a partir da motivação do autor em denunciar as
mazelas ali presenciadas. O depoimento humano-social ganha
realces de crônica regionalista, onde a denúncia perpassada pelas
páginas, na voz de um narrador aparentemente distante, perfaz-se
num tom não planfetário, permitindo assim que as desigualdades
sociais ali expostas ganhem notoridade nas variadas perspectivas
estabelecidas pelo narrador. O autor quer esconder-se e ao mesmo
tempo dizer-se, pois que sua vida está lá, inscrita na mobilidade e
no desaparecimento, em meio àquela vida de garimpeiros:
... Todos três estavam agora curvados sobre a pedra
que Zé de Peixoto tinha na mão. Dizer da ansiedade,
106
do alvoroço e do atordoamento deles, é impossível.
(...). (grifo nosso) 16
... Encontram-se como que encurralados no âmago da
gruna – seres insignificantes ao lado das grandes rochas
úmidas e escuras, sobre as quais vêem projetadas
suas próprias sombras. (...). (grifo nosso)17
Em 1961, com a publicação de Além dos Marimbus, segundo
romance, encontramos o mesmo e outro Herberto – vemos os
seus “sinais particulares”, porém a estrutura é distinta de Cascalho.
Nesse romance, escrito sobre a exploração madeireira de sua terra,
percebemos exacerbada a preocupação com a forma artística, já
prenunciada em Cascalho. Se este se fazia nos moldes memorialísticos
dos contadores de histórias nordestinos, Além dos Marimbus nasce
de um rigor visual na forma, apesar de não abandonar o cerne
memorialístico. Nesses dois livros, o autor está escondido na voz
de um narrador aparentemente distante, “disfarçado” na terceira
pessoa do discurso indireto livre.
Um desconhecido cruzava agora aquelas paragens:
Jenner. De casaco e culote de brim cáqui, chapéu de
abas largas, e coturnos, conservava-se atento à mata que
se descortinava além dos marimbus. (...).18
* * *
... E nessa personagem central [Jenner] talvez haja
também um pouco de mim, por conta das reminiscências
da minha viagem às matas. (...).19
Com Dados Biográficos do Finado Marcelino (1965), é outro o
narrador que se pronuncia. A partir desse livro ficamos mais
próximos do escritor, do homem e do memorialista Herberto
Sales. Com a pretensa finalidade de contar a vida e a morte de um
tio com o qual conviveu na época de sua adolescência, quando
de Andaraí se transportou para estudar em Salvador, o narrador,
entabulado na primeira pessoa do discurso, se posiciona, delineando
a sua própria memória biográfica. A riqueza do “disfarce”, e da
107
possível confissão do escritor, vem confirmar o entrelaçamento
desse romance com os anteriores e, também, com as obras que
virão depois. Nesse amalgamar de existências, percebemos a
reiteração temática, estilística, a migração de personagens, todo o
diálogo possível que nos ajudará a compreender a obra, o homem,
o escritor. Funcionando como um divisor de águas, Dados Biográficos
do Finado Marcelino nos traz o Herberto citadino, mas enraizado
ainda à terra, alvo de suas reminiscências e presença decisiva em
sua formação humana.
Andava pelos treze anos quando conheci meu tio
Marcelino: era a primeira vez que eu ia a Salvador.
Três dias antes deixara Andaraí, minha terra natal,
em companhia de um comprador de diamantes, o
Sr. Gumercindo, velho amigo de meu pai. A viagem
enchera-me o coração de alvoroço. Com tamanha
alegria eu partira – e mamãe chorava tanto ao abraçarme! – que os abalos da separação logo se diluíram na
idéia daquela experiência nova e fascinante: ia conhecer
a Capital. (...).20
É, a seguir, com o intuito de fazer um romance sobre seus
antepassados que o escritor inicia as primeiras anotações que
irão desaguar num livro publicado oito anos após a idealização
- Os Pareceres do Tempo (1984). É importante situá-lo aqui,
cronologicamente, a fim de percebemos como a história pessoal
de Herberto se posiciona diante do fazer literário - história de
uma vida recorrendo aos enviesados caminhos da verossimilhança,
naquilo que abarca como possibilidades desentranhadas. Na
verdade, Os Pareceres do Tempo requeria algo maior de seu autor, e
ficou à espreita da melhor oportunidade de urdidura. E antes disso
acontecer, Herberto escreveu e publicou dois livros que bem dirão
das circunstâncias por ele vividas nas épocas datadas: 1976 e 1983,
respectivamente O Fruto do Vosso Ventre e Einstein, O Minigênio. Ele,
Herberto Sales, era diretor do Instituto Nacional do Livro e, por
isso, vivenciador do burocratismo que desumaniza as relações
108
entre os homens. Nas reuniões que participava, vivia a anotar
tolices para compor os dois romances. O Dicionário das Idéias Feitas
flaubertiano de alguma maneira está inscrito nessa crítica atroz
que Herberto faz às instituições sociais e seu jargão tecnocrático.
É aqui que o riso, tão presente nesse escritor-contista, começa a
pulsar. Lembremos que em estudo anterior nosso,21 descobrimos
que o contista Herberto Sales nasceu no intervalo após a publicação
de Dados Biográficos do Finado Marcelino e antes da aparição de O Fruto
do Vosso Ventre. No livro de contos, Histórias Ordinárias (1966), já
começamos a visualizar a mordacidade dessa crítica social com os
contos Conselho e Ordem de Pagamento. Contos que anunciaram os
romances seguintes. Riso que desabrocha cruel e positivo, pois que
somado à sátira e à piedade - humor intuindo uma ternura pela
nossa triste e engraçada condição humana.
A publicação seguinte é mesmo Os Pareceres do Tempo. Romance
que compõe, a partir de alusões, a genealógica história do autor, ao
restituir, ficcionalmente, dois personagens de sua família, Policarpo
Golfão e Liberata. Confidenciou ele no livro de memórias:
... O meu Policarpo só tem que ver é com o meu
antepassado Policarpo. Assim mesmo em linhas gerais
de origem. Porque, enquanto o meu antepassado
gastou todo o dinheiro que tinha, apostando a alma
no baralho, e para isso indo de canoa São Francisco
abaixo São Francisco acima em busca de parceiros, o
Policarpo do romance é o desbravador romântico de
Cuia d’Água. (...)22
Para fazer este “romance de família”, Herberto foi em busca
de uma linguagem antiga e criou um cronista com a aparência
de um estilo oitocentista, situando a história no Brasil colonial.
Afirmou o escritor que aqui “a História foi apenas um prego”
onde pendurou o seu romance,23 sugerindo com tal declaração
a intencionalidade visceral do escritor - o resgate de sua história
pessoal, ainda que o romance se desvincule por si mesmo da
intenção do autor e nos deixe ver e refletir a história nacional,
109
através das complexas relações que determinaram nossa formação.
Assim, as fronteiras entre o imaginário e o real, entre a história e
a literatura estão vinculadas aos meandros da verossimilhança, aos
desejos de representação, aliadas ao lirismo de um terceiro olho,
que tudo vê:
Finalmente, ainda com o sol alto, entreviu Policarpo
o acampamento, através da discreta folhagem dumas
árvores. Havia uma clareira, onde os índios moviamse lentos e descuidados, entregues aos seus quefazeres
índios deles: ralavam mandioca, com mandioca faziam
cauim, que bebiam, e farinha, que comiam. Três índias
entreteciam cipós sentadas, acalentando no regaço uns
balainhos que iam nascendo. Um índio soprava uma
flauta de bambu; da flauta escorria uma música triste,
que ia pingando tristeza em tudo. Era uma cena tão
pura e essencial, tão embebida na essencialidade das
coisas, com a mata rodeando calada e toda em verdor os
índios, que parecia um começo de mundo: um mundo
começando com um sopro de flauta.24
Em 1986, com A Porta de Chifre, Herberto Sales traz de volta
a crítica mordaz à sociedade robotizada, iniciada com os contos
de Histórias Ordinárias e, principalmente, com O Fruto do Vosso
Ventre, romance que ele intitulou como marco do seu “apocalipse
particular”. 25 Disfarçado em “relato anticientífico”, A Porta
de Chifre nos mostra uma Amazônia devastada em virtude das
irresponsabilidades humanas. O futuro se instala com crueldade
(a história é situada no ano de 2352, começando exatamente no
dia do aniversário do autor, 21 de setembro) e o resultado é o pior
possível. O Herberto cruel, “castigador”, como bem o definiu
Antonio Olinto,26 aqui é mordaz e, ao mesmo tempo, humano,
terno, piedoso, com tão frágeis destinos.
Se o escritor, de 1988 a 1991, dá uma pausa nos romances
a fim de escrever a trilogia memorialística, podemos encontrar,
entre o primeiro livro de memórias, Subsidiário – Confissões, Memórias
110
e Histórias (1988) e o segundo, Andanças por umas Lembranças (1991),
um pequeno romance intitulado Na Relva da tua Lembrança (1988),
escrito quase que paralelamente ao primeiro livro de memórias.
Nesse romance, em tudo diferente dos anteriores, o escritor
quebra com o classicismo de sua escritura, tentando, como ele
mesmo afirmou, “captar na escrita não a forma, mas a emoção”,27
desfazendo propositalmente de tudo o que sabia fazer e fazia:
Vírgulas, travessões, em geral toda a parafernália
diacrítica, e também todo o material convencional de
apoio escritural romanesco, os calços dos advérbios, os
parafusos das conjunções, os andaimes marcadinhos da
marcação das personagens, peguei tudo e joguei para o
ar e no ar fiz desaparecer tudo, (...).28
Nesse romance, corrosivo e ao mesmo tempo lírico, a poesia
se instala para “segurar a barra dos parricidas”,29 filhos desnaturados
que resolvem matar os pais a fim de se verem livres destas “inúteis”
criaturas. Narrado em primeira pessoa, o narrador é um velho
que presencia tais acontecimentos do mais fundo de sua solidão.
Escrito quando o autor tanto refletia sobre a dor de envelhecer,
Na Relva da tua Lembrança apresenta-se como uma doce e trágica
alegoria dos destinos humanos. Nele, os vestígios do escritor são
evidentes - cenas, palavras e concepções dialogam com obras
anteriores, tornando-se nítida a sua voz, que já é outra e a mesma,
encenação que nos desestabiliza à medida em que nos promove o
encontro com o autor. O narrador inicia a história dizendo que o
que ali vai contar “pouco importa saber em que lugar se passou”,
e no segundo parágrafo, situa-se sentado numa pedra, “na beira
do rio” - já conhecida do leitor herbertiano - , pedra que virava
navio infâncias afora:
A pedra onde eu costumava me sentar ficava num desses
trechos de areia. Muitas vezes imaginava que ela era
um barco ancorado ali, e que eu era o comandante do
barco. Não estava mais em idade de imaginar coisas
111
assim, ter esses pensamentos de menino. Mas o menino
que a gente um dia foi não há meio de largar a gente:
fica escondido na memória da gente, fundo e escuro
poço sem fundo, onde ele, o menino que a gente foi,
de vez em quando vem à tona e fica boiando, como
uma flor.30
No livro infanto-juvenil do autor, O menino perdido (1984),
num capítulo intitulado “O castelo que virava navio”, lá está a
mesma pedra:
Fui direto ao areal, onde havia uma pedra muito grande,
uma pedra enorme, que era o castelo de brinquedo do
menino. (...)
Às vezes, a pedra deixava de ser um castelo. E virava
um navio, que ia navegando no mar de areia, rompendo
as ondas de areia. Ao leme ia o menino, comandante
que fazia o seu navio apitar, apitando com um canudo
de mamão. Sim. O menino costumava estar ali, no seu
castelo ou no seu navio. Mas agora não estava. Tinha
de procurá-lo em outro lugar. (...).31
Não obstante a localização afetiva, nostálgica, vimos, até
aqui, que a preocupação localista inicial do escritor torna-se, com
o decorrer de sua escritura, diluída, tendo Andaraí, terra natal,
explicitamente ambientada nos dois primeiros romances, Cascalho
e Além dos Marimbus, se transformado, a partir daí, simbolicamente,
no “mundo todo”, adquirindo um teor universalizante. Herberto
Sales deixou sua terra e fixou residência no Rio de Janeiro, em
decorrência do sucesso que envolveu o primeiro romance. Foi
assim que outros ambientes surgiram, seguindo a trajetória do
escritor. As origens telúricas cederam lugar às preocupações com
o homem citadino, emergindo a crítica às instituições sociais
na figura caricata do ser robotizado e desumano, possuidor da
linguagem uniforme. Porém, como já dissemos, detalhes de suas
origens permanecem diluídos no cerne de sua literatura. Sentimos
o quanto a terra continua presente em si, pois que faz parte de
sua história pessoal, juntamente com o seu passado, sua família,
112
seus mortos. Entretanto, estava faltando um regresso explícito a
Andaraí - regresso intenso a si mesmo -, ocorrido no nono romance
do escritor, Rio dos Morcegos (1993).
Tradução féerico-literária de uma cidade (Andaraí em tupiguarani significa, etimologicamente, rio dos morcegos), esse romance
é uma busca proustiana do autor nos lugares que sonhou e viveu
as duas fases mais intensas: a infância e a juventude. Andaraí
surge feericamente iluminada pelas dolorosas perguntas de um
adolescente que se debruça o tempo todo sobre si mesmo e o
mundo, entranhado nas complexas perseguições de um sentido
para a vida. Fatos emergem de uma neblina poética e, de quando
em quando, o diálogo com Cascalho e outros livros, assim como
com os três volumes de memórias do escritor, se avultam. Porém,
aqui o que importa é outra coisa: não mais a denúncia social de
Cascalho, pois que, em Rio dos Morcegos, Andaraí surge disfarçada
naquele desdobramento sutil e invisível existente entre as fendas de
uma cidade e o homem, e que envolve as nuanças psicológicas de
deciframento do eu. Percebemos, assim, nesse romance, como uma
biografia autoral se encena, se ficcionaliza, e os mistérios da vida e
da morte são pontos que nos empurram à busca dos enigmáticos
abismos de uma individualidade.
... Pedras do meu caminho. Por toda parte, inumeráveis
e gerais, as pedras que me viram nascer, com os seus
opacos olhos de pedra. O horizonte montanhoso,
pedras bloqueando meus passos. A serra com os seus
morros altos era um desafio, um enigma: muralha de
rumos e ventos. Aonde ir? Que havia além da serra,
minha prisão de pedras? Grandes pedras mudas me
espreitavam: os gigantes de pedras dos meus medos
infantis, das minhas incertezas de adolescentes. Pedras.
(...)32
Essa busca de si prossegue ainda no penúltimo romance,
Rebanho do Ódio (1995) livro-exorcismo, como o próprio autor
proclama nas primeiras páginas, à maneira de uma indicação inicial
113
para o leitor:
A quem me vai ler, quero aqui lembrar que uma vida
longa (muito longa) faz sofrer a gente: os amigos vão
morrendo, os afetos apodrecendo. De repente, só
resta mesmo de cada um de nós a gente: nós sozinhos,
somente nós, cercados de mágoas que magoam a gente.
E então é preciso exorcizá-las, se queremos entrar de
coração aliviado e limpo na eternidade.
A história se desenrola em São Pedro da Aldeia-(RJ) e se
debruça sobre as complexas relações familiares, quando nelas
estão envolvidas questões de fortuna e herança, ódio e mágoa.
Entretanto, o livro poderia estar muito bem situado em Andaraí,
ou, como disse o autor, em qualquer lugar, desde que nesse lugar
o ódio assuma “uma forma diferente”, “insinuando semelhança
(ou identidade) entre uma impressão presente e uma lembrança
aparentemente morta do passado”.33 Percebemos que os fatos
narrados, nesse romance, são pura ficção, mas os sentimentos que
perpassam pelas páginas são fortes o suficiente para revelarem
os desvãos biográficos de uma alma,34 as tristezas de um homem
em perplexidade com a velhice, com o tempo e com as pessoas
se desmascarando sem ilusões.35 Ficam, no ar e nas entrelinhas,
a ressoar as palavras acima do escritor, confidenciando ao leitor
sentimentos de sua história pessoal, de seu passado mais íntimo.
Com A Prostituta, em 1996, Herberto Sales se despede,
deliberadamente, do romance. Esse livro é a história da prostituta
Maria Corumba, remanescente criada pelo escritor, da família de Os
Corumbas, em homenagem ao romance de Amando Fontes que muito
o impressionou, quando de sua leitura em Andaraí. Na verdade, a
partir da criação do personagem, diz Herberto estar, muito mais,
voltando à juventude, quando foi estudar em Salvador e ligou-se à
boemia, em detrimento dos estudos. Nessa fase tão intensa, tinha
o autor uma forte ligação com as prostitutas, e, resolvendo falar
dessa fase, não poderia deixar de lado aquelas que ele denominou
“irmãzinhas” e que fizeram parte de sua mocidade:
114
A Prostituta sempre foi o livro que quis escrever.
Quando era estudante, tive uma vivência enorme com
prostitutas. Eu saía da pensão na quinta-feira e ficava
dois, três dias na casa de uma delas. Era viciante, uma
coisa extraordinária. Elas eram gente boa, maravilhosa,
simples. (...) Eu queria falar da minha experiência
como estudante e falar sobre mim sem elas não seria
interessante.(...).36
Aliando vida e obra, mais uma vez, com esse livro Herberto
Sales se despede do romance. Nas orelhas de A Prostituta, no textoconfissão “O romancista, para as despedidas”, o autor afirma ser
esse livro, “de modo absoluto”, “a liberação de lembranças obscuras
de sua vida, nas saudades machadeanas de si mesmo, numa hora em
que em si mesmo se recolhe, invocando a misericórdia de Deus”.
Nessa confissão, o autor se despede, deixando para nós, leitores,
as interrogações do que foi e do que é uma vida, nas entrelinhas
ficcionais do que aconteceu ou poderia ter acontecido - literatura
como tentativa de fixar-se enquanto individualidade, somada ao
enigmático sortilégio de poder também ser outro a fim de negar a
desintegração do ser, a morte. Não é à toa que o autor, nas páginas
iniciais desse último romance, confessa a sua múltipla condição
humana, situada entre as diversas “verdades da alma”:
Sabe-se que cada homem é um ser múltiplo, e cada
estado de alma seu é uma realidade à parte, sem
perder no conjunto a sua totalidade anímica. Ou a sua
unicidade intrínseca. Eu sou o mesmo romancista (a
mesma alma) em cada um dos entre si tão diferentes
romances que escrevi.
NOTAS
115
SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias,
p. 491.
1
VILMA, Ângela. A tessitura humana da palavra – Herberto Sales,
Contista.
2
3
SALES, Herberto. Op. Cit., p. 430.
SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim, com cada um de
mim, p. 307.
4
5
6
Idem, p. 198.
Idem, p. 274.
ATHAYDE, Austregésilo de. Herberto Sales, perfil de um
homem. In: Subsidiário 3, p. 116.
7
SALES, Herberto. Subsidiário 2 - Andanças por umas lembranças
., p. 218.
8
SEIXAS, Cid. O riso da metralhadora. Do Cascalho ao Diamante.
In: Triste Bahia, Oh QuãoDessemelhante, p. 117.
9
SALES, Herberto. Subsidiário - Confissões, memórias e histórias
p. 67. Assim definiu o “bom escritor”: “O bom escritor é o que
nos seus livros nos leva a um reencontro com o que temos em nós
de mais profundo e verdadeiro”.
10
11
SALES, Herberto. Subsidiário 2, p. 139.
12
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário.
13
PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor, p. 72.
116
14
BARTHES, Roland. O prazer do texto, p. 38.
SALES, Herberto. O depoimento. In: LEAL, Eneida. Eu,
Herberto Sales, pp. 11-14
15
16
SALES, Herberto. Cascalho, p. 116.
17
Idem, p. 292.
SALES, Herberto. Além dos marimbus, p. 8.
SALES, Herberto. Subsidiário - confissões, memórias e histórias,
p. 111.
20
SALES, Herberto. Dados biográficos do finado Marcelino, p.
7.
18
19
21
VILMA, Ângela. Op. Cit.
SALES, Herberto. Subsidiário – Confissões, memórias e
histórias, p. 391.
22
23
Idem, p. 391.
24
SALES, Herberto. Os pareceres do tempo, p. 365-366.
SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e histórias,
p. 457.
25
In: SALES, Herberto. Subsidiário 3 - Eu de mim com cada um
de mim.
26
SALES, Herberto. Subsidiário 2, Andanças por umas lembranças,
p. 121.
27
28
Idem.
117
29
Idem, p. 118.
30
SALES, Herberto. Na relva da tua lembrança, p. 7-8.
31
SALES, Herberto. O menino perdido, p. 11-13.
32
SALES, Herberto. Rio dos morcegos, p. 27.
SALES, Herberto. Rebanho do ódio. Palavras do autor impressas
nas páginas iniciais do romance, à maneira de pórtico.
34
GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales: O ódio sob a ótica
amarga. In: A Tarde Cultural, 30-09-95.
33
SALES, Herberto. Subsidiário – confissões, memórias e
histórias, p. 290. Afirmou desconsoladamente o autor: “(...) Estou
envelhecendo. E a velhice é feita de desilusões. De desilusões
filosóficas, que levam à descoberta da verdade humana. Ou da
verdade sem ilusões.”
35
SALES, Herberto. Entrevista concedida a Marielson Carvalho.
A Tarde Cultural. Salvador, 20-09-1997.
36
REFERÊNCIAS
BARTHES, Roland. O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva,
1999.
CARVALHO, Marielson. Herberto Sales (entrevista). In: A Tarde
Cultural. Salvador, 20-09-1997.
GUIMARÃES, Márcia. Herberto Sales – O ódio sob a ótica
amarga. Sobre as salinas do litoral fluminense, uma história de
herança, intriga e solidão. In: A Tarde Cultural. Salvador, 30-09-
118
1995.
ISER, Wolfgang. O fictício e o imaginário. Perspectivas de uma
antropologia literária. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1996.
PIGLIA, Ricardo. O laboratório do escritor. São Paulo: Iluminuras,
1994.
SALES, Herberto. Além dos marimbus. São Paulo: Círculo do
Livro, s/d.
______. Cascalho. São Paulo: Círculo do Livro, s/d.
______. Dados biográficos do finado Marcelino. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1974.
______. Eu, Herberto Sales – Entrevista concedida a Eneida Leal.
Rio de Janeiro: Cátedra, 1978.
______. Na relva da tua lembrança. Rio de Janeiro: Rocco,
1988.
______. O menino perdido. São Paulo: Cia Editora Nacional,
1984.
______. Os pareceres do tempo (Edição revista pelo autor). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997.
______. Rebanho do Ódio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1995.
119
Modernismo: ética x estética
Maria Tereza Carneiro Lemos*
Resumo: A partir da avaliação do movimento modernista feita
por Mario de Andrade e Oswald de Andrade nas conferências
“Movimento modernista” e “O caminho percorrido”, na década
de 40, busco uma compreensão da questão ética que, segundo
os autores, estava ausente na proposta modernista tornando o
movimento “gravemente precário”. O desinteresse pelos problemas
sociais e políticos de sua geração gerou um “conformismo legítimo”,
nas palavras de Mario de Andrade, e acabou por criar, nos seus
discursos, um confronto entre o valor estético e ético na arte.
Palavras-chave: Modernismo, Ética, Estética.
Abstract: From the analysis of modernism made by Mario
de Andrade and Oswald de Andrade on the lectures “Movimento
modernista” and “O caminho percorrido”, given in the 40’s, I look
for an understanding of the ethical question which, according
to the authors, was missing in the modernist proposal, turning
the movement into a “seriously precarious” one. According
to Mario de Andrade, the lack of attention given to social and
political problems of his generation created, in his own words, a
“legitimate resignation” and ended up provoking, in his speeches,
a confrontation between the aesthetical and ethical values in the
Arts.
Key words: Modernism, Ethics, Esthetics.
*Doutoranda em Literatura Brasileira – PUC-RJ
121
A década de 40 foi bastante significativa na avaliação do
movimento modernista, principalmente no que se refere ao
testemunho deixado pelos dois grandes expoentes do movimento:
Mário de Andrade, na conferência o “Movimento modernista”
proferida no Itamarati, em 1942, e Oswald de Andrade, na
conferência “O caminho percorrido” proferida em Belo Horizonte,
em 1944. Ambos, distantes 20 anos da revolução da qual foram
os grandes protagonistas, sentiram-se impelidos a deixar para
a posteridade os seus testamentos intelectuais. As conferências
acabaram se tornando, também, uma reavaliação confessional dos
dois autores, considerando-se que cada um abordava de forma bem
diversa e pessoal seu caminho percorrido.
Gostaríamos de expor aqui, não exatamente uma análise
comparativa entre as duas conferências, nem tampouco nos ater
a uma análise pessoal, mas ressaltar um ponto convergente que
curiosamente surge no discurso dos dois autores: a questão ética.
Oswald de Andrade, depois de ter gradualmente perdido
espaço junto à intelectualidade brasileira, usou parte do seu discurso
para defender-se do ostracismo e de alguns desentendimentos
que surgiram com o tempo, acabando por imprimir à sua fala
egocentrismo e ressentimento, valorizando seus feitos e sua
mágoa.
Se alguma coisa eu trouxe das minhas viagens à
Europa dentre duas guerras, foi o Brasil mesmo. O
primitivismo nativo era o nosso único achado de
22 (...). A Antropofagia foi na primeira década do
modernismo, o ápice ideológico, o primeiro contato
com nossa realidade política porque dividiu e orientou
no sentido do futuro. 1
O discurso é marcado pela semântica da guerra e do combate,
em que o autor ataca, com seu conhecido deboche, os seus inimigos
que surgem contra os seus “aliados”.
Quem havia de publicar essa carta senão a ratazana
122
em molho-pardo que é o Sr. Cassiano Ricardo?
Nesse documento vem à tona o estado de sítio que
proclamaram contra mim os amigos da véspera
modernista de 22. Pretendia-se que eu fosse esmagado
pelo silêncio, talvez por ter lançado Mário de Andrade
e prefaciado o primeiro livro de Antônio de Alcântara
Machado. (...) Tudo isso teria um vago interesse
anedótico se não viesse elucidar as atitudes políticas em
que se bipartiu o grupo oriundo da Semana. Comigo
ficaram Raul Bopp, Oswaldo Costa, Jaime Adour da
Câmara, Geraldo Ferraz e Clóvis Gusmão. 2
Este espírito de guerra, muito ao gosto futurista, reflete o
próprio espírito destruidor que dominou o modernismo paulista
em que Oswald parecia ainda estar imerso. Atitude que destoa
essencialmente da de Mário de Andrade que, numa confissão
marcada pela humildade e coragem, minimizava seus atos e o
próprio movimento do qual tornou-se o grande ícone, apresentando
as contradições do afã destruidor modernista: “o movimento
modernista foi essencialmente destruidor. Até destruidor de nós
mesmos” (p. 240). Livre de autodefesas e ressentimentos, Mário de
Andrade reavalia o movimento, expondo questões que possibilitam
uma nova leitura do modernismo paulista.
Numa longa análise do passado com os olhos do presente,
Mário confessa que, na verdade, eles, modernistas de 22, tinham
“apenas servido de altifalantes de uma força universal e nacional
muito mais complexa que [eles]”. E não deixa de mostrar um
descompasso entre as atitudes do seu grupo e a realidade brasileira,
desmistificando os heróis do movimento:
Todo esse tempo destruidor do movimento modernista
foi pra nós tempo de festa, de cultivo imoderado do
prazer. E se tamanha festança diminuiu por certo nossa
capacidade de produção e serenidade criadora, ninguém
pode imaginar como nos divertimos. 3
123
No entanto, reconhece a indiscutível importância do
movimento que, mesmo com todo o cultivo imoderado do
prazer, e distante da “dor” real do país, não foi o fator das
mudanças políticas e sociais posteriores a ele, mas acabou sendo
um “preparador” dessas mudanças, e um “criador de um estado
de espírito revolucionário e de um sentimento de arrebatação”. E
defende o papel da sua geração como preparadora do espírito de
liberdade que dominou a geração de 30.
Resume em três princípios básicos, a nova realidade que o
modernismo criou: o direito permanente à pesquisa estética; a
atualização da inteligência artística brasileira; e a estabilização de
uma consciência artística nacional. O primeiro princípio representa
a liberdade de experimentação conquistada pelos artistas brasileiros
que, à exceção dos românticos, “jogaram sempre colonialmente no
certo. Repetindo e afeiçoando estéticas já consagradas, [eliminando]
assim o direito de pesquisa, e conseqüentemente de atualidade.”
(p. 243).
O espírito destruidor veio da Europa (“é muito mais exato
imaginar que o estado de guerra da Europa tivesse preparado em
nós um espírito de guerra, eminentemente destruidor” p. 235)
como veio da Europa “o espírito modernista e as suas modas” (p.
236), mas Mário defende-se: chamá-los de “antinacionalistas” ou
“antitradicionalistas europeizados” era “falta de sutileza crítica”.
E defende São Paulo com exemplos da tradição regionalista do
estado, como a arquitetura e o urbanismo neocolonial nascidos
também lá, até concluir “Desta ética estávamos impregnados”(p.
235). A ética nacionalista.
Paralelamente ao afã destruidor que dominava esses artistas, o
nacionalismo representou a grande construção modernista, e está aí
a atitude ética: a construção de símbolos, imagens e instrumentos
que representam valores (nacionais) e rejeitam antivalores
(estrangeiros). Nas palavras de Alfredo Bosi:
A translação do sentido da esfera ética para a estética é
possível, e já deu resultados notáveis, quando o narrador
se põe a explorar uma força catalisadora da vida em
124
sociedade: os seus valores. À força desse ímã não podem
subtrair-se os escritores enquanto fazem parte do tecido
vivo de qualquer cultura. 4
A estética nacionalista junto à pesquisa da “língua brasileira”,
que confrontava os fortes valores nacionais aos fracos antivalores
estrangeiros, eliminava o academismo reinante tanto no tema
quanto na linguagem das artes naturalistas dominantes, e ao
mesmo tempo procurava construir uma outra realidade através
das artes. No entanto, Mário não vê no nacionalismo modernista,
a “verdadeira consciência da terra”. Este espírito atualizado que
se radicava na terra brasileira, “não se deu sem alguma patriotice
e muita falsificação ...” gerando um “conformismo legítimo”, e
observa:
o que caracteriza essa radicação na terra, num grupo
numeroso de gente modernista, de uma assustadora
adaptabilidade política, palradores de definições
nacionais, sociólogos otimistas, o que os caracteriza é
um conformismo legítimo, disfarçado e mal disfarçado
nos melhores, mas na verdade cheio de uma cínica
satisfação. A radicação na terra, gritada em doutrinas
e manifestos, não passava de um conformismo
acomodatício. 5
Completa que “a verdadeira consciência da terra levava
fatalmente ao não- conformismo e ao protesto” (p. 244). O
modernismo paulista no seu afã nacionalista e festivo, acabou se
desviando desta “verdadeira consciência”, quando representou
o Brasil de forma simbólica e otimista. Desmistifica também
a construção da “língua brasileira” que, por falta de critérios
científicos adequados, acabou reduzida a manifestações individuais,
aderindo-se também a um certo espírito festivo. Mário conclui:
“era ainda o mesmo caso dos românticos: não se tratava duma
superação da lei portuga, mas duma ignorância dela.”6
Inserido agora no contexto mundialmente conturbado da
2º guerra, em que o engajamento tornava-se uma questão ética,
125
Mário acabava muitas vezes reduzindo o seu movimento a um
conformismo infantil. Na verdade, a rígida autocobrança que faz
é em relação ao engajamento social e político, ou o interesse pelo
humano, que o seu movimento não teve. A estética se faz através
da arte que é uma expressão do social:
Mas a inteligência estética se manifesta por intermédio
de uma expressão interessada da sociedade, que é a arte.
Esta é que tem uma função humana, imediatista e maior
que a criação hedonística da beleza. E dentro dessa
funcionalidade humana da arte é que o assunto adquire
um valor primordial e representa uma mensagem
imprescindível. Ora, como atualização da inteligência
artística é que o movimento modernista representou
papel contraditório e muitas vezes gravemente precário.
7
O segundo princípio, da “atualização da inteligência artística
brasileira”, por apresentar contradições profundas em relação às
necessidades sociais e políticas, parece ser, segundo Mário, a grande
falha do movimento. Diferente da “liberdade de pesquisa estética”
que lida com a forma, a técnica e a beleza na arte, a “atualização da
inteligência” lida com a dimensão mais ampla da arte, ou seja, com
a “força interessa da vida”. E conclui a sua conferência:
Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos
esquecemos de mudar: a atitude interessada diante
da vida contemporânea. (...) uma coisa não ajudamos
verdadeiramente, duma coisa não participamos: o
amilhoramento político-social do homem. E esta é a
essência mesma da nossa idade”8
E cobra da arte sua missão ética:
Sei que é impossível ao homem, nem ele deve abandonar
os valores eternos, amor, amizade, Deus, a natureza.
Quero exatamente dizer que numa idade humana como
a que vivemos, cuidar desses valores apenas e se refugiar
126
neles em livros de ficção e mesmo de técnica, é um
abstencionismo desonesto e desonroso como qualquer
outro (...) De resto, a forma política da sociedade é um
valor eterno também.9
E aponta o movimento de 30 como aquele que deixa de lado
o caráter destruidor e assume uma construção de “uma fase mais
calma, mais modesta e quotidiana, mais proletária” (p. 242). Agora,
em 1942, o caráter construtivo da arte tornava-se uma questão
premente. O espírito destruidor das vanguardas parecia já se
desgastar e a arte deveria, mais do que nunca, realizar sua função
social e política.
O embate, ao final da conferência, ganha um caráter de
conclamação revolucionária: “Façam ou se recusem a fazer arte,
ciências, ofícios. Mas não fiquem apenas nisto, espiões da vida,
camuflados em técnicos de vida, espiando a multidão passar.
Marchem com as multidões.”(p. 255). O que se assemelha às
palavras de Oswald de Andrade, em Belo Horizonte, que de
maneira ardentemente revolucionária, conclama os intelectuais
como os guerreiros da sociedade:
Com a guerra, chegamos aos dias presentes. E os
intelectuais respondem a um inquérito. Se a sua missão é
participar dos acontecimentos. Como não? Que será de
nós, que somos as vozes da sociedade em transformação,
portanto os seus juízes e guias, se deixarmos que outras
forças influam e embaracem a marcha humana que
começa? O inimigo está vivo e ainda age (...) O papel
do intelectual e do artista é tão importante hoje como
o do guerreiro de primeira linha.”10
Da mesma forma, conclama os mineiros a se unirem a seus
irmãos paulistas no combate heróico em prol da utopia e estende
o seu chamado a todos os irmãos brasileiros:
Tomai lugar em vossos tanques, em vossos aviões,
intelectuais de Minas ! Trocai a serenata pela
127
metralhadora ! Parti em espírito com os soldados que
vão deixar suas vidas na carnificina que se trava por
um mundo melhor. (...) Vinde com vossos irmãos de
São Paulo, com vossos, com vossos irmãos do Norte
e do Sul, fazer com que se cumpram os destinos do
Brasil ! 11
Os dois discursos terminam conclamando os homens
(intelectuais) à revolução. Enquanto Mário, em 1942, julgava o
passado de forma às vezes cruel, cobrando uma atitude que não
foi possível realizar 20 anos antes, Oswald, imbuído da ideologia
marxista, apontava para um futuro revolucionário.
A primeira literatura modernista, sendo uma literatura
de resistência aos valores artísticos vigentes era implicitamente
resistente aos valores ideológicos que determinavam esta arte. Mas
este fenômeno de resistência se fazia como um processo inerente
à escrita e não como tema dessa escrita. É compreensível que
Mário, em 1942, quando analisava o primeiro modernismo, tivesse
percebido que, depois da literatura de 30 a sua geração tornava-se
anacrônica política e socialmente. Os valores que nortearam a
arte desta primeira geração estavam sem dúvida mais ligados ao
fenômeno estético do que ao fenômeno ético da resistência.
Notas bibliográficas
ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos
da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 96, s/d.
1
ANDRADE, Oswald de. O caminho percorrido. In.: Ponta de
lança. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, p. 96, 1972.
2
ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos
da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 241 s/d.
3
4
BOSI, Alfredo. Literatura e resistência. São Paulo: Companhia
128
das Letras, p. 120, 2002.
ANDRADE, Mario de. O movimento modernista. In.: Aspectos
da literatura brasileira. São Paulo: Martins, p. 243, s/d.
5
6
Idem, p. 245.
7
Idem, p. 252.
8
Idem, p. 252.
9
Idem, pp. 252, 255.
129
O ESBOÇO HISTÓRICO-ETNOGRÁFICOLINGÜÍSTICO DE UM POVO INDÍGENA
Maria do Socorro Pessoa*
RESUMO: O povo indígena Suruí Paíter reside hoje, em sua
maioria, no Distrito do Riozinho, no Município de Cacoal, no
Estado de Rondônia, Brasil. Esse povo sofreu todo o processo
de invasão de suas terras por colonos imigrantes, especialmente
quando da construção da BR 364, rodovia que liga o Estado de Mato
Grosso a Porto Velho. O contato com os imigrantes provocou
alterações profundas na vida desse povo nos mais diversos aspectos:
cultura, religião e instalação da língua portuguesa no cotidiano de
suas vidas. Este esboço histórico-etnográfico-lingüístico descreve
alguns aspectos dessa “invasão” na vida dos Suruí Paíter do
Riozinho, no Estado de Rondônia.
PALAVRAS-CHAVE: Suruí Paíter, Percurso Sociolingüístico,
Lingüística.
ABSTRACT: Suruí Paíter indian people live today in Riozinho
District, nearby Cacoal, in Rondônia in Brasil. This Indian people
suffered all the process of invasion in their area by immigrant
people, specially when BR-364 was built.This BR-364 conect
Mato Grosso State to Porto Velho. The contact with immigrant
people made several changes in Suruí Paíter life like: the culture,
religion and the use of Portuguese language in their life. This
historic-etnographic-linguistic text describe some aspects about
the “invasion” in Suruí Paiter people from Riozinho District, in
Rondônia state.
KEY WORDS: Suruí Paíter, Sociolinguistic Way, Linguistic.
*Profª. Drª da Universidade Federal de Rondônia - UNIR Campus de
131
Vilhena
1 INTRODUÇÃO
Os indígenas residentes em Rondônia, desde os primeiros
contatos com os imigrantes vindos de todas as partes do Brasil para a
região, assistiram a surpreendentes mudanças. Entre essas mudanças
a mais marcante foi a construção da Rodovia Cuiabá-Porto Velho,
hoje denominada BR-364. Com a conclusão da BR-364 abriu-se o
caminho para a imigração de pessoas que buscavam o “Eldorado
Rondoniense”, propagado em toda a mídia nacional pelo Governo
Brasileiro. Em conseqüência, a população de Rondônia passou de
85.504 pessoas em 1960, para 111.064 em 1970 e 490.153 em 1980
(IBGE, Censo Demográfico, 1960 a 1981). O maior crescimento
ocorreu, porém, na década de 1970, o que fez com que as cidades
ao longo da BR-364 crescessem assustadoramente, dando à região
motivos mais que suficientes para conflitos e lutas. Percebe-se,
assim, que era inevitável que, com tal crescimento, a luta pela
terra ocorresse desenfreadamente, iniciando-se, infelizmente, a
ocupação das áreas indígenas, cujas terras foram sendo comprimidas
e ameaçadas, num cerco cada vez mais fechado de violência, lutas
e conflitos. Como se não bastasse toda a usurpação territorial e
a conseqüente eliminação física de milhares de indígenas, os nãoíndios desenvolveram e utilizaram armas mais sutis de dominação
e massacre, nos mais diversos domínios dos povos indígenas,
inclusive no âmbito da cultura. Não foi diferente com o povo
Suruí Paíter, nosso objeto de pesquisa.
Os Suruí, residentes no Distrito do Riozinho, têm como
língua materna a Língua Suruí, do grupo de línguas Tupi-Mondé,
usada na vida tradicional da comunidade.A bibliografia sobre esta
nação indígena é praticamente inexistente, mas DAL POZ (1991,
p. 25) nos fornece dados relevantes quando explicita:
... a bibliografia sobre os Suruí é ainda escassa. Os
missionários W. C. Bontkes, do Summer Institute of
Linguistic, durante vários anos estudaram sua língua
(Bontkes 1978, apud Moore 1984,p. 8), e obtiveram
132
alguns dados sobre organização social e parentesco
(Bontkes 1974). Os missionários Lori Altmann
e Roberto Zwetsch (1980), da IECLB, traçaram um
histórico dos contatos e um relato sumário de suas
observações ao longo de um ano de permanência entre
eles. Betty Mindlin, que os pesquisou entre 1979 e 1983,
apresentou uma descrição despretenciosa do modo de
vida Suruí, na qual destacou o sistema de nominação e
a instituição do ritual de metades, que divide o grupo
entre “mato” e “aldeia” a cada estação seca (MINDLIN,
1985). Quanto à mitologia, incluiu alguns fragmentos
míticos. Dados escatológicos esta autora havia
publicado anteriormente (MINDLIN, 1982). Os Suruí
foram ainda estudados por Carlos Coimbra (1985),
interessado em ecologia humana, e por Leda Leonel
(1984), quanto à arquitetura e meio-ambiente.
Segundo o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), em
documento de 1998, o primeiro contato do povo Suruí Paíter
com a sociedade envolvente deu-se em junho de 1969, através
da FUNAI, no acampamento Sete de Setembro, fundado no
dia 07 de Setembro de 1968 (daí a origem do nome de uma das
aldeias do povo Suruí Paíter). O contato foi feito pelo sertanista
Apoema Meirelles e seu pai, ambos pertencentes à FUNAI. O
lugar onde ocorreu o primeiro contato é chamado, pelos Suruí
Paíter de “Nambekó-dabadaki-ba”, que significa “o lugar onde
os facões foram pendurados”, numa referência aos presentes
que Apoema Meirelles e seu pai ali deixaram para os indígenas:
machados, facões, panelas, facas e canivetes. Em 1969 os Suruí
Paíter eram, aproximadamente, 4.000 índios. De 1970 a 1974, sua
população reduziu-se a aproximadamente 600 pessoas: muitos
morreram por causa de sarampo, gripe e tuberculose. Suas terras
foram constantemente invadidas e essa questão só foi resolvida
definitivamente em 1981, com a retirada dos posseiros da área
Sete de Setembro (FUNAI, 2002). Atualmente, os Suruí Paíter
formam um grupo de cerca de 740 pessoas que habita nas fronteiras
dos Estados de Rondônia e Mato Grosso, no parque Aripuanã,
133
com extensão de 220.000 hectares e onde estão instalados dois
postos da FUNAI: o PIN Sete de Setembro e o PIN Linha 14. A
área original do parque Aripuanã era, na verdade, um território
contínuo que englobava os vários grupos Tupi-Mondé que formam
um grande complexo cultural (DAL POZ, 1991). Suas terras, por
estarem muito próximas da BR-364, estão cercadas por colonos,
e, por isso, os Suruí Paíter sempre foram muito vulneráveis aos
efeitos da colonização. Na época do contato, a população Suruí
Paíter foi calculada em 600 pessoas, por Jean Chiappino (1971).
Nos anos 70, houve muitas mortes causadas por doenças trazidas
pelo homem branco, reduzindo-se a população a 272 pessoas. Dos
anos 80 até os nossos dias, passou a haver um grande crescimento
populacional, e hoje os Suruí Paíter somam cerca de 750 pessoas
entre homens, mulheres, crianças, jovens e adultos. Nos anos 80,
devido às invasões de suas aldeias por colonos, o povo Suruí se
dividiu por grupos familiares, ficando confinado em estradas da
área indígena nas Linhas 8, 9, 10, 11, 12 e 14. Na década de 1990,
iniciaram o processo de migração para o Distrito do Riozinho à
busca de melhorias de vida para seus grupos, especialmente junto
ao Posto da FUNAI, com sede ali estabelecida.
1.1 A ALDEIA E O PERÍODO DO PRÉ-CONTATO
Na aldeia o centro da vida era a casa grande, a casa mais
importante do Nambekô-dabada-quibá-coco, como é chamado
pelos Paíter o conjunto de malocas. Na casa grande, a família vivia
e se relacionava como família nuclear – pai, mãe e filhos. Só nos
momentos mais importantes, quando faziam uma grande caça,
todos se juntavam num ritual de partilha. Os homens caçavam
e providenciavam a carne e as mulheres podiam acompanhá-los
nessas tarefas. As outras fontes de alimentação vinham da floresta,
como a castanha, o mel, os frutos. A tarefa de pescar era de todos:
homens, mulheres e crianças. Quando necessitavam prevenir
a fartura e a produção, invocavam os espíritos – Hô-êi~-ê-tê
– pois, para os Suruí Paíter, a invocação dos espíritos era sempre
134
necessária. Antes do contato com a sociedade envolvente, o povo
Suruí Paíter utilizava-se apenas da sua língua, o Suruí, em todo
tipo de comunicação com seus pares.
1.2 DO CONTATO À ATUALIDADE
Com a criação em 1907 da Comissão de Linhas Telegráficas e
Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas (a conhecida Comissão
Rondon), por ato do presidente da República Afonso Pena, planejase a ocupação sistemática e permanente do noroeste do então
imenso Estado de Mato Grosso: além de estender o telégrafo, abrir
estradas estratégicas, executar trabalhos geográficos, botânicos e
mineralógicos, a Comissão Rondon encarregou-se de “pacificar”
as populações indígenas em seu percurso. Os primeiros contatos,
nem sempre pacíficos, entre os índios que aí viviam e elementos
da sociedade nacional, deram-se em torno das estações telegráficas
de Vilhena, José Bonifácio, Barão de Melgaço e Pimenta Bueno,
inauguradas pela Comissão Rondon entre os anos de 1912 e 1915
(CIMI, 1998), quando toda a linha de Cuiabá a Santo Antônio
do Madeira entrou em funcionamento. Relatos circunstanciados,
traçando os diversos surtos pelos quais se deu a colonização de
Rondônia e adjacências, e caracterizando os danos causados à
população indígena, podem ser encontrados em Meirelles (1984) e
Brunelli (1985). Certo é que, apesar de tudo, subsistiu nessa região
um número considerável de grupos indígenas, entre eles os Suruí
Paíter. No início do contato, os Suruí Paíter foram, em várias
situações, confundidos com os Cinta-Larga. DAL POZ (1991,
pp.92, 93).
A partir do primeiro contato do povo Suruí Paiter com os nãoíndios, o intérprete da FUNAI foi de fundamental importância para
suas vidas. Era esse intérprete que proporcionava a compreensão
da linguagem que os Suruí Paíter careciam ter para suprir as
necessidades de comunicação com a sociedade envolvente ou para
a comunicação com a própria FUNAI. Com o passar do tempo,
já não bastava a comunicação feita pelo intérprete. O povo Suruí
Paíter sentia necessidade de aprender a língua daquele intérprete
135
para compreender o novo mundo que se estabelecia em suas
terras e à sua volta. Nesse sentido, podemos afirmar que, a partir
das relações com os intérpretes da FUNAI, a língua portuguesa
foi adentrando à comunidade da nação indígena Suruí Paíter. O
contato com o homem branco fez com que o povo Suruí Paíter
passasse a ter alterados, não só os seus costumes tradicionais, mas
também a própria maneira de convivência com seus pares. Ter os
costumes tradicionais alterados parece constituir-se um processo
“normal” para os olhos da sociedade em nosso país, especialmente
quando tais alterações referem-se aos grupos de minorias, muito
mais expostos a processos de “devastação” e, ainda, especialmente,
se tais minorias são indígenas. Sabemos que o “contato” do indígena
com o homem branco sempre foi, historicamente, prejudicial ao
primeiro. Heckenberger (2001, p.77) nos confirma como isso
ocorreu na região Amazônica:
Na Amazônia, vários povos nativos, muitos dos
quais radicalmente diferentes dos que conhecemos
hoje, foram dizimados nas primeiras situações de
contato (Porro, 1996; Roosevelt. 1991;
Whitehead, 1994). Fatores como escravidão, ações
punitivas, deslocamentos forçados, além de etnocídio
explícito, provocaram a dissolução ou fuga de muitos
povos amazônicos logo após os primeiros contatos
(Kieman, 1954). Entretanto, como em outros lugares
da América, os efeitos provocados pela vanguarda
da expansão européia – personificada pelos quatro
cavaleiros do apocalipse: Praga, Fome, Guerra e Morte
– ultrapassaram largamente o contato propriamente
dito com os europeus. Mais do que a interação direta,
foram as forças indiretas, invisíveis, do “contato”
europeu que moldaram a história do contato para a
maior parte dos povos amazônicos.
Se não há novidades quanto ao fato de modificações drásticas
na vida indígena dos Suruí Paíter, quando comparados com
outras nações indígenas que passaram pelo mesmo processo de
136
envolvimento com a nova sociedade, há, nesta comunidade, um
motivo que se tornou relevante para a Lingüística e, em especial,
para o trabalho sociolingüístico: os Suruí Paíter “praticam”,
publicamente, um discurso de super-valorização de sua língua,
de sua cultura e de sua condição de “ser índios”, mas, na verdade,
já há algum tempo exibem um conjunto de comportamentos e
práticas, entre eles o uso da língua portuguesa, muito próximos da
vida e das ações do homem branco, como detalhado em PESSOA,
(2003, p. 54).
Na década de 80, do século XX, os Suruí Paíter iniciaram suas
intermináveis viagens da aldeia para o asfalto e do asfalto para as
aldeias. Partindo das Linhas 8, 9, 10, 11, 12 e 14, eles passaram a
se encontrar no Distrito do Riozinho, permanecendo no Posto
da FUNAI por longos períodos de espera, aguardando médicos,
remédios, roupas, alimentos. No início iam nus, enfeitados
com seus ornamentos significativos para demonstrar situações
particulares. Desconsiderando essas ornamentações tradicionais,
os agentes da FUNAI foram providenciando roupas para que se
vestissem, tomassem banhos de chuveiro, usassem medicamentos
da medicina ocidental. Buscar recursos junto ao posto da FUNAI,
no Distrito do Riozinho, para continuarem saudáveis, foi o grande
motivo, ou senão o motivo inicial da peregrinação que os Paíter
iniciaram das aldeias para o Posto da FUNAI. Doenças como a
gripe, o sarampo e a tuberculose foram tão letais para os Suruí
Paíter que dizimaram muito mais da metade de sua população se
observarmos a população existente antes do contato com o homem
branco. Todos estão de acordo sobre as mudanças introduzidas
com o contato e sobre o fato de que antigamente existiam menos
doenças. O período dos primeiros contatos e as epidemias que
lhe seguiram é uma lembrança muito viva na memória dos Suruí
Paíter, que crêem que, mesmo se, atualmente, estas doenças não
têm mais os mesmos efeitos catastróficos de antes, sua saúde
foi irremediavelmente afetada pelo contato. Vemos, assim, que
os Suruí Paíter têm plena consciência de que as modificações
introduzidas pelo contato estão na origem de seus problemas de
137
saúde e de pobreza. Mas os costumes dos brancos já invadiram
irremediavelmente suas vidas e também suas atuais aldeias. Antes
de ir ao “médico”, eles tentaram de tudo, pois em sua cultura vários
espíritos comandam os males e as doenças, como por exemplo,
aquelas causadas pelas almas dos mortos atormentando o sono dos
que os mataram. Mas depois de muito lutar e não conseguir vencer
o sarampo e a tuberculose, eles terminaram por aceitar a “enorme
ajuda” da FUNAI e passaram a receber medicamentos e consultas
no Distrito do Riozinho, a zona urbana cortada pela BR-364, de
asfalto novo, que traz imigrantes, novos colonizadores. A aldeia
era o espaço natural, onde ficavam muitas mulheres e crianças,
aguardando os homens que, sempre juntos, vinham à FUNAI
para levar saúde para casa. Com dificuldade em expressar-se em
língua portuguesa, sentiram-se forçados a aprender essa nova
língua, da qual nada compreendiam ou compreendiam apenas
o que haviam aprendido nos primeiros anos de contato. Nem
sempre o “intérprete” da FUNAI estava ali para “ajudá-los” em
suas reivindicações.
As alterações na vida Suruí Paíter ocorreram com grande
velocidade e, rapidamente, o doente em uma família da aldeia já
não vinha sozinho ao Posto da FUNAI Quando um índio ficava
doente, os demais membros da família acompanhavam-no até o
Distrito e lá ficavam até a recuperação de seu parente enfermo.
Nas longas esperas por atendimentos diversos aprenderam a
comer a comida do branco, aprenderam a comunicar-se em língua
portuguesa, aprenderam a entregar madeiras nobres em troca de
comida, de roupas, de saúde, de bem estar. Aprenderam, também,
a ver as imagens na televisão instalada no Posto da FUNAI, e
conheceram outros mundos, viram outras lutas, outros retratos
da violência. Já não ficavam sob o luar conversando e brincando.
Ficavam sob a luz elétrica, presos à televisão, dormindo em camas,
e quando estas faltavam, dormindo ao relento, nas varandas do
“ponto de apoio”, como também é conhecido o Posto da FUNAI.
Aprenderam, a duras penas, que era preciso viver bem com esse
homem branco, “o Yara”, como denominam a comunidade não
138
índia, porque esse homem é poderoso, possui armas, carros,
televisão, dinheiro. O constante deslocamento do povo Suruí Paíter
no vai-e-vem da aldeia para o asfalto e do asfalto para a aldeia é
sempre causado pelo conflito: estar no Distrito com saudades da
vida livre da aldeia; estar na aldeia sem o conforto da televisão,
das comidas compradas nos “boliches” (nome dado às pequenas
mercearias do Distrito do Riozinho) e da falta de medicamentos
para os filhos. Este vai-e-vem provoca a inserção de elementos não
indígenas nas aldeias. É muito comum encontrar, hoje, nas malocas,
potinhos de iogurtes, comidas enlatadas (sardinha, margarina, etc.),
ao mesmo tempo em que se encontram, nas geladeiras das casas
indígenas do Distrito, a carne de macaco, a mandioca, o cará, para
as refeições.
O crescente contato dos Suruí Paíter com a sociedade
envolvente tem provocado conseqüências nas relações sociais da
comunidade. A disputa por terras, os conflitos entre famílias, a
necessidade de consumismo desenfreado e a grande vontade de ter
dinheiro coloca esta nação indígena em meio a toda a violência
da região, tais como: assassinatos, crimes jamais desvendados e
índios que desaparecem de sua comunidade. Muitos Suruí Paíter
são assassinados e há casos de estupro nunca desvendados, pois as
meninas e moças ficam expostas ao longo da BR-364, residindo
muito próximas ao movimento que a rodovia traz. À medida em
que têm suas terras invadidas, suas madeiras vendidas ilegalmente,
os bens da floresta explorados e consumidos, nada lhes resta a não
ser perambular pelas ruas do Distrito do Riozinho, ou ir para
Espigão D’Oeste, ou Cacoal, cidades que nunca os acolhe bem e
onde são, inclusive, presos. São presenças constantes nos noticiários
policiais, tanto da imprensa falada quanto da imprensa escrita,
como mostramos a seguir:
ÍNDIOS QUEREM LIBERDADE – Índios da etnia
Surui, liderados por 4 caciques continuam aguardando
na Fundação Nacional do Índio (FUNAI), em Cacoal,
a liberdade dos índios José Naraicola e Júnior Suruí,
autuados em flagrante, pela Polícia Federal, no
139
último final de semana, acusados de exploração ilegal
de madeira na Aldeia 7 de Setembro. O advogado
Antonio Júlio Ribeiro informou que a decisão judicial,
autorizando ou não a liberação dos dois indígenas,
deve sair ainda hoje. Os índios Suruí querem saber
quais são as propostas do governo para contrapor
as atividades consideradas ilícitas, das quais hoje são
dependentes para adquirir os bens industrializados,
necessidades impostas pelo contato com a sociedade
branca. Os Suruí querem discutir também com o
presidente da FUNAI os limites de suas terras (Aldeia
7 de Setembro), uma vez que o espaço pertencente
à reserva não estaria bem sinalizado, o que estaria
permitindo a invasão de suas terras. Querem, também
agilidade no processo de demarcação da área Tucum,
o que, segundo os caciques, já é de conhecimento da
Fundação Nacional do Índio, em Brasília. A prisão
dos dois indígenas foi levada ao conhecimento do
presidente da FUNAI, Glênio Costa Alvarez, pela
organização Metarelá do Povo Indígena Suruí, na
quarta-feira. Eles continuam presos em Pimenta Bueno,
sob a custódia da polícia civil. No documento enviado
a Brasília, os caciques cobram a presença de Glênio
Costa, acompanhado da Procuradoria da FUNAI, do
Ministério Público Federal e da Polícia Federal, em
Cacoal, para discutir a prisão de índios nas terras por
eles habitada, além de outros problemas que estariam
afetando as comunidades indígenas. O advogado dos
Suruí, Antonio Júlio Ribeiro, disse não concordar
com a prisão dos dois índios. Ele entende que a polícia
precisa de mandado judicial para entrar em terra
indígena. Sobre a exploração dos recursos naturais,
por parte das comunidades indígenas, o advogado cita
o artigo 231, da Constituição Federal, parágrafo 2º. “As
terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinamse a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto
exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos
nelas existentes.” Júlio Ribeiro defende a implantação
de um plano de manejo florestal na região e discorda
140
da maneira como os índios vêm sendo tratados pelos
órgãos repressores.”
(http:/www.diariodaamazonia.com.br/didad.php3
– 29/07/2002)
1.3 O VAI-E-VEM DOS SURUÍ PAÍTER: UM PERCURSO
MARCADO POR SAUDADES, CRIMES, CHACINAS,
VENDAS DE MADEIRA, SAÚDE E EDUCAÇÃO
PRECÁRIAS, CRISES LINGÜÍSTICAS E SOCIAIS
Definitivamente, após o contato, os Suruí Paíter se deslocam
da aldeia para o asfalto e vice-versa, numa espécie de vai-e-vem
constante. Esse vai-e-vem não tem afetado apenas suas festas,
suas reuniões, seus rituais, suas construções e suas comidas. Suas
práticas de linguagem sobre os fatos de suas vidas alteram-se
constantemente, num crescente conflito de desejar preservar sua
história e de integrar-se às necessidades do cotidiano em contato
com a sociedade envolvente. Outro exemplo ilustrativo diz respeito
à religião. Tradicionalmente, o Hoeietê era a festa sagrada para
invocar saúde e fartura de colheita, ou como ritual de cura, quando
havia alguém doente. O Hoeietê acontece raramente hoje em dia
e nem todos os Suruí residentes no Distrito se deslocam para a
aldeia por ocasião desse ritual sagrado, seja porque são proibidos
de freqüentá-lo, por freqüentarem outras religiões do Distrito do
Riozinho (em geral evangélicas), seja porque já não se interessam
por essa tradição.
O vai-e-vem da aldeia para o asfalto e do asfalto para a aldeia está
delineando a perda das raízes culturais do povo Suruí Paíter, cujos
grandes representantes são os jovens e as crianças. No conflito do
vai-e-vem e apesar de toda essa intervenção, os Suruí dizem que seu
espírito está voltado para valorizar e conservar, sempre, o passado
e as experiências vividas pelos ancestrais, na perspectiva de efetuar
uma melhor formação dos jovens na vida futura. Nosso trabalho
de campo, porém, não confirmou esse discurso corrente. É preciso
ressaltar que, ao negar as visíveis mudanças em seu grupo, os Suruí
Paíter estão tentando manter-se como nação indígena por diversas
141
razões: não perder o status de “povo indígena” tão valorizado na
região Amazônica e aos olhos do mundo em geral, não perder os
parcos “benefícios” que a FUNAI ainda lhes proporciona depois
de ter permitido as invasões de suas reservas; tentar recuperar
as terras que lhes pertencem e que lhes foram roubadas. Nesse
sentido, a situação lingüística do povo Suruí Paíter é tão peculiar
quanto a sua situação de contato, que envolve múltiplos agentes
atuando de diferentes formas. O conflito social provocado pelo
constante vai-e-vem dos Suruí Paíter gerou, então, práticas de
linguagem também conflituosas, de discursos incoerentes ou não
condizentes com a realidade lingüística que observamos no Distrito
do Riozinho. Esse conflito lingüístico aprofunda-se no cenário dos
intensos contatos com os madeireiros, com os policiais que são
chamados para amenizar conflitos do comércio ilegal de madeira,
as autoridades em geral e, não poucas vezes, entre os Suruí Paíter
da zona urbana versus os residentes nas aldeias. Podemos apontar
que a mola propulsora do conflito social para os Suruí Paíter tem
sido o comércio da exploração de madeira, que teve início em
meados da década de 80, do século XX, e tem sido atualmente
a principal fonte de renda desse povo indígena, sendo que, na
maioria dos casos, a distribuição desta renda não é eqüitativa,
“beneficiando” basicamente um número reduzido de pessoas. Em
princípio, a retirada de madeira era seletiva e direcionada para
as espécies de maior valor do mercado, como mogno e cerejeira.
Atualmente, nas áreas onde este potencial de madeiras nobres se
encontra esgotado, a retirada se estende a outras espécies, de menor
valor comercial, as chamadas “madeiras brancas”, como garapeira,
angelim pedra, ipê, cedro rosa e madeiras para laminação Os Suruí
Paíter têm consciência dos malefícios decorrentes deste tipo de
exploração, mas continuam possibilitando que em todos os anos
ela se repita. Os órgãos governamentais responsáveis pela proteção
e fiscalização também não tomam providências cabíveis, na época
adequada, e este tipo de exploração altamente predatória, em áreas
de preservação permanente, com imensos prejuízos para os índios,
se apresenta como permissível, pois qualquer cidadão comum tem
142
conhecimento destes fatos. Nesse sentido, o vai-e-vem dos Suruí
Paíter está sempre marcado pela presença desses “vendedores”
de madeiras, dos “compradores” de bens naturais da floresta, de
discussões intermináveis e de negociações sempre desfavoráveis aos
Paíter. Costumes, tradições e linguagem estão se perdendo pelos
percursos da aldeia ao asfalto e do asfalto para a aldeia. Muitas
vezes, atualmente como no passado, esse percurso é marcado
por crimes e assassinatos. Doentes e empobrecidos, explorados
economicamente e correndo riscos de perder a totalidade de suas
terras, os Suruí Paíter exigem, cada vez mais, escolas e saúde para
seus filhos. Pelos relatos apresentados, após o contato dos Suruí
Paíter com o homem branco inúmeras alterações ocorreram
na vida desse povo indígena e, o que se vê hoje é um incessante
percurso: aldeia/cidade/aldeia com o uso da língua portuguesa.
Além disso, o contato com o homem branco criou, para o grupo
Paíter, necessidades antes desconhecidas, como por exemplo:
necessidade de escolas com o conseqüente uso da língua portuguesa;
dependência em relação à saúde – o ritual tradicional de invocação à
saúde foi substituído pela procura de remédios usados pelos homens
brancos; os cultos tradicionais do Pajé estão sendo substituídos
pelas religiões ocidentais; casavam apenas entre si, mas no Distrito
do Riozinho estão se envolvendo com relacionamentos externos
ao grupo (o namoro); estão havendo mudanças nas relações físicas,
sociais e culturais. Na realidade, no vai-e-vem e no grande conflito
social já estabelecido por esse percurso, os Suruí Paíter tentam
aproximar-se sempre mais do homem branco. Nossas observações
nesse sentido são confirmadas pelo trabalho de Santilli (1987), uma
coletânea de depoimentos, experiências pessoais e fotografias que
retratam, especialmente, o povo Suruí Paíter residente no Distrito
do Riozinho. Santilli usa a expressão “ÀRE” para enfatizar como
os Suruís, em seu idioma, chamam os demais povos indígenas que
convivem no Estado de Rondônia. Ao mesmo tempo, explica que
os Suruí já denominam, na época, também os homens “civilizados”
com a expressão “ÀRE”, possivelmente, segundo o autor, numa
tentativa de aproximação no mais novo Estado brasileiro, que ele
143
denomina “a Terra de Rondon”. ÀRE é também parte do “Projeto
Nharamaã” de documentação áudio-fotográfica da colonização de
Rondônia, cujo objetivo é o registro das transformações sócioambientais da região. Em resumo, os resultados que obtivemos a
partir deste estudo é que a perda da língua étnica entre os Suruí
Paíter do Distrito do Riozinho está ocorrendo mais amplamente do
que podíamos esperar e que a maioria deles tem o português como
a língua de prestígio para a comunidade. Apesar da insistência dos
idosos na preservação da língua Suruí, com o falecimento desses é
provável que essa desapareça, sobretudo porque os atuais adultos,
futuros idosos, estão mergulhados no mundo da língua portuguesa.
Não gostaríamos de apontar isso, mas, é muito provável que esse
desaparecimento seja tão rápido quanto tem sido o desaparecimento
das madeiras nobres, das aves, dos animais e das riquezas naturais
das aldeias dos Suruí Paíter!
REFERÊNCIAS
BECQUELIN; GUIRARDELLO. Histórias Trumai. In:
FRANCHETTO B.; HECKENBERGER. Os povos do Alto
Xingu. Rio de Janeiro, Ed. UFRJ, p. 437, 2001.
BISINOTO, L. S. J. Atitudes Sociolingüísticas em Cáceres-MT:
efeitos do processo migratório. Dissertação de Mestrado. IEL/
UNICAMP-SP, p. 47-60, 2000.
BLACK, F. Infectious disease in primitive societies. In: Science.
pp. 187; 515-518, 1975.
BONTKES, W.; BONKLES, C. Os Suruí (Tupian) Social
Organization. Summer Institute of Linguistics. Ms, 1974.
CIMI-Conselho Indígena Missionário. Panewa Especial. Revista
Missionária. Porto Velho, 1996, 1997, 1998, 2000, 2001.
DAL POZ, J. No País dos Cinta-Larga: uma etnografia do ritual.
144
Dissertação de Mestrado. SP. Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, USP. p.19-21-24- 25-38-39-40-41-92-93, 1991.
FRANCHETTO, B; HECKENBERGER, M. (Org). Os povos
do Alto Xingu – História e Cultura. Rio de Janeiro: Editora da
UFRJ, p. 77-156, 2001.
FUNAI – Fundação nacional do Índio. Relatórios de 1960 a 2001.
145
O PAPEL DOS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES
NA MANUTENÇÃO DA ORDEM LINEAR DOS
CONSTITUINTES DA ORAÇÃO*
Edson Rosa Francisco de Souza**
RESUMO: O objetivo deste trabalho é descrever, com base na
Gramática Funcional de Dik, a funcionalidade dos advérbios
focalizadores (exatamente, principalmente, justamente, somente,
também) e sua possibilidade de co-ocorrência com a ordem especial
de constituintes no Português Falado do Brasil, de acordo com suas
funções sintáticas, semânticas e pragmáticas. Em outras palavras,
o nosso objetivo é verificar se o uso dos advérbios focalizadores
constitui um mecanismo utilizado pelo falante para preservar a
ordem linear dos constituintes da oração, isto é, se o uso desses
mecanismos está relacionado à manutenção da ordem canônica
da oração.
PALAVRAS-CHAVE: Funcionalismo, Advérbios Focalizadores,
Ordem de Palavras, Co-ocorrência de Estratégias de Focalização.
ABSTRACT: Under Dik’s Functional Grammar, the aim of this research
is to describe the functionality of focus adverbs (exactly, mainly,
actually, justly, also, only) and their possibility of co-occurrence
with word order in Spoken Brazilian Portuguese, according to their
syntactic, semantic and pragmatic functions. In other words, our
principal goal is to verify if the use of the focus adverbs constitutes
a mechanism used by the speaker to preserve the lineal word order
of the clause, that is, if the use of these focus mechanisms is related
to the maintenance of the canonical order of the clause.
KEYWORDS: Functionalism, Focus Adverbs, Word Order, Cooccurrence.
*Neste artigo, apresento algumas questões da minha Dissertação de
mestrado “Os advérbios focalizadores no português falado do Brasil: uma abordagem
funcionalista”, desenvolvida sob a orientação da Profª Drª Marize M.
Dall’Aglio Hattnher – IBILCE/UNESP, com o apoio da FAPESP (Proc.
02/12621-5).
147
**Doutorando em Lingüística (IEL/UNICAMP)
1 PALAVRAS INICIAIS
Centrado na perspectiva funcionalista de autores como Dik
(1989; 1997) e Hengeveld (1997)1, o presente trabalho tem por
objetivo descrever a funcionalidade dos advérbios focalizadores
(exatamente, principalmente, justamente, somente, também etc.) e sua coocorrência com a ordem especial de constituintes no português falado do
Brasil (PB). Em termos gerais, o nosso objetivo é analisar as razões
sintáticas, semânticas e pragmáticas que favorecem o uso desses
mecanismos de focalização na atribuição de Foco a determinados
constituintes da oração. Dessa maneira, por estar situado no
universo da ordem de palavras, o nosso objetivo maior é verificar
se o uso desses advérbios constitui um mecanismo utilizado pelo
falante para focalizar e, ao mesmo tempo, preservar a ordem linear
dos constituintes na oração, isto é, se esse uso está relacionado
à manutenção da ordem canônica dos termos da oração. Num
segundo momento, a nossa tarefa é investigar por que esse
mecanismo de focalização co-ocorre com uma outra estratégia,
se a ordem especial de constituintes, bastante recorrente entre
as línguas do mundo, por si só já bastaria para marcar a função
pragmática Foco.
Nesse contexto, considerando a importância da proeminência
prosódica no Inglês, que é, segundo Van Valin & LaPolla (1997),
uma língua de estrutura sintática rígida e estrutura de foco flexível,
nossa expectativa é a de que os advérbios focalizadores (AdvFs)
exerçam no PB a mesma função que a proeminência prosódica
exerce no Inglês, que é a de focalizar qualquer constituinte da
oração sem alterar sua ordem.
2 NOTAS SOBRE OS ADVÉRBIOS FOCALIZADORES
Em um trabalho sobre os advérbios, Ilari et alii (1990) e Ilari
(1992) identificam a focalização como uma das muitas funções
148
exercidas por essa classe, considerada extremamente heterogênea
(cf. Mackenzie, 2001; Hengeveld, 1997). Advérbios
como exatamente, justamente e principalmente, que “chamam a atenção
para o papel semântico de uma expressão próxima” (Ilari et
alii, 1990, p.76) ou “aplicam a algum constituinte um carimbo de
‘conferido’, sugerindo que o locutor está de posse dos resultados
de alguma verificação” (id. ibid.) são agrupados ao lado de advérbios
que indicam inclusão ou exclusão, como também e só, por “darem
destaque a um constituinte da sentença”. Na ocorrência (1), por
exemplo, o advérbio principalmente exerce a função de focalizador,
atuando sobre um satélite s2 com a função semântica de Lugar (em
Altamira).
(1) mas em alguns dos dese­nhos das cavernas principalmente
em Altamira... há uma fidelida­de...
linear à natureza
que consegue mostrar os animais:: (EF/RJ/405:395)
Como se pode observar na ocorrência acima, o satélite em
negrito constitui o escopo do advérbio em questão. Para o discurso,
a expressão “em Altamira” caracteriza uma informação nova
(Chafe, 1976), o que justifica a atribuição da função pragmática
Foco a esse constituinte. Ao fazer isso, o emissor presume que o
destinatário possui uma parte de informação correta, mas também
acredita numa outra que está incorreta. Contudo, focalizar uma
informação que o falante considera mais importante não é, a nosso
ver, a única razão para o grande número de AdvFs no PB. Assim,
sem perder de vista o nível sintático da oração, lugar em que se situa
um dos principais objetivos do nosso trabalho, pode-se constatar
que a maior parte dos estudos publicados sobre Foco, em especial,
sobre o funcionamento dos AdvFs, não procura questionar a
relação existente entre a estrutura de foco e a estrutura sintática. É
claro que, para muitos autores funcionalistas e gerativistas, o Foco
pode ser marcado pela ordem especial de constituintes, no entanto,
149
o que nos interessa saber é o que os AdvFs fazem de diferente
na estrutura da oração que as outras estratégias de focalização
não fazem. Como dito anteriormente, a nossa expectativa é a de
que o funcionamento desses AdvFs possa ser comparado ao da
proeminência prosódica no Inglês, que focaliza um elemento sem
alterar a ordem da oração (cf. Van Valin; Lapolla, 1997), assim
como em (2) e (3):
(2) a. DANA sent the book to Leslie yesterday.
DANA enviou o livro para Leslie ontem.
b. Dana sent the book to LESLIE yesterday.
Dana enviou o livro para LESLIE ontem.
(3) a. e você vai num país desenvolvido não há aquele que não
trabalhe... que não faça alguma coisa...até os velhos... sujeito de setenta...setenta e cinco anos está fazendo
alguma coisa... (D2/RJ/355:1040)
b. eu por exemplo estou acostumada a comer só verdura e carne...eu tive muita dificuldade em me alimentar lá [no
norte]... (DID/RJ/328:128)
Como se vê, em ambas as línguas, a ordem SVO da oração
mantém-se inalterada, sendo o Foco marcado ora pela proeminência
prosódica ora pelos AdvFs. Em (2), o sujeito e o objeto da oração
são focalizados por meio da proeminência prosódica, sem provocar
nenhum tipo de reestruturação sintática. Já em (3), o sujeito e o
objeto são focalizados por meio de dois advérbios distintos (até e
só), apresentando, assim, um comportamento bastante semelhante
ao da proeminência prosódica no Inglês, em que as duas estratégias
focalizam um constituinte sem alterar a ordem canônica da
oração.
3 ARCABOUÇO TEÓRICO
150
Segundo o ponto de vista funcional, uma língua natural
deve ser considerada, primeiramente, “como um instrumento
de interação social por meio do qual seres humanos podem se
comunicar uns com os outros e, assim, influenciar mutuamente
as atividades mentais e práticas” (Dik, 1980, p.1). Nesse sentido,
o funcionalismo2 considera que “a situação comunicativa motiva,
restringe, explica ou determina a estrutura gramatical” (Nichols,
1984, p.97). Com base nesse arcabouço teórico, Dik (1989) assinala
que a atribuição de Foco a um determinado constituinte da oração
é o que justifica, por exemplo, a presença de uma ordenação
especial dos termos da oração ou a utilização de AdvFs, uma vez
que esses mecanismos constituem dois tipos especiais de estratégias
de Foco3 utilizadas pelo falante para colocar em destaque uma
dada informação que ele considera importante para ser integrada
à informação pragmática do ouvinte (Braga, 1999).
Por essas e outras colocações, Halliday (1985) destaca que a
gramática funcional procura concentrar a atenção nos usuários
e nos usos da língua, mediante uma valorização do receptor,
do emissor e da variação lingüística no quadro gramatical. De
acordo com Neves (1997), no modelo teórico de Dik (1989), os
componentes sintáticos e semânticos encontram-se integrados a
uma teoria pragmática, que, por sua vez, envolve a intervenção:
a)
dos papéis envolvidos nos estados de
coisas designados pelas predicações (funções
semânticas);
b)
da perspectiva selecionada para
apresentação dos estados de coisas na expressão
lingüística (funções sintáticas);
c)
do estatuto informacional dos constituintes
dentro do contexto comunicativo em que eles
ocorrem (funções pragmáticas).
Trata-se de uma teoria que procura, segundo Gebruers (1984,
apud Neves, 1997), oferecer “um quadro para a descrição científica
151
da organização lingüística em termos das necessidades pragmáticas
da interação verbal, na medida em que isso é possível” (p. 349).
Tendo em vista esse princípio, Dik (1989; 1997) destaca que para se
chegar às expressões lingüísticas superficiais, são necessárias regras
de colocação para atribuírem posições aos constituintes de uma
dada estrutura subjacente. Essas regras, segundo o autor, obedecem
a certos princípios que determinam as possíveis seqüências dos
constituintes da oração. Assim, essa teoria de ordenação postula
que cada língua apresenta um ou mais padrões funcionais, segundo
o esquema geral em (4).
(4) P2, P1 (V) S (V) O (V), P34
A operação das regras de colocação5, segundo Dik (1989),
ocorre de tal maneira que, em primeiro lugar, são alocados os
constituintes que podem ocupar a posição P1, tais como palavrasQu, pronomes relativos e conectores subordinativos. Se nenhum constituinte
desse tipo estiver presente, então, podem ser colocados em P1
constituintes com as funções pragmáticas de Foco (informação
de maior saliência), Tópico (sobre o que se fala) ou Organizador de
Cenário (situa o EsCo em relação às coordenadas de tempo, espaço
e circunstância), proposta por Hannay (1991) e Bolkestein (1998),
e investigada por Cucolo (2002) em seu trabalho sobre os satélites
de nível 1 e 2, no português falado do Brasil. Dessa maneira, a
ocorrência (5) abaixo indica um satélite s2 de Lugar que exerce a
função pragmática de Organizador de Cenário, responsável por situar
o EsCo no quadro espacial (de lugar).
(5)
Inf essejantar dançante... é assim vamos (lá)...eles ab...(...) então
depois naquele jantar eles sorteiam outros coisas... uns::
quatro casais...para Organizarem outro...jantar (DID/POA/45:23)
152
Assim sendo, para Neves (1994, p.109), qualquer abordagem
funcionalista de uma língua natural, na verdade, tem como questão
básica de interesse a verificação de como se obtém a comunicação
com essa língua. Isso implica considerar as estruturas das expressões
lingüísticas como configuradoras de funções, sendo cada uma
das funções vista como um diferente modo de significação na
oração. É por essa razão que autores como Dik (1989), Pezatti
(1998) e Connolly (1998) assinalam que as expressões lingüísticas
só podem ser devidamente compreendidas quando levadas em
consideração as informações contextual e situacional disponíveis
aos interlocutores no momento da interação, já que é durante esse
processo em que muitas de suas propriedades (formais e funcionais)
são codeterminadas.
4 ORDENAÇÃO DOS CONSTITUINTES DA ORAÇÃO NA
PRESENÇA DE ADVFS
Como dito, uma de nossas perguntas de pesquisa está
relacionada à funcionalidade dos AdvFs na oração. Dessa forma, a
fim de verificarmos se o uso dos AdvFs é um mecanismo utilizado
para focalizar e, ao mesmo tempo, preservar a ordem linear dos
constituintes na oração, os dados6 foram analisados com o intuito
de constatar se esses mecanismos de focalização estão de fato
relacionados à manutenção da ordem canônica dos constituintes
da oração. É o que se observa nos dados da tabela 1 a seguir:
Tabela 1: Ordenação dos constituintes da oração na presença de AdvFs
Conforme se pode verificar na tabela acima, quando analisada
na presença de AdvFs, a ordem dos constituintes só se mostrou
alterada em 7% (25/374) das ocorrências contra 93% (349/374)
153
dos dados em que a ordem aparece não-marcada. A esse respeito,
Dik (1989) assinala que uma construção é mais marcada à medida
que é menos esperada no contexto, conseqüentemente, quando
uma construção marcada ocorre, ela exige mais atenção. Sobre
esse aspecto, Van Valin (1999), ao discutir questões de Foco,
destaca que o russo, o polonês, o latim e o português são línguas
que apresentam uma estrutura sintática menos rígida e, por isso,
a ordenação especial de constituintes aparece como uma das
estratégias mais utilizadas para a marcação de Foco, o que as difere
do Inglês e do Toba Batak, língua do oeste da Indonésia, cujo Foco,
em geral, é marcado pela proeminência prosódica7, em razão de
sua ordenação sintática ser bem mais rígida. Segundo o autor, o
que justifica a freqüência relativamente maior de proeminência
prosódica no Inglês é o fato de essa estratégia não implicar nenhum
tipo de reestruturação sintática para acomodar o Foco. Sendo
assim, pode-se dizer que o uso expressivo de AdvFs no português
brasileiro é, segundo Souza (2003b), perfeitamente comparável
ao da proeminência prosódica no Inglês, tal como apontado
por Martinez-Caro (1998) e Van Valin & Lapolla (1997). Além
disso, quando observada juntamente com os AdvFs, nota-se que a
ordem dos constituintes da oração só é alterada em razão de algum
interesse especial do falante, assim como mostram as ocorrências (6)
e (7), que constituem claramente casos de objetos (A2) alocados na
posição inicial da oração (P1), com a função pragmática Foco:
(6) Loc a gente faz uma comida que a (titia) chama de jardineira com couvinha minei­ra...faz couvinha
mineira junta com...aquela couvinha bem parti­
dinha ba/ faz na::...na...frigideira...depois põe em
cima da carne e põe os legumes em cima... a
gente usa muito esse tipo de comida aqui em casa...
por exemplo... chuchu também
ela refo­ga...faz ((confuso)) e aí a gente come com
a carne as/ por exemplo faz o que a gente
chama aqui em casa de trouxinha...
154
(DID/RJ/328:418)
(7) L1 eu tenho um conhecido...aliás...um amigo comum
nosso que ele é especialista em comida internacional
então vai faze(r) uma comida chinesa india­
na...qualque(r) coisa...até incenso ele queima...ah...
só falta música ambiental...só falta eu me
vesti(r) a rigor
(D2/POA/291:107)
Cabe notar que, em (6) e (7), os constituintes “chuchu”
e “incenso”, alocados na posição inicial da oração, servem à
função pragmática Foco, cujo objetivo é ressaltar a informação
relativamente mais importante no contexto. Nesses casos, o que
leva o falante a focalizar, por meio de um advérbio, um constituinte
já alocado na posição P1 da oração é a tentativa de impedir que
certos constituintes focais sejam interpretados pelo ouvinte como
Tópico ou Organizador de Cenário. Assim, para evitar que isso
aconteça, o falante utiliza duas ou mais estratégias de focalização
para deixar bem claro qual é a sua intenção comunicativa. Ou seja,
a intenção do falante é o que explica, na nossa opinião, a dupla
marcação de Foco nos dados do PB (AdvFs + Ordem especial).
Resumindo o que se disse sobre essas ocorrências, temos o
seguinte:
(6’) chuchu
P1Foco
também
AdvF
elare
S
foga
V
(7’) até
AdvF
incenso
P1Foco
ele
S
queima
V
Tanto em (6’) quanto em (7’), a ordem SVO dos constituintes
da oração aparece alterada, com o objeto alocado no início da
oração. Contudo ocorrências como essas correspondem, conforme
já destacado, a apenas 7% (25/374) do total dos dados, o que,
155
por sua vez, comprova a nossa hipótese de que os advérbios
constituem uma das principais estratégias utilizadas pelo falante
para focalizar algum constituinte, sem que para isso seja necessário
alterar a ordem não-marcada dos constituintes da oração. Nesse
sentido, os casos de co-ocorrência de estratégias de focalização
atrelados à ordem especial são, certamente, os únicos exemplares
do corpus que se mostraram responsáveis pela mudança de ordem
dos constituintes oracionais. No tocante aos demais tipos de coocorrência de estratégias (AdvF + Proeminência prosódica; AdvF
+ Construção clivada), a ordem dos termos da oração permaneceu
inalterada, com o Foco sendo marcado pelas formas adverbiais.
Com relação à ordem não-marcada, as ocorrências (8) e (9)
exemplificam casos em que os advérbios também e só focalizam,
respectivamente, o sujeito “o Brasil” e o complemento verbal “o
legume”, conforme se observa abaixo:
(8) L1
agora...você falou em problema estatal...não é? o Brasil
também está caminhando pra economia estatal...e como eu leio aí nos jornais – a gente não é dessa área...né? quer dizer...desse setor – mas você vê... um absurdo o Brasil... a Companhia Siderúrgica Nacional no balanço apresentado...alto prejuízo...como é que uma companhia de aço...produtora...de...de...de aço...pode dar prejuízo? (D2/RJ/355:1140)
(9) Inf quando eu como muita coisa [...] ...bata::ta.. macarrão:::pão:: quando eu por um acaso...tiver comido isso de manha...à noite então eu faço um::um balanço...e procuro tirar as coisas as outras coisas que possam vir a engordar feijão então tudo aquilo arroz aí eu como só
o legume realmente e a fruta...o que eu não posso realmente é deixar...de comer coisas salgadas à noite... (DID/RJ/328:18)
Nessas ocorrências, para acomodar a função pragmática Foco,
156
a ordem dos constituintes da oração não sofre nenhum tipo de
mudança, o que mais uma vez corrobora a nossa hipótese defendida
ao longo do trabalho. Resumindo o que dissemos das ocorrências
acima, temos o seguinte:
(8’) o Brasil também está caminhando para economia estatal
SFoco AdvF Aux
V O
(9’) eu
S
como
V
só
AdvF
o legume
OFoco
Até mesmo em construções do tipo VS, a ordem dos termos
da oração costuma se manter inalterada (não-marcada), assim como
se verifica na ocorrência (10):
(10) Inf Brailowski não sei se... se esteve aqui foi Ba/Backaus...
Jorge Demus... e tantos outros que têm aí que nem sei...
mais outros pianistas que a gente foi...lembro quando o
Rubinstein tocava mas estava CHEIO o:: . ..o teatro
todo né?... até aquelas galerias o balcão de segunda a gente
em PÉ... ahn:: nos corredores botaram cadeiras tudo... e
depois veio também o Giglio não sei se vocês já...viram::
(DID/POA/45:591)
Em construções como essas, é natural que o sujeito venha
posposto ao verbo da oração, principalmente naqueles casos
em que P1 já estiver ocupada. Em (10), a ordem P1VS não sofre
nenhum tipo de reestruturação sintática para marcar o Foco “o
Giglio”. Segundo Pezatti (2003), pelo fato de ser uma língua SVO,
o PB mostra-se relativamente rígido com relação à colocação dos
argumentos sujeito, objeto e oblíquo (A1, A2 e A3), preservando
geralmente o esquema P1SVO. Todavia, mostra-se mais acessível
157
à alteração da ordem canônica com constituintes satélites, ou seja,
constituintes lexicais opcionais que veiculam informação adicional
a uma das camadas no modelo hierárquico da oração. A ocorrência
(11) representa um caso de satélite (adjunto adverbial) alocado no
início da oração, com a Função pragmática Foco8:
(11) Inf e podendo inclusive...eleger...representantes....para
que esses mesmos representantes...sejam...seus porta vozes...
possam com isso propor...legislar fazer ver inclusive ao poder
executivo... ver que determinadas classes...são carentes
de determinadas...questões...e que só através desses
representantes é que evidentemente se pode chegar...
a um denominador comum...ou a uma solução... (DID/
RE/131:311)
Em (11), verifica-se que, apesar de o satélite ser focalizado por
meio do AdvF só e da clivada é que, ele não poderia estar em P1,
visto que ela já está ocupada pelo constituinte-P19, representado
pelo relator subordinativo que. Assim, o fato de ser Foco e não
estar em P1 é uma das justificativas para a incidência de outras
estratégias de Foco sobre o satélite, tais como o advérbio e a clivada.
Em outros termos, tem-se:
(11’) que só através desses representantes
é que
chegar
P1 AdvF
PaFoco
Cliv Aux
V
se pode
Nesse contexto, quando um falante opta, por exemplo, por
alocar os constituintes adverbiais no início da oração, a ordem
não-marcada dos satélites é alterada em favor de algum interesse
pragmático. No entanto, quando o falante deseja focalizar algum
constituinte sem alterar demasiadamente a ordem canônica
da oração, ele faz uso dos AdvFs para tal tarefa. Em (11),
diferentemente das ocorrências (6) e (7), a ordem não-marcada dos
termos argumentais da oração (A1, A2 e A3) não sofre nenhum tipo
158
de alteração; só o satélite de instrumento através desses representantes
é alocado em Pa.
A ocorrência (12), abaixo, exemplifica um caso em que o Adv
focaliza um satélite s1 com a função semântica de Beneficiário, alocado
em sua posição não-marcada:
(12) L2
exatamente né? então vamos tentar:: ( ) ver se conseguem
L1 isso
L2 agora é uma carreira muito boa principalmente para mulher
(D2/SP/360:635)
Tanto em (11) quanto em (12), a ordem SVO da oração
não sofre nenhuma alteração. Em (12), o satélite “para mulher”,
focalizado pelo Adv principalmente, encontra-se alocado em sua
posição não-marcada, isto é, a posição final da oração10. No
tocante ao princípio de ordenação do português, Cucolo (2002) e
Pezatti (1998) acreditam que as alterações da ordem canônica dos
constituintes da oração podem ser explicadas em função de razões
pragmáticas e semânticas. Tendo trabalhado com essas mesmas
funções, Martín Arista (1994) também assinala que é o componente
pragmático que determina a ordem em que as estruturas prosódicas
e sintáticas se sucedem, assim como a relação que se estabelece
entre as mesmas.
Com base nos exemplos apresentados aqui, pôde-se verificar
que para preservar a ordem não-marcada da oração recorre-se aos
AdvFs. No nosso caso, a ordem SVO só é quebrada em função
de algum interesse pragmático ou, mais especificamente, naqueles
casos em que o AdvF co-ocorre com ordem especial para a
marcação do Foco.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos, para a Gramática Funcional de Dik (1989), o
Foco constitui a informação mais saliente ou importante que o
159
falante deseja acrescentar ao conhecimento pragmático do ouvinte.
Nesse sentido, o objetivo do falante ao focalizar, por exemplo, um
satélite ou um constituinte qualquer, no interior da oração, por
meio de AdvFs, é fornecer informações que ele considera essenciais
para o seu interlocutor. Nesse contexto, foi possível verificar que
os AdvFs constituem a principal estratégia de focalização utilizada
pelo falante para focalizar algum constituinte da oração, sem
que para isso fosse necessário alterar a sua ordem para acomodar
a Função Pragmática Foco. Isso confirma que o uso expressivo de
AdvFs no português brasileiro é perfeitamente comparável ao da
proeminência prosódica no Inglês, cuja função é marcar o Foco
sem alterar a ordem canônica da oração para a mesma finalidade, tal
como apontado por Martinez-Caro (1998) e Van Valin & Lapolla
(1997). No entanto, esse resultado aponta que o PB, diferentemente
da classificação dada por Van Valin (2003), não apresenta uma
estrutura sintática totalmente flexível.
No caso da co-ocorrência de estratégias de focalização, quando
algum constituinte é alocado em uma posição especial, mesmo
com a presença de AdvFs na oração, observou-se que a ordem
não-marcada é alterada em favor de algum interesse comunicativo
do falante. O total de 25 ocorrências com ordem marcada referese exclusivamente aos casos em que os AdvFs co-ocorrem com a
ordem especial para marcar o Foco. Nesse sentido, por pressupor
que a sua mensagem pudesse ser interpretada de forma equivocada
pelo interlocutor, o falante procura lançar mão de outros
mecanismos para reforçar que determinada informação deve ser
entendida como Foco, e não como Tópico ou Organizador de
Cenário, por exemplo (cf. Souza, 2004).
Notas
Conforme Neves, o que se analisa na Gramática Funcional são
as frases efetivamente realizadas, para cuja interpretação se atribui
especial importância ao contexto, tanto verbal como não-verbal.
1
160
Sobre essa corrente teórica, pode-se dizer que a Escola Lingüística de
Praga, em voga nos anos 60 e 70, constitui o berço do funcionalismo
atual. Nessa época, Mathesius (1970 apud Firbas,1974), visto como
um dos principais representantes dessa corrente, já destacava, em
seus trabalhos, que na comunicação as formas lexicais e gramaticais
de uma língua são produzidas para servir a um propósito especial
imposto sobre elas pelos falantes no momento da interação.
Segundo Neves (2001), a Escola Lingüística de Praga é a designação
que se dá a um grupo de estudiosos que começou a atuar antes de
1930, para os quais a linguagem, acima de tudo, permitia ao homem
reação e referência à realidade extralingüística.
2
Para Dik (1989), as funções pragmáticas intra-oracionais dizem
respeito ao status informacional dos constituintes de uma oração
em relação à situação comunicativa.
3
Para Pezatti & Camacho (1997), o padrão geral de ordenação para
o PB é esquematizado por: P2, P1 (S) V (S) O X, P3, em que o X
é usado para indicar a posição dos satélites adverbiais.
4
P2 e P3 são as posições reservadas, respectivamente, para Tema
(Theme) e Antitema (Tail), e as vírgulas indicam pausas
entoacionais.
5
Os dados são provenientes do corpus mínimo do Projeto de Gramática
do Português Falado (PGPF), de diferentes capitais brasileiras, a saber:
São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre, Recife e Salvador.
6
Em estudo sobre o uso das estratégias de focalização, Brentan
(2001) verificou que a proeminência prosódica, de fato, é a estratégia
mais utilizada no Inglês para a marcação de Foco.
7
8
Como constituintes da oração propriamente dita, estamos
161
considerando apenas os termos argumentais (A1, A2, A3). Já os
termos não-argumentais, típicos da predicação estendida, também
são considerados, porém, apenas para se referir ao processo de coocorrência de estratégias de focalização.
Segundo Cucolo (2002), ocorrências como (11), no entanto,
mostram que o Português, assim como outras línguas, necessita
de uma outra posição (Pa) para alocar constituintes com uma
função pragmática especifica, quando a P1 já estiver ocupada por
um constituinte-P1.
9
Para maiores esclarecimentos, conferir também o trabalho de
Souza (2003a) sobre a focalização dos constituintes adverbiais no
interior da oração.
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164
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Portuguese: a functional approach. In: The 2003 International
165
OS LIMITES SEMÂNTICOS DE HUMPTY DUMPTY
Luciano Amaral Oliveira*
RESUMO: Humpty Dumpty é um personagem de “Alice no
País do Espelho”, de Lewis Carroll. Seu comportamento rebelde
em relação ao significado das palavras é o ponto de partida para
se problematizar os limites semânticos impostos aos leitores e aos
falantes-ouvintes de uma língua natural. Dois livros de Umberto
Eco sobre essa questão servem de base para se mostrar quais são
esses limites.
PALAVRAS-CHAVE: Interpretação, Leitor, Significado Literal.
ABSTRACT: Humpty Dumpty is a character in “Alice through
the Looking Glass”, by Lewis Carroll. His rebel-like behavior
in relation to the meaning of words is the starting point of the
problematization of the semantic limits of readers and speakerhearers of a natural language. Two books by Umberto Eco on this
matter serve as a basis for the showing what those limits are.
KEY-WORDS: Interpretation, Reader, Literal Meaning.
167
*Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS
Pra começo de conversa...
“Você terá a glória!”
“Eu não sei o que você quer dizer com ‘glória’” – retrucou
Alice.
Humpty Dumpty sorriu com desdém – “É claro que você não
sabe – até que eu diga a você. Eu quis dizer que você terá um belo
e incontestável argumento!”
“Mas ‘glória’ não significa ‘um belo e incontestável argumento’”
– contestou Alice.
“Quando eu uso uma palavra” – disse Humpty Dumpty em um
tom bastante zombeteiro – “ela significa exatamente o que eu quero
que ela signifique, nem mais nem menos.”
“A questão é” – disse Alice – “se você pode fazer com que as palavras
signifiquem tantas coisas diferentes”. 1
(CARROLL, 2000, tradução minha)
Ovo simpático e rebelde é esse tal de Humpty Dumpty. Seu
comportamento pós-moderno confunde a cabeça da ingênua Alice,
leitora moderna de um país de espelhos desconstruídos. Afinal,
como é que Humpty Dumpty se acha com o poder de dar a uma
palavra o significado que ele quiser? Alice parece não perceber que,
no mundo maravilhoso e espelhado vislumbrado pelo matemático
Lewis Carroll, Humpty Dumpty tem esse poder. Até mesmo ela,
Alice, poderia ter esse poder se quisesse.
Entretanto, no mundo positivistamente real em que os leitores
carrollianos (e drummondianos, derridianos, etc.) se encontram e
funcionam socialmente, os leitores e falantes-ouvintes podem dar
às palavras os significados que eles quiserem? Eles se comportam
como Humpty Dumpty ou eles obedecem a limites semânticos
nos atos da interpretação e do uso das palavras?
Algumas pessoas responderiam prontamente que o leitor e
o falante-ouvinte não se comportam como o ovo em questão. E,
provavelmente, elas não abririam mão de evocarem a obviedade
168
da resposta. Mas o óbvio afirmado e o acordo tácito inconteste não
bastam à academia. A obviedade é tão relativa quanto a dicotomia
certo/errado. O que é óbvio para muitos desconstrutivistas, por
exemplo, parece absurdo para quem não compartilha das crenças
desconstrutivistas. Por outro lado, a obviedade da existência do
significado literal é execrada por desconstrutivistas de plantão.
Assim, é necessário que se busquem evidências para os limites
semânticos impostos ao leitor e ao falante-ouvinte. E é exatamente
a isso que este ensaio se propõe: mostrar que existem limites
semânticos que são impostos aos leitores e aos falantes-ouvintes
(note-se que o uso da voz passiva aqui não foi por acaso). Portanto,
pra começo de conversa, que uma coisa fique clara: o leitor não se
comporta como Humpty Dumpty, seja esse leitor moderno ou
pós-moderno. Os limites semânticos impostos a esse leitor são o
que interessa a este ensaio.
Então, indo ao que interessa...
Em 1992, um vendaval francês sacudiu os alicerces dos
filósofos da conservadora Universidade de Cambridge. Eram as
idéias desconstrutivistas construídas por Jacques Derrida na década
de 1960 (COLLINS; MAYBLIN, 1997). Além de aumentar a
fogueira de vaidades acadêmicas e de provocar reflexões filosóficas
na terra da Sua Majestade, os ventos derridianos sopraram nos
quatro cantos do mundo, influenciando não apenas filósofos, mas
também teóricos da tradução e críticos literários.
De acordo com Jeff Collins e Bill Mayblin (ibidem, p. 16),
o trabalho de Derrida é dominado pela idéia de um vírus que
introduz desordem na comunicação e que não é vivo nem morto.
Isso implica as idéias de indeterminação e de instabilidade, que
foram apropriadas por teóricos da tradução e por críticos literários.
Stephan Collini (2001, p. 9) deixa isso bem claro, quando comenta
a respeito de Umberto Eco:
Tendo sido uma das pessoas mais influentes a chamar
169
a atenção, nos anos 60 e 70, para o papel do leitor no
processo de “produzir” significado, mostrou, em sua
obra mais recente, apreensão quanto à maneira pela qual
algumas das principais correntes do pensamento crítico
contemporâneo, em particular aquele tipo de crítica
americana inspirada em Derrida, autodenominada
“Desconstrução” e associada sobretudo ao trabalho de
Paul de Man e J. Hillis Miller, parecem dar licença ao
leitor de produzir um fluxo ilimitado e incontrolável
de “leituras”.
Com efeito, os teóricos que defendem o poder exclusivo do
leitor para criar significados fazem questão de enfatizar a natureza
indeterminada e instável do significado, negando veementemente
a existência dos significados literais, i.e. estáveis, no texto. Por
exemplo, Rosemary Arrojo e Kanavillil Rajagopalan (1992, p. p.
47), teóricos pós-estruturalistas da tradução, contestam o significado
literal, que é “tradicionalmente associado a uma estabilidade de
significado, inerente à palavra ou ao enunciado, que supostamente
preserva a linguagem da interferência de quaisquer contextos e/ou
interpretações.” As palavras de Arrojo e Rajagopalan merecem
alguns comentários.
A associação entre estabilidade e literalidade procede. O
significado literal é entendido como sendo um significado estável
em uma comunidade lingüística. Entretanto, é necessário cuidado
no uso do termo “inerente”. O fato de um significado ser estável
não significa que uma determinada palavra tenha um significado
que lhe seja inerente, fixo e imutável. Se isso fosse verdade,
não haveria mudanças semânticas e expressões idiomáticas. A
suposição manifestada por Arrojo e Rajagopalan, i.e., a de que o
significado literal, estável, “preserva a linguagem da interferência
de quaisquer contextos e/ou interpretações”, é improcedente.
Há aí um radicalismo no argumento: força-se o atrelamento de
“inerente” a “literal” para sustentar as idéias de indeterminação e
de instabilidade do significado.
Stanley Fish (2000, p. 268), crítico literário de grande influência
170
nos anos 1980 e 1990, também se apropria dessas duas idéias para
defender o poder do leitor e negar o significado literal:
[...] a língua não tem uma forma independente do
contexto, mas, como a língua é encontrada apenas em
contextos e nunca no abstrato, ela sempre tem uma
forma, embora nem sempre seja a mesma. O problema
com essa formulação é que, para muitas pessoas, a
determinação é inseparável da estabilidade: a razão pela
qual nós podemos especificar o significado de um texto
é porque um texto e seus significados nunca mudam.
2
(tradução minha)
Ora, defender-se a estabilidade do significado, na figura
do significado literal, não significa defender a idéia, indefensável,
de que um texto e seus significados nunca mudem. Os textos de
Wilhelm Reich foram considerados subversivos e perigosos pela
democracia norte-americana nos anos 1950, mas, nos últimos vinte
anos, transformaram-se em importantes fontes de pesquisa para
a elaboração de terapias corporais nos Estados Unidos, como a
Bioenergética, de Alexander Lowen. É importante, sim, que se
dê ao leitor o seu devido valor: ele não é um sujeito passivo que
busca no texto o significado que o autor colocou ali. Contudo, é
necessário reconheer-se que o leitor produz significados com base
naquilo que o autor colocou no texto, com base nos significados
literais do texto.
Na verdade, o debate em torno da determinação e da
estabilidade do significado está inserido em uma questão maior,
chamada por Eco (2001, p. 27) de “dialética entre os direitos do
texto e os direitos de seus intérpretes”. As idéias de indeterminação
e de instabilidade, originadas nos pensamentos de Derrida, foram
apropriadas pelos defensores do poder do leitor com o objetivo
de minar os argumentos a favor do poder do texto. Segundo esses
defensores, se o significado é indeterminado e instável, ele não
pode estar no texto. E se o significado não está no texto, o leitor
é que o produz.
171
O problema da argumentação de muitos defensores do
poder do leitor é o radicalismo. Arrojo (2002), por exemplo, chega
a afirmar que o texto não tem conteúdo até o momento em que
é interpretado pelo leitor, sendo seguida por inúmeros teóricos
pós-estruturalistas da tradução no Brasil. Eco (2001, p. 27) faz
uma crítica elegante a radicalismos desse tipo ao afirmar: “Tenho
a impressão de que, no decorrer das últimas décadas, os direitos
dos intérpretes foram exagerados”.
Eco está certo. Afinal, como é possível negar a existência
de significados no texto, dando-se o poder de criação de significados
exclusivamente ao leitor? E se o leitor cria significados por meio
da interpretação que impõe ao texto, há limites para essa criação?
O que o impede de se comportar como Humpty Dumpty? E se o
texto não tem conteúdo, não possui significados antes da leitura,
o que o leitor interpreta?
Os defensores radicais do poder do leitor se vêem em
apuros com essas perguntas. Eles admitem que o leitor não se
comporta como Humpty Dumpty. Admitem que há limites para
a interpretação. Mas não conseguem dizer quais são esses limites
nem responder à pergunta sobre o objeto da interpretação.
Segundo Eco (ibidem, p. 28), “[...] como Todorov sugeriu
maliciosamente (citando Lichtenberg a propósito de Boeheme), um
texto é apenas um piquenique em que o autor entra com as palavras
e os leitores com o sentido”. Eco (ibidem, p. 28) acrescenta: “Mesmo
que isso fosse verdade, as palavras trazidas pelo autor são um
conjunto um tanto embaraçoso de evidências materiais que o leitor
não pode deixar passar em silencio, nem em barulho”. Entretanto,
apesar das evidências materiais e da dificuldade insuperável de
dizer qual é o objeto da interpretação (já que, alega-se, o texto não
possui significados), os defensores do poder do leitor não admitem
a existência do significado literal. Resta a eles, então, radicalizar ao
extremo, como faz Arrojo (1992, p. 39):
[...] para a reflexão desconstrutivista, o significado
não se encontra preservado no texto, nem na redoma
supostamente protetora das intenções conscientes de
172
seu autor, tampouco nasce dos caprichos individualistas
do leitor rebelde; o significado se encontra, sim, na
trama das convenções que determinam, inclusive,
o perfil, os desejos, as circunstâncias e os limites do
próprio leitor.
Observe-se a saída de Arrojo: o objeto da interpretação, o
leitor e o significado são todos produtos das convenções. Em outras
palavras, é a comunidade que determina tudo. De onde Arrojo
tirou essa posição tão radical? Do pensamento de Fish (2000),
que elimina o texto e o leitor “de um só golpe” e para quem as
comunidades interpretativas determinam tudo: autor, leitor, texto,
significados. Nas palavras de Fish (2000, p. 14):
[...] são as comunidades interpretativas, ao invés do
texto ou do leitor, que produzem significados e que
são responsáveis pela emergência de traços formais.
Comunidades interpretativas são formadas por
aqueles que compartilham estratégias interpretativas
não para a leitura mas para a escrita de textos, para a
constituição de suas propriedades. Em outras palavras,
essas estratégias existem anteriormente ao ato de leitura
e, portanto, determinam a forma do que é lido ao invés
do contrário, como geralmente se presume. (tradução
minha) 3
Incapaz de manter a sua posição a respeito do poder do
leitor de criação de significados sem responder às perguntas sobre
o objeto da interpretação e sobre os limites da interpretação, Fish
apela para o conceito de comunidades interpretativas, que passou
a ser adotado por outros teóricos. Ironicamente, ao adotarem esse
conceito, eles devem admitir que tudo é anterior à leitura, inclusive
o significado. Adotam, também, uma postura monista radical,
segundo o crítico literário Jonathan Culler (1997, p. 84):
O que vemos nas manobras de Fish são momentos de
uma luta geral entre o monismo da teoria e o dualismo
173
da narrativa. As teorias de leitura demonstram a
impossibilidade de estabelecerem-se distinções bem
fundamentadas entre o fato e a interpretação, entre o
que pode ser lido no texto e o que lhe é adicionado pela
leitura, ou entre o texto e o leitor, e assim conduzem
a um monismo. Tudo é constituído pela interpretação
– tanto que Fish admite não poder responder à seguinte
pergunta: Atos interpretativos são interpretações do
quê? [...] Histórias de leituras, no entanto, não deixam
essa pergunta sem resposta. É preciso que haja sempre
dualismos: um intérprete e algo a interpretar, um sujeito
e um objeto, um ator e algo sobre o que ele age ou que
age sobre ele.
Do exposto até aqui, alguns pontos ficam claros. Em primeiro
lugar, teóricos têm debatido a respeito da criação de significado.
Alguns defendem a existência de significados no texto antes da
leitura, i.e., a existência de significados literais, sem negar o poder
de criação de significados por parte do leitor. Outros negam
o significado literal e conferem ao leitor o poder de criação de
significados, que inexistem no texto até o momento em que é
interpretado pelo leitor. Em segundo lugar, os defensores radicais
do poder do leitor não conseguem responder à pergunta sobre o
que o leitor interpreta se não há significados no texto antes da
leitura. Em terceiro lugar, todos os teóricos envolvidos no debate
admitem que há limites da interpretação, sendo que os defensores
radicais do poder do leitor não esclarecem quais são esses limites.
Finalmente, os defensores radicais do poder do leitor adotam
o conceito fishiano de comunidades interpretativas, assumindo
uma postura monista e escapando das perguntas sobre o objeto
da interpretação e sobre os limites semânticos do leitor, que não
se comporta como Humpty Dumpty.
Finalizando...
Humpty Dumpty não tem limites semânticos. Ele faz
174
o que quiser. Tem o poder para isso. Felizmente, para o bem da
comunicação e da convivência social, o leitor e o falante-ouvinte
têm limites semânticos que o impedem de produzir significados
caóticos. Isso é evidenciado na admissão de todos os teóricos
envolvidos no debate em torno da criação de significados: há limites
para a interpretação. E por quê? Porque os textos e as palavras
possuem significados literais, significados a priori, significados
estáveis.
É importante deixar claro o que são significados literais,
estáveis. Todo falante-ouvinte de uma língua natural, ao adquirir
essa língua, adquire um conjunto de palavras que fazem parte
do léxico dessa língua. Ao adquirirem essas palavras, os falantesouvintes adquirem também os significados dessas palavras, a
elas atrelados pela comunidade lingüística em um determinado
momento da história. Note-se também que, ao longo da história
dessa língua, a comunidade pode modificar os significados das
palavras.
Assim, as palavras sempre possuem significados anteriormente
ao uso que se faz delas. O falante-ouvinte ou o leitor, ao usar uma
palavra, já a recebe com um significado que a ela foi atrelada pela
sua comunidade lingüística. Isso não significa, entretanto, que o
leitor e o falante-ouvinte não possa acrescentar significações ao
significado literal. Os falantes-ouvintes e os leitores e escritores
compartilham esses significados, mas cada um os interpreta a sua
maneira, de acordo com sua história pessoal e com o contexto em
que se encontra.
São esses significados que o leitor interpreta no texto. Os
significados literais são os limites da interpretação do leitor. São os
significados literais que impedem o leitor de se comportar como
Humpty Dumpty. Por exemplo, imagine-se que um poema de
um certo poeta apresenta a palavra “banana”. Cada leitor pode
interpretar “banana” de uma forma diferente da outra, mas todos
partirão do significado literal de “banana” para realizar suas
interpretações, qual seja, uma fruta com tais e tais características
prototípicas. É muito pouco provável que alguém parta do
175
pressuposto de que “banana” significa “ornitorrinco maluco sem
pernas”, como Humpty Dumpty poderia fazer.
Eco (2000, p. 10-11) lembra um episódio interessante que
ocorreu em 1984. Derrida enviou a Eco uma carta informando que
estava criando, junto com uns amigos, um Collège International
de Philosophie e pediu-lhe uma carta de apoio. Eco comenta que
partiu de alguns pressupostos para interpretar a carta de Derrida,
como, por exemplo, o pressuposto de que ele estava dizendo a
verdade. Eco comenta o seguinte a respeito da interpretação que
fez :
É óbvio que a carta de Derrida teria podido assumir
para mim outros significados, estimulando-me a fazer
suspeitosas conjecturas sobre o que ele queria “dar-me a
entender”. Mas qualquer outra inferência interpretativa
(por mais paranóica que fosse) ter-se-ia baseado no
reconhecimento do primeiro nível de significado da
mensagem, literal.
É exatamente esse primeiro nível de significado que
Humpty Dumpty não reconhece ao usar a palavra “glória” na
sua conversa com Alice, que protesta por essa rebeldia semântica.
Uma rebeldia que o pós-modernismo gostaria de ver encarnada
no seu leitor, mas que não pode defender. Terry Eagleton (1998,
p. 35) lembra que o pós-modernismo:
Ao mesmo tempo libertário e determinista, sonha
com um sujeito livre de limitações, deslizando feito
um desvairado de uma posição a outra, e sustenta
simultaneamente que o sujeito é o mero efeito do
conjunto de forças que o constituem.
Os limites semânticos de Humpty Dumpty são aqueles que
ele quiser ter. Já os limites semânticos do leitor, moderno ou pósmoderno, desconstrutivista ou desconstruído, são os significados
literais. Desses limites, ninguém escapa. Só Humpty Dumpty.
176
NOTAS
cf. trecho original:
“There’s glory for you!”
“I don’t know what you mean by ‘glory’,” Alice said.
Humpty Dumpty smiled contemptuously. “Of course you don’t
– till I tell you. I meant ‘there’s a nice knock-down argument for
you!’”
“But ‘glory’ doesn’t mean ‘a nice knock-down argument’,” Alice
objected.
“When Iuse a word,” Humpty Dumpty said in rather a scornful
ton,
“it means just what I choose it to mean – neither more nor less.”
“The question is,” said Alice, “whether you canmake words mean
so many different things.
1
cf. o trecho original: [...] language does not have a shape
independent of context, but since language is only encountered in
contexts and never in the abstract, it always has a shape, although
it is not always the same one. The problem with this formulation
is that for many people determinancy is inseparable from stability:
the reason that we can specify the meaning of a text is because a
text and its meanings never change.
2
cf. o trecho original: [...] it is interpretive communities, rather
than either the text or the reader, that produce meanings and are
responsible for the emergence of formal features. Interpretive
communities are made up of those who share interpretive
strategies not for reading but for writing texts, for constituting
their properties. In other words these strategies exist prior to the
act of reading and therefore determine the shape of what is read
3
177
rather than, as is usually assumed, the other way around.
REFERÊNCIAS
ARROJO, Rosemary. A desconstrução do logocentrismo e a
origem do significado. In: ARROJO, Rosemary. (Org.) O
signo descontruído – implicações para a tradução, a leitura e o
ensino. Campinas: Pontes Editores, p. 35-39, 1992.
______. Oficina de tradução: a teoria na prática. 4. ed. 3. imp.
São Paulo: Ática, p. 85, 2002.
______; RAJAGOPALAN, Kanavillil. A noção de literalidade:
metáfora primordial. In: ___. (Org.) O signo descontruído
– implicações para a tradução, a leitura e o ensino. Campinas:
Pontes Editores, p. 47-54, 1992.
CARROLL, Lewis. Alice through the looking glass. Disponível
em: < http://www.cs.indiana.edu/metastuff/looking/ch6.html.
gz>. Acessado em: 13/03/2004.
COLLINI, Stephan. Introdução: interpretação terminável
e interminável. In: ECO, Umberto. Inter pretação e
178
superinterpretação. Tradução Editora Martins Fontes. São Paulo:
Martins Fontes,p.1-25, 2001. Título original: Interpretation and
overinterpretation.
COLLINS, Jeff; MAYBLIN, Bill. Introducing Derrida. reimp.
Grã-Bretanha: Totem, 1997.
CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do
pós-estruturalismo. Tradução Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro:
Rosa dos Tempos, 1997. Título original: On deconstruction:
theory and criticism after structuralism.
EAGLETON, Terry. As ilusões do pós-modernismo. Tradução
Elizabeth Barbosa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. Título
original: The illusions of postmodernism.
ECO, Umberto. Os limites da interpretação. Tradução Pérola de
Carvalho. São Paulo: Perspectiva, 2000. Título original: I limiti
179
PRODUÇÃO DE TEXTO NA ESCOLA: UMA
PRÁTICA DIALÓGICA
Janete Silva dos Santos*
RESUMO: O presente texto é um resgate de uma experiência bem
sucedida no ensino de produção de texto para uma clientela de
ensino fundamental (5ª a 7ª séries), durante nossa atuação naquele
nível. Todavia, aproveitamos a ocasião para discutir alguns pontos
da aparente mudança de foco quanto ao ensino de produção de
texto na escola hoje. Julgamos válido apresentar o que ficou de
positivo desse trabalho, bem como refletir se estamos mudando
efetivamente de atitude no tocante a essa atividade, à luz da teoria
de Bakhtin (entre outros), o qual vê a linguagem como uma prática
dialógica.
PALAVRAS-CHAVE: Produção de texto, Dialogismo, Ensino.
ABSTRACT: The present text is well a ransom of an experience
happened in the teaching of text production for a clientele of
fundamental teaching (5th to 7th series), during our performance in
that level. Though, we profited the occasion to discuss some points
of the apparent focus change with relationship to the teaching
of text production in the nowadays school. We judged valid to
present what was positive of that work, as well as to contemplate
if we are changing indeed of attitude concerning that activity, to
the light of the theory of Bakhtin (among other), which sees the
language as a dialogic practice.
KEY WORDS: Text production, Dialogism, Teaching.
181
* Profª Mestrenda Universidade Federal de Tocantins - UFT
INTRODUÇÃO
A produção de texto na escola vem sendo o foco da preocupação
de professores, psicolingüistas e educadores em geral, numa escala
cada vez maior, haja vista ser uma das metas da educação formal
desenvolver no aluno, entre outras competências, a prática da
comunicação escrita. Isso vem aflorando exatamente porque o
alcance de tal meta tem sido uma das maiores dificuldades das
instituições escolares. Contudo, pesquisas e artigos de estudiosos
envolvidos com o assunto têm contribuído não apenas para a
reflexão, como também para redimensionar posições teóricas,
metodologias e técnicas que corroborem ou efetivem a prática da
produção de texto não como uma atividade artificial, mas como
uma atividade motivada por um sujeito que se assuma, ou se
pretenda, como autor do texto.
Considerando os caminhos pelos quais as investigações vêm
percorrendo, julgamos interessante contribuir com o debate,
levando em conta nossa experiência como professora de ensino
fundamental, trabalhando seqüencialmente com praticamente
os mesmos alunos na 5ª, 6ª e 7ª séries, nos anos de 1996 a 1998,
respectivamente, trabalho que nos deu muita satisfação. Nessa
contribuição, entendemos ser relevante apresentar apenas o
como nos conduzíamos em situações que envolviam a prática de
produção de texto por parte de nossos alunos. Nossa inquietação
surge, também, por percebermos que, apesar de todo o esforço,
muitos de nós ainda andam em círculo no tocante à concepção/
prática do que seja, de fato, o trabalho de produção de texto para
o autor-aluno.
Nosso posicionamento parte do princípio de que só
participamos de um bate-papo com interesse se houver a retroalimentação por parte de nosso interlocutor. E isso havendo
temos a oportunidade de aperfeiçoar nossa competência. Se na
oralidade isso é tão real quanto à existência do ar que nos mantém
vivos e se a troca enunciativa, nessa modalidade, visa à efetivação
182
comunicativa, na produção escrita não é diferente. É deste diálogo
que nos ocuparemos no decorrer de nossa discussão, a qual terá
como suporte teórico básico o dialogismo bakhtiniano.
ANTES ERA A COMPOSIÇÃO
Houve uma época de nossa vivência escolar em que, na
disciplina Comunicação e Expressão, éramos incitados a compor um
texto para a(o) professora(o), a(o) qual verificava semanal ou
mensalmente se estávamos progredindo no domínio da arte de escrever
- talvez porque compor tenha a conotação de trabalho de artista
- mas, e principalmente, verificava se estávamos progredindo no
domínio das regras da língua. É justo destacar que, nesse tempo, durante
algumas datas especiais o aluno fazia o papel de autor do escrito
quando era solicitado a escrever, sob orientação da(o) professora(o),
uma cartinha ou um cartão para a mãe, o pai, o avô ou avó, o tio
ou a tia, ou para o Papai Noel, quer no dia dos dois primeiros,
quer no Natal, entre outras comemorações, acreditando o aluno
ter um interlocutor verdadeiro que reagiria aos efeitos de seu
dizer, manifestando uma atitude que lhe sinalizaria retorno da
mensagem enviada.
DEPOIS VEIO A REDAÇÃO
Entendeu-se, no decurso, que redigir era o verbo mais
apropriado para as tarefas escriturárias, e com ele o substantivo
redação virou lugar comum, de tal maneira, que nem professores e
pesquisadores o suportariam mais, pois a palavra redação por si só
passou a abarcar toda a angústia da dificuldade e artificialidade de
escrever. O texto do aluno, como é sabido, servia prioritariamente
de instrumento para se verificar o conhecimento ortográfico e o
domínio do uso adequado da pontuação e concordância, avançando
para a verificação da capacidade do aluno em não fugir ao tema
proposto (imposto), pouco importando o que o aluno pensava ou
dominava efetivamente sobre tal tema, ou se estava motivado para
desenvolvê-lo. A correção por parte do professor, numa pesquisa
183
de Eliana Ruiz (2001, p. 48) “consiste, dessa forma, no trabalho
de marcar no texto do aluno as possíveis “violações” lingüísticas
nele cometidas contra uma suposta imagem do que venha a ser
um bom” texto. Todavia, também é justo reconhecer que se
trabalhou incansavelmente para proporcionar ao aluno motivos
para escrever, através de dinâmicas de envolvimento com o tema:
discussões, jogos, texto-estímulo etc..
AGORA É A PRODUÇÃO DE TEXTO
Com o tempo, evoluiu-se para a preocupação com a mensagem,
na verdade, com a coesão e coerência do texto, entre outros elementos
que acusem textualidade, o que não difere, a nosso ver, do objetivo
de se verificar a capacidade de se ser fiel a um tema proposto.
Mas o diferencial das falas passou a ser a defesa de se acentuar o
conteúdo sobre a forma, orientação que, também, já se ventilava
na atividade de redação. Entretanto, hoje, procura-se defender a
liberdade de expressão do aluno, a valorização de seu dizer, a quebra
de padrões de escrita que inibem a autoria bem como anulam o
desenvolvimento do estilo embrionário do aluno-autor. Defendese, assim, a produção de textos de gêneros variados, levando-se em
conta, de maneira mais concreta, as diversas funções da linguagem,
até o fato de que conteúdo e forma não estão dissociados, não sendo
coerente, portanto, sobrepor –se um ao outro.
Nessa linha, o que vem tomando corpo como objeto de
estudo e aplicação na sala de aula é o processo da produção de texto,
da produção discursiva com suas tentativas de conjugar a estabilidade
e a instabilidade da língua (Fiorin, 1999), daí a valorização do como o
aluno constrói um texto coeso, do como a coerência se apresenta em
seu texto, do que interessa ao aluno dizer; fomenta-se, principalmente,
o incentivo, mais ainda no ensino fundamental, a assunto de
interesse público, de preferência que envolva o contexto imediato
do aluno-autor. Por isso as várias empreitadas para se convencer o
aluno de que é capaz de escrever, de que escrever é bom, evitandose, inclusive, devolver-lhe o texto pichado de sangue. Nesse novo
184
contexto, muitos professores sentem-se até inibidos de apontar
as incoerências do texto, causadas por quebra de regras básicas na
comunicação escrita.
Sem dúvida, todo esse nosso esforço é válido e necessário, uma
vez que tateamos caminhos mais promissores para a inculcação
da escrita como competência lingüística necessária para a vida
em sociedade letrada, competência lingüística na prática social
de indivíduos que têm obrigação, pelos anos de vida acadêmica, de
manifestar níveis satisfatórios de letramento nessa habilidade.
Mas o que nos inquieta é que saltamos de um alvo para outro sem
mudarmos o foco.
A questão parece paradoxal colocada nesses termos, porém,
recuperando o princípio que propusemos na introdução deste
texto, o dialogismo bakhtiniano, não cedemos, ainda, o devido
lugar ao diálogo com o texto do aluno.
Bakhtin (1997) concebe a língua como um lugar de conflitos
em busca de ajustes e um produto gerado e sustentado na (e pela)
interação verbal, cujo objetivo precípuo é a troca enunciativa. A
língua é vista, fundamentalmente, como a base da comunicação
verbal, com todas as implicações que ela, elemento complexo,
envolve. Ao discordar das posições de teóricos que defendem o
processo comunicativo como a relação entre locutor e ouvinte,
em que o primeiro tem uma fala ativa e o segundo uma percepção
passiva, diz o autor (p. 290; 291):
... o ouvinte que recebe e compreende a significação
(lingüística) de um discurso adota simultaneamente,
para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele
concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa,
adapta, apronta-se para executar, etc., e esta atitude do
ouvinte está em colaboração constante durante todo o
processo de audição e de compreensão desde o início
do discurso, às vezes já nas primeiras palavras emitidas
pelo locutor. A compreensão de uma fala viva, de um
enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude
responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja
185
muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta
e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz:
o ouvinte torna-se locutor.
Este destaca a impossibilidade de real inércia frente aos
enunciados que nos são propostos, por mais que não manifestemos
resposta imediata e na mesma freqüência que os recebemos, ao
prosseguir dizendo:
A compreensão passiva das significações do discurso
ouvido é apenas o elemento abstrato de um fato real
que é o todo constituído pela compreensão responsiva
ativa e que se materializa no ato real da resposta fônica
subseqüente. Uma resposta fônica, claro, não sucede
infalivelmente ao enunciado fônico que a suscita: a
compreensão responsiva ativa do que foi ouvido (por
exemplo, no caso de uma ordem dada) pode realizarse diretamente como um ato (a execução da ordem
compreendida e acatada), pode permanecer, por certo
lapso de tempo, compreensão responsiva muda (certos
gêneros do discurso fundamentam-se apenas nesse
tipo de compreensão, como, por exemplo, os gêneros
líricos), mas neste caso trata-se, poderíamos dizer, de
uma compreensão responsiva de ação retardada: cedo ou
tarde, o que foi ouvido e compreendido de modo ativo
encontrará um eco no discurso ou no comportamento
subseqüente do ouvinte.
E esse dialogismo não fica apenas no que o autor classifica
como gêneros primários, ou seja, os gêneros da comunicação
verbal espontânea, que dão suporte ao surgimento dos gêneros
secundários. É o que mostra na finalização do parágrafo em
comento, ao esclarecer:
Os gêneros secundários da comunicação verbal, em
sua maior parte, contam precisamente com esse tipo
de compreensão responsiva de ação retardada. O que
acabamos de expor vale também, mutatis mutandis,
186
para o discurso [lido ou escrito].
O discurso lido ou escrito (grifo nosso) de que fala Bakhtin
é o foco de nossa argumentação. O autor chama a atenção para
o processo de troca enunciativa como uma prática de provocação
mútua que dá sustentação, sentido e prosseguimento aos atos
comunicativos.
O aluno provocado pelo professor a um diálogo oral na sala
de aula, em geral, só se furta a participar visivelmente se for muito
tímido, ou se não tiver o mínimo domínio sobre o assunto, ou
se julgar o papo chato. Mesmo assim sua atitude de contenção ou
indiferença, para Bakhtin, seria considerada uma atitude responsiva,
responsiva muda ou de ação retardada.
Entendemos que, se o professor estivesse, de fato, pretendendo
a participação manifesta imediata e concretamente de um
aluno durante as discussões, a atitude descrita provavelmente
poderia causar-lhe um certo desânimo ou frustração. Por outro
lado, que professor experiente não percebe que certos alunos,
ao se manifestarem, o fazem apenas para cumprir protocolo?
Assim, o diálogo tende a morrer ou a tornar-se um faz-de-conta
enfadonho.
Um texto escrito é uma proposta (expectativa) de diálogo com
o outro, ausente no momento da produção, mas que se interessará,
ou não, pelo enunciado captado, devolvendo-nos a resposta,
esperada ou não. E isso, de alguma forma, é do conhecimento
intuitivo do aluno. Não fica difícil, assim, suspeitar a dimensão
do desânimo que dá àquele que tem que fazer de conta que quer dizer algo
a alguém que ( já sabe de antemão) pouco se importa com o que ele diz, mas com
o como ele diz, quando se importa.
Evidentemente que não podemos generalizar, todavia, só
trazemos à baila o dizer do aluno escrevente, só permitimos que ele,
o dizer, nos incomode, se tivermos interesse, de fato, pela vida de
nosso aluno. Na vida, evitamos dialogar com pessoas desagradáveis
ou que nos são desinteressantes: ou elas, ou seu dizer. Em suma,
nossa análise nos faz perceber que ainda lidamos com a produção
187
de texto como uma atividade mecânica, já que não há espaço em
nossos interesses ao discurso do aluno, considerando que, segundo
Ruiz, a leitura feita pelo professor, via correção, não é [em momento algum]
a mesma que a leitura realizada por um leitor comum (Ruiz, 2001, p. 48).
Esforçamo-nos por tratar o texto do aluno como um objeto
sagrado: se não para reconhecer seu domínio da ortografia e
dos usos adequados da pontuação e concordância, ou ainda de sua
fidelidade ao tema, mas para analisar como ele consegue amarrar
seu texto de forma a dar-lhe um sentido, sentido este que não nos
interessa, pois concebemos, na prática, o aluno como uma cabeça
oca. Alguns ainda diriam: não é cabeça oca, pois ela está cheia de
tudo o que já estamos carecas de saber. Mas, se diálogo é provocar o
outro a uma participação no dito...
As experiências negativas e positivas por que passamos é que
nos fizerem refletir e mudar nossa visão de produção de texto e
nossa prática de sala de aula. Daí o interesse em socializá-la, na
tentativa de contribuir para o tratamento dado à questão.
EXPERENCIANDO O DIÁLOGO COM O DIZER DO
OUTRINHO
Ao palestrar sobre os interesses do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra-MST, Stedile (apud CHEVITARESE,
2002, p. 240-241), líder do movimento, declara:
nós procuramos incorporar na nossa organização o
valor da mística, que para nós é a forma de organizar o
sentimento coletivo; e o sentimento não tem razão (...)
ele aglutina pessoas através de símbolos (...) de práticas
pedagógicas, de posturas sociais...
O sentimento que, segundo Stedile, move montanhas e impulsiona
ideiais (p. 240) é sempre bem vindo a uma prática pedagógica que foge
ao mecanicismo e à artificialidade. Penso ter sido isso que nos fez
experenciar uma relação diferente com os textos dos alunos. O
aluno precisa sentir que seu texto vale, que o professor tem interesse
188
por suas idéias, mesmo infantis, mesmo podendo estas não serem
novidades para o professor.
DIRETO AO PONTO
Marcos1, como muitos de seus colegas, era um aluno de 6ª
série, muito falante, mas com uma particularidade: na escrita, era
muito sucinto, indo direto ao assunto. Seus interesses não diferiam
dos garotos de sua idade. Como aprendera a ver a escrita como uma
modalidade de comunicação, tinha oportunidade de comunicar em
seus textos sua subjetividade, expectativas e frustrações, críticas
e defesas ao que o circundava. No momento de socializar para a
turma seu dizer, não ficava inibido, pois desde a 5ª série sabia que
não escrevia apenas para a professora.
Beto2 passou a ser nosso aluno somente a partir da 6ª série,
tinha ojeriza à palavra redação. Para ele era um labor inútil. Ao
perguntar-lhe, certa vez, se não iria participar “daquele momento”,
respondeu-nos perguntando se poderia escrever o que quisesse,
o que estava sentindo. Dissemos que sim. No momento da
socialização do texto, agradecemos, juntamente com a turma, a
crítica que fez, por escrito, acerca da atividade – para ele, sem
propósito - e tentamos argumentar a favor da prática. Percebendo
que nos incomodou o que havia dito, na semana seguinte mostrounos um livro que estava lendo O mundo de Sofia, justificou a atitude:
sabe, fessora, depois que a senhora deu bola pro que escrevi, fiquei interessado pela
atividade; conversei com papai e ele me deu esse livro... que vai me ajudar a pensar
melhor sobre as coisas...
É interessante notar que Beto3 percebeu que não basta dizer,
mas que o como dizer facilita ou não o entendimento acerca do que se
diz. Essa relação parece que já estava impregnada nele. Daí, talvez,
a razão de recorrer a suportes. Penso que o nosso maior esforço é
convencer o aluno disso sem mecanicismo.
Carlão4, numa semana em que não dedicamos tempo às
produções individuais e às leituras dos textos, reclamou e cobrou
o tempo para a “redação” (atividade discursiva na modalidade
189
escrita), sendo apoiado por outros colegas. Isso nos fortaleceu
o entendimento de que o aluno tem o que dizer e acredita que
isso vale a pena ser dito. Só precisa o professor confirmar sua
hipótese.
Desde a 5ª série iniciamos, sem nos dar conta, um trabalho
dialógico com o texto do aluno. Evidentemente que usávamos
de qualquer expediente que julgássemos motivador para sua
discursividade através da escrita, mas o que conta aqui é o como
interagíamos com seus textos. Não nos propomos a dar receitas
infalíveis sobre como fazer o aluno escrever, nem apontar gêneros a serem
priorizados, apenas procuraremos trazer à baila como procedemos
e o que ficou de positivo na nossa avaliação.
Nesse primeiro segmento, trabalhamos com produções de
textos que priorizavam o desenvolvimento de sua capacidade de
descrever: a si mesmos, a família, a casa, a rua, a escola, a professora,
os colegas, a sala de aula, a praça que mais freqüentavam, enfim,
aquilo que achassem interessante para descrever, quer em prosa,
quer em verso. Na 6ª, trabalhamos a capacidade de narrar: sua
história, fatos marcantes de suas vidas ou que presenciaram,
projeções, suas fantasias de vida boa e a dos outros, e outras situações,
quer em texto humorístico, quer por mero relato, quer história
de ficção, fosse parodiando, fosse compondo letra de música,
entre outros gêneros. Na 7ª, eram instigados a discutir idéias,
opinar, argumentar, contestar etc., por meio escrito. Vale dizer
que, desde que iniciamos o trabalho nas três quintas séries, foi-nos
informado que acompanharíamos os alunos nas séries seguintes.
Na última série5, a 7ª, os alunos não desperdiçavam a oportunidade
para manifestar sua versão da vida, com seus conflitos, anseios,
idealizações, preconceitos e contradições.
Através de textos de alunos, pudemos sentir mais de perto o
sofrimento de quem enfrentava a separação dos pais; perceber as
fragilidades e expectativas próprias dos adolescentes, o despertar do
namoro, da paquera; compreender algumas razões da auto-estima
muito elevada de uns e muito baixa de outros. E por que a escrita
não era um terror para a quase maioria? Por que era um momento
190
de diálogo (Bakhtin, 1997) à distância com a professora, que
respondia à provocação, e com os colegas no momento da socialização.
Alguns, é verdade, eram anarquizados por certos colegas irônicos
que desdenhavam de suas histórias, opiniões, sonhos, vivências
etc.. No entanto, isso só reforçava que não escreviam para o nada
ou apenas para o professor [ter sua] redação [para corrigir] como tarefa de
“caça erros” (Ruiz, 2001, p. 47). Tinham um (uns) interlocutor (es)
atento (s) ao seu dizer; evidentemente, também, ao seu modo de
dizer, pois havia momento em que salientávamos suas habilidades e
deficiências, mas, como o conhecimento já nos era percebido como
construção, víamos como natural a manifestação das deficiências,
pois só assim poderiam ser reconhecidas e analisadas, inclusive por
eles mesmos, a fim de serem superadas ou minimizadas.
Vale reconhecer que nesse período não estávamos isentas dos
conflitos por que passam muitos professores, como, por exemplo,
a indagação: e a conclusão do programa? Entretanto, a participação
quase que espontânea da maioria dos alunos nos fazia enfrentar a
consciência confiantemente, priorizando no ensino da língua materna
o trabalho com o texto verbal e não-verbal, oral e escrito.
Destaque-se aqui que a valorização do texto do aluno,
mormente no ensino fundamental, é crucial para que este veja a
prática de produção de texto escritos como uma atividade dialógica,
dinâmica, com objetivos concretos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para concluir, gostaríamos de ressaltar que há trabalhos com
a produção de texto em sala de aula até mais eficazes, todavia,
nosso intuito foi o de chamar a atenção para o lado prático e
muitas vezes esquecido dessa atividade, isto é, se tratada como uma
atividade discursiva, como de fato é, teremos mais condições de
desmitificá-la para o estudante, que, como aluno, não deixou de ser
um praticante da linguagem, um usuário da língua, alguém cheio
de coisas a dizer, mesmo sem muita importância para outros. Ele
só espera a retro-alimentação, ou seja, encontrar alguém disposto
191
a ouvir/ler e dialogar com seu dizer, mais que unicamente com seu modo6
de dizer. Lidar com a discursividade em sala de aula é lidar com
sentimentos, também.
NOTAS
1
Nome fictício.
2
Nome fictício.
3
Nome fictício.
4
Nome fictício.
Esta foi a última série em que acompanhamos os alunos, pois o
segmento de 5ª a 8ª, nesse período, foi finalizado nesta escola, o
que vinha sendo protelado havia tempo, por mudanças no projeto
institucional.
5
A palavra modo aqui não deve ser entendida da forma que a
Análise do Discurso a toma, mas sim como a Gramática Normativa
a concebe.
6
REFERÊNCIAS
quando as ovelhas pastam no oriente:
espaços intersemióticos entre Caio
Fernando Abreu
e o I Ching: O Livro das Mutações
Anselmo Peres Alós*
RESUMO: A proposta do presente estudo é a de desenvolver uma
leitura intersemiótica da obra Ovelhas Negras, do escritor gaúcho
Caio Fernando Abreu (1995), fazendo emergir da superfície textual
seu hipotexto oriental. Se a linguagem poética sempre é ao menos
dupla, interagindo com o corpus de textos a ela contemporâneos ou
antecessores, em Caio Fernando Abreu o diálogo que estabelece
a ambivalência semiótica de seus contos remonta ao I Ching, obra
clássica chinesa que se configura como expoente de duas importantes
correntes filosóficas orientais: o taoísmo e o confuncionismo.
PALAVRAS-CHAVE: Conto Sul-riograndense, Filosofia Oriental,
Intertextualidade
RÉSUMÉ: L’avant-propos de cet étude est la élaboration d’une
lecture intersémiotique de l’oeuvre Ovelhas Negras, écrite par Caio
Fernando Abreu (1995). L’intention de cet lecture est met en
relief, dans la surface textuel, son hypotexte oriental. Si le langage
poétique se configure toujours comme un double qui dialogue
avec un corpus de textes antérieurs ou contemporaines d’elle, dans
l’oeuvre de Caio Fernando Abreu on peut affirmer que le dialogue
établi par les textes de cet livre de contes remonte au I-Ching, une
oeuvre classique de la philosophie chinoise, qui est l’expoent de
deux importantes tendences philosophiques de l’Orient: le taoísme
et le confuncionisme.
MOTS-CLÉ: Conte Sul-riograndense, Philosophie Orientale,
Intertextualité.
193
*Doutorando pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul UFRGS
As palavras só contam o que se sabe.
Mas quem disser: Deus é um espírito de paz,
Está repetindo um menino de sete anos, que acrescentou:
Eu tenho medo é de dia; de noite não,
Porque é claro.
(Adélia Prado, 2001, p. 39)
Introdução
Ovelhas Negras, livro de contos publicado por Caio Fernando
Abreu em 1995, reúne 24 textos escritos entre 1962 e 1995. O título
do livro fala por si mesmo: trata-se de uma coletânea de manuscritos
produzidos durante 33 anos de vida literária. A respeito da obra,
afirma o autor à orelha do livro: “[n]ão consigo senti-lo (...) como
reles fundo-de-gaveta, mas sim como uma espécie de autobiografia
ficcional, uma seleta de textos que acabaram ficando fora de livros
individuais”.
O que se pode apreender deste comentário é que Ovelhas
Negras se configura como a obra marginal par excellence de Caio
Fernando Abreu. Destarte, faz-se necessário pensar até que ponto
essa “marginalidade” não é intencional, se mantivermos em mente
que Abreu não apenas escreveu sobre sexo, drogas e rock’n roll,
mas também carregou os estigmas da homossexualidade e da
contaminação pelo vírus da AIDS. Talvez justamente por ser o
mais “maldito” de seus livros, Ovelhas Negras seja a chave de leitura
para sua obra (pensada enquanto um todo orgânico), ocupando
assim esse livro o mesmo lugar privilegiado que Uma Aprendizagem
ou O Livro dos Prazeres ocupa na obra de Clarice Lispector (aliás,
influência confessa de Abreu 1, deveras citada em epígrafes,
mencionada constantemente pelos narradores criados pelo autor
e mesmo pelos personagens).
Ovelhas Negras traz um arranjo estrutural arrojado e intrigante:
os contos estão divididos em três grandes blocos, contendo cada
bloco oito contos. Cada um destes blocos encontra-se sob o signo
194
de um hexagrama oriundo do I Ching, o Livro das Mutações. Ainda
que o I Ching seja considerado o mais antigo dos oráculos chineses,
faz-se necessário ressaltar que, muito mais do que um oráculo,
o Livro das Mutações é uma importante fonte de duas grandes
correntes do pensamento chinês: o taoísmo e o confuncionismo.
Ainda no âmbito estrutural do livro, cada conto traz um
pequeno prefácio, ou “o conto do conto”, como os chamou Abreu
na orelha de seu livro:
[Esses contos] foram às vezes publicados em antologias,
revistas, jornais, edições alternativas. Mas grande parte
é de inéditos relegados a empoeiradas pastas dispersas
por várias cidades, e que só agora - como pastor eficiente
que me pretendo - consegui reunir. Cada conto tem seu
“conto do conto”, freqüentemente mais maluco que o
próprio, e essas histórias também entram em forma
de mini-prefácios. A ordem é quase cronológica, mas
não rigorosa: alguns tinham a mesma alma, embora
de tempos diversos, e foram agrupados na mesma,
digamos, enfermaria.
Mais do que dar informações sobre a gênese de cada conto,
esses pequenos prefácios remetem à própria estrutura do I Ching.
Composto por 64 hexagramas, corresponde a cada hexagrama
um texto fragmentário, segmentado em quatro partes distintas:
O Julgamento (texto acrescido a cada um dos hexagramas pelo Rei
Wen), As Linhas Mutáveis (incorporadas pelo Duque de Chou) e A
Imagem e O Comentário, (incluídos por Confúcio). Os prefácios de
Abreu funcionam de forma análoga aos comentários de Confúcio
em cada hexagrama.
Se a influência de Clarice Lispector é um dado afirmado e
reiterado pelo próprio autor, como pode ser averiguado no prefácio
à segunda edição de Inventário do Ir-Remediável, o mesmo pode ser
dito da influência do I Ching em sua obra. Caio Fernando Abreu
foi um escritor profundamente interessado em estudos esotéricos,
particularmente na Astrologia, no Tarot e no I Ching. Ao explorar
195
tais referências presentes em sua obra, a intenção que se quer
mostrar não é a de tornar Abreu uma espécie de “profeta místico”
ou “personalidade iluminada”; ao contrário, o que se pretende
é, a partir da explicitação desses elementos tornar possível uma
leitura de sentidos aparentemente herméticos, presentes na obra
de Abreu e ainda não completamente explorados2. Assim, este
trabalho tem como meta, pois, investigar como se dão as relações
intertextuais entre as três primeiras narrativas do livro e o I Ching,
dado que a primeira parte do livro está colocada sob o signo de
Ch’ien, O Criativo.
Para operacionalizar as relações estabelecidas entre os textos,
utilizar-me-ei da categoria intertextualidade, forjada por Julia Kristeva
em Sèméiotikè: recherches pour une sémanalyse (1969). Kristeva parte
de Bakhtin para desenvolver a noção de intertextualidade. Se o
lingüista russo defende que a constituição de todo o enunciado
lingüístico se dá a partir de relações dialógicas entre o texto literário
e o texto histórico-social, Kristeva por sua vez avança a partir destas
reflexões, operacionalizando esse raciocínio a partir de uma visada
semiótica, formulando a já mencionada categoria:
(...) tout texte se constituit comme mosaïque des
citations, tout texte est absortion et transformation d’un
autre texte. À la place de la notion d’intersubjectivité
s’intalle celle d’intertextualité, et le language poétique
se lit, au moins, comme double (1969, p. 146).
Logo, a intertextualidade fica sendo definida como a interação
semiótica de um texto com outro texto. Intertexto, por sua vez, é
o texto ou o corpus de textos com os quais um determinado texto
mantém aquele tipo de interação. Michael Riffaterre (1978) propõe
que seja estabelecido - para definir a intertextualidade - que se leve
em consideração uma relação estabelecida através de qualquer tipo
de identidade estrutural (como se texto e intertexto se configurassem
como variantes de uma mesma estrutura). Aguiar e Silva discorda
dessa postura de Riffaterre, lembrando que tal afirmação está ligada
a uma “metafísica estruturalista” (Silva, 1993, p. 626) que falseia
196
- ao mesmo tempo em que não compreende - a dinâmica semiótica
em toda a sua abrangência. O intertexto, por sua existência anterior
e subterrânea ao texto, pode ser lido “debaixo” - por assim dizer
- da superfície do texto. Assim, há um texto outro, palimpséstico,
oculto sob o texto, o que justifica a utilização de termos como
subtexto e hipotexto no lugar da consagrada categoria intertextualidade
(Rifaterre, 1978 e 1979).
REALIZANDO A PRIMEIRA LEITURA
É sob o signo do Criativo que Caio Fernando Abreu organiza
a primeira seqüência de narrativas. Neste primeiro bloco de
contos, oito textos estão subordinados à seguinte epígrafe: “aparece
uma revoada de dragões sem cabeça”. Esta frase corresponde às
Linhas Mutáveis do primeiro hexagrama do I Ching. A revoada de
dragões sem cabeça ocorre quando todas as linhas do hexagrama
são mutáveis. Sendo Ch’ien composto unicamente por linhas
yang, a mutação das seis linhas conduz ao segundo hexagrama
(K’un, o Receptivo), composto de linhas ying. Ch’ien e K’un são
hexagramas que correspondem à cristalização das essências yang e
ying, respectivamente. Ying e yang são paradigmas complementares
e não excludentes na cultura chinesa, ao contrário dos binarismos
da cultura ocidental. É importante manter em mente que é a
complementaridade e a permanente alternância entre o ying e o yang, e não
a exclusão simultânea entre estes dois pólos que dá sustentação à
filosofia oriental. Para compreender tais paradigmas, deve-se pensar
as duas colunas abaixo como simultaneidades complementares, e
não como pólos excludentes, tal como elas se organizam e se opõe
na cultura ocidental:
197
Assim, ao utilizar os aspectos ligados à coincidência das seis
linhas mutáveis em Ch’ien (identificável pela frase e, tal ocorrência
correspondente), transformando-o em seu outro complementar,
Abreu condensa ao mesmo tempo tais narrativas sob o signo
dúplice da origem e fim, materializando a idéia do eterno retorno
e da permanente transformação. Observe-se agora como tal
dominância de sentido refletir-se-á nas três primeiras narrativas
deste bloco, todas elas versando sobre a busca do amor.
O primeiro conto, intitulado “A Maldição dos Saint-Marie”, é
na verdade um romance escrito pelo autor em 1962, quando tinha
12-13 anos, por ocasião de um concurso escolar. O conto traz como
personagem principal a jovem Adriana, camponesa seduzida por
um nobre chamado Fernando Saint-Marie. O cenário é composto
por um castelo e bosques franceses, às voltas dos Pirineus. Ao
contar ao nobre que está grávida, é insultada por Fernando, que
a espanca e a abandona. Voltando ao castelo, encontra-se com
Eleonora, prima distante e noiva de Fernando. Quando cai a
noite, os três personagens têm seus pensamentos observados pelo
narrador: Fernando está tenso, pensando na possibilidade de que
Adriana conte à sua (dele) mãe que está grávida; Eleonora começa
a desconfiar que seu noivo tem uma amante na vila, e dorme
afogando lágrimas no travesseiro; finalmente, Adriana planeja sua
vingança, se preparando para infiltrar-se no castelo como criada.
Enquanto isso, Eleonora está em seu quarto, gritando apavorada,
atormentada por fantasmas. Acudem-na Amália e Dona Ilsa, a
matriarca Saint-Marie, e ambas comentam que Eleonora deve estar
enlouquecendo.
Mais um dia começa, e a família Saint-Marie reúne-se para o
café. Adriana começa a trabalhar no castelo. Durante o café, Ilsa
anuncia que seu outro filho, George, voltará em breve a morar
198
com a família, no castelo. A notícia desagrada Amália. Fernando,
que havia ficado em seu escritório trabalhando sem descer para o
café, nota que Adriana está no castelo, e fica preocupado, pensando
que esta falará de sua gravidez para Dona Ilsa. Puxa-a então para o
seu quarto e pergunta o que ela faz ali, ao que ela responde “[e]stou
empregada aqui, Fernando, e aqui ficarei até meu filho nascer”
(Abreu, 1995,p. 25).
À hora do almoço, ocorre o anunciado retorno de Georges
ao castelo. Logo os olhos dele e os de Adriana cruzam-se: “George
sorriu para Adriana, simpatizara com ela. A moça retribuiu-lhe
o gesto, sorrindo timidamente. E ficariam ali a fitar-se se Ilsa não
os interrompesse” (Abreu 1995, p. 26). Fernando tudo percebe
e sente-se enciumado. à noite, Adriana serve o jantar a George
em seus aposentos, e se descobre apaixonada: “Adriana sentia que
encontrara o seu verdadeiro amor e estava feliz. Ela amava George
como nunca tinha amado ninguém. Era um sentimento puro,
calmo, belo, muito diferente da violenta paixão que sentira por
Fernando” (Abreu, 1995, p. 27). No dia seguinte, George declara
estar apaixonado por Adriana. O conflito estava posto.
Após o almoço, Dona Ilsa e Adriana saem para uma
caminhada, e a matriarca diz: “[m]inha filha, sou velha e experiente,
não procure esconder nada de mim. Eu sei o que há. Você... você
vai ter um filho, não é isso?” (Abreu, 1995, p. 29). Entretanto, Ilsa
se mostra piedosa e comunica a Adriana que não tem intenções de
expulsá-la do castelo. Mais tarde, durante o jantar, Eleonora tem um
mal-estar súbito, oportunidade para que o velho Danilo de SaintMarie (patriarca praticamente inválido, mas cujos conselhos eram
sempre ouvidos) fale sobre a maldição que paira sobre a família:
“[m]inha filha, ouça um conselho ditado por um homem velho e
experiente. O que você tem sempre aconteceu com as noivas dos
Saint-Marie, algumas chegam a morrer antes de casar e...” (Abreu,
1995, p. 31). Em seguida, revelando à Eleonora que esta é a maldição
da família, sugere que se casem o mais rápido possível. Marca-se
então o casamento entre Eleonora e Fernando para o próximo mês.
Após o jantar, George e Adriana decidem comunicar seu noivado
199
no dia do casamento de Fernando. Eleonora, por sua vez, continua
tendo alucinações até o dia do casamento.
Chegando o dia da cerimônia, Adriana vai até o quarto de
Eleonora para preparar a jovem para a celebração. Realiza-se então
a cerimônia, e George anuncia seu noivado; todos se dirigem
então para o castelo, no qual um grande almoço seria servido.
Entretanto, logo em seguida, Eleonora se lança de um precipício,
suicidando-se.
O clima fica então muito pesado sobre a família Saint-Marie
nos dias seguintes, e logo Adriana começa a ter as mesmas visões
de Eleonora. Apressam-se todos a realizar o casamento, desta vez
praticamente em segredo. Cinco dias depois, durante a madrugada,
ouviram-se gritos enlouquecidos vindos do quarto de Amália.
Esta, enlouquecida, corria pelos corredores austeros do castelo
com um toco de vela na mão, ateando fogo em tudo, enquanto
gritava: “Eleonora morreu! E Adriana morrerá também! Os SaintMarie morrerão todos! Eu os matarei um a um! Sempre fui tratada
como uma criada, mas me vingarei! Hei de matar a todos, todos!”
(Abreu, 1995, p. 41).
Todos fogem do castelo em chamas, e Fernando, pouco antes
de morrer, pede perdão à Adriana. Amália finalmente confessa seus
crimes Finalmente, abandonando as ruínas do castelo os noivos
caminham abraçados, “parecendo uma promessa de esperança e fé
no futuro” (Abreu, 1995, p. 43). Dois traços dessa narrativa ficam
muito evidentes pelo que foi visto até aqui. O primeiro deles diz
respeito às histórias de contos de fadas enquanto uma espécie de
matriz para o texto; o segundo diz respeito à técnica de releituraadaptação tão cara a Caio Fernando Abreu, que pode ser observada
pela superposição da matriz fabular a questões contemporâneas do
jovem contista, como as intrigas e os triângulos amorosos, o sexo
antes do casamento e a vingança passional. O fato de estar sob o
signo de Ch’ien traduz também a importância dessa narrativa - vista
pelo próprio autor como tosca e imatura - para o conjunto de sua
obra. Sendo Ch’ien o primeiro hexagrama, o hexagrama da origem,
esta narrativa primeira permite captar algumas preocupações que
200
vão se repetir ao longo da obra do escritor: os contos de fada
(retomados na segunda narrativa, intitulada “O Príncipe Sapo”),
o sexo, a solidão e o abandono (leitmotiv do livro Morangos Mofados)
e a preocupação com o místico e com o sobrenatural (a velha
negra que aparece en passant no conto e que pode ser vista como
prenúncio das influências da afro-religiosidade em narrativas como
“Dodecaedro”, incluída em Triângulo das Águas). Sob o signo das
mutações, tudo flui e evolui, e a “tosca narrativa” acaba dando
origem a uma peça de teatro, tal como afirma Abreu no “conto
do conto” deste texto.
Na segunda narrativa, intitulada “O Príncipe Sapo”, o tema
do amor e o mote das fábulas infantis é retomado. Entretanto,
ao contrário de “A Maldição dos Saint-Marie”, este conto não
segue o típico script narrativo dos contos de fada; ele vai trazer a
história de Teresa, uma mulher quase quarentona, solteira e ainda
virgem. Teresa foi vendo a vida passar, esperando a chegada do
grande amor e vendo suas irmãs casarem. Todas elas. Após a morte
dos pais, Teresa herda a casa, recebe visitas das irmãs e começa a
dedicar o tempo ocioso a ler histórias infantis, desenvolvendo
então o curioso hábito de se pôr à janela para espiar a vizinhança
(e procurar marido). Vai colocando apelidos nas pessoas, todos
tirados de histórias infantis. Até que surge o príncipe sapo.
O príncipe sapo, que a princípio apenas desperta o humor
de Teresa, começa a atormentá-la em seus sonhos, até que ela
finalmente se encoraja e resolve procurá-lo, embora sem sucesso.
Indagando por ele pela vizinhança, descobre que o príncipe sapo se
chama Francisco: “[e]ra professor de piano, pobre solteiro, morava
na pensão da esquina. O nome: Francisco, todos chamavam de
Chico (Abreu 1995, p. 50; 51). Teresa decide comprar um piano,
despertando a ira e a desaprovação de todas as irmãs e cunhados.
Procura então Chico para começar suas lições de piano:
No começo tinha nojo dele. O Homenzinho apagado
demais, humilde demais, sempre quieto, como
201
consciente do desprezo que provocava, e por isso
mesmo mais desprezível. Mas ao cair de uma tarde,
Teresa surpreendeu-se a olhá-lo com pena, depois
com compreensão, depois com simpatia, depois...
Bem, noutro dia suas mãos tocaram-se rápidas sobre
o teclado. Afastaram-se logo. A dele trêmula, nervosa;
a dela hesitante; ambas, encabuladas. No dia seguinte
buscaram-se discretamente, tocando-se como que por
acaso, as quatro mãos. Uma semana mais tarde olharamse nos olhos. Olhos fatigados, de gente quase velha,
quase sem ilusões (Abreu, 1995, p. 52).
Finalmente, Teresa toma coragem e pede Chico em casamento,
ao que ele responde com uma negativa: “[f]oi no quartel, há muitos
anos. Uma granada, você sabe, explosão, um acidente, estilhaços.
Não sou um homem inteiro. Só meio homem, entende, Teresa?
Não me obrigue a falar nisso!” (Abreu, 1995,p. 55). Chico então
se retira lentamente, e nunca mais retorna. Quanto a Teresa,
vendeu o piano e fez uma grande fogueira no quintal, onde jogou
todos os livros infantis que com tanto afinco lera. E, com eles,
queima também suas esperanças.
No terceiro conto, “A Visita”, Abreu trabalha ainda com
uma história de amor (ou a sua respectiva busca), mas desta vez
sem lançar mão da “moldura” dada pelos esquemas narrativos dos
contos de fadas, tal como nas duas narrativas vistas anteriormente.
Ainda lançando mão do “conto do conto”, Abreu adianta ao leitor
desatento que “A Visita” traz inúmeras relações intertextuais com
a literatura latino-americana, particularmente Fuentes e García
Márquez.
Tudo começa quando um estranho homem chega devagar
e senta-se à varanda de uma casa, um homem “de pés descalços,
semelhante a raízes” (Abreu, 1995, p. 58). As crianças o evitavam
a princípio, mas aos poucos ninguém mais dava atenção para aquela
figura plantada na varanda. Aos poucos, entretanto, a presença
daquele homem na varanda começa a perturbar a ordem natural
das coisas:
202
Mas com o dia avançando, as sombras ampliavam a
presença do homem pela casa inteira. Essa sombra se
infiltrando devagar em cada quarto jogava no rosto de
cada um aquilo que não haviam sido, que não haviam
feito, tudo aquilo que tinham apenas ameaçado ser,
intensos e cheios de sangue, para depois se amoldarem
num dia-a-dia feito de automatismos. Quieta, remota,
a presença do homem era uma afronta (Abreu, 1995,
p. 59).
Valentina, a matriarca da família, começa aos poucos a se
mostrar mais perturbada por aquela presença do que as outras
pessoas da família:
Valentina viu que seus pés descalços pareciam raízes
grossas ameaçando entrar pelo chão de tijolos, viu que
suas unhas eram longas, ovaladas e quase verdes, feito
folhas, e que seu rosto pétreo parecia um fruto sendo aos
poucos esculpido, ainda verde, mas cheio de sementes
que transpareciam no olhar (Abreu, 1995, p. 61).
Assustada, Valentina retorna para casa, indo dormir. No dia
seguinte, quando os filhos estavam no trabalho, os netos na escola
e as noras ocupadas com os afazeres domésticos, subiu até o quarto
de sua mãe, e afirma: “[e]le voltou”, ao que sua mãe responde: “[é]
tempo” (Abreu, 1995, p. 62). A partir daí, Valentina começa a
perceber e a reagir ao mundo de forma ímpar. Finalmente, ao final
do conto, Valentina aproxima-se do homem-árvore e percebe que
o fruto está maduro. Esmagando-o entre os dedos, leva seu sumo
aos lábios “[e] quando finalmente sentiu-se protegida e úmida, e
limpa e sorridente outra vez, e confortável e em paz, deixou que
seus movimentos se espaçassem, suspirou e morreu” (Abreu,
1995, p. 66).
Cortando a narrativa, várias cenas do conto lembram o
realismo mágico latino-americano. Valentina tecendo sua trama
azul-marinho, as crianças comendo terra no quintal ou as orgias
promovidas pelos filhos lembram muito certos episódios de Cem
Anos de Solidão. Entretanto, o que chama a atenção é o amálgama
203
entre o marido de Valentina (supostamente falecido) e a figueira
no quintal. A relação travada entre Valentina e a figueira/marido,
culminando com a compreensão e a súbita morte desencadea um
desfecho epifânico, constante em várias narrativas de Abreu.
Não é à toa que seu livro de crônicas se chama Pequenas Epifanias, e
curiosamente publicado apenas depois de sua morte.
EVIDENCIANDO O INTERTEXTO ORIENTAL
Para entender a relação entre essas três narrativas e o intertexto
chinês, cabe retomar as Linhas Mutáveis do I Ching. De acordo com o
Tao, princípio subjacente ao oráculo, apenas a não-ação é capaz de
permitir que a consciência visualiza claramente os problemas e suas
possíveis soluções. Assim, as imagens contidas no I Ching funcionam
de forma análoga às parábolas bíblicas, ilustrando princípios a
partir dos quais se deve seguir para enfrentar obstáculos. As três
narrativas aqui analisadas rondam todas em torno de uma mesma
questão, a saber, a busca do amor. E, se forem analisadas à luz das
máximas do I Ching, é possível observar que elas apontam para
uma trajetória que parte de pequenas mutações e deslocamentos,
abarcando as seis máximas das Linhas Mutáveis.
Comecemos pensando a primeira protagonista, Adriana.
Seu percurso na narrativa começa com a gravidez e o abandono,
e culmina com o encontro de seu grande amor. Ora, logo após
o primeiro conflito com Fernando, Adriana porta-se de acordo
com a primeira máxima (“O Dragão se esconde. Não é o momento de
agir”). Ao invés de se deixar conduzir pela raiva contra Fernando,
Adriana aguarda pela oportunidade de concretizar seus planos de
vingança, o que acaba ocorrendo quando, mais tarde, adentra o
castelo como criada. Após seus primeiros atritos com Fernando,
Adriana comporta-se novamente como se estivesse ouvindo a
segunda máxima do I Ching (“O Dragão aparece em campo. É favorável
encontrar pessoas”); ela não apenas encontra pessoas, firmando um
pacto de amizade e cumplicidade com Dona Ilsa, como aceita
George como seu novo amor. Fernando morre ao final da narrativa,
204
não por obra nem graça de Adriana; ao contrário, ele redime-se,
pedindo perdão a ela (que por sua vez aceita). Em síntese: Adriana
transformou não apenas a si mesma, mas também ao ambiente que
a cercava e teve a sua justiça feita. A justiça não é vista aqui como
algo normativo ou punitivo, ela não tem esse caráter de valor; ao
contrário, é vista como o resultado do re-ordenamento natural do
universo a partir do momento em que alguém (no caso da narrativa,
o príncipe Fernando) desestabiliza com suas ações o fluir natural
dos acontecimentos.
Na segunda narrativa, o comportamento de Teresa mostrase condizente com a terceira máxima (“O homem está atento e ativo.
Suas preocupações o acompanham até o anoitecer”). Ainda que aturdida
pela espera de um marido, Teresa se mantém atenta, observando
da janela possíveis candidatos para casar entre os passantes. Até
que, finalmente, conhece Chico-Príncipe-Sapo. Ao propor-lhe
casamento, vê-se frustrada, dado que Chico teve a genitália atingida
por um estilhaço de granada enquanto estava no exército. É neste
ponto que a quarta máxima se faz ouvir: “O Dragão, ainda escondido,
prepara-se para sair”. Para compreendê-la, entretanto, faz-se necessário
observar o comentário do Duque de Chou incorporado às Linhas
Mutáveis:
Embora se tenha atingido uma posição elevada, ainda
é possível subir mais. É uma encruzilhada; há dois
caminhos possíveis: renunciar à luta e isolar-se, para
desenvolver a própria vida interior, ou continuar, para
alcançar uma posição muito importante e influente. A
escolha deve ser feita segundo a própria consciência (I
Ching, 1989, p. 15).
É a partir deste comentário que pode ser entendida a atitude
de Teresa: Teresa opta pela primeira opção, a de continuar sozinha
e desenvolver a própria vida interior. Isso fica claro no momento
em que a protagonista queima todos os livros infantis que lia e
relia obsessivamente. Romper com as narrativas de “príncipes-
205
encantados” não significa aceitar a frustração e interromper a
busca; ainda que Teresa termine com um acesso piromaníaco,
faz-se necessário lembrar que o fogo não funciona apenas como
símbolo da intensidade/insanidade, mas também da iluminação
espiritual. Logo, esse acesso piromaníaco de Teresa pode ser visto
como a mesma loucura que se abateu sobre os apóstolos quando
tomados pelas línguas de fogo do Espírito Santo, cena relatada
nos Evangelhos das Sagradas Escrituras. Não é difícil aceitar que
após atear fogo a seus livros infantis Teresa tenha desenvolvido
uma forma outra de conduzir sua existência, e talvez o fato
de encararmos seu fim como o de uma pessoa derrotada pelas
convenções seja ilustrativo de nossa própria capacidade de não
entender o entusiasmo de Teresa com seu novo caminho interior.
Lembremos que o entusiasmo, a criatividade e o impulso inicial
são conceitos que também estão sob o signo de Ch’ien na tradição
oriental.
Finalmente, no terceiro conto (“A Visita”), a personagem
Valentina, que não é apenas a protagonista, mas também a
focalizadora3 da narrativa, parte da quinta máxima (“o Dragão está
voando no alto do céu. É preciso encontrar pessoas importantes”), tanto que
rapidamente ela apercebe-se que o homem sentado na varanda é seu
marido. Entretanto, todo um processo de assimilação é necessário
para que Valentina compreenda no todo a extensão de sua visão.
Quando vislumbra o rosto do falecido marido no figo ainda
verde, consulta a sabedoria da mãe para saber o que deve fazer.
O hermético diálogo que mãe e filha estabelecem assemelha-se
muito ao processo de consulta ao milenar oráculo chinês. Segundo
especialistas no processo de utilização do I Ching como oráculo,
suas respostas são muitas vezes tão herméticas que só fazem
sentido quando o problema está solucionado. Ainda que pareça,
desta maneira, que uma consulta a tal oráculo se revele inútil, de
acordo com o pensamento oriental isso serve para indicar que as
coisas caminham no ritmo certo, no mesmo fluxo que o restante
dos acontecimentos do universo.
A mensagem lacônica da mãe de Valentina é tempo é análoga
206
à sexta máxima: “o Dragão invade um território que não é seu, ultrapassando
os limites”. O Dragão, que pode ser visto como a própria Valentina,
ultrapassa seus limites ao invadir os limites do “marido-árvore”.
Ao ultrapassar os limites da vida, osculando o simbólico fruto que
não é mais do que o próprio rosto de seu marido, Valentina morre.
Entretanto, ela ultrapassa seus próprios limites, na medida em que
se funde com o marido, aceitando uma existência que não é mais
a da vida carnal, passando a habitar o mesmo mundo etéreo do
marido, com o qual pode finalmente se reencontrar.
Assim, da busca plenamente realizada da primeira narrativa,
Caio Fernando Abreu trata a busca afetiva como renúncia em
favor da reflexão interior em “O Príncipe Sapo” para, finalmente,
encontrar uma saída metafísica de caráter similar ao realismo
mágico latino-americano. Neste percurso, pontua sua trajetória
com máximas implicitamente situadas, deixando para seus leitores
o papel de refazer percursos a partir de pequenas pistas, como
o hexagrama colocado no início de cada bloco de Ovelhas Negras.
A partir do I Ching, foi possível reconstruir parte do percurso,
extraindo sentidos e produzindo uma interpretação que leva em
conta não apenas insigts, mas referências textualmente citadas pelo
escritor, que abrem margem a um percurso singular de leitura, que
conjuga a filosofia oriental como intertexto explícito da obra. Para
finalizar, retomo uma frase do contista, pronunciada a respeito
do suposto hermetismo de seus contos: “talvez seja um pouco
cifrado, mas para um bom leitor certo mistério nunca impede a
compreensão” (Abreu, 1995, p. 244).
NOTAS
“Creio que o mais perigoso neste Inventário é a excessiva influência
de Clarice Lispector, muito nítida em histórias como Corujas
ou Triângulo Amoroso: Variações Sobre o Tema. Mas há ainda outras
1
207
influências (...)” ABREU, C. F. Inventário do Ir-Remediável. 2. ed. Porto
Alegre: Sulina, 1995. p. 6.
Um dos poucos trabalhos que conheço que se encaminha em
direção a uma exploração da simbólica de Abreu é a dissertação de
mestrado de Mairim Piva, intitulada Uma Figura às Avessas: Triângulo
das Águas, de Caio Fernando Abreu, na qual a autora trabalha a partir
da crítica do imaginário (calcada sobre o pensamento de Gilbert
Durand e Gaston Bachelard) sobre a obra Triângulo das Águas.
2
Mieke Bal desenvolve em seu Narratology: introduction to the theory
of narrative (2nd ed. Toronto/Buffalo/London: University of
Toronto Press, 1997) a noção de focalizador, que ela diferencia da
de narrador,
partindo de algumas considerações já feitas por Gerard Genette.
Segundo a autora, é possível identificar o focalizador de uma
narrativa a partir dos verbos de percepção utilizados por este (por
exemplo, “fulano observava que beltrano estava pálido”); a partir
desses verbos é que se torna possível observar de que ponto os
eventos estão sendo narrados.
Afirma também a autora que as funções de focalizador podem ou
não se acumular em uma mesma voz; assim, no caso do conto “A
Visita”, não há a coincidência entre o narrador (homodiegético
intruso, pois ele pode “ver” o pensamento da protagonista) e
a focalizadora (a personagem Valentina). A coincidência entre
narrador e focalizador em uma mesma voz resulta naquilo que
Genette chama de narrador autodiegético, combinação que não merece
ser aqui explorada, visto que não ocorre em nenhuma das narrativas
analisadas.
3
REFERÊNCIAS
ABREU, Caio Fernando. Triângulo das Águas. 2. ed. rev. pelo
autor. São Paulo: Siciliano, 1991.
208
______. Ovelhas Negras. Porto Alegre: Sulina, 1995.
______. Inventário do Ir-Remediável. 2. ed. Porto Alegre: Sulina,
1995.
AGUIAR E SILVA, Vítor Manuel de. Teoria da Literatura. v. 1.
Coimbra: Almedina, 1993.
BAL, Mieke. Narratology: introduction to the theory of narrative.
2nd ed. Toronto/Buffalo/London: University of Toronto Press,
1997.
BRIK, O.; et all. Teoria da Literatura: Formalistas Russos.
Tradução: Ana Maria Ribeiro, Maria Aparecida Pereira, Regina L.
Zilberman e Antônio Carlos Hohlfeld. Revisão: Rebeca Peixoto
da Silva. Org., Apresentação e Apêndice de Dionísio de Oliveira
Toledo. Prefácio de Boris Schnaiderman. Porto Alegre: Globo,
1971.
DURAND, Gilbert. As Estruturas Antropológicas do Imaginário.
São Paulo: Martins Fontes, 1996.
209
VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS EM TRÊS TRATADOS
MEDIEVAIS PORTUGUESES
Rita de Cássia Ribeiro de Queiroz*
RESUMO: Os três tratados medievais – “Dos benefícios de Deus”,
“Livro da consciência e do conhecimento próprio” e “Da amizade
e das qualidades do amigo”, compõem a tradição portuguesa do
texto ascético-místico “Castelo Perigoso”, compilado em dois
manuscritos alcobacenses: ALC 199 e ALC 214, pertencentes à
Biblioteca Nacional de Lisboa. A partir do estudo das variações
grafemáticas que as duas versões apresentam, analisar-se-á alguns
aspectos que marcam a ortografia portuguesa medieval.
PALAVRAS-CHAVE: Variação Grafemática, Português Medieval,
Literatura Religiosa.
RÉSUMÉ: Les trois traités médiévaux – “Dos benefícios de
Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio” e “Da
amizade e das qualidades do amigo”, font partie de la tradition
portugaise de l’oeuvre ascétique-mystique “Castelo Perigoso”, qui
est compilée dans les deux manuscrits alcobacenses: ALC 199 et
ALC 214, appartenant à la Bibliothéque Nationale de Lisbonne. À
partir d’étude de les variations graphémátiques qui présent les deux
versions, quelques aspects de l’orthographie médiéval portugaise
seront analisés.
MOTS-CLÉ: Variation Graphémátique, Portugais Médiéval,
Littérature Religieuse.
*Professora Adjunta do Departamento de Letras e Artes - UEFS
211
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A obra “Castelo Perigoso”, tradução de uma longa epístola
francesa, escrita por Frère Robert, monge cartuxo, para sua prima,
Soeur Rose, freira da Ordem Fontevrault, encontra-se entre as
obras do período medieval português.
Em Portugal foi traduzida no Mosteiro de Alcobaça, existindo
atualmente dois códices de posse da Biblioteca Nacional de Lisboa.1
A versão portuguesa constitui, na realidade, uma adaptação livre
do original francês, pois não há uma correspondência precisa que
possa ter originado a tradução.
A obra “Castelo Perigoso” contém sete tratados, assim
designados: 1 Castelo Perigoso; 2 Dos benefícios de Deus; 3
Livro da consciência e do conhecimento próprio; 4 Da amizade
e das qualidades do amigo; 5 Das penas do inferno; 6 Das alegrias
do paraíso; 7 Livro dos três caminhos e dos sete sinais do amor
embebedado.
A partir da edição dos segundo, terceiro e quarto tratados:
“Dos benefícios de Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento
próprio” e “Da amizade e das qualidades do amigo” (QUEIROZ,
2002), apresentar-se-á as variações grafemáticas que figuram intra e
entre os dois manuscritos alcobacenses: ALC 199 e ALC 214.
Diante desta perspectiva, realizou-se três edições – uma
semidiplomática, uma crítica e uma modernizada dos três tratados
(QUEIROZ, 2002). Para o estudo das variações grafemáticas,
foi eleita a edição semidiplomática, cuja interferência do editor
ocorreu somente quanto ao desdobramento das abreviaturas, sendo
a mais conservadora e a que permite que se detecte elementos que
possibilitam uma análise da scripta do texto.
No entanto, é importante esclarecer que este tipo de estudo,
ou seja, da scripta do texto, só é possível a partir de edições críticas
de caráter conservador. Ao se eleger este tipo de edição, levou-se
em consideração o que diz Tavani (1988, p. 35):
212
(...) a constatação de que cada texto é um produto
histórico, no qual se refletem a situação pessoal do
autor, a sua concepção de mundo, seus conflitos
sócio-econômicos, suas experiências existenciais, seus
conhecimentos teóricos e práticos, o grau de sua adesão
a todas as convenções do seu tempo e a coletividade a
que pertence.
Seguindo esta orientação, buscou-se oferecer o texto mais
próximo possível do original, tentando com isso chegar ao
português corrente no período medievo português.
1 O CONTEÚDO DOS TRÊS TRATADOS
O segundo tratado, Dos Benefícios de Deus, assim como o
primeiro, Castelo Perigoso, foi traduzido do francês. Contudo, as
Horas da Cruz, em verso francês, foram suprimidas da tradução
portuguesa. Esse tratado desdobra, amplamente, um trecho do
primeiro acerca da comunhão (capítulo 47). O próprio autor, a
partir de uma nota no capítulo 69 acentua o fato, levando-se a
supor ser ele o autor do primeiro tratado. Nos capítulos 70 a 81 são
apresentados os doze frutos espirituais do Santíssimo Sacramento,
voltados para a Paixão.
O terceiro tratado, Livro da Consciência e do Conhecimento Próprio,
traz conselhos do autoconhecimento. São abordados os seguintes
temas: alma enamorada de Deus (capítulo 83), vaidade do mundo
(capítulos 84 e 85) e conselhos espirituais (capítulos 86 a 88). A
partir do capítulo 89 passa-se a tratar do autoconhecimento. No
capítulo 91, há uma passagem referente aos sofrimentos de Jesus.
Esse trecho remete ao primeiro tratado, no qual, o autor, em sete
capítulos (40 a 46), refere-se à Paixão de Cristo.
O quarto tratado, Da Amizade e das Qualidades do Amigo, é o
mais breve de todos. Apresenta-se em oito capítulos, sendo cinco
dedicados às qualidades que se deseja num amigo: discrição,
213
bondade, boa consciência, modéstia, fidelidade e que “nom seja
sanhudo nem bravo”. Sem isso, a amizade não será preservada.
2 A GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS MEDIEVAL
A variação da escrita do texto medieval é constante, pois até
então não havia uma normatização ortográfica, prevalecendo a
representação da letra tanto no sentido de “sinal gráfico” quanto
no sentido de “pronúncia”, ou seja, “som”.
Pêro de Magalhães de Gândavo (1981, p.9-10) diz:
As letras que se costumão muitas vezes trocar hu)as por
outras, e em que se cometem mais vicios nesta nossa
linguagem, são estas que se seguem, conuem a saber,
c, s, z, e isto nace de não saberem muitos a differença
que ha de hu)as às outras na pronunciação.
Muitos estudiosos do português medieval afirmam que,
durante esse período, os livros eram copiados, freqüentemente,
pelo processo do ditado para vários copistas ao mesmo tempo, os
quais cometiam erros e diversificavam a grafia ao sabor do ouvido
e da ignorância. Assim, mesclavam formas mais arcaicas com as da
sua época em decorrência da falta de informações. Esse período
da língua portuguesa é considerado fonético e, segundo Williams
(1986, p. 33):
Cabe ressaltar que, oriundos de uma cultura escrita
em Língua Latina, cabia aos copistas e/ou escribas
representar muitos novos sons que não existiam em
latim, sendo obrigados, portanto, a adaptar velhas
grafias ou a inventar novas.
Michaëlis de Vasconcelos (1946, p. 33) afirma que eles
realmente escreviam o que falavam, às vezes de forma perfeita ou
imperfeita, de acordo com os vinte e cinco caracteres do alfabeto
herdado.
214
2.1 AS VARIAÇÕES GRAFEMÁTICAS
Serão analisadas as variações vocálicas e as variações
consonânticas ocorridas inter e entre os manuscritos 199 e 214.
2.1.1 As variações vocálicas
2.1.1.1 Vogais orais
Variações entre os grafemas <e> e <i>
Variações entre os grafemas <o> e <u>
As vogais mediais simples alternam-se na passagem do latim
para o português com uma boa freqüência. Essa oscilação poderia
ser uma variação gráfica livre; poderia ser uma representação da
variante dialetal fônica de um mesmo vocábulo; ou seria uma
indecisão de como grafar o segmento fônico.
215
Variações entre os grafemas <e> e <o>
Variações entre os grafemas <e> e <a>
Variações entre os grafemas <i> / <j> / <y>
Segundo Mattos e Silva (1989, p. 77) há, para os casos acima,
uma dissimilação que evita a repetição do mesmo segmento nas
sílabas sucessivas.
216
Nestes exemplos, o fonema / i / aparece representado
poligraficamente por <i>, <j> e <y>.
2.1.1.2 Vogais nasais
·
·
·
Serão apresentadas aqui as seguintes variações:
Vogal com til sobreposto: V)
Vogal seguida de <m>
Vogal seguida de <n>
217
Os exemplos acima mostram que a scripta das vogais nasais
apresentam uma variação grafemática, cuja nasalidade é marcada
ora pelo diacrítico ~, ora pelo grafema <m>, ora pelo grafema
<n>.
2.1.2
As variações consonânticas
Variações entre os grafemas <b> / <v> / <u>
As consoantes: oclusiva bilabial sonora / b / e a fricativa
labial sonora / v / são representadas, graficamente, pelos grafemas
<b>, <u> e <v>. Esta variação aponta, segundo Leão (1983,
p. 54), para uma confusão existente entre / b / e /B / nos dialetos
setentrionais portugueses. São variações que documentam a cadeia
etimológica. Ex.: povo: lat. populus, i > poboo (séc. XIII) > poblo
(séc. XIII) > pobro (séc. XIII) > pouoo (séc. XIV) – povoar
– povoblar (séc. XIII) > povobrar (séc. XIII) > pouar.
Variações entre os grafemas <ll> e <l>
218
Variações entre os grafemas <f> e <ff>
A simplificação do grafema <ll> para <l> e do grafema
<ff> para <f> decorre de um processo etimológico: na
passagem do latim para o português as consoantes geminadas
foram simplificadas. A duplicação que ocorre nos exemplos acima
pode ser caracterizada por uma ultracorreção etimológica ou
pseudoetimológica do copista.
Variações entre os grafemas <gu> / <g> e <qu> / <c>
Tanto o grafema <g> seguido das vogais <a>, <o>
e <u>, quanto o grafema <gu> seguido por <e> e <i>
representam a oclusiva velar sonora, assim como os grafemas
<c> diante de <a>, <o> e <u> e <qu> diante de <e>
219
e <i> representam a velar surda. Os exemplos acima mostram
que o grafema <u> não possui valor fonético. O uso de <gu>
e <qu> nos contextos apresentados é meramente um grafismo,
representando apenas uma tradição gráfica latina. A alternância
<c> / <qu> diante de <a> é, de acordo com Huber (1986,
p. 51), freqüente em português desde o século XIII. Mattos e Silva
(1989, p. 96) questiona se esses segmentos representariam a mesma
articulção ou seriam variantes fônicas de um mesmo vocábulo.
Para Maia (1986, p. 429), trata-se de um fenômeno de ultracorreção
gráfica, pois a semivogal / u / não mais era pronunciada, tanto
quando seguida por <e> ou <i>, como também por <a> ou
<o>.
Variações entre os grafemas <ç> e < z>
Nestes exemplos a representação gráfica recebe influência
fonológica. O grafema <ç> representava o fonema africado surdo
/ ts /, que evoluiu para / s /, estando no contexto intervocálico
passa a / z /, o que levou os copistas a oscilaram quanto à sua
representação gráfica.
Variações entre a presença e a ausência do grafema <h>
Em latim o grafema <h> representava uma aspiração. No
processo evolutivo essa aspiração foi-se perdendo, o que gerou
220
confusão no que se refere à grafia, pois ora se grafava com <h>
ora não. O que pose ser comprovado de acordo com os exemplos
acima.
Variações entre os grafemas <ss> e <s>
O fonema / s / deveria ser representado, etimologicamente,
pelo grafema <s> em posição inicial absoluta, em posição inicial
de sílaba depois de vogal nasal e de consoante. Em posição medial
intervocálica deveria ser representado pelo grafema <ss>, quando
não antecedido por nasal.
Os exemplos pessoa / pesoa, oriundos do latim persona, ae, o
grupo -rs- latino modifica-se para –ss- por assimilação já em latim
vulgar.
Os exemplos senom / ssenam e sam / ssam referem-se apenas
a um grafismo sem valor distintivo.
Variações entre os grafemas <ç> e <c>
221
Segundo Maia (1986, p. 442), o grafema <ç> desde o final do
século XIII e início do século XIV passa a representar a fricativa prédorsal surda, independente do contexto, seguido de vogal anterior
ou posterior. Mas, desde o século XIII que o grafema <c> ocorre
com mais freqüência que <ç>. O uso desses grafemas indica que
o copista pode ter uma realização diferente e hesitar quanto à
representação mais apropriada da consoante.
Variações entre os grafemas <rr> / <r> / <R>
Os grafemas <r> e <rr> representavam os fonemas
vibrantes / R / e / r /, respectivamente. A alternância entre os
grafemas <rr> <R> e <r> parece ser meramente gráfica,
dependendo da opção do copista. Geralmente o <R> tem valor
de / r / dobrado : / rr /.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo da variação grafemática em três tratados medievais
portugueses, referentes a dois códices de datação variada: o
manuscrito 199 é da segunda metade do século XV e o manuscrito
214 é da primeira metade do século XVI, revela que algumas
oscilações na grafia são decorrentes de fatores diversos, tais
222
como: influência etimológica, simples grafismo, ultracorreção ou
influência fonológica.
NOTA
1
Cota na Biblioteca Nacional de Lisboa: ALC 199 e ALC 214.
REFERÊNCIAS
CARDEIRA, Esperança Maria da Cruz Marreiros. Contributo
para o estudo da norma ortográfica no scriptorium de Alcobaça
(1431-1446). Lisboa: Faculdade de Letras, 1990.
GÃNDAVO, Pero de Magalhães de. Regras que ensinam a
maneira de escrever e a ortografia da língua portuguesa: com o
diálogo que adiante se segue em defensão da mesma língua. Lisboa:
Biblioteca Nacional, 1981.
GUERRA, António Joaquim Ribeiro. Os escribas dos
documentos particulares do Mosteiro de Santa Maria de Alcobaça
- 1155-1200: Exercícios de análises de grafias. 1988. Dissertação
(Mestrado em Paleografia e Diplomática) Faculdade de Letras,
Universidade de Lisboa, Lisboa.
HAUY, Amini Boainain. História da língua portuguesa: séculos
XII, XIII e XIV. São Paulo: Ática, 1989.
HUBER, Joseph. Gramática do português antigo. Tradução
Maria Manuela Gouveia Delille. Lisboa: Calouste Gulbenkian,
1986.
223
LEÃO, Duarte Nunes do. Ortografia e origem da língua
portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1983.
Introdução, notas e leitura por Maria Leonor Carvalhão Buescu.
MAIA, Clarinda de Azevedo. História do galego-português:
estado lingüístico da Galiza e do Noroeste de Portugal desde o
século XIII ao século XVI (com referência à situação do galego
moderno).
MATTOS E SILVA, Rosa Virgínia. Estruturas trecentistas:
elementos para uma gramática do português arcaico. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1989.
______ . O português arcaico: fonologia. São Paulo/Salvador:
Contexto/EDUFBa, 1991.
MICHAËLIS DE VASCONCELOS, Carolina. Lições de
filologia portuguesa. Lisboa: Revista de Portugal, 1946.
OLIVEIRA, Fernão de. A gramática da linguagem portuguesa.
Lisboa: Imprensa Nacional / Casa da Moeda, 1975. Introdução,
leitura actualizada e notas por Maria Leonor Carvalhão Buescu.
PAIVA, Dulce de Faria. História da língua portuguesa: século
XV e meados do século XVI. São Paulo: Ática, 1988.
QUEIROZ, Rita de Cássia Ribeiro de. “Dos benefícios de
Deus”, “Livro da consciência e do conhecimento próprio”,
“Da amizade e das qualidades do amigo”: Edição e vocabulário
onomasiológico de três tratados da obra ascético-mística
“Castelo Perigoso” (Cód(s). ALC 199 e ALC 214. 2002. 475 f.
Tese (Doutorado em Filologia e Língua Portuguesa) Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo.
SANTANA NETO, João Antônio de ; QUEIROZ, Rita de Cássia
224
Ribeiro de. Variação grafemática no texto do “Castelo Perigoso”.
Estudos Lingüísticos, São Paulo, v. 28, p. 188-193, 1999.
SILVA NETO, Serafim da. História da língua portuguesa. Rio
225
Cinema brasileiro: do sertão para o
mundo...
Cláudio Novaes*
A importância do cinema sertanejo no projeto de identidade
nacional brasileira, bem como a retomada desse tema no nosso
cinema contemporâneo, constituem os dois focos principais nas
análises sobre as imagens sociais, políticas e culturais do Brasil
apresentadas no livro Cinema et Littérature au Brésil – Les mythes du
Sertão: émergence d’une identité nationale, da professora Sylvie Debs1, no
qual a autora afirma que o sucesso da nossa cinematografia implica
na nossa própria imagem internacional, confirmando “a que ponto a
imagem do país está ligada à sua expressão cinematográfica”.
Li o texto original deste livro ainda em forma de tese de
doutorado, quando fora apresentada na universidade de Grenoble,
França. Percebi a preocupação da pesquisadora em informar, para
os leitores/espectadores estrangeiros, certos aspectos da cultura
brasileira, particularmente aqueles que se internacionalizaram
através das representações literárias e cinematográficas, como o foi
o mito do sertão, em meio a outros mitos da identidade brasileira,
representados numa literatura e numa cinematografia bastante
equilibrada entre o estereótipo e a reversão de tais mitos.
A pesquisa da professora Sylvie Debs é de grande densidade
informativa, também para leitores, espectadores e pesquisadores
brasileiros, porque apresenta uma perspectiva estrangeira bastante
produtiva nas interpretações de documentos históricos, literários
e cinematográficos importantes para uma reflexão sobre o Brasil
contemporâneo. Apesar da metodologia de investigação privilegiar
a tomada panorâmica da história cultural brasileira, fazendo
um recorte cultural datado entre 1902-1995, a autora aprofunda
algumas problemáticas culturais e políticas; e são pertinentes
algumas mitologias geopolíticas e culturais enfocadas a partir do
tema sertanejo. Por exemplo, quanto à relação entre os discursos
* Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS
227
nacionais do ‘centro’ e os chamados ‘regionalistas’, para ela, “o
Nordeste apresenta a particularidade de ter sido tratado dentro de
uma dupla perspectiva: regional e nacional, tanto por escritores
originários do Sul, quanto do Nordeste. O romance regional pode
ser percebido como um dos fatores de cristalização da identidade
nacional”.
Partindo destas considerações gerais para nós brasileiros, mas
repleta de sutilezas discursivas, Sylvie Debs mergulha num amplo
projeto de historiografia, de crítica estética e de crítica da cultura,
para refletir em sua leitura dados sobre aspectos geopolíticos e
culturais das representações literárias e cinematográficas do nosso
país, tomando principalmente o cinema do/sobre o sertão como
corpus de análise no século XX - (1902 e 1995), datas limites para
ela, dividindo esta temática entre as publicações de Os sertões, de
Euclides da Cunha; e do filme Central do Brasil, de Walter Sales. Duas
obras de grande impacto no Brasil e no estrangeiro, que, apesar
de distanciadas no tempo, são amalgamadas num movimento
de passado/presente/futuro que transcende num gesto elíptico
a memória lírica/trágica da nossa arte nacional referenciada no
sertão brasileiro. Como ela mesma escreve, “a imagem do sertão
exprime uma diversidade que se organiza dentro de uma linha
passado/futuro representado por um espaço sagrado e mítico...”
Discutindo traços da nossa história social e cultural, tomando
o espaço compreendido entre uma narrativa do inicio do século XX
e a outra do final deste mesmo século, Sylvie Debs percorre vários
movimentos e obras da cultura brasileira, para remover detalhes
de obras sociológicas, antropológicas e ficcionais. Um olhar
interessado em entender a realidade brasileira atual, a partir do viés
diacrônico da investigação sobre a ética/estética representada na
literatura e no cinema de tema do sertanejo, movimento que ela
traduz na 3a parte do livro, que tem como título: “realidade ao mito:
as representações do sertão”, em que conclui que os interesses da
literatura e do cinema, ao ficcionalizar o nordeste brasileiro como
tema da Identidade Nacional, passa pela evolução do movimento do
olhar do Sul em direção ao Norte. Segundo ela, “podemos constatar
228
que esta olhar progride da exterioridade para a interioridade, da
distinção para a assimilação, da exclusão para a integração”. Sylvie
Debs considera importante, nesta evolução cultural e política, os
efeitos concretos da história social e os simbólicos da arte em obras
nacionalistas, destacando a transformação por dentro do olhar
positivista de Os sertões, até a versão sertaneja atual em Central do Brasil;
tomando estas e outras obras como memórias flutuantes/atuantes
na desconstrução do sujeito nacional brasileiro.
A documentação elencada por Sylvie Debs em sua tese
de doutoramento é aproveitada no livro: releituras de muitos
documentos históricos/sociais; reflexões sobre movimentos
literários e cinematográficos; interpretações de obras de ficção
da literatura e do cinema; além das preciosas entrevistas com
pesquisadores e diretores de cinema (estas entrevistas infelizmente
menos exploradas nas análises críticas do texto, mas que estão
sendo divulgadas paulatinamente em revistas especializadas em
vários países); documentos estes que, em conjunto, privilegiam
o tema sertanejo, tornando este livro uma importante fonte
bibliográfica sobre o Brasil na França; e também importante para
os pesquisadores brasileiros interessados em constatar como as
problemáticas da literatura e do cinema nacionalistas do nosso
país são assimiladas fora daqui. Para ela, da mesma forma que
Os sertões pode ser considerado como uma resposta às mudanças
sociais na virada do século XIX brasileiro, além de ainda forjar uma
‘legitimidade nacional’ da República; também o cinema novo exerce
o papel de legitimar a nossa cinematografia internacionalmente
e acompanhar o desenvolvimento técnico e político nacional
depois dos anos 1950/60, porque estas questões chegam renovadas
aos filmes atuais da virada do século XX, que dialogam de forma
produtiva com o cinemanovismo, preservando a memória coletiva
elaborada pelos modernistas da literatura e do cinema no século
XX; assim como o livro Os sertões dialogou produtivamente com
o Romantismo e o Naturalismo do século XIX, construindo
a integração simbólica de cada região no complexo nacional
da brasilidade, tomando o tema sertanejo como paradigma do
229
discurso lírico da identidade, mas dramatizando a tragédia social em
documentos e monumentos literários, depois cinematografadas a
partir de efeitos éticos/estéticos regionais/nacionais/internacionais.
As principais obras analisadas no livro articulam uma geopolítica
local com a federativa, construindo estatutos políticos e artísticos
aos quais a literatura modernista e o cinema moderno retornam,
para vislumbrar uma utopia nacional-popular progressista pautada
na alteridade da cultura brasileira.
NOTAS
1
DEBS, Sylvie. Cinema et Littérature au Brésil – Lês mythes du sertão:
O Homem do Camisão
Ao município de Ipirá e à lenda do Homem do Camisão.
Cláudio Novaes*
Aparecia sempre pontualmente e sereno todos os dias.
Cumpria sua vida sem exceção. Sua pontualidade já era a marca
da sua existência e apontava um mistério. Os seus mistérios eram
amplificados no silêncio barulhento dos cochichos da população,
esta dividida entre o medo e a curiosidade despertada pelo Homem
do Camisão.
Despertara fascínio e revoltas da população humilde daquele
lugar. Se pudermos chamar de população aquelas poucas almas
agregadas ou aparecidas quase do nada, que começaram a ocupar
aquele vale entre A serra do Espinhaço e o Monte Alto, antes
povoado por índios, os quais legaram suas fantasias nos nomes dos
acidentes geográficos da passagem, como aquele rio temporário
- Rio do Peixe, que só desfila as águas em épocas de chuva, todo o
resto do ano parece um espinhaço de peixe morto.
O Homem do Camisão aparecia sempre pontual e vestido no
sobretudo escuro, mas de cor indefinível, que a cada olhar parecia
mudar de coloração, como se esta vestimenta fosse extensão da pele.
A roupa era sempre a mesma, não desbotava e nem amarrotava.
Ele parecia estar sempre esperando uma entrevista especial com
imperadores e rainhas. E isso espantava os demais viventes...
- Impossível! Para que sempre alinhado nessas paragens tão
distantes da capitá? Indagavam os curiosos.
Sua fama crescia proporcionalmente ao lugar. As novas casas
construídas em torno da fazenda eram frutos que brotavam da sua
fama. As terras tomadas aos índios e as doações do império ainda
não eram grandes atrativos, mas os novos habitantes ouviram falar
do Homem do Camisão e foram arrastadas pela curiosidade para
aquelas bandas.
* Prof. Dr. da Universidade Estadual de Feira de Santana - UEFS
231
- Não tenho mesmo destino! Vou acampar por aqui nessa
baixada. Diziam alguns passantes, tropeiros, mascates. E o que
era pouso rápido, tornava-se, muitas vezes, estadia definitiva. E
para isso contribuiu muito o mistério do Homem do Camisão.
Aquele homem distante do presente, trajando permanentemente
a postiça pele escura.
Se fosse já a época do cinema clássico, ele teria seus modelos
nos filmes noir ou nos misteriosos personagens de Hitchcock; ou
quem sabe não era nosso Homem da Capa Preta no começo das suas
desventuras. Estes parâmetros de imagens têm hoje suas projeções
sombrias sobre o passado, mas as interpretações do povo, por
mais distantes, eram elas que singularizavam o apelo do mistério
romântico e febril, seja ele atribuído ao divino ou ao diabólico.
Lumière ainda não havia plantado a força da imagem movimento
no coração dos homens com o glamour da arte cinematográfica,
mas muitos Quixotes já escapavam das páginas de Cervantes, para
recomporem-se em novos imaginários e participações especiais nos
filmes e romances de toda a humanidade.
Esse Homem do Camisão lançava sua atração para fora do
tempo, pelo menos fora do tempo dos habitantes daquele lugar. Não
eram pouco impressionantes as expressões de espanto, buscando
explicações no sobrenatural, quando ele desfilava pontualmente
aquele corpo esguio e impassível.
Todo dia na mesma hora ele aparecia entre olhares e
comentários, como se surgisse de qualquer lugar; de lugar algum...
Mais uma página de romance aberta e o personagem vivendo
livremente seu papel; autor desconhecido e anônimo e a história
seguindo além das palavras, silenciosamente... O silêncio dele só
reforçava a curiosidade de todos. Ficavam torcendo para ouvir uma
réstia de luz em forma de voz do Homem do Camisão, porque
qualquer palavra daquela figura iluminaria o lugar com um clarão;
todos pensavam assim! Mas o que aconteceria se ele revelasse ser
um homem comum, descendo do mistério construído em torno
do seu traje e pelo silêncio nebuloso?
Melhor não falar, porque as palavras podem revelar falhas e
232
ruídos. Nem o som dos seus pés tocando o chão seco do sertão,
nem as folhas mortas pelo sol incessante se permitiam debulhar
qualquer música que não fosse de mistério, quebrando gravetos
ou esmagando folhas secas. Parecia não haver nem respiração, seu
sopro ia e vinha com o movimento da brisa e seu vital aconchego
na noite morna do sertão. Parecia uma vida fora da vida e rodeada
por um vácuo, que o acompanhava a cada passo nas caminhadas
sob o crepúsculo.
O Homem do Camisão não fazia nenhum mal imediato,
somente o sofrimento da curiosidade naqueles pobres devotos
do destino, dos mitos e das assombrações. Ele inundava o espaço
de cortesia e fineza, porque não incomodava a ninguém, mesmo
que alguns mais afoitos já o tivesse escolhido para adoração,
aproximando-se tanto dele, que, às vezes, esbarravam em seu
corpo que quase tombava mediante os obstáculos. Sua atitude
cortês permanecia, apesar do recolhimento imediato, assim que
via o atropelo de gente curiosa. Essa imagem o fazia respeitado; e
ninguém, mesmo aqueles mais valentes forasteiros, que já haviam
apeado muitas vidas nas vendas e becos do pequeno arraial, tinham
coragem de se indispor com ele. Não conseguiam ignorá-lo e até
criavam um clima de rejeição, mas sufocado à distância, pois a
força do mistério que o rodeava não estimulava os mais corajosos
a desafiá-lo; a não ser em momentos de bebedeira, quando gritavam
impropérios, mas sempre bem longe do Homem do Camisão.
Quando ele se aproximava, todos se comportavam como cabritos
enjeitados diante da altivez.
Aquele camisão era sua marca. O que traria por baixo dele?
Era um punhado de incógnitas. A vestimenta de um rei, que se
completava na elegante bengala, substituindo um cetro imperial.
Era dono de boa parte daquelas terras por heranças e conquistas.
Ninguém o vira por ali antes. Todos diziam que vivia sozinho
no casarão recuado no sopé da serra do Monte Alto. Fora, por
certo, o primeiro habitante branco daquela região, a desbravar
sistematicamente a natureza pastoril e agrária. Pois, os homens que
estavam ali antes dele, eram nômades ou coletores do imprevisível.
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Depois os tropeiros, que continuaram lhe fornecendo o trabalho,
carregando malas e caixotes para a fazenda, transportando coisas
que os próprios carregadores não sabiam ao que se destinavam.
Por certo, móveis, objetos de luxo, roupas vindas de longe e
outras coisas, que o Homem do Camisão demonstrava apreço,
mais cuidadoso do que com as pessoas. Ninguém imaginava o que
continha naqueles caixotes tão bem protegidos. Ele só os abria
quando todos já houvessem dispersado.
Depois da chegada do Homem do Camisão acendera-se
essa novidade na localidade tão isolada. Substituindo os hábitos
corriqueiros por aquelas idiossincrasias, que mobilizaram o
povo em torno dele. Depois de cada passeio pontual e invariável
vestido em seu Camisão, tudo passara a ser diferente. O silêncio
o acompanhava pelo campo, quando ele observava o céu
detidamente, admirando os pássaros mais comuns. E quando
estava distante – geralmente na direção do Rio do peixe! – parecia
fazer uma conferência para alguma platéia invisível, gesticulando
pausadamente, como se dialogasse com o invisível. Sempre
gesticulava a cabeça para cima e para baixo, com as mãos e dedos
apontando, espalmando ou fechando no ar, como afirmando uma
certeza. Alguns moradores mais afoitos o acompanhavam ocultos
os seus quilômetros de caminhada e voltavam cada vez mais
assustados com aqueles movimentos distribuídos sem palavras. E
a população crescia cada vez mais no embalo desse mistério.
Moradores mais antigos diziam que no início se assustavam
com “aquele fantasma”, que parecia viver no “mundo da lua”,
acenando para as árvores e os bichos. Mas agora, eles continuavam
morando ali e já se acostumaram com “essas novidade da gente
do litorá”.
Passaram-se muitos anos... Os moradores já se divertiam com
aquelas “malucagens” do Homem do Camisão. Mas o segredo
e o mistério dele não desvanecera, atraía sempre a atenção dos
novos. A notícia ganhara do sertão ao litoral, todos já falavam
sobre o Homem do Camisão. Os habitantes de lugares distantes se
deslocavam em verdadeiras romarias só para visitar aquele lugar,
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pois já corria a estória de que ele poderia ser um “santo”, ou um
sábio enviado da cidade para guiar os destinos dos pecadores.
-Ele inté conversa sem palavra! Diziam os crentes mais
obstinados, vindos de muito longe na esperança de encontrar o
Homem do Camisão.
Nesse fluxo, novos moradores chegavam a vila crescia. Tudo
que acontecia era atribuído à onipresença do Homem do Camisão.
Alguns esperavam sua bondade na concessão de um ‘taco terra’ e
acampavam em torno da sua fazenda. Aquele era o lugar escolhido,
chegavam com a proteção do céu.
A aglomeração, pouco tempo, fez desaparecer os últimos
índios, assimilando-os na família ou na bala; os pássaros
começavam a rarear; o Rio do Peixe perdia seu leito de cristal. A
confusão de gente quebrava a antiga tranqüilidade do lugar: recém
nascidos fuzilavam o silêncio; brigas traziam incertezas, fumaça
das queimadas acinzentavam o céu e a tapera virara campo de
extermínio de animais: porcos gritando, galinhas chocando, bois
mugindo entre meninos e trapaças dos novos cidadãos.
Mas o Homem do Camisão ainda aparecia pontualmente, como
sempre! Driblava a avalanche de curiosos, ouvia silenciosamente
muitas reclamações de homens e mulheres, era atacado por
cachorros vadios, mas ele parecia eterno e avesso à nova ordem,
mantendo suas caminhadas metido no Camisão.
Um dia, ele andava normalmente na mesma direção do Rio do
Peixe, como sempre fizera sem falhar um só dia e desapareceu.
Agora, depois de muito tempo, não se sabe de onde ele veio
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- Universidade Estadual de Feira de Santana