CEDES – CENTRO DE E STUDOS DIREITO E S OCIEDADE – B OLETIM/OUTUBRO DE 2006
DIREITOS, REPRESENTAÇÃO E A CIDADE: OS JURISTAS E A DEMOCRACIA.
Maximiliano Godoy 1
Uma reflexão sobre a proposta institucional do CEDES, tal como consta na
seção de “Apresentação” deste site e como vem se transmitindo à orientação de
seus projetos, permite abrir ao debate os termos em que deve operar sua idéia
central, de que é preciso dar um passo além da academia. Junto com esse
propósito vem, necessariamente, um consenso mínimo quanto ao que é e o que
deve ser a democracia brasileira. As linhas desse texto que apresento não visam à
delimitação exata dessa visão de mundo que dá vida ao CEDES, mas sim
pretendem, dentro da minha modesta e restrita reflexão pessoal, pontuar alguns
aspectos de sua formulação.
Em um primeiro momento é apresentada uma perspectiva sobre a
ascensão contemporânea do tema dos direitos, contabilizando-se os aportes de
uma nova maneira de pensar a soberania popular e da idéia de que as
particularidades da argumentação jurídica e das garantias formais nela incutidas
não são um óbice para que o Judiciário e outras instituições jurídicas se elevem a
um novo patamar de legitimidade democrática. Em seguida, sugere-se que o tema
do território urbano pode se tornar um lugar privilegiado para o encontro entre
juristas e movimentos populares.
Inicio a elaboração acima descrita com o conceito mais importante do
projeto de reflexão e de ação que originou o CEDES: a emergência do homem
comum como sujeito de direitos. Do ponto de vista da teoria republicana da
democracia, sugiro dois caminhos para a avaliação desse fato. O primeiro deles
separa a esfera dos direitos e a esfera da democracia, mas as separa apenas
para proclamar a função de cada uma na delimitação recíproca de papéis.
Liberdade e igualdade se opõem, mas é o equilíbrio entre ambas que evita a
tirania. Nessa chave, a ascendência e a ampliação da esfera dos direitos geram
um problema básico: desestabilizam o equilíbrio de poderes e corrompem tanto as
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Mestrando em sociologia no IUPERJ e pesquisador do CEDES.
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instituições das liberdades subjetivas quanto as da representação igualitária. A
solução para esse novo estado de coisas consiste em alçar o ativismo cívico e a
solidariedade patriótica ao mesmo nível atingido pela consciência jurídica.
O segundo caminho advoga pela inexistência de dois princípios em
oposição, de duas vertentes de poder institucionalizado cujo combate entre si
levaria ao afastamento do despotismo. O Estado democrático de direito é visto
como um conceito unitário em que o sujeito de direitos e a cidadania política só se
desenvolvem em conjunto. O núcleo petrificado da constituição democrática é
apresentado como um conjunto de garantias jurídicas essenciais à participação
igualitária na formação da vontade política.
Nesse modelo, a defesa contra o despotismo reside na livre formação,
constitucionalmente garantida, de uma opinião pública que assedia cada etapa e
cada lugar institucional do sistema representativo. Igualdade e liberdade só se
realizam juntas. Como o direito é a linguagem com que o poder político e essa
“esfera pública” tentam influenciar um ao outro, a generalização da cidadania
jurídica – isto é, a ampliação dos direitos de cidadania, passando dos direitos civis
e políticos para os direitos sociais e para os direitos difusos, e atingindo assim de
maneira cada vez mais intensa a vida do homem comum – nada mais é que a
concretização do modelo. O problema da “juridificação” tem que ser assim
desdobrado naquilo que ele se origina da usurpação da soberania popular por
quadros do sistema político-administrativo ou do próprio Judiciário e naquilo que
ele resulta legitimamente de necessidades sociais e de demandas ressoadas na
esfera pública.
O primeiro caminho inspira-se em obras como os artigos de Charles Taylor,
em Argumentos Filosóficos, sobre a política contemporânea. Como as referências
tocquevillianas são claras, pode-se explicar a formulação acima proposta
começando pelo modo como o “Montesquieu do século XIX” atualiza o seu pai
filosófico. Para Montesquieu, o governo em que se atinge o maior nível de
liberdade não é o que funciona segundo o valor político da igualdade (a república
democrática), mas sim aquele que favorece uma constituição em que os
elementos monárquico e aristocrático, com seus princípios da soberania de um e
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do amor aos privilégios jurídicos, figuram ao lado do elemento democrático em um
entrelaçamento de papéis institucionais que resulta na moderação de cada um
deles.
No pensamento político de Tocqueville, contudo, a liberdade é defendida
muito mais pelas escolas cívicas do associativismo, ao difundirem o interesse
bem-compreendido como substituto da virtude política antiga, que pelas garantias
jurídicas oriundas do sistema medieval de estamentos, mais afinadas estas – pelo
menos na exposição do autor em A Democracia na América – com a sensibilidade
aristocrática em decadência do que com o mundo do inte resse que se impõe ao
homem democrático. A igualdade é para Tocqueville um pano de fundo
inescapável, mas ele não previa a importância que viria a ter o homem comum
como o novo campeão dos direitos – o que renovou democraticamente a
valorização dos direitos contida na monarquia constitucional de Montesquieu.
Para se passar ao contraste com o segundo caminho, pode-se esclarecer
ainda sobre o primeiro que as interpretações contemporâneas de Tocqueville –
fiéis a seu intento, com efeito – são modos de se refletir sobre como suscitar a
solidariedade
republicana
quando
temos
diante
de
nós
os
valores
incomensuráveis do regime de direito e do autogoverno participativo. Se para
Charles Taylor a solução está em reforçar o sentido de ação comum entre as
massas e seus segmentos, alcançando este o mesmo nível de um senso
juridificado, de antagonismo de interesses, que hoje prevaleceria no ativismo
popular, para Antoine Garapon não há porque lutar contra a substituição do
cidadão pelo sujeito de direitos – desde que a judicialização das relações sociais
permita, no interior de sua dinâmica de oposição de interesses, a formação de um
direito pluralista nascido da interação entre sociedade e juiz, o que significa o
abandono das expectativas democráticas quanto à representação política.
Já no plano do segundo modelo, Jürgen Habermas, no artigo Soberania do
Povo como Processo, afasta ambas essas maneiras de pensar em razão de o
princípio da soberania e do autogoverno não precisar se relacionar com o princípio
liberal de direitos naturais pré-políticos em um contexto de limitação do primeiro,
sendo melhor que se proceda a uma interpretação unitária dos mesmos.
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Certamente a inspiração de Habermas é Rousseau, mas resolve o problema da
necessidade de homogeneização social (oriundo da conciliação rousseauniana
entre as autodeterminações pública e privada através de um conceito de lei que
atenda aos critérios formais da generalidade e abstração) por meio das idéias de
fragmentação comunicativa do soberano e de assédio ao sistema de
representação política por parte de uma esfera pública livre e racional.
Permanecendo com Rousseau, permanece no campo republicano, de modo que,
como no primeiro caminho, uma cultura cívica é ainda necessária.
Para enfatizar mais alguns aspectos da distinção entre essas duas vias de
apreciação do fenômeno em tela, cumpre atacar a questão da soberania, a que
ainda retornaremos. Isso porque, como foi dito, o cânon do primeiro modelo
remonta a Montesquieu, cuja concepção de separação de poderes atribuída à
política moderna tem por objetivo a anulação da soberania. Se no liberalismo de
Locke a soberania persiste, mas fica adormecida na possibilidade de
desobediência civil por parte dos sujeitos de direitos, e se em Rousseau ela é um
tema concreto a ser vivido em uma sociabilidade pública que homogeneíza, no
segundo modelo acima apresentado a soberania toma um caráter diluído, na
medida em que o paradigma corporificado da assembléia de cidadãos é sublimado
em uma rede segmentada de associações livres orientadas para um entendimento
racional, falsificável e espontâneo.
Antes de prosseguir, é possível sugerir com um breve panorama histórico
as questões práticas que a evolução clássica do sujeito de direitos pode suscitar.
De início, pode-se recuperar os textos organizados por Terence Halliday e Lucien
Karpik em Lawyers and The Rise of Western Political Liberalism , obra que assume
uma visão interessada no processo de formação de sociedades políticas liberais
em que o poder de Estado é moderado pela conquista de garantias jurídicas por
parte da sociedade civil. Em suma, observa-se que as liberdades civis surgem em
contextos de luta contra o absolutismo, especificamente a partir da ação de
homens do direito no sentido do fortalecimento de instituições judiciais. Com essa
ação, criam uma esfera pública que se define inicialmente como extrapolítica e
que algumas vezes se proporá a canalizar os interesses e as reivindicações de
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autonomia do homem comum para a linguagem de um direito abstrato que é o
móbil da limitação das potências instaladas no Estado.
Já o processo que origina direitos políticos e sociais é bem distinto. A
generalização da cidadania política por meio do sufrágio universal não trouxe
consigo – como esperavam pensadores democratas da Europa dos 1830, ou o
Marx das glosas de 1843 – a síntese entre sociedade civil e Estado, entre o
homem concreto, produtor cotidiano de suas condições de vida, e o cidadão
abstrato, pessoa moral orientada para o interesse geral. O que se seguiu à
universalização do direito de votar e ser votado não foi a radicalização do princípio
da esfera pública, criando uma esfera de deliberação e decisão pública acerca do
conjunto de processos de reprodução social, mas o recrudescimento do poder de
Estado em direção a um bonapartismo ancorado na transformação da
administração pública em instrumento eleitoral.
O cenário político passa a despertar, de maneira cada vez mais intensa, o
sentimento de ameaça por uma ditadura de especialistas. As cores do estatismo
podem variar – podem ser, como sugere a história do século XX lida por
Poulantzas em O Estado, o Poder, o Socialismo, as da social-democracia, as do
stalinismo ou as de movimentos fascistas de reação –, mas o seu resultado é
sempre o enfraquecimento das iniciativas das massas populares e a experiência,
por estas, do Estado como um poder heterônomo.
Ainda assim, não é demais reforçar que se os direitos sociais surgem
muitas vezes a partir dessa dinâmica de autoprogramação do sistema políticoadministrativo, quase sempre está presente, em algum grau, o influxo de pressões
democráticas. Como já argumentado anteriormente, cada caso de proclamação de
um direito social pode ser avaliado nas respectivas medidas de paternalismo e
instrumentalismo político, ou de interpelação popular e ação comum legitimadas.
Por fim, o aparecimento dos direitos difusos, notadamente os de caráter
ambiental, vem para aprofundar uma experiência de representação funcional
que já se conhecia especialmente através da jurisdição trabalhista coletiva, em
que
a
administração
arbitra
entre
grupos
de
interesses
devidamente
representados por seus sindicatos. A representação funcional, tal como
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apresentada por Pierre Rosanvallon, encontra -se a meio caminho entre a
democracia direta e a representação pelo voto, e é um ponto importante para as
concepções de democracia que admitem a “soberania complexa”, isto é, a idéia de
que a diversificação de representantes permite uma submissão mais efetiva do
governo aos cidadãos. Quando se mencionou acima as conseqüências perversas
da ampliação de direitos políticos, não se quis daí concluir pela abolição dos
mesmos, mas sim pela idéia de que eleições e referendos não levam
automaticamente a uma situação de democracia plena.
Desde a mesma década de 1830, em que democratas discutiam a reforma
eleitoral na Europa, os liberais desconstruíam a noção de soberania com a
relativização sociológica do conceito de povo. A existência complexa, inacabada e
intangível do povo não precisa, contudo, levar à idéia de que a soberania não
existe ou, ao menos, é algo a ser limitado. Pelo contrário, ela deve levar à
consideração da Constituição, do Judiciário e dos órgãos parajudiciais, no tocante
à sua legitimação para atuar em pé de igualdade com os representantes eletivos,
como a forma mais viável e mais próxima da democracia direta para a realização
desencantada da vontade geral.
Entre o paradigma monológico do juiz Hércules de Dworkin, tradutor
solitário dos ideais da comunidade política impressos em leis e decisões
passadas, e a redução por Habermas do direito jurisprudencial a um perigoso foco
de usurpações da função legislativa, pode-se propor que a representação
funcional judiciária seja tratada segundo aquilo que o conceito de representação
indica, mas sem abandonar a centralidade da política tradicional como faz
Garapon. Em Direito e Democracia, Habermas escreve que a lógica da esfera
pública não é capaz de penetrar no discurso jurídico, dado o fato de que a
sucessão de garantias formais oriundas do direito processual permite aos atores
sociais adotar em suas disputas de interesse uma orientação estratégica,
aniquilando os pressupostos da ação comunicativa.
A idéia que se contrapõe a Habermas é a do “fórum judicial” – fórum no
sentido
não-técnico
do
lugar
de
discussão
pública
e
de
decisão.
Comparativamente, Robert Badinter afirma nos diálogos que editou com Stephen
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Breyer (Judges in Contemporary Democracy) que a democracia deliberativa tem
mais chances junto ao Judiciário do que no Legislativo. A esfera pública jurídica,
que é a dos especialistas na dogmática e na teoria do direito, terá cada vez mais a
oferecer para a democracia na medida em que trouxer para si tudo aquilo que
resulta da jurisprudência-esfera pública, isto é, a esfera pública judicial e
jurisdicional em sentido lato, que é por definição aberta às demais esferas públicas
aninhadas tematicamente, através das quais os movimentos sociais podem se
fazer ouvir.
A dificuldade de haver uma rede de esferas públicas, ao invés da esfera
pública política unitária do passado, é algo que deve ser enfrentado como questão
premente. Mas perceba-se que essa mudança estrutural vai ao encontro de um
padrão que é característico da sociabilidade urbana. Nas cidades, o
associativismo se expressa espacialmente, formando “redes territorializadas de
apoio social e mútua proteção” que não condizem nem com o paradigma do
interesse, nem com o da virtude cívica – ver o artigo de Maria Alice Rezende de
Carvalho, Dilemas Contemporâneos da Cidade Moderna, disponível no Boletim do
CEDES anterior. E nem por isso se apaga o potencial de esses públicos locais
galgarem os degraus de argumentação pública que podem levar à renovação da
experiência republicana. Como dito acima, o direito é a arena mais propícia à
canalização dessa sociabilidade, ao mesmo tempo em que impõe às esferas
públicas territoriais a necessidade de se referir à vontade geral.
A prática da representação funcional suscita a transformação da tradição
jurídica em uma fonte alternativa, ou pelo menos adicional, para a formação de
identidades simpáticas à nova dinâmica da democracia, de multiplicação dos
modos de representação. É claro que a renovação da tradição jurídica, sem deixar
de ser uma missão própria dos intelectuais, depende de que chegue até os
gabinetes dos especialistas uma opinião formada exteriormente às dinâmicas
sistêmicas do circuito político-administrativo, no âmbito da sociedade civil – tratase, contudo, de um processo de dupla vinculação, em que os movimentos sociais
e a ação comum temática são o substrato e o motor da abertura democrática das
instituições públicas que, por sua vez, faz enraizar-se o sentido de eficácia da
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ação comum, o que faz intensificar o associativismo popular e assim por diante em
uma espiral de consolidação democrática. A tendência é que uma cultura de
participação e de cidadania ativa renovada pela representação funcional resgate
também os valores perdidos da representação política clássica.
Especificamente quanto ao tema das cidades e das lutas pelo território
urbano, há um perigo que aqui não se pode furtar ao registro: trata-se da
transformação do debate sobre a questão social da expansão das favelas em um
palco de ataques à falta de fiscalização sobre as construções informais e, vez ou
outra, à falta de uma política de habitação eficiente – pergunta-se com isso onde
estão o Estado-polícia e o Estado-de-bem-estar. Outra ameaça é a questão das
remoções, cuja cobertura da grande mídia é em geral tão unilateral que impede de
enxergar, por exemplo, que o dano ambiental da ocupação de um parque
ecológico pode ser remediado sem os custos sociais e humanos da destruição de
uma rede territorializada, ou que os habitantes de tais locais podem ter uma
opinião própria sobre a melhor maneira de fazer ou de não fazer uma remoção, ou
ainda que essas mesmas pessoas podem querer resguardar bens coleti vos
traduzíveis em direitos sociais e culturais a ser devidamente sopesados – em
suma, um quadro em que não se consegue nunca perguntar como dar uma
chance ao Estado democrático de direito.
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