MAPAS COGNITIVOS DA CIDADE DE CUIABÁ-MT:
REPRESENTAÇÕES SOCIOESPACIAIS SEGUNDO CRIANÇAS
ANDRADE, Daniela Barros da Silva Freire1 - UFMT
SILVA, Eliza Moura Pereira da2 - UFMT
Grupo de Trabalho – Educação da Infância
Agência Financiadora: CAPES
Resumo
O presente propõe discussão em torno das representações socioespaciais da cidade de CuiabáMT, segundo crianças de quatro escolas da rede municipal da mesma cidade. Objetiva
compreender significações das crianças acerca do espaço público, bem como identificar
diferentes trajetos por elas percorridos, pensando a relação criança e cidade como aspecto
importante para o desenvolvimento infantil. A orientação teórica deste estudo se fundamenta
na articulação entre a Teoria Histórico Cultural (VIGOTSKI, 1996; 2006; 2009; 2010) e a
Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2003), esta no diálogo com os estudos de
Jodelet (1982; 2001), sobre os Mapas Sociais de Paris. Os estudos de Tuan (1980; 1993)
sobre a noção de lugar, topofilia e topofobia também integram o referencial teórico. O
procedimento metodológico adotado foi a recolha de desenhos da cidade – inspirados na
proposta dos mapas cognitivos (ALBA, 2011), contando com a participação de 40 sujeitos
subdivididos em quatro grupos de 10 crianças, cada subgrupo pertencente a uma das quatro
escolas municipais selecionadas. A análise preliminar dos dados baseou-se, nos lugares que
apareceram nos mapas, cujo banco de dados foi processado pelo software Cohesive
Hierarchical Implicative Classification (CHIC) que forneceu um grafo implicativo que
possibilita analisar as possíveis rotas mais recorrentes realizadas pelas crianças, bem como os
motivos que as delineiam. Os resultados revelam indício do diálogo entre dois aspectos: 1.
elementos da construção social em torno da ideia de cidade, dentre os quais se encontram
reguladores sociais constitutivos da cidade estabelecidos ao longo da história da sociedade
cuiabana e os lugares emblemáticos da cidade – centro, bairros, praça, lugares públicos em
geral; 2. elementos orientados pela vivência das crianças que revelam possíveis hipóteses que
as mesmas elaboram sobre o mundo com base nas representações sociais partilhadas no seu
grupo de pertencimento – modalidades de rotas e os critérios que as definem.
1
Doutora em Educação: Psicologia da Educação, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006).
Professora adjunta da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Coordenadora do Grupo de Pesquisa em
Psicologia da Infância (GPPIN) do Programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição. Participante
do CIERS-Ed (Centro Internacional em Representações Sociais e Subjetividade – Educação). E-mail:
[email protected]
2
Acadêmica do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro
do Grupo de Pesquisa em Psicologia da Infância. E-mail: [email protected]
24418
Palavras-chave: Representações socioespaciais. Cidade. Mapas cognitivos.
Introdução e Justificativa
Este artigo propõe discussão em torno das representações socioespaciais da cidade de
Cuiabá-MT, segundo crianças de quatro escolas da rede municipal da mesma cidade, e busca
compreender as significações das crianças acerca do espaço público, bem como identificar
diferentes trajetos por elas percorridos.
A análise exploratória das significações das crianças em relação à cidade se orienta
pela articulação entre a Teoria Histórico Cultural (VIGOTSKI, 1996; 2006; 2009; 2010) e a
Teoria das Representações Sociais (MOSCOVICI, 2003), esta no diálogo com os estudos de
Jodelet (1982; 2001), sobre os Mapas Sociais de Paris. Os estudos de Tuan (1980; 1993)
sobre a noção de lugar, topofilia e topofobia também integram o referencial teórico. Nesse
sentido, parte-se da compreensão da relação criança e espaço público como aspecto
importante para o desenvolvimento infantil.
As crianças, sujeitos participantes deste estudo, são vistas enquanto atores sociais, que
constroem sua identidade e sua condição cidadã nas relações sociais, em contato com os
conhecimentos que circulam em seu entorno. Em semelhante sentido, são consideradas na
perspectiva da Sociologia da Infância, a partir do conceito de criança sociológica
(SARMENTO, 2007). Tal entendimento se distancia das visões “adultocêntricas” que as
tomam como seres que ainda não são, mas que virão a ser. A opção por crianças enquanto
sujeitos de conhecimento surge com o propósito de contribuir com os movimentos que
buscam dar visibilidade social à infância, destacando-se sua visibilidade científica e cívica.
A cidade, por sua dimensão simbólica, histórica e socialmente construída, transformase em referencial identitário para as crianças, podendo ser entendida enquanto objeto de
representação social presente e atuante na constituição da subjetividade infantil. Destaca-se
que a relação da criança com a cidade é pensada na perspectiva da importância do espaço para
o desenvolvimento humano e para a construção do conhecimento social.
Por fim, a opção pela escola enquanto via de acesso ao universo infantil se orientou
por duas razões: a primeira, em virtude de suas facilidades metodológicas (SARAMAGO,
2001) relacionadas ao contato com crianças de mesma idade e também com seus
responsáveis; a segunda (e principal) decorre de sua relevância na construção de uma proposta
educacional que prima pela cidadania enquanto direito também da criança. Dito de outro
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modo, aposta-se no potencial da escola como propulsora do desenvolvimento infantil em prol
da cidadania.
Perspectiva teórico-metodológica e análise de dados
A Teoria Histórico Cultural proposta por Vigotski (1996; 2006; 2009; 2010) entende o
desenvolvimento humano a partir da Lei Geral do Desenvolvimento Cultural, em cujo ponto
central se encontra a compreensão do desenvolvimento humano enquanto processo que
acontece intrinsecamente relacionado à apropriação da cultura pelo indivíduo, de modo que
toda função mental superior aparece primeiro na dimensão interpsicológica (entre pessoas),
depois na intrapsicológica (no interior da criança), destacando o princípio da natureza social
da consciência e do desenvolvimento humano.
Vigotski (2009) considera que os indivíduos se constituem nas relações com seus
pares e com a cultura, mediante dois tipos de atividade humana: a reprodutiva e a criadora. A
primeira está ligada à memória e constitui-se na reprodução ou repetição de meios de
condutas já criados ou elaborados anteriormente. Portanto, diz respeito à capacidade do
cérebro humano de conservar experiências anteriores, possibilitando sua reprodução, e
caracteriza o ser humano enquanto sujeito histórico, uma vez que é por meio desta atividade
que os meios de conduta historicamente estabelecidos são conservados e transmitidos a novas
gerações (VIGOTSKI, 2009).
A segunda atividade, a de criação, pode ser definida como “toda atividade do homem
que tem como resultado a criação de novas imagens ou ações, e não a reprodução de
impressões ou ações anteriores da sua experiência” (VIGOTSKI, 2009, p.13-14). Atrela-se a
esta atividade o conceito de reelaboração criativa (VIGOTSKI, 2009) que confere à criança o
potencial criativo de significação do seu entorno social, passando a considerá-la enquanto
sujeito ativo em seu próprio desenvolvimento, não somente apropriando passivamente os
elementos externos a ela, mas principalmente valendo-se do contato com o meio para ampliar
suas possibilidades de atuação. É nesse sentido que a teoria de Vigotski (2009) exalta o
potencial criativo do ser humano e o caracteriza enquanto produto da cultura, mas, ao mesmo
tempo, seu produtor.
Nota-se que a relação humana com a cultura é mediada e possibilita pensar que o
espaço, ou meio, é essencialmente dotado de significados que são construídos nas relações
entre pares e com o próprio espaço. Na visão de Vigotski (2010), o meio não se restringe ao
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material. Refere-se, sobretudo, ao meio circunstancial, que representa tanto o meio enquanto
artefato cultural, com todos os signos, símbolos e instrumentos historicamente construídos,
como também representa o meio como um conjunto de relações sociais estabelecidas entre
pares e ainda com o próprio espaço.
Nesse sentido, o meio é entendido enquanto possibilidade, atuante (ou não) no
desenvolvimento da personalidade consciente, na medida de sua relação com a criança em
dada etapa desse desenvolvimento (VIGOTSKI, 2010). Essa relação entre meio e criança é
discutida a partir do conceito de vivência, que significa a unidade da personalidade da pessoa
com as particularidades do meio, da forma como está representada no desenvolvimento.
Em outras palavras, vivência não significa a influência do meio sobre o
desenvolvimento da criança, nem mesmo as possíveis influências da criança sobre o meio que
a circunda. A vivência é a unidade (da criança com o meio) de um todo complexo (que é o
desenvolvimento) e se expressa em uma relação complexa, inevitável e, sobretudo,
indissociável, entre as particularidades da pessoa e as particularidades do meio. “Portanto, no
desenvolvimento, a unidade dos elementos pessoais e ambientais se realiza em uma série de
diversas vivências da criança” (VIGOTSKI, 2006, p.6).
Resgatando as atividades de reprodução e criação que medeiam a atuação da criança
em seu meio social, bem como o conceito de reelaboração criativa, tem-se que apropriação
da cultura pela criança não segue a lógica de uma internalização passiva. As crianças se
apropriam da cultura, dos significados, regras e costumes de seu meio social, mas, através da
significação de suas vivências, estas permeadas pela reelaboração criativa, elas atribuem
sentido ao mundo cultural onde estão inseridas.
Dessa forma, a importância do meio social para a teoria vigotskiana é inegável, e na
mesma proporção em que o potencial criativo revela sua presença no processo de
desenvolvimento, também a relevância do contato social e das relações entre pares e com o
próprio meio é fator marcante no pensamento do autor. Nesse sentido, tomando a vivência
enquanto unidade pessoa e meio, tem-se que a constituição subjetiva das crianças acontece
mediante suas vivências; estas carregam significações e interpretações pessoais, mas também
são permeadas pelo arcabouço simbólico construído no e pelo meio sociocultural.
Esse arcabouço simbólico do meio sociocultural possibilita pensar as significações
infantis pelo viés da Psicologia Social, a partir da Teoria das Representações Sociais
(MOSCOVICI, 2003; JODELET, 1982; 2001).
24421
Segundo Sá (2002), o conceito de representações sociais é complexo devido às
variadas noções dos campos cognitivo e cultural que o compõe. Apesar disso, em linhas
gerais é possível entender as representações sociais enquanto um conjunto de saberes práticos
partilhados pelos indivíduos em seus grupos de pertença, originados na vida cotidiana no
curso das comunicações interpessoais, podendo ser também denominadas de senso comum.
Nas palavras de Jodelet (2001, p.22), a representação social “é uma forma de
conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, com um objetivo prático, e que contribui
para a construção de uma realidade comum a um conjunto social”. Para a autora (2001), essa
forma de conhecimento, embora se diferencie do conhecimento científico, tem sua
legitimidade garantida em razão de sua importância na vida social.
Segundo Moscovici (2003), as representações sociais devem seu surgimento à
necessidade humana de tornar familiar o que não é familiar, o que implica no fato de que as
representações sempre ligam um sujeito a um objeto, de modo que os seres humanos, na
tentativa de tornar familiar o objeto desconhecido, acabam por construir uma realidade
comum, um universo consensual. Essa construção, ao buscar referentes no que já é familiar,
depende da memória e da comunicação social. Esta última, que desempenha papel
fundamental no âmbito das relações e trocas sociais “aparece como condição de possibilidade
e de determinação das representações e do pensamento sociais” (JODELET, 2001, p. 30).
Sobre a dinâmica de familiarização com o desconhecido, Jodelet (2001) considera que
a representação se encontra em uma relação de simbolização e de interpretação com
determinado objeto (a princípio desconhecido) de natureza social, material ou ideal. Isso quer
dizer que o sujeito, ao simbolizar um objeto, constrói a representação que se coloca em seu
lugar, fazendo presente o que está ausente. Por sua vez, ao interpretá-lo, o mesmo sujeito
confere-lhe significado.
Considerando que a simbolização e a interpretação são influenciadas pelo arcabouço
simbólico já existente no meio social, as representações sociais podem ser abordadas de duas
maneiras:
Concomitantemente como produto e processo de uma atividade de apropriação da
realidade exterior ao pensamento e de elaboração psicológica e social dessa
realidade. Isto quer dizer que nos interessamos por uma modalidade de pensamento,
sob seu aspecto constituinte – os processos e o constituído – os produtos ou
conteúdos. Modalidade de pensamento cuja especificidade vem de seu caráter social
(JODELET, 2001, p.22).
24422
Nesse sentido, pode-se considerar que o ser humano enquanto ser social ligado a
grupos de pertença se apropria da realidade a partir do que é constituído na sociedade
(representações tomadas como produtos e conteúdos), mas também participa de sua
constituição, construindo representações mediante a elaboração psicológica e social
(representações como processo de uma atividade de apropriação).
É nessa dinâmica dialógica que as representações sociais revelam seu caráter
constituinte, tanto em relação aos sujeitos (constituição identitária), quanto em relação à
sociedade (constituição do universo consensual). Portanto, as representações sociais não são
resultado de um tratamento mecânico de informações. Ao contrário, “elas são socialmente
valoradas e utilizadas numa construção ativa pelo sujeito social em função das suas metas, e
das significações sociais de que o meio urbano é portador” (JODELET, 1982, p.7).
A autora (1982), ao tomar o meio urbano como portador de significações sociais,
exemplifica o espaço como de ordem social. Avançando nessa perspectiva, pode-se considerar
que as representações sociais, quando tomam o espaço como objeto, passam a ser
denominadas representações espaciais, ou ainda, representações socioespaciais. Isso porque as
representações
espaciais,
que dizem
respeito
a uma realidade
sócio-física,
são
constitutivamente sociais (JODELET, 1982). Nesse sentido,
o ambiente construído terá um papel na constituição da identidade pessoal e social,
sob a forma, em particular, do que Harold Proshansky chamou “identidade dos
lugares”. [...] a identidade dos lugares vem trazer um elemento de bem-estar ao
indivíduo, que pode encontrar frequentemente ambientes causadores de medo,
sofrimento ou ameaça, mas que, por meio de sua identificação com o lugar de sua
moradia, consegue compensar essas ameaças (JODELET, 2002, p.37).
Essa noção de identidade dos lugares dialoga com o conceito de lugar, criado por
Tuan (1980). Segundo o autor (1983, p.6), “o que começa como espaço indiferenciado
transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor”. Na mesma
direção, o autor (1980, p.5) define o conceito de topofilia como “o elo afetivo entre a pessoa e
o lugar ou ambiente físico”, que, por sua vez, refere-se à ideia de que o ser humano estabelece
vínculo afetivo, no sentido do bem estar, associado à dimensão simbólica, histórica e social
do lugar. Topofobia, outro conceito do autor (1980), refere-se aos sentimentos negativos de
medo, angústia, mal estar, também associados aos lugares.
Nota-se que o espaço assume papel de destaque na construção identitária dos sujeitos
sociais, justamente porque é valorado e representado socialmente. A partir disso, pode-se
entender que as representações socioespaciais da cidade, construídas pelos sujeitos sociais,
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constituem os denominados mapas sociais. Estes, ao refletirem práticas e valores que definem
uma condição e uma identidade cultural e social (JODELET, 1982), revelam-se não como
mapas dos espaços da cidade, mas dos lugares.
Finalmente, ao propor uma investigação com crianças acerca de suas representações
socioespaciais da cidade, destaca-se o diálogo da Teoria das Representações Sociais com a
infância. Em perspectiva análoga à de Vigotski, Emler, Jocelyne Ohana e Julie Dickisnon
(2003), esclarecem que a construção do conhecimento da criança se dá em um processo
social, da mesma forma como a construção do conhecimento em si. Portanto, seus alcances
mentais devem ser analisados levando em consideração a sociedade a que pertence, bem
como o lugar que ocupa na mesma. Isso possibilita compreender que crianças de diferentes
sociedades não construirão seus conhecimentos da mesma forma, visto que os contextos
sociais em que vivem não são idênticos. Por outro lado, Castorina e Kaplan (2003) destacam
que esse processo de construção não é direto e passivo, uma vez que a transmissão social é
ressignificada e reelaborada pela criança.
Percebe-se, pois, perspectivas semelhantes entre a Teoria Histórico Cultural e a Teoria
das Representações Sociais. A criança significa seu contexto social através de suas vivências e
também por meio da apropriação das representações sociais. Disso se entende o
desenvolvimento humano e a construção do conhecimento social como processos simultâneos
e dialógicos. Ambas as perspectivas consideram a relação recíproca entre sujeito e sociedade
e compreendem a importância da dimensão social na construção do conhecimento, bem como
o papel do sujeito na reelaboração do mesmo.
As crenças e valores relacionados à infância, presentes e partilhados nos contextos
educacionais, por meio dos processos comunicacionais, das práticas sociais e espaciais,
acabam por ordenar o cotidiano das crianças, ao mesmo tempo em que se tornam matéria
prima para a criação de hipóteses pelas mesmas, sobre, por exemplo, as normativas
vinculadas na instituição. Crianças criam hipóteses sobre o mundo com base nas
representações sociais partilhadas no seu grupo de pertencimento podendo, no exercício de
sua atividade criadora, propor novas formas de interpretação da realidade cujos sentidos
evidenciam potencial gerador de novas representações sociais. É nesse sentido que o presente
estudo pensa as representações sociais na infância e propõe uma investigação sobre as
representações socioespaciais segundo crianças.
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Com relação aos procedimentos metodológicos, destaca-se que a apreensão das
representações socioespaciais deu-se pela recolha de desenhos da cidade, inspirados na
proposta dos mapas cognitivos (ALBA, 2011), acompanhados de entrevista semiestruturada.
Participaram 40 sujeitos, subdivididos em quatro grupos de 10 crianças, cada subgrupo
pertencente a uma das quatro escolas municipais selecionadas para o desenvolvimento do
estudo. Os critérios para a seleção dos participantes foram: crianças entre nove e 12 anos,
estudantes do 5º ano do Ensino Fundamental, desejo em participar da pesquisa e autorização
do responsável mediante assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido3.
Os 40 mapas cognitivos da cidade foram analisados, com o auxílio da entrevista, no
sentido de identificar quais lugares da cidade foram destacados. Ao todo foram identificados
341 lugares nos 40 desenhos analisados. A partir desse total, realizou-se uma categorização, já
que muitas vezes os mesmos lugares foram nomeados de formas diferentes pelas crianças.
Embora algumas categorias associem lugares por sua função social, o estudo considerou
como critério de delineamento das categorias a recorrência e a importância nos discursos.
Neste caso, alguns lugares não foram agrupados, como é o caso do shopping, hospital, Sesc
Arsenal (ver página 10). Assim, os 341 lugares foram classificados em 50 categorias, que
compreendem lugares isolados, bem como conjunto de lugares da cidade.
Após a categorização, elaborou-se uma tabela de contingência, identificando presença
e ausência de lugares nos mapas cognitivos dos 40 sujeitos. Optou-se por processar a tabela
pelo software Cohesive Hierarchical Implicative Classification (CHIC). Este programa
computacional “tem por funções essenciais extrair de um conjunto de dados, cruzando
sujeitos e variáveis (ou atributos), regras de associação entre variáveis, fornecer um índice de
qualidade de associação e de representar uma estruturação das variáveis obtida por meio
destas regras” (COUTURIER, BODIN E GRAS, 2003, p.1).
Segundo os mesmos autores (2003), o programa possibilita a realização de três
tratamentos distintos: similaridade, grafo implicativo e árvore coesiva. Neste trabalho
utilizou-se apenas o grafo implicativo para análise implicativa clássica dos dados, esta com
base na Lei Binomial.
Assim, obteve-se um grafo implicativo que reproduz, de forma gráfica e por meio de
setas, uma rede de relações causais possíveis. Tais setas indicam, por exemplo, que quando
determinado sujeito traz em seu mapa cognitivo o lugar “A” da cidade, geralmente, traz
3
O termo de consentimento livre e esclarecido destinado à criança também foi assinado por cada participante
como garantia do desejo em participar da pesquisa.
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também o lugar “B”. A partir da interpretação das referidas relações causais, foi possível
identificar os diferentes trajetos das crianças na cidade.
Não foram consideradas as possíveis variáveis do material e, portanto, a análise dos
elementos estruturais e suas relações implicativas parte de um banco de dados referente ao
conjunto total dos sujeitos, independente das escolas. Foram considerados índices
implicativos entre 85% e 100%.
A Figura 1 apresenta o grafo implicativo de índice máximo obtido pelo
processamento dos dados:
Figura 1 – Grafo implicativo resultante do processamento no software CHIC das categorias de lugares
elencadas a partir dos 341 lugares apresentados pelos 40 mapas cognitivos construídos pelos
participantes. As cores das setas indicam o índice de implicação entre as categorias de
lugares: azul – 95%; verde 90% e cinza – 85%. Esses índices informam a probabilidade de,
aqueles que desenharam determinado lugar desenharem, também, um lugar referente à
categoria apontada pela direção da seta.
Fonte: processamento CHIC.
As setas apresentadas indicam os sentidos das aparições significativas de determinados
lugares ou categorias de lugares presentes nos mapas cognitivos das crianças. A análise
exploratória do grafo implicativo revela a existência de cinco blocos de rotas que orientam a
circulação das crianças na cidade. São eles: 1. Rota de lazer e consumo; 2. Rota socioafetiva e
religiosa; 3. Rota cultural; 4. Referência e passagem e 5. Destinos e origens.
No bloco 1, Rota de lazer e consumo, nota-se o maior índice de implicação entre as
categorias de lugares, sendo 95% a probabilidade de quem desenhou lojas também desenhar o
shopping ou lugares de alimentação. Da mesma forma, há probabilidade de 85% de quem
desenhou parque também desenhar shopping. Percebe-se que o arranjo do primeiro bloco
apresenta inserção psicossocial ligada ao lazer mais associado ao consumo e este, por sua vez,
mais associado à alimentação do que à aquisição material. Tal arranjo possibilita pensar que
as representações socioespaciais da cidade apresentam o shopping enquanto lugar de destaque
nos trajetos de vida das crianças. Essa presença revela indícios de que as significações dos
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lugares da cidade pelas crianças também são orientadas por uma lógica mercantil que condiz
com o sistema capitalista em que estão inseridas.
No bloco 2, Rota socioafetiva e religiosa, é caracterizada por um conjunto de
conexões, ou rotas, em que a escola centraliza quatro outras categorias de lugares com índices
de implicação entre 90% e 85%, a saber: 1. Lugares familiares ► escola (90%); 2. Lugares
de comércio e serviços ► escola (85%); 3. Hospital ► escola (85%); 4. Outras edificações
públicas ► escola (85%). Nota-se, ainda, a probabilidade de 85% dos que desenharam escola
desenharem também templo religioso.
Esse bloco revela, claramente, a escola enquanto atributo mais acessado, um elemento
comum nos mapas cognitivos das crianças. Pela variedade de conexões dela com outros
lugares, percebe-se uma inserção psicossocial mais variada, revelando relações que as
crianças estabelecem no âmbito familiar, com trajetos ligados à família e à religião, mas
também relações com outros estabelecimentos de comércio (que não o shopping) e serviços. É
possível interpretar esse bloco em termos de rotas socioafetivas de grande força para as
crianças, rotas que parecem marcar as vivências infantis. Nesse sentido, pode-se pensar que as
representações socioespaciais da cidade revelam a escola, os lugares ligados à família e os
lugares ligados à religião como lugares de pertencimento importantes na constituição
subjetiva das crianças.
Os blocos 3 (Referência e passagem) e 4 (Rota cultural), são os de menores índices de
implicação, ambos apresentando 85%. Assim, a probabilidade de quem desenhou o centro da
cidade desenhar a praça é a mesma daqueles que desenharam o Sesc Arsenal também
desenharem lugares de cultura. A partir disso, tem-se no bloco 3 um arranjo que revela outro
lugar de circulação das crianças, sendo a praça um provável ponto de referência para as
crianças, auxiliando-as em sua localização no centro da cidade. O centro, por sua vez, mostrase, possivelmente, como local de passagem para outros lugares.
Em relação ao bloco 4, nota-se, de modo semelhante ao bloco 1, uma inserção
psicossocial ligada ao lazer, porém, este associado à cultura e não ao consumo. Essa
constatação possibilita pensar que as representações socioespaciais revelam indícios de que
lugares de cultura também se fazem presentes nas significações das crianças, muito embora a
tendência maior esteja no lazer associado ao consumo.
O quinto bloco, denominado Destinos e origens, apresenta o bairro Tijucal como
elemento que se liga a outros três bairros: CPA (probabilidade de 90%), Parque Ohara e Pedra
24427
noventa (85%). Assim, quem desenhou Parque Ohara e Pedra Noventa tem probabilidade de
85% de desenhar também o bairro Tijucal. Do mesmo modo, há probabilidade de 85% de
quem desenhou o bairro Pedra Noventa também desenhar o bairro Parque Cuiabá. Por sua
vez, há probabilidade de 90% de quem desenhou o Tijucal desenhar também o bairro CPA.
Este último bloco demonstra um arranjo que descreve bairros da cidade, sendo Tijucal
e Pedra Noventa os dois bairros de maiores conexões, ou implicações em relação a outros
bairros, em termos de aparição nos mapas cognitivos das crianças. Em especial, o Tijucal e o
CPA são os bairros com relação implicativa mais forte dentre os outros. Nesse sentido, podem
ser considerados bairros de maior circulação das crianças, locais que possibilitam chegar a
outros lugares, mas que também podem ser lugares de origem ou moradia. Além disso, podese pensar que, ao representar a cidade, as crianças também tomam os bairros como referência,
especialmente os destacados pelo software como os de maior recorrência em termos de
conexões. Nesse sentido, a interpretação do arranjo deste último bloco possibilita pensar que,
para as crianças, o Tijucal e o CPA são os bairros mais significativos da cidade.
A Figura 2 apresenta o grafo implicativo resultante do processamento do mesmo
banco de dados, porém, com índices implicativos menos rigorosos, sendo eles: 90%, 85%,
80% e 75%.
Figura 2 – Grafo implicativo com setas coloridas que indicam o índice de implicação entre as
categorias de lugares: vermelha – 90%; azul – 85%; verde – 85% e cinza – 75%.
Fonte: processamento CHIC.
24428
Não se pretende realizar análise minuciosa deste grafo. Este se apresenta com o
propósito de comparar a estabilidade de certos arranjos já discutidos na análise anterior de
implicações mais criteriosas. Considerando essa ressalva, observa-se grande variedade de
arranjos no grafo, contudo, a força de ligação entre as conexões foram estabelecidas com
índices menores em relação ao primeiro grafo analisado. Dando atenção às setas vermelhas
(de maior índice implicativo – 90%), nota-se a estabilidade do trajeto associado ao lazer e
consumo, novamente destacando a ligação entre lojas, shopping e lugares de alimentação. Da
mesma forma se percebe a forte ligação entre lugares familiares e a escola, delineando a
importância das rotas socioafetivas como referências notáveis a partir das representações
socioespaciais.
As ligações entre os bairros Pedra Noventa, Parque Ohara e Tijucal, bem como entre
lugares como parque e shopping, centro e praça, Sesc Arsenal e lugares de cultura, e,
finalmente, escola e templo religioso (todos com índice de 85%), possibilitam afirmar a
estabilidade dos trajetos já discutidos nos blocos 1, 2, 3, 4 e 5 do primeiro grafo implicativo.
No panorama geral, os grafos possibilitam interpretar quais os lugares de origem e
destinos das crianças, bem como suas principais rotas na cidade, acrescidas dos fins pelos
quais tais rotas são orientadas. Considera-se lazer, afeto, religião, educação e cultura, como os
fins pelos quais as crianças circulam por lugares de destino como o shopping, lojas, parques,
lugares de família, templos religiosos e lugares de cultura. Os bairros que aparecem no grafo
podem ser entendidos tanto como lugares de origem, como lugares que compõem os trajetos
em direção aos destinos.
Além disso, o que se obteve a partir da análise exploratória dos dados parece ser o
indício do diálogo entre dois aspectos: 1. elementos da construção social em torno da ideia de
cidade, dentre os quais se encontram reguladores sociais constitutivos da cidade estabelecidos
ao longo da história da sociedade cuiabana e os lugares emblemáticos da cidade – centro,
bairros, praça, lugares públicos em geral; 2. elementos orientados pela vivência das crianças
que revelam possíveis hipóteses que as mesmas elaboram sobre o mundo com base nas
representações sociais partilhadas no seu grupo de pertencimento – modalidades de rotas e os
critérios que as definem. Neste aspecto, destacam-se as duas rotas principais que sintetizam os
lugares sociais tradicionalmente destinados à circulação das crianças – família e escola. Além
disso, vale destacar a presença da terceira rota objetivada na imagem do shopping – a mesma
se apresenta como espaço de circulação privilegiado das crianças. Contexto familiar, escola e
24429
shopping são compreendidos, no âmbito deste estudo, como lugares emblemáticos em torno
dos quais se definem práticas sociais orientadoras do sentido de cidadania. Este parece estar
associado ao sentimento de pertença, à aquisição do conhecimento e ao consumo.
Deste raciocínio, nota-se a emergência da seguinte reflexão: as vivências que as
crianças estabelecem na relação com a família, a escola e o shopping revelam indícios de
como as mesmas se reconhecem na relação com a cidade. Nestes contextos, as crianças
interagem com redes de representações sociais partilhadas em seu grupo de pertencimento que
orientam práticas destinadas às crianças. Tais práticas se apresentam como pontos de
referência para a construção de hipóteses, pelas crianças, acerca do conhecimento social –
valores, normas, papéis sociais e organização social (classe social e poder de consumo, ser
filho, aluno e criança, por exemplo).
Considerações
Este trabalho apresenta discussão em torno de um estudo, ainda em andamento, sobre
as representações socioespaciais da cidade de Cuiabá, caracterizando-se por uma análise
exploratória das representações apreendidas através de mapas cognitivos construídos por
crianças.
Pensando as representações socioespaciais da cidade em relação à educação, destacase a relevância da escola, considerando o quanto ela está associada ao fluxo das crianças. Essa
instituição se mostra como grande fator de mobilidade das crianças na cidade, de modo que
elas falam de vários lugares, mas revelam-na como lugar intermediário, estabelecendo ligação
com vários outros lugares. A escola permeia as vivências e experiências das crianças no
espaço público, sendo, portanto, um dos lugares mais importantes para as crianças
participantes deste estudo.
Além disso, a análise dos mapas cognitivos, através do grafo implicativo fornecido
pelo software CHIC, permite inferir sobre os motivos pelos quais as crianças saem de suas
casas, mesmo que estes muitas vezes não sejam seus, e sim dos adultos que as acompanham.
O lazer, o afeto, a religião, a educação e a cultura são os principais exemplos. Ainda assim,
quer por motivos próprios, quer dos seus responsáveis, as crianças transitam pela cidade,
observam seus trajetos e, a partir de suas vivências urbanas, significam seu entorno social. Em
seus fluxos urbanos, as crianças conhecem a cidade e, através da apropriação e construção das
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representações socioespaciais, constroem seus mapas cognitivos, identificando pontos de
referência, como os explicitados pela análise implicativa.
As representações sociais, ao serem partilhadas por grupos de pertença e orientarem
práticas destinas às crianças, tornam-se referências que colaboram para a significação, pela
criança, da noção de cidadania, aspecto que participa do processo de constituição identitária
ao longo do desenvolvimento infantil.
Dessa forma, a importância do meio social enquanto constituído e constituinte, na
perspectiva das representações socioespaciais, bem como enquanto unidade pessoa e meio, na
perspectiva da vivência em Vigotski, revela a possibilidade da investigação com crianças
fundamentada no diálogo teórico-metodológico entre o estudo do desenvolvimento humano e
a construção do conhecimento social.
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representações socioespaciais segundo crianças