As cabeças falantes do universo beckettiano:
uma análise da transcriação do texto teatral de That Time1
Gabriela Borges
Introdução
As cabeças falantes são elementos estéticos constituintes de algumas das obras
teatrais e audiovisuais de Samuel Beckett. A fragmentação das partes do corpo e a
sua consequente transformação nos próprios personagens é uma característica
que está presente em peças como Play (1964), That Time (1976), Not I (1972) e
What Where (1983). Este trabalho tem o intuito de discutir a encenação das
cabeças falantes a partir da análise da transcriação da peça teatral That Time
dirigida por Charles Garrad para o projecto Beckett on Film. O projecto Beckett on
Film consta da adaptação das peças de teatro de Samuel Beckett para o cinema e a
televisão produzido pela televisão pública irlandesa RTÉ, o Channel 4 britânico e o
Irish Film Board.
O projeto Beckett on Film
O projeto Beckett on Film, realizado em 1999, consta da transcriação para o meio
audiovisual das dezenove peças de teatro do dramaturgo irlandês Samuel Beckett.
As peças foram originalmente produzidas pelo Gate Theatre Dublin para o Beckett
Festival em 1991, tendo sido exibidas em conjunto com as peças de rádio do autor.
Devido ao grande sucesso de público nos palcos de Dublin, Londres, Nova York e
Melbourne, o diretor artístico do Gate Theatre Dublin, Michael Colgan, juntamente
com Alan Moloney da produtora Blue Angel Films, propuseram a realização do
projeto para a rede pública de rádio e televisão irlandesa RTÈ, que o produziu em
parceria com o Channel 4 e o Bord Scannán na hÉireann/The Irish Film Board.
Samuel Beckett, apesar de ser mais conhecido pelos seus trabalhos literários e
teatrais, sempre teve muito interesse pelos meios audiovisuais. Em 1938, escreveu
Texto publicado no livro Borges, Gabriela (org.) Nas margens. Ensaios sobre teatro,
cinema e meios digitais. Lisboa, Gradiva, 2010.
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uma carta para Sergei Eisenstein pedindo para aprender cinema com o mestre
russo, a qual nunca foi respondida. Entre as décadas de 1950 e 1980, Beckett
escreveu peças de rádio e televisão para a rede de rádio e televisão britânica BBC e
dirigiu os seus trabalhos na emissora de televisão alemã Suddeustcher Rundfunk.
Em 1963, escreveu o filme intitulado Film, protagonizado por Buster Keaton e
dirigido por Alan Schneider.
Por outro lado, Beckett era avesso às adaptações de seus trabalhos para outros
meios, não por purismo, mas porque acreditava que o meio é um elemento estético
constituinte da obra e a adaptação não permite explorar o meio neste sentido. Em
1963, Beckett autorizou a adaptação da peça de rádio All that Fall pela televisão
francesa RTF. Esta foi traduzida pelo próprio autor com o título Tous ceux qui
tombent e direção de Robert Pinget. O autor ficou muito insatisfeito com o
resultado porque esta é uma peça “for voices, not bodies”, por isso não funciona
num meio que mostra os personagens. Para Beckett “to act is to kill it” (Zilliacus,
1976). Após assistir à adaptação, o autor escreveu para John Barber da Curtis
Brown, a sua agência na França, a seguinte nota: “In a weak moment I let French
TV do All that Fall, with disastrous results” (apud Knowlson, 1997: 799). Por isso,
quando Ingmar Bergman pediu permissão para adaptar as duas peças de rádio, All
That Fall e Embers, Beckett não a concedeu. (apud Knowlson, 1997: 505).
Mesmo assim, alguns autores afirmam que a criação das suas peças de teatro foi
influenciada pelas tele-peças que estava produzindo no mesmo período. Na
televisão, Beckett teve a possibilidade de aperfeiçoar a sua estética minimalista e a
fragmentação do corpo dos personagens de uma forma que o teatro não permitia,
mas ao mesmo tempo inovou a linguagem teatral ao trabalhar neste meio a partir
das suas experimentações com a televisão.
A realização do projeto Beckett on Film levanta uma discussão muito instigante em
relação à criação artística e à crítica da obra do autor. Por um lado, sabe-se que
Beckett não autorizava as adaptações sendo que, curiosamente, o meio audiovisual
permitiu o apuramento estético da abstração das imagens criadas pelo autor. Por
outro lado, os produtos audiovisuais produzidos permitem que a sua obra teatral
continue a ser estudada e que as novas gerações venham a conhecer trabalhos tão
idiossincráticos e relevantes para a história da dramaturgia ocidental.
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Apesar de ter conhecimento das restrições de Samuel Beckett no que diz respeito à
adaptação de suas peças para outros meios, Colgan propôs ao Beckett Estate,
detentor dos direitos autorais da obra beckettiana, a realização da adaptação para
os meios audiovisuais das dezenove peças de teatro escritas pelo autor. A
concessão dos direitos autorais por parte do Beckett Estate contou com várias
premissas, entre elas destaca-se o critério para a escolha dos realizadores, que
baseou-se na experiência prévia como escritores, pois as didascálias de Beckett
para a performance das peças deviam ser seguidas à risca. Colgan2conta que foi
escrita uma espécie de “bíblia” para os realizadores, cujas instruções eram
categóricas: não eram permitidos cortes no texto, definições de gênero e, por
exemplo, onde estava escrita a palavra “praia” devia haver uma praia, pois não
seriam aceites adaptações ou cenas inspiradas em outros autores ou mesmo em
outros textos do próprio autor.
O desafio dos realizadores estava na passagem do texto teatral inalterado do palco
para a tela, usando apenas os recursos do meio audiovisual, isto é, os
enquadramentos, os ângulos e movimentos de câmera e a edição. Por outro lado,
foi dada total liberdade para a escolha do elenco, pois os produtores esperavam
que os realizadores contratassem atores e atrizes de renome para dar
credibilidade ao projeto. A atriz Julianne Moore foi convidada para protagonizar a
peça Not I, dirigido por Neil Jordan; o ator John Hurt para o papel de Krapp em
Krapp´s last tape, dirigido por Atom Egoyan; Jeremy Irons protagoniza os dois
personagens, Reader e Listener, de Ohio Impromptu, dirigido por Charles Sturridge
e Harold Pinter faz o papel do diretor em Catastrophe3, dirigido por David Mamet.
Como produto audiovisual, os filmes foram captados em película e disponibilizados
também em DVD. Para a transmissão televisiva os filmes foram divididos em
blocos e acompanhados de entrevistas com os diretores e atores, as quais também
se encontram no DVD juntamente com o documentário sobre a produção, Check the
Gate: Putting Beckett on Film, dirigido por Pearse Lehane. É importante ressaltar
que os filmes tiveram uma ótima acolhida por parte do público ao serem exibidos
em festivais de cinema ao redor do mundo mas, quando foram exibidos na
televisão, os índices de audiência foram tão baixos que o próprio Channel 4
www.beckettonfilm.ie
Esta peça foi dedicada por Beckett ao dramaturgo e ex-presidente da República Tcheca,
Václav Havel, quando ele foi preso por suas opiniões políticas em 1982.
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cancelou a exibição de alguns deles. Ainda assim, o projecto Beckett on Film ganhou
o prêmio Best TV Drama do South Bank Award Ceremony em 2002.
A partir das considerações iniciais tecidas, o próximo capítulo tem o intuito de
discutir a fragmentação das peças beckettianas e, em especial, a transcriação da
peça That Time. Para isso será analisada a génese da peça teatral e o filme
produzido pelo projeto Beckett on Film.
A fragmentação e a transcriação
Em termos narrativos, as peças de Beckett não estão baseadas na unidade de ação
aristotélica, com começo, meio e fim, pois apresentam uma estrutura circular e
reincidente. Os diálogos não correspondem às ações e os personagens, aos poucos,
vão sendo imobilizados. A ideia do drama como representação mimética da
realidade é questionada quando a imitação de uma ação torna-se o próprio tema
da peça. O espaço cênico apresenta um mínimo de objetos. Num constante
processo de minimalização e abstração, os cenários não representam um espaço
definido de ação no sentido realista ou naturalista do termo. Em Waiting for
Godot4, por exemplo, há somente uma estrada com uma árvore, em Happy Days,
Winnie está enterrada num monte de areia até a cintura no primeiro ato e no
segundo ato até o pescoço. Do mesmo modo que os objectos de cena começam a
ser preteridos para a composição dos cenários, os corpos dos personagens
começam a ser fragmentados ao ponto das próprias partes do corpo se
transformarem em personagens. Este é o caso das peças Play, Not I, That Time e
What Where. Em Play, os personagens W1, W2 e M estão dentro de urnas e
somente as suas cabeças são vistas quando enfocadas pelos holofotes de luz. A
protagonista de Not I é a Boca que, como o próprio nome indica, é o órgão que atua
como personagem. Em That Time, que será detalhadamente analisada neste
estudo, temos apenas uma cabeça suspensa na escuridão, o personagem do
Ouvinte. E What Where apresenta a máscara da morte, a voz de Bam, e os quatro
rostos-personagens muitos parecidos - Bam, Bem, Bim e Bom - suspensos na
escuridão referida por Beckett como o campo da memória. A performance dos
A árvore da primeira performance desta peça em 1958 foi criada pelo escultor Alberto
Giacometti.
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atores, na maioria das vezes, é enfatizada com o uso de focos de luz em meio à
escuridão, tanto nas peças acima mencionadas como em outras. Em Rockaby
somente a cadeira de balanço em que a personagem W está sentada é vista no
palco e em Footfalls somente a personagem fantasmagórica de May está iluminada
ao andar compassadamente de um lado ao outro do palco.
Sem dúvida que Beckett subverteu as regras daquilo que era considerado o drama
teatral, principalmente nos anos 1950. Porém, a questão que se coloca neste
trabalho é se os filmes conseguem transcriar as particularidades da peça numa
outra linguagem, o que Campos (apud Plaza, 1987:28) refere-se como a tradução
do próprio signo na sua materialidade. Para Ballogh (1996:36-41), o texto
transcriado tem que responder como um texto estético por si só, independente do
texto de origem, que é denominado na literatura de “forma-prisão” (Santiago apud
Johnson, 1982:10). No teatro, não somente o texto com os monólogos ou diálogos
fazem parte desta forma-prisão, mas também as didascálias, ou as rubricas que
constróem o espaço cênico visualizado pelo autor. Na opinião de Ramos (1999:77)
as rubricas e os diálogos são igualmente importantes na composição do texto
teatral beckettiano, inviabilizando a performance e o sentido da peça caso não
sejam respeitados.
Por outro lado, pode-se argumentar que o próprio desenvolvimento do processo
criativo de Samuel Beckett contribuiu para a realização do projeto Beckett on Film,
pois a imagética beckettiana da fragmentação se adequa muito bem às
especificidades da linguagem audiovisual, permitindo a criação de novas metáforas
visuais por intermédio do uso da câmera, da iluminação, dos recursos de áudio e
de edição.
Neste sentido, este estudo tem como objetivo discutir as particularidades e as
nuances do processo de criação e de transcriação da peça de teatro That Time para
o projeto Beckett on Film.
O texto teatral
A peça That Time foi escrita em inglês entre os anos de 1974 e 1975 e encenada
pela primeira vez no Royal Court Theatre em Londres no dia 20 de Maio de 1976. A
peça é composta por um personagem, um homem de longos cabelos compridos
brancos, o Ouvinte, cuja imagem contrasta com uma mesma voz advinda de três
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fontes sonoras diferentes: A, B e C. As referências imagéticas da peça são as
gravuras de William Blake e possivelmente a fotografia Women with long hair
(1929), de Man Ray5.
James Knowlson (1997: 600-2) afirma que esta peça trabalha com temas
reincidentes na obra do autor, como a ausência de um eu identificável e a
existência de uma vida imaginária em que o personagem inventa histórias e vozes
para ouvir, criando um mundo próprio para poder fugir dos seus problemas e
ignorar os sinais de decadência, desintegração e morte que o circundam.
Apesar de não ser possível afirmar que esta é uma peça autobiográfica, podem ser
feitas associações com a vida do próprio Beckett, que naquele momento tinha
sessenta e oito anos e indagava sobre a passagem do tempo. Os sentimentos de
confusão, solidão, desolação e morte emergem à medida que o personagem do
Ouvinte relembra do seu passado. Neste sentido, a peça remete para o que o
próprio Beckett (1999: 13) tinha escrito sobre a obra de Proust:
“There is no escape from the hours and the days. Neither from tomorrow nor from
yesterday. There is no escape from yesterday because yesterday has deformed us,
or been deformed by us. The mood is not important. Deformation has taken place.
Yesterday is not a milestone that has been passed, but a daystone on the beaten
track of the years, and irremediably part of us, within us, heavy and dangerous. We
are not merely more weary because of yesterday, we are other, no longer what we
were before the calamity of yesterday. A calamitous day, but calamitous not
necessarily in content.”
That Time tem uma estrutura circular e terciária como a peça Play. Beckett
escreveu em 1974 que tinha consciência de que esta era uma peça que estava nos
limites do que era possível se fazer no teatro. O autor escreveu a seguinte nota no
manuscrito: “To the objection visual component too small, out of all proportion
with aural, answer: make it smaller on the principle that less is more” (apud
Knowlson, 1997: 602).
A forma é uma das características centrais da peça, talvez até mesmo fornecendo
as razões para a necessidade de expressar-se, cuja preocupação Beckett ressaltou
muito bem nos diálogos com George Duthuit: “there is nothing to express, nothing
Knowlson (1997: 816) afirma que não se sabe ao certo se Beckett conhecia o trabalho de
Man Ray, mas sabe-se que Ray fotografou James Joyce, Francis Picabia, Tristan Tzara,
Marcelo Duchamp, todos conhecidos de Beckett.
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with which to express, nothing from which to express, no power to express, no
desire to express, together with the obligation to express” (Beckett, 1999: 103).
A peça apresenta uma estrutura matemática, com trinta e seis parágrafos divididos
em três secções de doze parágrafos, sendo que cada voz fala quatro vezes em cada
secção. A peça abre com o discurso da Voz A e fecha com o discurso da Voz C. O
balanço é simétrico e a divisão das secções é feita por meio de silêncios, um
recurso que se mostra adequado para uma peça em que a possibilidade do silêncio
está sempre presente de modo elusivo. Os períodos são interligados sem
pontuação, portanto sem interrupções no discurso. Também não há letra
maiúscula no começo dos parágrafos, os quais funcionam apenas para marcar uma
quebra e uma mudança entre os três monólogos, o que é feito com uma precisão
matemática que pode ser associada à obra Lessness (1969). De acordo com a
indicação de Beckett, a mudança das vozes deve ser imperceptível, porque estas
constituem uma mesma voz e aparecem como um fluxo da consciência, mais uma
característica marcante no modo de expressão beckettiano.
No teatro, as indicações são para que as vozes venham da direita, da esquerda e de
cima da cabeça do personagem. A cabeça move-se, mas os lábios não se mexem,
apenas os olhos se abrem quatro vezes durante a peça. E há um sorriso epifânico
no final. As diferentes estórias contadas por A, B, C, que são as denominações
dadas por Beckett para o discurso, correspondiam primeiramente aos aspectos
factuais, mentais e afectivos da vida do personagem, mas foram desenvolvidas em
três períodos da vida do Ouvinte (A refere-se à infância, B à juventude e C à
velhice).
O monólogo da voz A conta a história de uma criança solitária que se esconde
numa ruína isolada e inabitada, onde fica falando consigo mesmo. O monólogo da
voz B relata um relacionamento em que os amantes nunca se dirigiram um ao
outro, nunca se tocaram ou coisa parecida. Na opinião de Pountney (1998: 38) a
relação entre eles parecia envolver uma responsabilidade crescente a fim de
permitir o amor mútuo e, neste sentido, a reiteração se torna não apenas uma troça
do voto do casamento, mas talvez as implicações da punição por falta de amor. À
abordagem estéril do amor pela voz B adiciona-se a referência a um rato morto
que foi apanhado entre os ramos de uma árvore. Na obra de Beckett a experiência
de um amor perdido é lembrado como um remorso nostálgico. Entretanto, em That
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Time o amor perdido é associado a um rato morto, o amor não apenas foi perdido,
mas está morto e pútrido.
O monólogo da voz C é de um velho homem, um vagabundo beckettiano que
assombra os espaços públicos, como a Portrait Gallery, a Public Library ou o Post
Office, em busca de calor e de algum lugar para se sentar. Ele tem a mesma
relutância que a Boca de Not I6 para aceitar a sua identidade, como na seguinte
passagem: “could you ever say I to yourself in your life …” e está sempre tendo
pontos de viragem na sua vida. Ele também está confuse e repete várias vezes
durante a peça: “was that the time or was that another time?” (Beckett: 1999: 390).
Na opinião de Pountney (1998: 39) a questão é retórica, porque na verdade as suas
experiências são apenas palavras, e a vida em si mesmo é uma ficção.
Os protagonistas beckettianos sempre passam a vida a contar, ou a ouvir histórias,
uma situação paralela ao processo criativo do autor, na verdade a ironia do seu
trabalho está na tensão entre o autor e o protagonista-autor e as dificuldades
experimentadas por ambos. A Voz B descreve porque sente a necessidade de
contar histórias na seguinte passagem: “just one of those things you kept making
up to keep the void out just another of those old tales to keep the void from
pouring in on top of you the shroud” (Beckett: 1999: 390). E a Voz C expressa a
mesma necessidade em: “trying making it up that way as you went along how it
would work that way for a change never having been how never having been
would work the old rounds trying to wangle you into it…” (Beckett: 1999: 391).
O texto audiovisual
No cinema e na televisão a peça foi transcriada por Charles Garrad, com atuação do
ator Niall Buggy e duração de vinte minutos. O filme apresenta close-ups do
Ouvinte sob diversos ângulos da câmera de acordo com o discurso de cada uma
das vozes. Na transcriação, a figura do Ouvinte pode ser melhor enfatizada do que
no teatro, através do uso do close-up e dos enquadramentos da câmera. O uso
estético do close-up começou a ser desenvolvido por Beckett na tele-peça Eh Joe,
com o fechamento do ângulo de visão da câmera nos olhos de Joe, atingindo um
Beckett considera o texto da peça That Time como “irmão de Not I” (apud Knowlson, 1997:
816).
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momento epifânico na formação do que Deleuze (1995: 12) denomina “a imagem”
do personagem F, na tele-peça Ghost Trio (1975).
A fragmentação do corpo e o posterior redimensionamento de suas partes em
personagens, especialmente as cabeças falantes (talking heads), são recursos
explorados nas peças teatrais Play (1964), Not I (1972), That Time (1976) e What
Where (1983), mas que foram aperfeiçoados nas tele-peças devido ao espaço
condensado da tela, que enfatiza a expressividade dos fragmentos corporais. De
facto, a tecnologia intrínseca aos meios audiovisuais permitiu que Samuel Beckett
explorasse as partes do corpo e, em especial, o rosto. Nos filmes transcriados para
o projecto Beckett on Film, com destaque para That Time, a expressividade do rosto
é favorecida pelo enquadramento do plano e o recorte da tela. Deleuze (1994)
define o primeiro plano, o close-up e portanto o rosto, como imagem-afecção. O
close-up retira as coordenadas espacio-temporais da imagem e faz surgir o afecto
puro no momento em que está a ser expresso. Neste sentido, a imagem-afecção
transforma a face humana em paisagem, em “rostidade”. Deleuze e Guattari (apud
Vasconcelos, 2006: 97) afirmam que “o rosto é paisagem ao comportar inúmeras
facetas em uma face, infindáveis rostos em um rosto. Esses desdobramentos do
rosto teimam em descaracterizar o que há de humano em suas expressões,
pervertendo a própria anatomia, instaurando um corpo sem órgãos”.
A imagem-afecção, ao retirar as coordenadas espacio-temporais da imagem,
instaura um espaço qualquer, que no filme That Time é expresso pela escuridão
que circunda o rosto. Ao ser fragmentado o rosto passa a estar suspenso neste
espaço qualquer. O espaço qualquer não é um espaço universal abstracto, em todo
tempo e lugar, é um espaço singular que perdeu a sua homogeneidade, isto é, o
princípio das suas relações métricas ou a conexão de suas próprias partes
(Deleuze, 1994: 160).
Segundo Deleuze e Guattari (1980: 206), o close do cinema tem dois pólos: fazer
com que o rosto reflita luz ou, ao contrário, acentuar as suas sombras até
mergulhá-lo numa impiedosa ‘obscuridade’. Isto é exatamente o que temos na
transcriação de That Time, que apresenta o rosto como focos de luz na escuridão
da tela. Em That Time o rosto-personagem do Ouvinte ganha uma dimensão
diferente daquela que tinha no teatro. Cada uma das vozes corresponde a um
ângulo de visão do rosto, o monólogo da voz A apresenta o fade in do perfil do
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rosto no lado esquerdo da tela. O monólogo da voz B apresenta o personagem no
ângulo frontal da câmera, em grandes close-ups mais próximos ou afastados que
enfatizam a sua insignificância perante a escuridão da tela. O monólogo da voz C
apresenta o fade in do rosto do lado direito da tela. A edição é feita por meio da
fusão das imagens do rosto, que se intercalam com os monólogos. Os monólogos
interiores de That Time não se expressam na narrativa, de modo algum como
passagens das etapas da vida do Ouvinte, mas pode-se dizer que se aproximam de
um fluxo da consciência que muda em conformidade com os ângulos do rosto do
personagem.
Em That Time, há uma coexistência de temporalidades na narrativa, que não
separa o passado do presente e o futuro do passado. Neste sentido, Beckett, como
Alain Resnais em Hiroshima mon amour (1959), subverte o procedimento da
imagem-lembrança no cinema, que reconstitui o passado por meio do flash-back e
das falas em off de um narrador. Em That Time, as três fontes sonoras que narram
três momentos da vida do Ouvinte na terceira pessoa se imbricam de tal forma que
temos apenas um fluxo sonoro que se associa e se dissocia dos três angulos do
rosto-personagem. Para Bergson (1999), a percepção e a lembrança estão
imbricadas num circuito em que a imagem-lembrança se insinua na percepção e
dificulta a possibilidade de se distinguir entre uma e outra. Neste sentido, esta
concepção de tempo não cronológico reinventa a memória e dá acesso à lembrança
pura, que se deve ao aparecimento dos lençóis do passado e das pontas de
presente.
Para Deleuze (1990: 330), com a morte do flash back, da voz off e do extra-campo,
o cinema moderno só pôde conquistar a imagem sonora impondo uma dissociação
desta e da imagem visual. “A imagem sonora enquadra uma massa ou uma
continuidade da qual se extrai o ato de fala puro, isto é, um ato de mito ou
fabulação que cria o acontecimento. E a imagem visual enquadra um espaço
qualquer, espaço vazio desconectado que ganha novo valor, pois vai enterrar o
acontecimento sob camadas estratográficas. Logo, a imagem visual nunca mostrará
o que a imagem sonora enuncia”. Neste sentido, pode-se argumentar que o mesmo
procedimento está presente no trabalho de Beckett e, em particular, na
transcriação de That Time.
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O diálogo, ou a dissociação, entre a imagem visual e a imagem sonora no trabalho
de Beckett é empreendido pela descorporificação da voz, que é desmembrada do
corpo do personagem. Em Beckett as vozes são sempre ambíguas, pois não se sabe
quando se trata da voz do próprio personagem ou de um outro personagem, uma
vez que esta age independentemente das ações do personagem visto na tela. Isto
pode ser constatado nas tele-peças Eh Joe, Ghost trio e ...but the clouds.... Este
recurso permite a inserção das vozes da memória no espaço de ficção e a
reconfiguração da ordem cronológica do tempo. Ainda ligada à memória está a
repetição, que sempre volta de forma fragmentada, como nas tele-peças Eh Joe,
Ghost trio, ...but the clouds... e Nacht und Träume e na própria peça That Time, bem
como em Play e Not I.
Em That Time a imagem visual é sempre do rosto-personagem, no entanto a
imagem sonora cria fabulações que tentam afastar em vão o vazio. A Voz B afirma:
“No words left to keep it out so gave it up there by the window in the dark or
moonlight gave up for good and let it in and nothing the worse a great shroud
billowing in all over you on top of you and little or nothing the worse” (BECKETT,
1999: 394). A Voz A reafirma as reincidentes tentativas de afastar o vazio no final
da peça na seguinte passagem: “not a thought in your head only get back on board
and away to hell out of it and never come back or was that another time all that
another time was there ever any other time but that time away from to hell out of
it all and never come back” (BECKETT, 1999: 395).
Neste sentido, pode-se afirmar que as próprias características da obra audiovisual
becketiana estão presentes na transcriação de That Time, tais como a busca de um
mínimo expressivo na contração do espaço-tempo audiovisual; o diálogo e a
dissociação entre a imagem e o som; a repetição em formas diferenciadas, que é
impulsionada também pelos mecanismos da memória; a fragmentação do corpo e a
sua encenação como personagem; bem como a abstração e o estranhamento
gerado pelas imagens.
Para concluir, é possível afirmar que a transcriação de That Time faz uso das
potencialidades inerentes aos meios audiovisuais a fim de criar um objecto estético
que realça as características da peça e aprimora o próprio processo de criação
empreendido por Beckett. Como foi argumentado, esta transcriação aponta uma
série de questões em relação à criação artística e à crítica da obra beckettiana,
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sendo que agrega valor e, até mesmo, como argumentei, aproxima a obra
beckettiana das discussões e artifícios usados pelo próprio cinema moderno.
Apesar de alguns autores do fechado círculo de estudiosos da obra beckettiana não
terem aprovado as adaptações, devido às insistentes recusas do autor no passado,
é importante ressaltar que estes filmes do projecto Beckett on Film se tornaram
paradigmáticos para o estudo da obra de Beckett. De certo modo, renovam a
performance e a crítica à sua obra no início do século XXI, em que novas formas de
expressão artística surgiram em função do desenvolvimento das novas tecnologias,
e lançam um novo olhar sobre o seu trabalho. Se, por um lado, as peças perderam a
imediaticidade da performance ao vivo intrínseca à linguagem teatral, por outro
lado deixaram as suas idéias “malucas”, como o próprio autor dizia, registradas
permanentemente em formato digital e audiovisual.
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