A POESIA MODERNA
Professores:
Ana Cristina R. Pereira & Altair Martins
O GRUPO DA TRADIÇÃO
LÍRICA
O GRUPO DA TRADIÇÃO
LÍRICA
• Síntese entre inovações modernistas
e o melhor da tradição lírica
ocidental;
• Linguagem renovadora & temas
clássicos e universais;
• Predomina a subjetividade, e
reafirma-se o velho poder da
inspiração, nos moldes românticos.
GRUPO DA MODERNIDADE
RADICAL
GRUPO DA MODERNIDADE
RADICAL
GRUPO DA MODERNIDADE
RADICAL
• Oposição ao confessionalismo e ao
subjetivismo da lírica tradicional;
• O mundo torna-se mais importante do
que o eu-lírico;
• Há uma grande desconfiança quanto
às possibilidades comunicativas da
linguagem e rejeita-se a inspiração,
privilegiando-se a técnica e a
carpintaria poética
MANUEL BANDEIRA
(1886 - 1968)
MANUEL BANDEIRA
(1886 - 1968)
• Fusão entre a confissão pessoal e a vida
cotidiana;
• Clima de desejo insatisfeito e
amargurado;
• A poesia para ele representou “toda a vida
que podia ter sido e que não foi”;
• Tema dominante = a preparação para a
morte;
• Poeta do cotidiano = descobre o lirismo
em tudo o que é irrisório e banal =
simplicidade.
A cinza das horas
• O livro de estréia de Manuel Bandeira – A Cinza
das Horas (1917) [parnasiano-simbolista] – é
repleto de poemas de um lirismo melancólico e que
remetem a temas como a espera da morte, a
frustração, a resignação de quem espera o fim, o
sofrimento, a angústia, a tristeza, etc. Trata-se de
uma obra mais convencional, muito sentimental,
em que o poeta projeta suas tristezas em
paisagens tristes e crepusculares.
O poema “Desencanto”, por exemplo, é um
metapoema que descreve o ato de fazer
poesia como uma espécie de “válvula de
escape”, como um desabafo de um ser que
sofre e espera a morte.
Desencanto
Eu faço versos como quem chora
De desalento , de desencanto
Fecha meu livro se por agora
Não tens motivo algum de pranto
Meu verso é sangue , volúpia ardente
Tristeza esparsa , remorso vão
Dói-me nas veias amargo e quente
Cai gota à gota do coração.
E nesses versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre
Deixando um acre sabor na boca
- Eu faço versos como quem morre.
Libertinagem
“Libertinagem” (1930) é um marco na
trajetória poética de Bandeira, pois a partir
desses escritos é que o poeta dará o passo
decisivo para a libertação de sua formação
passadista.
Os temas são os mais variados, tais como: a
infância, as pessoas ligadas a ela e sua cidade
natal, que servem de refúgio ao “eu-lírico”
(poeta descontente e infeliz); esses elementos
aparecem como consolação (alívio) de sua
dor no presente.
Porquinho-da-Índia
Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor de coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele prá sala
Pra os lugares mais bonitos mais limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum das minhas ternurinhas...
O meu porquinho-da-índia foi minha primeira namorada
Em Porquinho-da-Índia, a recusa do bichinho em
aceitar o afeto do menino remete para um dos
motivos centrais da obra de Bandeira: a
impossibilidade da realização plena do desejo
amoroso. Logo a experiência do adulto estará
carregada de insatisfação, como se, de alguma
maneira, a rejeição do porquinho-da-índia aos
cuidados e à devoção do menino antecipasse as
suas futuras frustrações sentimentais.
Libertinagem
Em Libertinagem, podemos perceber a presença de
imagens brasileiras, que evocam lugares, tipos
populares e a própria linguagem coloquial do
Brasil, transformando o cotidiano em matéria
poética.
Em “Evocação do Recife”, poema escrito sob
encomenda do sociólogo pernambucano Gilberto
Freyre, a subjetividade, o memorialismo, a infância,
o folclore e a cultura popular caracterizam esse
famoso poema de Manuel Bandeira. O eu lírico
revive cenas do passado, como se fosse menino
outra vez. Ao lado das brincadeiras de infância,
surgem pessoas com as quais conviveu: parentes,
vizinhos, amigos. Até os nomes das ruas eram
líricos: Rua da União, do Sol, da Aurora.
(...)
Recife da minha infância
A rua da União onde eu brincava de chicote-queimado
e partia as vidraças da casa de dona Aninha Viegas
Totônio Rodrigues era muito velho e botava o pincenê
na ponta do nariz
Depois do jantar as famílias tomavam a calçada
com cadeiras]
mexericos namoros risadas
A gente brincava no meio da rua
Os meninos gritavam:
Coelho sai!
Não sai!
Outro ponto alto de “Libertinagem” reside,
segundo Mário de Andrade, no poema “Vou-me
Embora pra Pasárgada”, no momento em que o
poeta trata do tema do exílio, da partida – tão caro
às gerações anteriores, os românticos, os
parnasianos – e funde o lugar comum poético
“vou-me embora” com o “estado-de-espírito bem
comum entre os nossos poetas contemporâneos.”
Vou-me Embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que eu nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
(...)
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
- Lá sou amigo do rei Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Libertinagem
Em Pneumotórax, há a cristalização da condição
de Manuel Bandeira. O poeta que teria toda a
existência pela frente, o projeto de ser arquiteto,
mas que não pode se realizar, em função da
descoberta de sua doença, a tuberculose. Isto é,
aos desejos frustrados, aos sonhos não realizados
do poeta só resta tocar uma canção trágica em
homenagem: um tango argentino.
Pneumotórax
Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.
Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três . . . trinta e três . . . trinta e três . . .
- Respire.
..........................................................................
- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
e o pulmão direito infiltrado.]
- Então, doutor, não é possível tentar o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar um tango argentino.
A negação das poéticas passadistas em
Poética (Libertinagem)
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado
Do lirismo funcionário público com livro de ponto
expediente]
protocolo e manifestações de apreço ao Sr. diretor.
Estou farto do lirismo que pára
e vai averiguar no dicionário]
o cunho vernáculo de um vocábulo.
Abaixo os puristas
Todas as palavras sobretudo os barbarismos
Universais]
Todas as construções sobretudo as sintaxes
de exceção]
Todos os ritmos sobretudo os inumeráveis
Estou farto do lirismo namorador
Político
Raquítico
Sifilítico
De todo lirismo que capitula ao que quer que seja
fora de si mesmo
De resto não é lirismo
Será contabilidade tabela de co-senos secretário
do amante]
exemplar com cem modelos de cartas e as diferentes
maneiras de agradar às mulheres, etc
Quero antes o lirismo dos loucos
O lirismo dos bêbedos
O lirismo difícil e pungente dos bêbedos
O lirismo dos clowns de Shakespeare
- Não quero mais saber do lirismo que não é libertação.
Em Opus 10 (1958) no poema “Consoada”,
Bandeira conseguiu superar as aflições, em um
ritual de sedução, em uma confraternização, em um
jantar, que é uma das atividades normais da
vida.Uniu os princípios da vida e da morte. Ela, a
traidora e amante indesejada, sob o mesmo teto, à
mesma mesa, em um banquete servido pela poesia
em pessoa.
Consoada
Quando a Indesejada das gentes chegar
(Não sei se dura ou caroável),
talvez eu tenha medo.
Talvez sorria, ou diga:
- Alô, iniludível!
O meu dia foi bom, pode a noite descer.
(A noite com os seus sortilégios.)
Encontrará lavrado o campo, a casa limpa,
A mesa posta,
Com cada coisa em seu lugar.
CECÍLIA MEIRELES
(1901 - 1964)
CECÍLIA MEIRELES
(1901 - 1964)
• Forte herança simbolista;
• Predomina os sentimentos de perda
amorosa e solidão;
• Temática da passagem do tempo e a
experiência do vazio;
• Romanceiro da Inconfidência = visão
dramática e lírica da sociedade mineira do
século XVIII, de suas principais figuras
humanas e da Inconfidência.
A dor existencial = o fluir do tempo
dissolve as ilusões, o corpo, a
memória...
Retrato
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
Cecília e a modernidade
• O vínculo da autora com a modernidade
está na “experiência do vazio”. Ela não
encontra possibilidade de comunicação
com o mundo circundante e seus versos
tratam da “sensação do absurdo da
existência e da falta de sentido da vida
contemporânea”. Assim, só resta à poeta o
canto, ou seja “a celebração do ato de
criação poética” = a poesia.
Motivo
Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.
Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.
Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
— não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.
Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
— mais nada.
CECÍLIA MEIRELES
(1901 - 1964)
• Romanceiro da Inconfidência =
visão dramática e lírica da
sociedade mineira do século
XVIII, de suas principais figuras
humanas e da Inconfidência.
• Mistura de crônica dramática de
uma época + tradição literária
popular + invenção poética.
Romance XXXIV ou de Joaquim Silvério
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério:
que ele traiu Jesus Cristo,
tu trais um simples Alferes.
Recebeu trinta dinheiros...
-- e tu muitas coisas pedes:
pensão para toda a vida,
perdão para quanto deves,
comenda para o pescoço,
honras, glória, privilégios.
E andas tão bem na cobrança
que quase tudo recebes!
Melhor negócio que Judas
fazes tu, Joaquim Silvério!
Pois ele encontra remorso,
coisa que não te acomete.
Ele topa uma figueira,
tu calmamente envelheces,
orgulhoso impenitente,
com teus sombrios mistérios.
(Pelos caminhos do mundo,
nenhum destino se perde:
há os grandes sonhos dos homens,
e a surda força dos vermes.)
MARIO QUINTANA
(1906 - 1994)
MARIO QUINTANA
(1906 - 1994)
• Herança simbolista + Independência
poética + Linguagem simples + Ironia e
Humor
• Poeta = Trivial + Realista + Sentimental +
Metafórico + Irreverente + Surrealista;
• Seus poemas são “quintanares” = vida
passada a limpo através da imaginação;
• Produção de poemas em prosa.
As ruínas interiores e a melancolia
de Quintana = Rua dos cataventos
Da vez primeira em que me assassinaram
Perdi um jeito de sorrir que eu tinha...
Depois de cada vez que me mataram,
Foram levando qualquer coisa minha...
E hoje dos meus cadáveres eu sou
O mais desnudo, o que não tem mais nada...
Arde um toco de vela amarelada...
Como o único bem que me ficou.
(...)
O Humor de Quintana = Cartaz para uma
Feira do Livro
os verdadeiros analfabetos
são os que aprenderam a ler e não
leem
Quintana... Alienado político?
Todos esses que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão...
Eu passarinho!
VINÍCIUS DE MORAIS
(1913 - 1980)
VINÍCIUS DE MORAIS
(1913 - 1980)
• I - Fase neo-simbolista =
conotações místicas (formação
religiosa); linguagem solene
(versos longos – que remetem aos
versículos bíblicos); adjetivação
exagerada.
Ânsia
Na treva que se fez em torno a mim
Eu vi a carne.
Eu senti a carne que me afogava o peito
E me trazia à boca o beijo maldito.
Eu gritei.
De horror eu gritei que a perdição me possuía a alma
E ninguém me atendeu.
Eu me debati em ânsias impuras
A treva ficou rubra em torno a mim
E eu caí!
(...)
VINÍCIUS DE MORAIS
(1913 - 1980)
• II - Fase moderna = vinculação à
realidade; o canto do amor concreto
e a exaltação da mulher;
a valorização do cotidiano e a
abertura para o social; a utilização
da linguagem coloquial.
VINÍCIUS DE MORAIS
(1913 - 1980)
• Tema dominante = O AMOR;
• Lírica comprometida com o
cotidiano;
• A banalidade da vida diária é
surpreendida pelo olhar amável e
por vezes irônico do poeta;
• Engajamento social.
Balada do Mangue
Pobres flores gonocócicas
Que à noite despetalais
As vossas pétalas tóxicas!
Pobre de vós, pensas, murchas
Orquídeas do despudor
Não sois Lœlia tenebrosa
Nem sois Vanda tricolor:
Sois frágeis, desmilingüidas
Dálias cortadas ao pé
Corolas descoloridas
Enclausuradas sem fé,
Ah, jovens putas das tardes
O que vos aconteceu
Para assim envenenardes
O pólen que Deus vos deu?
(...)
Fazeis rapazes entrar!
Sinto então nos vossos sexos
Formarem-se imediatos
Os venenos putrefatos
Com que os envenenar
Ó misericordiosas!
Glabras, glúteas caftinas
Embebidas em jasmim
Jogando cantos felizes
Em perspectivas sem fim
(...)
Pobres, trágicas mulheres
Multidimensionais
Ponto morto de choferes
Passadiço de navais!
Louras mulatas francesas
Vestidas de carnaval:
Viveis a festa das flores
Pelo convés dessas ruas
Ancoradas no canal?
Para onde irão vossos cantos
Para onde irá vossa nau?
A rosa de Hiroxima
Pensem nas crianças
Mudas telepáticas
Pensem nas meninas
Cegas inexatas
Pensem nas mulheres
Rotas alteradas
Pensem nas feridas
Como rosas cálidas
Mas, oh, não se esqueçam
Da rosa da rosa
Da rosa de Hiroshima
A rosa hereditária
A rosa radioativa
Estúpida e inválida
A rosa com cirrose
A anti-rosa atômica
Sem cor sem perfume
Sem rosa, sem nada
Vinícius e o soneto
• A revalorização do soneto, depois das
radicalizações de 1922, deve-se a
Vinícius. Como nenhum outro lírico
brasileiro, ele soube explorar as
possibilidades de combinação do
espírito moderno com essa antiga
forma de versificação que parecia
condenada ao esquecimento = o
soneto.
Soneto da fidelidade
De tudo ao meu amor serei atento
Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto
Que mesmo em face do maior encanto
Dele se encante mais meu pensamento.
Quero vivê-lo em cada vão momento
E em seu louvor hei de espalhar meu canto
E rir meu riso e derramar meu pranto
Ao seu pesar ou seu contentamento
E assim, quando mais tarde me procure
Quem sabe a morte, angústia de quem vive
Quem sabe a solidão, fim de quem ama
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Vinícius e a música popular
• A partir de meados de 1950, Vinícius
aproximou-se da música popular em
um processo de “musicalização da
poesia” e que o transformou no grande
letrista (poeta) da Bossa Nova, criando
clássicos mundialmente conhecidos e
parcerias históricas.
JORGE DE LIMA
(1893 - 1953)
JORGE DE LIMA
(1893 - 1953)
• Sua carreira poética inicia-se sob o signo
parnasiano;
• Apresenta uma fase nordestina,
caracterizada pelo registro poético da
realidade existencial, cultural e histórica da
região;
• Valorização da religiosidade de substrato
católico;
• Teve ainda uma fase de celebração da
cultura negra, de seus ritmos e costumes.
Mulher proletária
Jorge de Lima
Mulher proletária —
única fábrica
que o operário tem,
(fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de
máquina humana
forneces anjos para o
Senhor Jesus,
forneces braços para o
senhor burguês.
Mulher proletária,
o operário, teu
proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das
máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.
Essa negra fulô
Jorge de Lima
Ora, se deu que
chegou
(isso já faz muito
tempo)
no bangüê dum meu
avô
uma negra bonitinha,
chamada negra Fulô.
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
Ó Fulô! Ó Fulô!
(Era a fala da Sinhá)
— Vai forrar a
minha cama]
pentear os meus
cabelos,]
vem ajudar a tirar
a minha roupa, Fulô!
Essa negra Fulô!
Essa negrinha Fulô!
ficou logo pra mucama
pra vigiar a Sinhá,
pra engomar pro Sinhô!
Essa negra Fulô!
Essa negra Fulô!
MURILO MENDES
(1901 - 1980)
MURILO MENDES
(1901 - 1980)
• Lírica de inspiração modernista, em
que predomina o humor;
• Dimensão religiosa, requintada e
quase hermética;
• Linguagem próxima do surrealismo,
definida por alucinações e uso de
símbolos e alegorias.
Murilo Mendes
Modinha do empregado de banco
Eu sou triste como um prático de farmácia,
sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.
Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher
mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.
Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.
Quantas meninas pela vida afora!
E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.
Se eu tivesse estes contos punha a andar
a roda da imaginação nos caminhos do mundo.
E os fregueses do Banco
que não fazem nada com estes contos!
Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.
Também se o diretor tivesse a minha imaginação
o Banco já não existiria mais
e eu estaria noutro lugar.
Canção do exílio
Minha terra tem macieiras da Califórnia
onde cantam gaturamos de Veneza.
Os poetas da minha terra
são pretos que vivem em torres de ametista,
os sargentos do exército são monistas, cubistas,
os filósofos são polacos vendendo a prestações.
A gente não pode dormir
com os oradores e os pernilongos.
Os sururus em família têm por testemunha a
Gioconda.]
Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade
e ouvir um sabiá com certidão de idade!
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE (1902 - 1987)
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE (1902 - 1987)
• Temas básicos = a poesia social + a
reflexão existencial (o eu e o mundo) +
a poesia sobre a própria poesia +
poesia do passado + do amor + do
cotidiano + da celebração dos amigos
+ A presença do gauche + O humor
sutil, quase sempre corrosivo + A
solidão + A incomunicabilidade + A
lógica misteriosa da existência + O
fluir do tempo + Perdas e ganhos na
vida do homem + Luta contra morte...
Carlos Drummond de Andrade:
1º momento: Alguma poesia (1930)
EU > mundo
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus,
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida
é porosidade e comunicação.]
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas,
sem mulheres e sem horizontes.]
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
No meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.
2º momento: Sentimento do mundo (1940)
Eu < MUNDO – II Guerra, sistemas opressores
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais,
me exponho cruamente nas livrarias:]
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme.
Maior, muito maior do que eu esperava.]
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.]
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso,
amontoar tudo isso]
num só peito de homem... sem que ele estale.
(...)
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer,
a paisagem vista da janela,]
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente,
os homens presentes,]
a vida presente.
Os ombros suportam o mundo
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.
Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossege
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.
Amar
Que pode uma criatura senão,
entre criaturas, amar?
amar e esquecer,
amar e malamar,
amar, desamar, amar?
sempre, e até de olhos vidrados, amar?
Que pode, pergunto, o ser amoroso,
sozinho, em rotação universal, senão
rodar também, e amar?
amar o que o mar traz à praia,
e o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,
é sal, ou precisão de amor, ou simples ânsia?
Amar solenemente as palmas do deserto,
o que é entrega ou adoração expectante,
e amar o inóspito, o áspero,
um vaso sem flor, um chão de ferro,
e o peito inerte, e a rua vista em sonho,
e uma ave de rapina.]
Este o nosso destino: amor sem conta,
distribuído pelas coisas pérfidas ou nulas,
doação ilimitada a uma completa ingratidão,
e na concha vazia do amor a procura medrosa,
paciente, de mais e mais amor.
Amar a nossa falta mesma de amor, e na secura nossa
amar a água implícita, e o beijo tácito, e a sede infinita.
3º momento: A Rosa do Povo (1945)
EU = MUNDO
(consciência do papel do homem no mundo)
Consideração do poema
Não rimarei a palavra sono
com a incorrespondente palavra outono.
Rimarei com a palavra carne
ou qualquer outra, que todas me convêm.
As palavras não nascem amarradas,
elas saltam, se beijam, se dissolvem,
no céu livre por vezes um desenho,
são puras, largas, autênticas, indevassáveis.
Uma pedra no meio do caminho
ou apenas um rastro, não importa.
Estes poetas são meus. De todo o orgulho,
de toda a precisão se incorporam
ao fatal meu lado esquerdo. Furto a Vinicius
sua mais límpida elegia. Bebo em Murilo.
Que Neruda me dê sua gravata
chamejante. Me perco em Apollinaire.
Adeus, Maiakovski.]
São todos meus irmãos, não são jornais
nem deslizar de lancha entre camélias:
é toda a minha vida que joguei.
(...)
Essa viagem é mortal, e começa-la.
Saber que há tudo. E mover-se em meio
a milhões e milhões de formas raras,
secretas, duras. Eis aí meu canto.
Ele é tão baixo que sequer o escuta
ouvido rente ao chão. Mas é tão alto
que as pedras o absorvem. Está na mesa
aberta em livros, cartas e remédios.
Na parede infiltrou-se. O bonde, a rua,
o uniforme de colégio se transformam,
são ondas de carinho te envolvendo.
Como fugir ao mínimo objeto
ou recusar-se ao grande? Os temas passam,
eu sei que passarão, mas tu resistes,
e cresces como fogo, como casa,
como orvalho entre dedos,
na grama, que repousam.
Já agora te sigo a toda parte,
e te desejo e te perco, estou completo,
me destino, me faço tão sublime,
tão natural e cheio de segredos,
tão firme, tão fiel... Tal uma lâmina,
o povo, meu poema, te atravessa.
A FLOR E A NÁUSEA
Preso à minha classe e a algumas roupas,
Vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?
Olhos sujos no relógio da torre:
Não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas,
alucinações e espera.]
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.
Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas,
consideradas sem ênfase.]
Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem.
Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns achei belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária de erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.
Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus,
rio de aço do tráfego.]
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio,
paralisem os negócios,]
garanto que uma flor nasceu.
Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.
Sento-me no chão da capital do país
às cinco horas da tarde]
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar,
galinhas em pânico.]
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto,
o tédio, o nojo e o ódio. ]
Últimos momentos:
As impurezas do branco (1977)
A crítica às telecomunicações e à
corrida espacial:
O homem; as viagens
O homem, bicho da terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza a lua.
Lua humanizada: tão igual à terra.
O homem chateia-se na lua.
Vamos para marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com engenho e arte.
Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em vênus,
Vê o visto — é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca se não for a júpiter
Proclamar justiça junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira terra-a-terra.
O homem chega ao sol ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele inventa
Roupa insiderável de viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros sistemas fora
Do solar a colOnizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
A perene, insuspeitada alegria
De con-viver.
Livros póstumos: O amor natural
(1993)
Poesia erótica
A bunda, que engraçada
A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica.
Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.
A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.
A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.
Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar
Esferas harmoniosas sobre o caos.
A bunda é a bunda
redunda.
JOÃO CABRAL DE MELO
NETO (1920 - 1999)
JOÃO CABRAL DE MELO
NETO (1920 - 1999)
• Reflexão sobre o fazer poético;
• Poesia entendida como esforço em busca
de síntese, do despojamento total;
• Cão sem plumas = perfeição da linguagem
mesclada a uma temática social = o rio
Capibaribe e a população miserável que lhe
habita as margens;
• Morte e vida severina = trajetória de um
sertanejo que abandona o agreste, rumo ao
litoral...
O ovo
O ovo revela o acabamento
a toda mão que o acaricia,
daquelas coisas torneadas
num trabalho de toda a vida.
E que se encontra também noutras
que entretanto mão não fabrica:
nos corais, nos seixos rolados
e em tantas coisas esculpidas
cujas formas simples são obra
de mil inacabáveis lixas
usadas por mãos escultoras
escondidas na água, na brisa.
No entretanto, o ovo, e apesar
de pura forma concluída,
não se situa no final:
está no ponto de partida.
Menino de engenho
A cana cortada é uma foice.
Cortada num ângulo agudo,
ganha o gume afiado da foice, um dar-se
mútuo.
Menino, o gume de uma cana
cortou-me ao quase de
cegar-me,
e uma cicatriz, que não guardo,
soube dentro de mim guardar-se.
A cicatriz não tenho mais;
o inoculado, tenho ainda;
nunca soube é se o inoculado
(então) é vírus ou vacina.
Morte e vida severina
O RETIRANTE EXPLICA
AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI
— O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
ASSISTE AO ENTERRO DE UM TRABALHADOR
DE EITO E OUVE O QUE DIZEM DO MORTO
OS AMIGOS QUE O LEVARAM AO CEMITÉRIO
— Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a cota menor
que tiraste em vida.
— É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
— Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
— É uma cova grande
para teu pouco defunto,
mas estarás mais ancho
que estavas no mundo.
— É uma cova grande
para teu defunto parco,
porém mais que no mundo
te sentirás largo.
— É uma cova grande
para tua carne pouca,
mas a terra dada
não se abre a boca.
— Viverás, e para sempre,
na terra que aqui aforas:
e terás enfim tua roça.
— Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
— Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
— Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
— Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
serás semente, adubo, colheita.
— Trabalharás numa terra
que também te abriga e te veste:
embora com o brim do Nordeste.
— Será de terra tua derradeira camisa:
te veste, como nunca em vida.
— Será de terra e tua melhor camisa:
te veste e ninguém cobiça.
— Terás de terra
completo agora o teu fato:
e pela primeira vez, sapato.
— Como és homem,
a terra te dará chapéu:
fosses mulher, xale ou véu.
— Tua roupa melhor
será de terra e não de fazenda:
não se rasga nem se remenda.
— Tua roupa melhor
e te ficará bem cingida:
como roupa feita à medida.
FERREIRA GULLAR
(1930)
FERREIRA GULLAR
(1930)
•
•
•
•
Concretismo;
Poesia politicamente engajada;
Expressão não-formalista, livre e ousada;
Interrogações contínuas a respeito da
permanência e da transitoriedade das
coisas;
• Poeta emblemático, escreveu para a tv,
militou na crítica de arte e debateu a
situação da poesia.
Agosto 1964
Entre lojas de flores e de sapatos, bares,
mercados, butiques,
viajo
num ônibus Estrada de Ferro - Leblon.
Viajo do trabalho, a noite em meio,
fatigado de mentiras.
O ônibus sacoleja. Adeus, Rimbaud,
relógios de lilases, concretismo,
neoconcretismo, ficções da juventude, adeus,
que a vida
eu a compro à vista aos donos do mundo.
Ao peso dos impostos, o verso sufoca,
a poesia agora responde a inquérito
policial-militar.
Digo adeus à ilusão
Mas não ao mundo. Mas não à vida,
meu reduto e meu reino.
Do salário injusto,
da punição injusta,
da humilhação, da tortura,
do terror,
retiramos algo e com ele construímos
um artefato.
Uma bandeira.
Poema sujo (fragmento)
E depois de tanto
que importa um nome?
Te cubro de flor, menina,
e te dou todos os nomes do mundo:]
te chamo aurora
te chamo água
te descubro nas pedras coloridas
nas artistas de cinema
nas aparições do sonho
- E esta mulher a tossir dentro de casa!
Como se não bastasse o pouco dinheiro, a lâmpada fraca,
O perfume ordinário, o amor escasso, as goteiras no inverno.
E as formigas brotando aos milhões negras como golfadas de
dentro da parede (como se aquilo fosse a essência da casa)
E todos buscavam
num sorriso num gesto
nas conversas da esquina
no coito em pé na calçada escura do Quartel
no adultério
no roubo
a decifração do enigma
- Que faço entre coisas?
- De que me defendo?
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A POESIA MODERNA