Artigo Comentado
Targeted Temperature Management at 33°C versus
36°C after Cardiac Arrest
Nielsen et al. N Engl J Med 2013;369:2197-206.
Gilson Soares Feitosa-Filho
Hospital Santa Izabel – Santa Casa de Misericórdia da Bahia, Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública, Bahia - Brasil
Diferentes diretrizes internacionais recomendam o emprego
de hipotermia terapêutica pós-parada cardiorrespiratória(PCR),
especialmente quando ocorrem em ambiente extrahospitalar e
em ritmo de fibrilação ventricular/taquicardia ventricular. Esta
recomendação baseia-se principalmente na existência de dois
ensaios clínicos publicados em 2002.
Por outro lado, desde 2003, alguns pesquisadores
sugerem a necessidade de novos estudos para avaliar esta
recomendação. A justificativa sempre foi um conjunto de
críticas metodológicas, das quais destacavam a temperatura
superior a 37 graus no grupo controle. Assim, para dirimir
esta dúvida, Nielsen e colaboradores desenvolveram este
estudo comparando dois alvos de temperatura da hipotermia
terapêutica: 33 graus e 36 graus.
Trata-se de estudo multicêntrico, desenvolvido em
36 unidades de Terapia Intensiva da Europa e Austrália,
randomizado, cujos pacientes eram elegíveis se tivessem mais
que 18 anos de idade, com uma PCR extrahospitalar de causa
provável cardíaca, independentemente do ritmo, em coma
após retorno de pulso. Os principais critérios de exclusão
foram mais de 6 horas de retorno à circulação espontânea
até a randomização, PCR não-assistida cujo ritmo inicial
fosse assistolia, suspeita de acidente vascular encefálico e
temperatura inicial inferior a 30 graus.
Ambos os grupos recebiam sedação durante as primeiras
36 horas, enquanto a hipotermia era induzida. A temperatura
foi controlada por cateter vesical, esofágico ou intravascular.
O método de indução da hipotermia em ambos os grupos foi
com fluidos gelados, bolsas geladas e/ou outros dispositivos.
Os grupos mantiveram-se adequadamente com as respectivas
temperaturas-alvo, com início do reaquecimento gradual para
37 graus a partir da 28ª hora.
Considerando um poder de 90% para uma redução de 20%
eventos (óbito durante o estudo) entre os dois grupos, com um
p=0,05 bicaudal, o número de pacientes necessários no cálculo
de tamanho amostral foi de 900. Os autores decidiram incluir
cerca de 950 pacientes, esperando uma perda de follow-up de
50 pacientes. O modelo de análise foi por intenção de tratar.
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A randomização permitiu um equilíbrio entre os dois
grupos em todas as variáveis avaliadas. A média de idade era
de 64 anos, com predomínio masculino. Mais de 90% das
PCRs ocorreram nas residências ou em locais públicos. Um
ritmo chocável foi identificado como ritmo inicial em 80% dos
pacientes. A mediana de tempo para início do suporte básico
de vida foi de 1 minuto, e o pulso foi recobrado em um tempo
mediano de 25 minutos.
Não houve diferença na incidência de desfechos primários
(mortalidade até o final do estudo: cerca de 49%). Também
não foram encontradas diferenças nos desfechos secundários
neurológicos, avaliados pela escala da CPC (Cerebral
Performance Category) e escala Rankin modificada, nem no
desfecho de mortalidade em 180 dias (cerca de 47% ambos os
grupos). Os dois grupos também não foram diferentes quanto à
incidência de efeitos colaterais, exceto por uma discreta maior
incidência de hipocalemia no grupo com temperatura-alvo 33
graus (19% X 13%, p=0,02).
Assim, os autores concluem que, em pacientes comatosos
pós-PCR extrahospitalar, a temperatura-alvo de 33 graus não
oferece vantagens em relação à temperatura-alvo de 36 graus.
Comentários
Considero este o mais robusto estudo publicado na área
da hipotermia terapêutica até o momento. Como o tamanho
amostral foi grande, o poder estatístico foi alto o suficiente
para nos apontar que dificilmente a ausência de diferença seria
modificada com um aumento nas inclusões de pacientes. Um
ponto de limitação comum a todos os estudos que abordam
hipotermia terapêutica consiste no fato de ser impossível
conduzi-lo de modo cego para os profissionais que aplicam a
intervenção e conduzem o caso clínico. No entanto, os autores
minimizaram este viés com a adoção de cegamento para os
investigadores que avaliavam desfechos e de um rígido protocolo
de decisão prognóstica para retirada de cuidados avançados.
O fato do estudo não mostrar benefício da temperatura mais
baixa comparada à temperatura tida como “normal” pode levar
muitos a, equivocadamente, concluir que não há benefício na
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aplicação desta técnica. Os próprios autores demonstram esta
preocupação na discussão do artigo. Acho muito importante
chamar atenção que o grupo 36 graus foi tratado de modo
muito diferente da antiga forma de “medicar se febre”.
Em realidade, o grupo 36 graus sofreu intervenções com
monitoração rígida da temperatura e indução de hipotermia
para evitar a natural elevação da temperatura que ocorre
no paciente pós-retorno à circulação espontânea dentro de
algumas poucas horas.
São várias as possíveis explicações da ausência de benefício
da temperatura-alvo de 33 graus em comparação a 36 graus.
Aponto e discuto algumas abaixo:
1)A população admitida no estudo envolvia não somente
fibrilação ventricular/taquicardia ventricular sem pulso,
mas também assistolia e atividade elétrica sem pulso. No
entanto, como 79% no grupo 33 graus e 81% do grupo 36
graus apresentaram ritmo chocável como primeiro ritmo
à monitoração, é possível que análise específica deste
subgrupo mantenha os resultados encontrados.
2)Os cuidados em terapia intensiva e em atendimento
pré-hospitalar evoluíram muito nos últimos 11 anos, de
modo que a diferença esperada de benefício estreita-se,
impactando, por exemplo, no cálculo do tamanho amostral
deste estudo. A mortalidade neste estudo, especialmente
quando levamos em conta que 20% de ritmos iniciais eram
não-chocáveis, foi inferior à esperada.
3)Nesta mesma linha do raciocínio anterior, com um tempo
tão curto para início do suporte básico de vida como
mostrado no estudo (mediana de 1 minuto), o impacto do
mais rígido controle de temperatura torna-se menor.
4)Não houve uma padronização na forma de monitoração
de temperatura, sedação/analgesia/paralisia ou forma de
indução da hipotermia, que ficavam a critério da unidade
onde o atendimento era realizado. Mesmo se a distribuição
dos diferentes métodos foi equitativa entre os dois grupos
(os autores não dispõem de dados completos de sedação/
analgesia/paralisia), há uma possibilidade de interferência
no impacto esperado da terapêutica de hipotermia.
5)Em um estudo aberto, é natural imaginar um viés
involuntário tendendo ao benefício da intervenção. Porém,
de mesmo modo, diante de uma terapêutica indicada
por diferentes diretrizes, um viés, igualmente natural e
involuntário, pode ocorrer em sentido contrário, em direção
a não mostrar o benefício que todos esperam. Afinal,
apontar caminhos diferentes da opinião da maioria dos
experts é mais surpreendente e empolgante que mostrar a
mesma opinião compartilhada pela maioria.
Concluo que, a despeito destes possíveis fatores de
interferência neste estudo, acredito ser este um ensaio
clínico modificador de condutas. É possível que existam
subgrupos onde o benefício da temperatura mais baixa seja
mais importante. Por enquanto, no entanto, esta identificação
de subgrupos com possível benefício não passa de mero
levantamento de hipóteses e especulação.
Neste momento, o ILCOR (International Liaison Committee
on Resuscitation) recomenda manter a indução de hipotermia
com temperatura-alvo de 32 a 34 graus, conforme as últimas
diretrizes, até que este e outros artigos possam ser discutidos
em reunião específica do comitê. Em minha particular opinião,
acredito que a recomendação de hipotermia terapêutica terá
sua temperatura-alvo modificada para 36 graus nas próximas
diretrizes, previstas para publicação em outubro de 2015,
mantendo um estrito controle de temperatura com leve indução
de hipotermia e evitando a natural elevação da temperatura nas
primeiras 48 ou mais horas deste paciente tão crítico.
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