A NEGAÇÃO DA ASSISTÊNCIA SOCIAL, A CHEGADA DA LOAS E A
CONSTRUÇÃO DO SUAS NO MEIO DE VAZIOS POLÍTICOS,
TEÓRICOS E METODOLÓGICOS
Marcelo Garcia
Marcelo Garcia é assistente social. Exerceu a Gestão Social Nacional, Estadual e Municipal.
Atualmente é professor em cursos livres, de extensão e especialização, além de diretor
executivo da Consultoria Agenda Social e Cidades. Desde 2009 trabalha e estuda de forma
continuada estratégias para combater a pobreza. Escreve diariamente para o site
<http://www.marcelogarcia.com.br>.
Debater o processo da negação da assistência social no Brasil é manejar uma chave
complexa, sem a qual não é possível abrir a porta da Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS);
e, atualmente, também a do Sistema Único da Assistência Social (SUAS). Por isso, é
fundamental buscarmos as chaves que permanecem submersas, há muitos anos, num medo
técnico e político ainda inexplicável, mas vivenciado de forma muito concreta.
Nas aulas, cursos e seminários que tenho a oportunidade de ministrar, conto que vivi
uma situação inusitada, durante minha formação profissional, em relação à LOAS. Formei-me
em 1993, no mesmo mês em que a LOAS foi promulgada. E nunca, numa sala de aula da Escola
de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense, o tema LOAS foi tratado por nenhum
professor.
A meu ver, o silêncio representava a total negação da assistência social, que, no
entanto, estava muito viva naqueles anos 1980 e 1990. Era como se estivéssemos na
universidade para aprender a não fazer assistência social. Na verdade, era mais ou menos isso
mesmo que acontecia comigo naquele início dos anos 1990.
No Brasil, professores, teóricos, intelectuais e até mesmo militantes sociais negaram,
por muitos anos, a construção de um Estado de bem-estar social, cujo modelo europeu
(Welfare State) se consolidou a partir das demandas das classes trabalhadoras, no início do
século XX. Nos anos 1970, 1980 e início dos anos 1990, ainda estávamos debatendo e negando
a proteção social e, por consequência, promovendo o atraso na construção e na consolidação
de uma política de assistência social.
1
Quando esse debate começou a engrenar aqui, países como Inglaterra e Estados
Unidos já viviam a crise de seu modelo.
O regime militar, instalado no Brasil no ano de 1964, teve muita influência no
adiamento desse processo. A ditadura militar fez muito mal para a assistência social. Nos
meios acadêmicos, compreendia-se que organizar projetos, programas ou uma rede de
serviços estatais de assistência equivalia a fortalecer o modelo e a estrutura do governo
ditatorial imposto ao país. Esse debate foi fortemente consolidado nos anos 1970, com base
nos estudos do filósofo francês Louis Althusser, que apontava em seus textos que o Estado
criava seus próprios aparelhos ideológicos para perpetuar desigualdades e desproteções. Sem
meio-termo nesse complicado debate, o que vivemos, de fato, foi uma negação e uma
estagnação na estruturação da política pública de assistência social.
No entanto, estratégias de proteção eram amplamente implementadas por
instituições que ofereciam como caridade serviços e atendimentos que, só recentemente,
foram reconhecidos como direito do cidadão e dever do Estado.
Portanto, debater a proteção social no mundo acadêmico, naquele momento, era
negar a possibilidade da construção de um Estado igualitário. Poucas pessoas tiveram coragem
de vir a público reafirmar o caráter da proteção social como dever do Estado e como direito.
Algumas chegaram a sofrer boicotes teóricos. Mas o tempo, que permanece “senhor da
razão”, mostrou que, sim, deve caber ao Estado a organização da proteção social como direito.
E isso não implica nenhuma proposta de aceitação e consolidação de desigualdades ou
explorações.
Enquanto se negava a assistência social e as estratégias de proteção social como
responsabilidade do Estado, o que se observava claramente era o fortalecimento do
clientelismo, da caridade, da filantropia e do favor. Vivemos, na área social, nos anos 1980 e
1990, uma enorme divergência entre a defesa de um Estado protetor e o desejo de um Estado
igualitário. E essa divergência retardou, e muito, o processo de consolidação da LOAS, pois de
fato se negava a assistência social, considerando que, por meio dela, estaríamos apenas
“enxugando gelo” ou mesmo “distraindo” os pobres de seus problemas reais.
2
Desde cedo me preocupei com esse debate. Reproduzo aqui uma carta aberta aos
assistentes sociais, que escrevi em 2007 e que trazia essas preocupações. A carta foi publicada
no meu site <www.marcelogarcia.com.br>.1
Carta aberta aos assistentes sociais
Em 13 de novembro de 2007
Em 1988, decidi prestar o vestibular para o curso de Serviço Social. Na época,
minha família questionou, com muito vigor, a minha escolha. Eles não sabiam ao certo
qual era o papel da profissão e temiam pelo futuro da minha carreira.
Mas alguma coisa muito forte me dizia que eu não deveria ceder. Fiz o
vestibular e passei em sétimo lugar para a Universidade Federal Fluminense.
Ao chegar à antiga sede da Escola de Serviço Social, na Praça do Rink, em
Niterói, comecei a perceber que minha família tinha muitos aliados. E os seus aliados
eram os meus professores! Professores, pesquisadores e intelectuais do serviço social
que insistiam, como insistem até hoje, em desmontar a profissão.
Escutei até a exaustão que o serviço social não tinha objeto próprio de
intervenção e, a partir de um currículo completamente ancorado num marxismo
inflexível, fui sendo informado que a profissão não tinha papel definido. Era como se
estudássemos e adquiríssemos um conhecimento que jamais deveríamos pôr em
prática.
Eu aprendia o que não era o serviço social, mas não conseguia aprender o que
era o serviço social.
Em 1990, a professora Suely Gomes Costa, tomada por sua coragem histórica e
com rara competência intelectual, provocou uma profunda reviravolta no serviço social
ao afirmar, em uma proposta de revisão curricular, que o serviço social tem objeto,
sim, e que esse objeto é a proteção social.
1
As cartas aqui publicadas foram reproduzidas em sua íntegra, sem sofrer alterações em seu conteúdo
[N. do E.].
3
Os marxistas inflexíveis e os membros da “ficção ideológica” reagiram
imediatamente. Não aceitaram que o serviço social tivesse seu fazer definido e
impuseram sua “falsa” hegemonia em todo o Brasil. Não conseguimos aprovar a
revisão curricular e tivemos que continuar uma formação profissional descolada do
fazer ou da intervenção própria da área. Na verdade, nos impunham uma profissão
sem identidade e, pior do que isso, a negação da assistência social.
Desde então, o serviço social vem perdendo espaços. Sem objeto, suas áreas de
intervenção profissional são cada vez mais reduzidas.
O grupo com sua “falsa” hegemonia está impondo, na verdade, um profundo
esvaziamento da profissão ao afirmar uma rigorosa ideologização do serviço social.
Mas, rigorosamente, quem perde é o serviço social e, sobretudo, o assistente social.
De 1990 para cá, o número de cursos de serviço social aumentou em mais de
50%, mas os espaços para o exercício profissional não aumentam na mesma
proporção. Devem, inclusive, estar diminuindo.
Recentemente, na reunião da Comissão Intergestores Tripartite (CIT), tive
acesso aos dados sobre os trabalhadores dos Centros de Referência da Assistência
Social (CRAS). Para minha surpresa, os assistentes sociais não representam nem 30%
da força de trabalho. Em alguns estados, temos mais psicólogos atuando nos CRAS do
que assistentes sociais. Seria isso mesmo? Psicólogos passam a ter mais importância na
política de assistência social do que os assistentes sociais?
Uma profissão não pode ser “refém” de uma ideologia imóvel. Uma profissão
deve ser plural, deve ser dialética e incorporar os avanços que estamos tendo na área
social no Brasil. Os investimentos na área, desde os anos 1990, vêm aumentando
progressivamente. Por que, então, a precarização da gestão do trabalho e da força de
trabalho de assistentes sociais? Por que, ao contrário, os postos de trabalho não se
consolidam e ampliam?
Recentemente, retomei o debate sobre o papel do serviço social e confesso que,
durante um pequeno período, fui tomado pelo desânimo. Mas as minhas perguntas
recentes e minhas conversas com a professora Suely Gomes Costa acenderam em mim
4
novo ânimo para defender o serviço social. E defender o serviço social não passa por
me deixar aprisionar por uma ideologia.
Defender o serviço social é defender novos postos de trabalho e garantir
avanços para cada profissional que, como eu em 1989, escolheu uma profissão, e não
uma prisão ideológica.
Amanhã, dia 14 de novembro, começa em Brasília a VI Conferência Nacional de
Assistência Social. Estarei presente, defendendo o serviço social. E não tenho a menor
dificuldade em afirmar que a proteção social é objeto da profissão e que o assistente
social é o profissional que tem o maior nível de identidade com a política de assistência
social.
Vamos em frente.
Marcelo Garcia
Poucos dias depois de publicada essa carta, a professora Suely Gomes Costa2 me
respondeu, também de forma aberta, no meu site. Ela comenta minha avaliação sobre o difícil
caminho que o serviço social está percorrendo no Brasil.
A professora, como sempre, coloca o dedo numa ferida que está aberta e que precisa
ser enfrentada.
Obrigada pela referência, sempre carinhosa.
O que diz, de fato, decorre, em grande parte, de orientações de
ensino/pesquisa/extensão “descoladas” de experiências históricas em que as práticas
profissionais se desenvolvem. É comum que lentes e “antolhos” obscureçam a visão de
olhares potencialmente ricos de observações sobre a experiência histórica em exame.
Lentes e antolhos desfocam e restringem o alcance das leituras. Um mesmo “script” é
extraído desse pequeno campo visual.
2
Professora titular do Departamento de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense. Além disso, é
mestre e doutora em História, assistente social e economista. Pesquisadora e autora de artigos e livros sobre
proteção social.
5
Esse quadro demarcado por lentes fora de foco e de antolhos reduz as
possibilidades de distinguir contribuições intelectuais de outros campos. Uma lástima!
Além disso, são muitos os professores que nunca transitam ou transitaram pelas
práticas profissionais sob certos marcos. Assim, ou a conheceram a distância, por
“ouvir dizer” e pelas episódicas experiências de estágio profissional, ou a “conhecem”
por referências herdadas num “dado” modelo de formação profissional... Isso explica
muita coisa...
Nessa orientação, há ainda uma funda endogenia: o conhecimento do serviço
social circula em seu âmbito, gira em torno de si, ignorando as muito criativas
percepções advindas de pesquisas sérias das várias áreas de conhecimento de todo o
país. Essa conduta é visível e tende a trazer certezas repetidas de livros dos filiados ao
mesmo campo... Por isso, quase nunca faz perguntas inéditas... Nesse modo de pensar
não cabem dúvidas... Tende a uma pedagogia de papagaios que também cria uma
tábula rasa, com negação sistemática das referências divergentes. Depois, no vazio de
ideias, faz vicejar um mesmo conjunto de ideias-chave que servem para responder às
mais diversas questões do mesmo modo... É uma mesma equação de resultados
constantes; ou um samba de uma nota só... Daí a desorientação percebida nos que
buscam explicar tudo que veem por meio das relações de produção, uma baita
simplificação da experiência humana; daí o silêncio de nossos alunos nos momentos de
fazer perguntas, confirmando a indicação de Claude Bernard: “Quem não sabe o que
procura, não entende o que encontra”...3 Passei a iniciar meus cursos com essa
observação de Bernard; ela desvenda esse processo de silenciamento.
Tem mais. Nesse modo de pensar, as peculiaridades das diferentes áreas de
ação profissional com sua história própria são “esquecidas” e escondidas. Cria-se com
ele também uma dada memória da profissão e das formas de explicá-la, reproduzida
nos ritos de propagação dessas “brilhantes” chegadas intelectuais e de negação das
que lhe são opostas... Mas há muito a lastimar. Aliás, alguém pode me responder para
que serve fazer pesquisas desse modo?
3
Fisiologista francês [N. do E.].
6
Sob paradigmas gerais e essenciais, fica impossível entender tanto as
singularidades dos processos sociais engendrados pelo capitalismo peculiar às
condições históricas do Brasil como os sentidos civilizadores dos sistemas
protecionistas com que lidamos. Eles são muitos e se forjam em práticas sociais muito
variadas desse chão, sempre único. Essas singularidades impregnam ainda as práticas
próprias às tradições de ofício dos vários lugares em que os assistentes sociais
trabalham. Isso tudo – mesmo diante de tantas potencialidades de pesquisa e de
compreensão dessa dinâmica capitalista específica – se vê esterilizado. Um enorme
“vazio” teórico e metodológico preenchido por ideias apropriadas por meio de lentes e
antolhos deixa questões sociais sem perguntas e sem respostas. São “saberes”
definitivos...
Os(as) assistentes sociais passam a incorporar ainda um estranhamento e uma
distorção em torno da noção de “proteção social” – processo de longuíssima duração
na história humana, cujo entendimento, de modo bem simplinho, mas simplinho
mesmo, pode ser encontrado na contribuição de Polanyi,4 por exemplo. No entanto,
por alguma causa para mim desconhecida, a tendência é a de ignorar perversamente
contribuições como a dele e de outros pensadores. A nobre tarefa política assumida por
alguns é confundir essa noção por pensá-la – Ah! Quanto risco! – incompatível com as
certas contribuições marxistas. O duro é perceber que essa nobre missão pretende, a
todo custo, identificar-se com a generosa utopia do socialismo. Faz isso, porém, usando
uma forma de esperteza ou de ignorância intelectual que pretende proteger esse
legado de “distorções”, difundindo-o por linhas tortas. De boas intenções o inferno está
cheio...
Há ainda a “polícia intelectual” do serviço social sempre pronta a atuar
advertindo para os “riscos ideológicos” da noção de proteção social – sempre presente,
por artes do demônio, certamente – em processos sociais e no cotidiano de uma
história social de muitos séculos e de diferentes povos com muitos e diferentes sentidos
civilizadores... Impede-se que uma vasta área de experiências por conhecer feneça por
4
Karl Paul Polanyi era um filósofo, economista e antropólogo húngaro [N. do E.].
7
estar previamente condenada ao fogo do inferno... Vejo com horror tanta ignorância
e/ou má-fé.
Há coisas do “arco da velha” desse conhecimento estéril que, aqui e ali, passei
a recolher de depoimentos de alunos(as) e assistentes sociais sobre essa experiência.
Há um intelectualismo feito de retalhos de conhecimento de várias áreas, “encaixadas
à força” num suposto quadro teórico pensado para toda e qualquer dinâmica
capitalista. Nessa curiosa “colagem intelectual”, todos dizem as mesmas coisas, apenas
com variações de estilo. Uma diversão. Um exemplo está nas traquitanas intelectuais
para centrar a matéria de interesse profissional nos “processos de trabalho”,
abordagem que se diz fiel a Marx e o copia, mas que de jeito-sem-jeito distancia-se de
algo que essa matéria guarda em comum com o campo da proteção social; se o quadro
teórico de Marx serve para examinar modos de produzir riqueza à custa da
apropriação do trabalho operário, a corrente que trata o serviço social nessa
perspectiva, com um pouco mais de rigor e de atenção teórica, poderia encontrar-se
com questões associadas à reprodução, essa sim matéria a que pertence a noção de
proteção social... Por negá-la, perde-se em devaneios. Orientações desse tipo devastam
a criatividade de nossos(as) alunos(as) quanto a pensar e atualizar, por exemplo, os
sentidos civilizadores de suas práticas. Há solto, no ar, um “efeito laranja” (aquele da
guerra química empregada contra o Vietnã) que esteriliza o chão histórico do
conhecimento e elimina matérias sempre de grande interesse para a profissão,
simplesmente ignoradas.
Há, nesse solo, uma ação impiedosa da “polícia” vigilante dos riscos de desvio
de ideias contidas nessa espécie de catequese intelectual, exercida plenamente em sua
brutal “rusticidade”. Tantos(as) alunos(as), a cada geração, nos últimos vinte anos,
vêm vivenciando essa experiência acadêmica de muitos adeptos, algo do tipo seita,
com duras regras de punição para os que a reveem ou não a seguem! Eles se
reconhecem por meio dos mesmos chavões, das mesmas frases de efeito congeladas
sobre o óbvio ululante e punem quem ousa duvidar deles. Nada pior. Trata-se de
conduta que se verifica à esquerda e à direita da profissão; são conceitos e
preconceitos que se “aplicam” em cadeia, com as mesmas ideias, ignorando que o
8
conhecimento é sempre um projeto “por fazer-se” sobre processos sociais
desconhecidos, por desvendar. Há nisso uma continuada obstrução da imaginação
criadora de nossos(as) alunos(as) e dos futuros assistentes sociais, que continuarão
dizendo “na prática, a teoria é outra...”. Uma sempre sábia observação...
Trago aqui um exemplo da sofrida queixa vinda de uma aluna (de outra
universidade e de outro Estado); são trechos que reafirmam os resultados dessa
devastação sem fim. Tantos constrangimentos são de fazer chorar: “Sabe, sinto-me
desolada, acho que hoje no serviço social há uma forte pressão para que tenhamos
uma posição. Estou cansada de por que o materialismo histórico diz isto, porque a
realidade é dialética, por que o capitalismo é injusto independente de nossa vontade de
[...] E devo admitir que devido à pressão que vivemos em ter de partilhar o pensamento
histórico crítico, ou caso contrário ser tachados ou de burros (sim, colegas já me
chamaram de burra em sala de aula) ou de desinteressados. De fato, não simpatizo
com o marxismo da maneira como nos é passado; creio na complexidade cada vez
maior da sociedade e das relações humanas e acho que o serviço social não tem uma
boa formação sociológica que nos faça capazes de saber das teorias que abarcam as
explicações da sociedade, melhor explicá-la e melhor intervir nela... Não sei, professora
[...]”.
Tudo isso me lembra do exemplo da propagação de ideias sobre “raça
superior” e que levaram o mundo à Segunda Guerra Mundial... Chego mesmo a pensar
se essa não é matéria para divã de analista...
Beijos,
Suely Gomes Costa
O texto de Suely é a interpretação clara e viva das dificuldades de construir e
consolidar a LOAS ante um mundo imaginário em que se acredita que a proteção social
organiza uma prisão para os pobres.
O primeiro texto da LOAS, que é de 1990, foi rejeitado no congresso, pois as forças que
defendem a caridade e a filantropia estão mais organizadas do que as forças que defendem o
Estado como inteligência do processo. O texto aprovado e promulgado em 1993 acabou sendo
9
uma costura política que deixava muitas entradas para a superposição do Estado na proteção
social. O SUAS foi que, em 2005, ressignificou essas brechas.
O atraso histórico na construção de um Estado protetor deixou para o cotidiano da
assistência social problemas que estamos tendo um trabalho enorme para resolver.
Para você, quais poderiam ser esses problemas?
Pense em cinco, pelo menos:
1. __________________________________________________
2. __________________________________________________
3. __________________________________________________
4. __________________________________________________
5. __________________________________________________
Para colaborar com esse debate, vou citar três problemas:
1. Uma rede não estatal construída de forma improvisada;
2. Ausência de cultura de avaliação e de resultados;
3. Problemas concretos na gestão do trabalho.
E, por falar em trabalhadores e em gestão do trabalho na assistência social, é
impossível negar que, historicamente, o serviço social foi a principal profissão da assistência.
Hoje, temos 25,8% de assistentes sociais, 17,2% de psicólogos e 28% de profissionais de Ensino
Médio atuando nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), no Brasil. Temos mais
profissionais de Ensino Médio do que assistentes sociais nos CRAS. E, dezoito anos depois da
LOAS,
ainda são negadas nos currículos profissionais a assistência social e a lógica que organiza
a proteção social.
Infelizmente, tenho que relembrar que mais de um quarto dos profissionais que atuam
na proteção básica não têm sequer a formação mínima para fazê-lo.
A Pesquisa de Entidades de Assistência Social (PEAS), realizada pelo IBGE, não nos trouxe
boas notícias, quando foi apresentada ao Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS):
10
— existem mais voluntários atuando na rede de entidades de assistência do que
trabalhadores assalariados, por exemplo;
— entre os trabalhadores assalariados, o serviço social é a terceira força de trabalho
(em número quase três vezes menor do que os pedagogos), com a psicologia bem próxima de
se tornar a terceira força de trabalho. E nos meus estudos sobre currículos de educação e
psicologia não encontrei nada em relação a LOAS, SUAS e Redes de Proteção Social.
A fotografia da assistência social realizada na gestão pública, em 2005, e o Índice de
Gestão Municipal da Assistência Social, do MDS, de 2007, nos deram provas cabais de que a
precarização da gestão de trabalho é latente.
1. AGORA O SUAS É LEI
Custou, mas agora o SUAS é lei. Aprovado pelo Congresso Nacional, foi sancionado pela
presidenta Dilma, no dia 6 de julho de 2011.
Vale mencionar o erro estratégico da assistência social. O SUAS deveria ter começado
no congresso, mas, como sempre, preferimos manter a questão entre nós e aprovamos o SUAS
apenas no CNAS. Isso foi em 2004.
A NOB/SUAS de 2005 organizou o sistema, e um mutirão imenso foi feito no Brasil para
sua implantação. Esse esforço valeu a pena, pois estamos mudando aos poucos a cultura que
negava a assistência social.
A decisão da IV Conferência Nacional de Assistência Social, em 2003, a aprovação da
nova política da assistência social pelo CNAS, em 2004, e a NOB/SUAS de 2005, pactuada na CIT e
também aprovada no CNAS, não tinham a força que a lei do SUAS nos oferece agora.
O PL SUAS chegou ao congresso em 2008. Foram mais de três anos para que, no dia 6 de
julho, pudesse ocorrer sua aprovação.
Agora o SUAS é lei. Isso é muito bom, mas estamos saindo do processo de negociação
no congresso ainda com enormes fragilidades políticas. O SUAS não é uma realidade para o
congresso e muito menos para a sociedade.
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Uma das características da assistência social é que conversamos demais apenas entre
nós mesmos, entre pares. Não conseguimos traduzir para o país o que o SUAS representa e
quais são suas identidades de ação.
Agora o SUAS é lei, mas ainda estamos com a herança da caridade, da solidariedade e
da filantropia totalmente amarrada em nossas práticas sociais. O rompimento é urgente,
sabemos disso, mas o caminho não tem sido fácil.
Agora o SUAS é lei, mas as entidades assistenciais ainda não aceitam que é dever do
Estado prover proteção e é direito do cidadão ter acesso à assistência. As entidades ainda
querem dominar a agenda política da assistência social.
O SUAS precisa de alianças com as demais políticas. Precisa conversar com o SUS e com
a educação de forma continuada. O SUAS não pode pretender bastar-se, ficar isolado. Até
porque não se basta.
A LOAS de fato é uma importante resposta a quem negava a assistência social. O Artigo
1º nos ajuda a entender que, mesmo com todas as dificuldades, avançamos para um Estado
que deve proteger:
Art. 1º A assistência social, direito do cidadão e dever do Estado, é Política de
Seguridade Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada por meio
de um conjunto integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o
atendimento às necessidades básicas.
Vale destacar que a Constituição de 1988 estabeleceu a assistência social como dever
do Estado e direito do cidadão. A partir desse ano, a lógica do favor, da filantropia e da
caridade começava a ser superada num processo muito lento que, ainda em 2011, não
terminou no Brasil.
O Artigo 1º é fundamental, pois define que a assistência social faz parte do conjunto da
Seguridade Social brasileira e não é contributiva. Não existe pagamento, seja ele qual for, para
que se tenha direito à proteção social. Uma entidade assistencial não pode exigir que um
usuário faça um curso de capacitação disso ou daquilo, para que ele possa ter acesso a um
serviço assistencial, que é financiado pelo Estado. Da mesma forma que não se pode pedir
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conversão religiosa, participação em missas ou cultos para que um beneficiário tenha acesso a
um ativo ou serviço assistencial.
O Artigo 1º diz que a assistência social deve prover os mínimos sociais. E aqui está o
maior atraso da LOAS: que mínimos são esses? O que podemos estabelecer como mínimos
sociais para que uma pessoa ou uma família seja considerada socialmente incluída?
A assistência social, ao longo de sua trajetória, acabou se voltando muito mais para a
criação de projetos e programas do que para compreender e estabelecer os mínimos sociais de
que precisa uma família brasileira. E, no entanto, incluir uma família em um projeto ou
programa social não significa que estamos garantindo uma inclusão sustentável,
principalmente se não soubermos quais são as privações que, uma vez atendidas, permitirão
que a família possa cruzar as pontes rumo à inclusão.
A pasteurização de projetos e programas acaba nos afastando do debate sobre
mínimos sociais.
Os mínimos sociais precisam constituir um conjunto de segurança nas áreas de
educação, saúde, trabalho, habitação, cultura, renda e convivência comunitária. Uma família
deve ser considerada incluída quando tiver acesso a um padrão mínimo de inclusão. Não
conheço nenhuma cidade que tenha debatido essa questão e estabelecido os mínimos sociais
da LOAS.
Garantir as necessidades básicas é o principal desdobramento da assistência social.
Que necessidades são essas?
Mais uma vez, o texto da LOAS nos cobra um “trabalho de casa” que não fizemos. A
lógica de projetos e programas distanciados da realidade de cada família pode provocar um
enorme divórcio em relação às verdadeiras privações/desproteções sociais das famílias e às
ações propostas para oferecer proteção.
É importante também apontar aqui que a assistência social é realizada por meio de um
conjunto de ações constituído pelos serviços e programas do poder público e por projetos e
atendimentos da sociedade civil organizada. Aqui temos um debate fundamental. A assistência
social é dever do Estado, mas sua implementação pode e deve ter a participação da sociedade.
Cabe ao Estado organizar a estratégia de atuação; é ele a inteligência que pensa e coordena o
processo.
13
Mas não está escrito na LOAS que somente o Estado deve intervir na política de
assistência social e operá-la. A sociedade pode e deve se integrar às ações de assistência social,
pois não faz sentido o debate da “ficção ideológica” que rejeita as iniciativas da sociedade.
Concordo que entidades, ONGs e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público
(OSCIPs) não podem nem devem definir a agenda social da área, mas não faz sentido dizer que
elas não devem atuar na assistência. O Artigo 1º da LOAS deixa isso bem claro.
O Artigo 1º é um ponto de partida para organizarmos a política de assistência social.
Um dos desafios que esse artigo nos propõe é definirmos os mínimos sociais, e outro é
entender que proteger não é segregar. Temos muito trabalho pela frente!
Dois debates importantes: condicionalidade combina com direito? E até onde vai o
isolamento da assistência social?
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A negação da Assistência Social, a chagda das