Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
SCRIPTA UNIANDRADE
NÚMERO 6 ANO 2008
ISSN 1679-5520
Publicação Anual da Pós-Graduação em Letras
UNIANDRADE
Reitor: Prof. José Campos de Andrade
Vice-Reitora: Prof. Maria Campos de Andrade
Pró-Reitora Financeira: Prof. Lázara Campos de Andrade
Pró-Reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Extensão:
Prof. M.Sc. José Campos de Andrade Filho
Pró-Reitora de Planejamento: Prof. Alice Campos de Andrade Lima
Pró-Reitora de Graduação: Prof. M.Sc. Mari Elen Campos de Andrade
Pró-Reitor Administrativo: Prof. M.Sc. Anderson José Campos de Andrade
Editor: Brunilda T. Reichmann
Editor-Adjunto: Anna Stegh Camati
CONSELHO EDITORIAL
Anna Stegh Camati, Brunilda T. Reichmann, Sigrid Renaux.,
Mail Marques de Azevedo, Naira de Almeida Nascimento,
Benedito Costa Neto
CONSELHO CONSULTIVO
Prof. Dr. Maria Sílvia Betti (USP), Prof. Dr. Anelise Corseuil (UFSC), Prof. Dr. Carlos
Dahglian (UNESP), Prof. Dr. Laura Izarra (USP), Prof. Dr. Clarissa Menezes Jordão
(UFPR), Prof. Dr. Munira Mutran (USP), Prof. Dr. Miguel Sanches Neto (UEPG), Prof.
Dr. Thaïs Flores Nogueira Diniz (UFMG), Prof. Dr. Beatriz Kopschitz Xavier (USP),
Prof. Dr. Graham Huggan (Leeds University), Prof. Dr. Solange Ribeiro de Oliveira
(UFMG), Prof. Dr. Hans Ulrich Gumbrecht (Stanford University), Prof. Dr. Aimara da
Cunha Resende (UFMG), Prof. Dr. Célia Arns de Miranda (UFPR), Prof. Dr. Simone
Regina Dias (UNIVALI), Prof. Dr. Claus Clüver (Indiana University).
Projeto gráfico, capa e diagramação eletrônica: Brunilda T. Reichmann
Revisão: Anna S. Camati, Mail Marques de Azevedo, Sigrid Renaux
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Scripta Uniandrade / Brunilda T. Reichmann / Anna Stegh
Camati – n. 6 - . –
Curitiba: UNIANDRADE, 2008.
Publicação anual
ISSN 1679-5520
1. Lingüística, Letras e Artes – Periódicos
I. Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
– Programa de Pós-Graduação em Letras
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HOMENAGEM
Esta edição da
revista Scripta Uniandrade
é dedicada à professora, poeta
e crítica literária
Sigrid Renaux
por sua contribuição intelectual
e cultural no campo das Letras
e das Artes.
Parabéns, querida amiga e colega!
Você é e continuará sendo uma inspiração.
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AZUIS*
Sigrid Renaux
poesia
pura energia
azul
emergindo do mar
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arabescos
na infinda coreografia das nuvens
delineiam-se imagens
inimagináveis
no azul de um instante atrás
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agora nuvem
estrela
flor
ela repousa à sombra de dois cedros
entre os lilases e a relva escura
de um jardim distante
e o sol reluz no bronze de suas letras
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o jardim de minha mãe
azuis
seus olhos repousam
nas rosas da trepadeira
sobre o portão
enfileirados
os rabos de galo se erguem
num canto
em outro
uma chuva de ouro
paira na grama iluminando-a
suavemente
e os cedros ainda vicejam
ao longo do muro envolto em sombras
guardando-os
azuis
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por um instante
retorna
a hora da glória e esplendor
na relva e na flor
das pétalas de um poema
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leitores cegos
não deciframos os signos nos livros
nem ouvimos
insensíveis
por quem os sinos dobram
calados
não pronunciamos as palavras reveladoras
do nosso mais profundo
ser
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atravessando uma chuva de ouro
um raio de sol
se transforma
em flor
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corpo preso entre caninos implacáveis
uma pomba
abarcando o mundo no olhar
aguarda
serena
seu final
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arcando-se rayonnantes ao sol
as espigas louras da palmeira
lançam flores sobre a grama
salpicando-a de estrelas
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Jiménez
caminhei em teu jardim
com sua árvore verde
e o seu poço branco
inspirando teu azul
e os pássaros ficarão cantando
*RENAUX, Sigrid . Azuis. Curitiba: Ed. do Autor, 2006.
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SUMÁRIO
Apresentação
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DOSSIÊ TEMÁTICO: POLÍTICAS DA SUBJETIVIDADE
Investigando a construção da identidade feminina em autobiografias
de origem indígena: Halfbreed, de Maria Campbell, e Storyteller,
de Leslie Marmon Silko
23
Peonia Viana Guedes
Jacob’s Room / Jacob’s gloom: Virginia Woolf e suas metáforas
para uma crítica social
39
Soraya Ferreira Alves
A literatura e o ser mulher: o universo feminino
de Marina Colassanti
53
Verônica Daniel Kobs et alii
Sujeitos e cultura: pluralização e auto-referencialidade
em Teolinda Gersão, Lobo Antunes e Inês Pedrosa
71
Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
Relational poetics: reflections on O. Paz, E. Glissant
87
and Wole Soyinla
Eliana Lourenço de Lima Reis
Operações estéticas e políticas em Márcio Souza
A busca da verdade e a reconstituição da memória
em romances de Jonathan Safran Foer
Hibridismo e mímica no conto “Monsieur Caloche”
de Jessie Couvreur
107
André Soares Vieira
123
Mail Marques de Azevedo
139
Cristiane Busato Smith
Uma abelha, duas aparições – um caso de representação
em Mishima e Murakami
155
Benedito Costa Neto Filho
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Sombras e fantasmas da grande guerra sob o olhar
de Augusto Roa Bastos
173
Naira de Almeida Nascimento
Vida e morte: tangência pelas palavras
187
Raquel Illescas Bueno
P. K. Page: percepção poética e consciência
cultural em “Brazilian Fazenda”
201
Sigrid Renaux
Regionalismo e globalização – da aparente oposição
à complementaridade
223
Verônica Daniel Kobs
Cinema shakesqueer: a representação do amor que ousa
dizer o nome do bardo
241
Anna Stegh Camati
Shakespeare e a lei ateniense: aspectos políticos nas origens
modernas do sujeito contemporâneo em
Sonho de uma Noite de Verão
Otelo e o engajamento político-cultural do Folias D’Arte
Um autor em busca de si mesmo, em busca de seu país:
Rasto atrás, de Jorge de Andrade
Macro e micro poderes em duas peças
de Plínio Marcos
Anexo: Estética da recepção / Estética do efeito
259
Erick Ramalho
285
Célia Arns de Miranda
301
Lílian Fleury Dória
321
Roberto Ferreira da Rocha
331
Brunilda T. Reichmann
Julián Bargueño
Dossiês temáticos das próximas edições
347
Normas da revista
349
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APRESENTAÇÃO
A sexta edição da revista Scripta Uniandrade, dossiê temático Políticas
da Subjetividade, apresenta artigos que problematizam questões relevantes
como a construção do sujeito, a noção da identidade, problemas de gênero, as
relações entre colonizador e colonizado, apropriações culturais, os limites da
criação artística em confronto com fontes documentais, o embate gerado entre
micro e macro poderes, dentre outras.
O artigo de abertura da revista, escrito por Peonia Viana Guedes,
flagra a condição da mulher indígena como sujeito multiplamente oprimido e
colonizado em narrativas autobiográficas. A autora levanta questionamentos a
respeito dos pressupostos universalistas adotados pela crítica feminista,
responsáveis pela desestabilização da definição tradicional da autobiografia como
gênero literário, refletindo sobre a necessidade de enfocarmos textos de natureza
autobiográfica como produtos de sujeitos posicionados em discursos históricos
e sociais específicos. No segundo artigo, Soraya Ferreira Alves, resgata e
problematiza questões que caracterizam a sociedade moderna do início do século
XX (guerra, feminismo, individualismo, etc), temas que permeiam grande parte
da obra, tanto ficcional como ensaística, de Virginia Woolf. Mostra como essa
crítica é realizada pela escritora inglesa de maneira velada, utilizando-se de
metáforas. A autora do artigo demonstra que, partir do romance Jacob´s Room
(1922), a subjetividade da escritura woolfiana enlaça o social e promove um
efeito de perplexidade no leitor ao relacionar eventos brutais com a banalidade
da vida cotidiana, fazendo, assim, com que o problema seja sentido. Verônica
Daniel Kobs et alii analisam os contos “A moça tecelã”, “Entre a espada e a
rosa”, “Quando já não era necessário” e “Doze reis e a moça no labirinto do
vento”, de Marina Colasanti, que têm como temática o universo feminino. Os
textos de Colasanti são comparados com os contos de outras autoras como:
Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, com o propósito de analisar os papéis
da mulher, a busca da identidade e a independência da mulher no século XXI.
Além disso, são resgatadas algumas características dos textos de Marina Colasanti,
muito similares às presentes nos contos de fada, a partir da associação entre “A
moça tecelã” e “Rumpelstilzchen”, dos Irmãos Grimm.
No ensaio seguinte, Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira argumenta
que para ler o sujeito na cultura moderna partimos de uma reflexão da
subjetividade como constructo, buscando compreender a relação entre
subjetividade, modernidade e procedimentos narrativos adotados no romance
português pós-74. Neste artigo, Maria Lúcia discute obras de Teolinda Gersão
(Os Guarda-chuvas cintilantes, 1984), Lobo Antunes (Ordem natural das coisas, 1992),
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e Inês Pedrosa (Fazes-me falta, 2002). Eliana de Lourenço de Lima Reis, autora
do quinto artigo, reflete sobre teorias que focalizam as relações entre as culturas
consideradas centrais e periféricas a partir do pensamento do mexicano Octavio
Paz, do caribenho Edouard Glissant e do africano Wole Soyinka, levando,
também, em consideração as perspectivas do brasileiro Silviano Santiago. Ela
parte de uma visão histórica das relações entre as culturas desde o modernismo
para, em seguida, discutir a tendência em direção a uma visão menos nacionalista,
mais transnacional e relacional das apropriações culturais, bem como da noção
de identidade. O artigo de André Soares Vieira objetiva mapear algumas das
categorias problematizadas no romance Operação silêncio, de Márcio Souza,
especialmente no que diz respeito à hibridação dos gêneros em um processo
que remete à montagem literária. O autor reitera que, ao fragmentar a narrativa,
justapondo elementos oriundos de gêneros discursivos diversos (ensaio, crítica
cultural, romance e roteiro cinematográfico), o texto de Souza apresenta-se como
um mosaico de linguagens imbricadas que responde ao contexto social e político
de sua época. Mail Marques de Azevedo, em seu artigo sobre Tudo se ilumina
(o bestseller internacional do jovem escritor americano Jonathan Safran Foer), e
Extremely Loud and Incredibly Close (o segundo romance do autor), demonstra
como o leitor é conduzido a um mergulho na memória ancestral dos
protagonistas: diferentes estágios cronológicos são atravessados que atingem,
no primeiro romance, um recuo de 200 anos no tempo. A temática da busca
pela verdade, comum aos dois romances, é o foco deste artigo, que estabelece
paralelos entre duas diferentes realizações do tema, do ponto de vista de um
jovem autor de origem judaica. O texto de Cristiane Busato Smith aborda a
fase de construção da literatura australiana por meio da análise do conto
“Monsieur Caloche”, de Jessie Couvreur. Discute as estratégias narrativas
empregadas no conto que articulam um ambiente de tensões importantes na
dinâmica dialética da “identidade cultural australiana”. Segundo a autora, Couvrer
não apenas busca retratar uma Austrália mais “autêntica” ao tratar de temas que
revelam o ethos australiano, mas vai mais longe ao apropriar-se da matriz moral
dos contos de natal de Dickens. Deste modo, “Monsieur Caloche” é inserido
dentro de um universo híbrido que relativiza a complexa relação entre o
colonizador e o colonizado. Partindo da representação para mostrar como os
autores abordados trabalham a questão do amor, Benedito Costa Neto Filho
apresenta uma comparação entre os textos Mar inquieto, de Yukio Mishima, e
Minha querida sputnik, de Haruki Murakami. O autor argumenta que os dois
romancistas discutem um lugar-comum: o Japão como sendo um país entre que
se situa entre a tradição e a modernidade. Ambos, igualmente, escolhem um
triângulo amoroso para investigar os meandros dos discursos sobre o amor. O
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artigo de Naira de Almeida Nascimento discute o estatuto da representação
a partir de duas narrativas de Augusto Roa Bastos, incluídas em O livro da Guerra
Grande (2002), composto por textos de quatro autores sul-americanos que
apresentam como tema a Guerra do Paraguai (1865-1870). Segundo a autora,
as narrativas, no lastro de Jorge Luis Borges. questionam o poder da representação
artística e os limites da criação através do confronto com fontes documentais,
como é o caso das Cartas dos campos de batalha do Paraguai (1870), de Richard
Burton, ou ainda no diálogo da literatura com a pintura, tal como ocorre na
ficcionalização de Cándido López. No último artigo desta série que discute uma
obra ficcional, Raquel Illescas Bueno objetiva iluminar, por meio de uma
análise do conto “Sem tangência”, publicado inicialmente em 1965 e incluído
na obra póstuma Ave, palavra, de Guimarães Rosa, as concepções do autor acerca
do binômio “surpresa” e “inevitabilidade”. A autora investiga, também, as
circunstâncias biográficas da morte do autor e elabora observações sobre a
tematização da morte por Rosa.
Sigrid Renaux, autora homenageada nesta edição da Scripta Uniandrade,
investiga em seu artigo “P. K. Page: percepção poética e consciência cultural em
“Brazilian Fazenda”, o efeito que o ambiente específico de uma fazenda brasileira
causou no imaginário da poeta canadense, como revelado no poema “Brazilian
Fazenda”. Ao descrever a paisagem que a cercava a partir de uma perspectiva
singular, a autora demonstra que Page não apenas acentua a precisão imagística
de sua percepção visual, como também põe em destaque sua sensibilidade poética,
ao transformar os aspectos referenciais da fazenda em intensa experiência poética
e cultural. Em um artigo dedicado à política da adaptação, Verônica Daniel
Kobs tem como objetivo analisar como Cidade de Deus (2002), filme de Fernando
Meirelles baseado no livro de Paulo Lins, e O auto da compadecida (2000), de Guel
Arraes, adaptação da peça de Ariano Suassuna, seguiram tendências totalmente
diferentes, a partir da fusão metrópole/interior, em Central do Brasil (1998), de
Walter Salles. Anna Stegh Camati, que também se debruça sobre o fenômeno
da adaptação fílmica, elabora a idéia de como o filme homônimo da peça de
Shakespeare, Sonho de uma Noite de Verão, de 1984, opera mudanças de enfoque,
ambientação, atmosfera, enredo, caracterização das personagens e políticas
sexuais, de acordo com as exigências das perspectivas ideológicas selecionadas
por Lindsay Kemp e Celestino Coronado. Erick Ramalho, no artigo seguinte,
também trabalha a peça de Shakespeare, sob um aspecto relevante para a
sociedade contemporânea, apresentando uma leitura política da peça Sonho de
Uma Noite de Verão a partir dos elementos literários e dramáticos da mesma. O
autor demonstra que a trama da peça legitima características do absolutismo
monárquico trazido à cena no papel de Teseu (representação cênica da figura
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régia), conflagrado entre o sistema político herdado da Idade Média e a
manifestação, no início da modernidade, da volição do sujeito. Para tanto, o
autor centra-se na análise da lei que Shakespeare denomina ateniense e nos
desdobramentos que ela traz aos eventos da peça. Com o olhar voltado para
outra peça de Shakespeare, Célia Arns de Miranda, ao analisar o espetáculo
Otelo, realizado pelo Grupo Folias D’Arte em 2003, apresenta uma reflexão
sobre o binômio texto/contexto. Acrescenta que o encenador Marco A.
Rodrigues promove, por meio da inserção das músicas New York, New York e
The End, que desempenham as funções de enquadramento épico e de comentário
crítico da ação, uma interrogação sobre o nosso tempo. O artigo assinado por
Lílian Fleuri Dória, apresenta uma análise da peça Rasto atrás, do dramaturgo
Jorge Andrade, e reflete sobre a busca da memória como material da sua escrita.
As relações entre forma e estrutura cênica são investigadas, discutindo a estética
expressionista, a multiplicidade de espaços, a simultaneidade dos tempos, a
metalinguagem e, em alguns momentos, a anulação do tempo. E, no último
artigo, Roberto Ferreira da Rocha destaca a relação entre macro e micro
poderes na contemporaneidade. Segundo o autor, no Brasil, a partir dos anos
60, quando o país viveu sob a tutela de um regime autoritário que impôs forte
censura ao teatro, os dramaturgos desenvolveram formas de abordar a opressão
a partir da ótica do indivíduo. Dentre eles, talvez tenha sido Plínio Marcos o
autor que tenha criado a obra mais radical. São examinadas as temáticas centrais
de duas peças de Plínio Marcos – Quando as máquinas param e A dança final –
principalmente o modo como os conflitos de gênero e identidade, vividos pelos
dois casais protagonistas, refletem a opressão gerada pelo macro-poder.
Finalizando esta edição da Scripta Uniandrade, como anexo, temos a tradução,
de Brunilda T. Reichmann e Julián Bargueño, do texto Estética da Recepção
/ Estética do efeito, de Wilfred L. Guerin et alii, publicado em A Handbook of
Critical Approaches to Literature. New York: Oxford UP, 1992, p. 331-44. Essa
tradução objetiva tornar o texto de Guerin mais acessível ao público-leitor,
considerando-se que a revista Scripta Uniandrade é também editada em versão
eletrônica.
Do conjunto de artigos incluídos nesta revista se evidencia um amplo
panorama de estudos que, apesar de apresentar olhares heterogêneos sobre uma
diversidade de gêneros, mídias, linguagens e abordagens, enfocam convergências
em relação a um eixo comum. Os diversos textos estabelecem um frutífero
diálogo em torno das diferentes políticas da subjetividade que resultam da fluidez
e multiplicidade de valores do nosso tempo.
As editoras
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INVESTIGANDO A CONSTRUÇÃO
DA IDENTIDADE FEMININA
EM AUTOBIOGRAFIAS DE ORIGEM
INDÍGENA: HALFBREED, DE MARIA
CAMPBELL, E STORYTELLER,
DE LESLIE MARMON SILKO
Peonia Viana Guedes
[email protected]
RESUMO: A partir de 1980, estudos
pós-coloniais enfatizaram a condição da
mulher como sujeito multiplamente
oprimido e colonizado. Teóricas e
críticas feministas começaram a
investigar representações do sujeito
feminino pós-colonial em narrativas
autobiográficas. O questionamento de
pressupostos universalistas feito pela
crítica feminista desestabilizou a
definição tradicional da autobiografia
como gênero literário e enfatizou a
necessidade de enfocarmos textos de
natureza autobiográfica como produto
de sujeitos posicionados em discursos
históricos e sociais específicos.
Autobiografias contemporâneas de
autoras indígenas mostram como a
construção da identidade feminina é
feita e como, muitas vezes, essas
narrativas desafiam as representações
dominantes de história, poder e
conhecimento.
ABSTRACT: From the late 1980s on,
post-colonial studies stressed the
condition of the female subject as a
multiply oppressed and colonized being.
Feminist theoreticians and critics began
to investigate representations of the
post-colonial female subject in
autobiographical narratives. The feminist
questioning
of
universalistic
presuppositions destabilized the traditional
definition of autobiography as a literary
genre and highlighted the need for the
approach to autobiographical narratives
as products of subjects positioned in
specific historical and social discourses.
Contemporary autobiographies by
indigenous female authors show how
female identity is built and how these
narratives often challenge dominant
representations of history, power and
knowledge.
PALAVRAS-CHAVE: Narrativas autobiográficas. Sujeito feminino pós-colonial.
Questões identitárias.
KEY WORDS: Autobiographical narratives. Female post-colonial subject. Identity
issues.
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A autobiografia é uma narrativa pessoal,
um recontar único dos eventos, não tanto
como eles aconteceram, mas como nós
os lembramos ou inventamos.
Hooks, 1998, p. 430
Questões identitárias são centrais nos estudos pós-modernos, póscoloniais e feministas. Todos esses estudos questionam a antiga noção rígida
e essencialista de identidade, estendendo-a, como argumenta Eduardo
Coutinho em Fronteiras Imaginadas: Cultura Nacional / Teoria Internacional, como
“algo móvel, plural, e em constante processo de reconfiguração
(COUTINHO, 2001, p. 7). Stuart Hall, em A identidade cultural na pósmodernidade, discute em profundidade como o sujeito e a identidade são
conceitualizados no pensamento pós-moderno, apontando para como, através
de importantes descentramentos, “o sujeito do Iluminismo, visto como tendo
uma identidade fixa e estável, foi descentrado, resultando nas identidades
abertas, contraditórias, inacabadas, fragmentadas, do sujeito pós-moderno”
(HALL, 2003, p. 46).
Em Post-Colonial Studies: The Key Concepts, Bill Ashcroft et al. afirmam
que, em relação à situação pós-colonial, “as questões relativas ao sujeito e à
subjetividade afetam diretamente a percepção, por parte dos povos
colonizados, de sua identidade e capacidade para resistir às condições de sua
dominação e submissão” (ASHCROFT et al., 2002, p. 219). Chamando
atenção para o essencialismo das construções binárias e estáticas a respeito
do sujeito e da subjetividade, Anne McClintock argumenta, em Imperial Leather:
Race, Gender and Sexuality, que: “Raça, gênero e classe não são esferas distintas
da nossa experiência, totalmente isoladas umas das outras; tampouco podem
ser encaixadas retrospectivamente como peças de Lego. Pelo contrário, elas
vêm a existir através das relações que estabelecem entre si – ainda que de
forma contraditória e conflituosa” (McCLINTOCK, 1995, p. 5).
Quanto à questão da identidade cultural, teóricos e críticos parecem
concordar com a necessidade de respeito às diferentes manifestações culturais
e do reconhecimento das diferenças entre culturas para que se evite definições
culturais prescritivas e universalizantes. Cabe ressaltar que Homi Bhabha,
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em The Location of Culture, insiste no uso do termo “diferença cultural” em
oposição à “diversidade cultural” – termo usado por alguns teóricos e críticos
pós-coloniais – por considerar que o termo “diversidade cultural’ sugere
apenas “sistemas distintos e separados de comportamento, atitude e valores”
(BHABHA, 1994, p. 20). Embora se referindo especificamente à identidade
cultural dos povos do Caribe, o argumento de Stuart Hall em “Cultural
Identity and Diaspora” é particularmente abrangente quando diz, “Não
podemos falar por muito tempo, com exatidão, sobre uma experiência, uma
identidade, sem reconhecer seu outro lado, as rupturas e descontinuidades
que constituem a singularidade do Caribe”. Apontando a natureza dessa
identidade cultural, Hall afirma que ela é uma questão tanto de “tornar-se”
quanto de “ser”. Hall argumenta que ela pertence tanto ao futuro quanto ao
passado, que não é algo que já exista e que possa transcender lugar, tempo,
história ou cultura. Afirma Hall que “As identidades culturais vêm de algum
lugar, elas têm histórias. Mas, como tudo que é histórico, elas passam por
constantes transformações. Longe de estarem eternamente fixadas num
passado essencializado, elas estão sujeitas ao jogo da história, da cultura e
do poder (HALL, 1994, p. 394).
Embora as primeiras narrativas autobiográficas conhecidas no
Ocidente datem do século IV, somente no século XVIII o gênero
autobiográfico foi reconhecido como gênero literário distinto. O modelo
mais antigo e conhecido de autobiografia é a narrativa de busca por uma
vida plena de graça espiritual, relato feito por Santo Agostinho em suas
Confissões (395 AD). As Confissões influenciaram o modelo de narrativa
autobiográfica que predominou no Ocidente por muitos séculos e que,
influenciado pelo senso de individualidade que marcou o Renascimento e a
Reforma, secularizou-se e passou a relatar as mais diversas experiências de
vida (ANDERSON, 2004, p. 18-22).
Veracidade é um dos assuntos mais discutidos em relação ao gênero
autobiográfico. Georges Gusdorf argumenta que a verdade e a falsidade
são estabelecidas pelo simples senso comum, que a autobiografia é
inquestionavelmente um documento sobre uma vida, e o que historiador
tem todo o direito de checar seus depoimentos e verificar sua veracidade.
Por outro lado, Gusdorf também diz que a autobiografia é, além de um
documento, uma obra de arte, e porque o autor está consciente disso, a
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autobiografia é “cheia de erros, omissões e mentiras” (GUSDORF, 1980, p.
43). Ele justifica esse paradoxo afirmando que a “experiência é matéria prima
para toda criação, que é uma elaboração dos elementos emprestados da
realidade vivida” (p. 45).
Acrescentando à questão da verdade na autobiografia, Tess Cosslett
et al. afirma que a autobiografia está ligada a um resgate de um passado, e
depende de um conjunto de memórias pessoais e coletivas que são parciais,
mutáveis e conflitantes. De acordo com Cosslet et al., a autobiografia é
definida, em última instância, pelo que é lembrado e o que é esquecido. As
autoras afirmam ainda que “o direito de estabelecer validade, autenticidade
ou verdade nunca é somente do narrador” (COSSLETT et al, 2000, p. 4-5).
Barret Mandel vai além nesta discussão afirmando que a autobiografia é um
gênero literário derivado da experiência de vida; como tal, ela “compartilha
a experiência como uma forma de revelar a realidade”. Mandel diz ainda
que tanto autobiógrafos quanto romancistas querem que tomemos as suas
palavras como verdade, e complementa dizendo que “a verdade é o objetivo
de toda escrita séria”, mas que existe um acordo antigo de que a ficção pode
revelar a verdade (MADEL, 1980, p. 55).
No século XX, o questionamento de pressupostos universalistas
feito pela crítica feminista desestabilizou a definição tradicional da
autobiografia como gênero literário e enfatizou a necessidade de enfocarmos
textos de natureza autobiográfica como produto de sujeitos posicionados
em discursos históricos e sociais específicos. Na segunda metade do século
XX, várias escritoras, pertencentes a diversas culturas e expressando-se em
diferentes línguas, publicaram autobiografias, memórias e diários que
contestam qualquer noção essencializada da mulher, teorizam a dinâmica da
construção cultural de gênero, raça, etnia, classe, opção sexual, e que, também,
personalizam o político.
Em Reading Autobiography: A Guide for Interpreting Life Narratives,
Sidonie Smith e Julia Watson listam e definem cinqüenta e dois tipos de
práticas autobiográficas. Como afirmam as autoras, ao escreverem suas
histórias de vida as narradoras dessas variadas formas autobiográficas
conferem diferentes significados aos acontecimentos, comportamentos, e
processos psicológicos que são histórica e culturalmente marcados por
elementos vivenciados pelo sujeito autobiográfico tais como tempo, lugar,
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sistema de valores, e posição social (SMITH & WATSON, 2001, p. 183).
No final dos anos 80, os estudos pós-coloniais enfatizaram a condição da
mulher como um sujeito multiplamente oprimido e colonizado. Teóricas e
críticas feministas começaram, então, a investigar as representações do sujeito
feminino pós-colonial em narrativas autobiográficas. Barbara Harlow, Sidonie
Smith, Julia Watson, Françoise Lionnet e Ronnie Scharfman são algumas
das autoras que mapearam a produção autobiográfica feminina pós-colonial,
exploraram a relação entre subjetividade feminina e práticas autobiográficas,
e mostraram como as mulheres, excluídas do “discurso oficial”, usaram o
gênero autobiográfico para se constituírem e se representarem como sujeitos.
Teóricas e críticas ainda mais contemporâneas como Susanna Egan
e Tess Cosslett mostram como o sujeito feminino autobiográfico negocia
diferentes discursos identitários – muitas vezes contraditórios e confusos –
e solapa a própria ideologia do modelo autobiográfico tradicional que tende
a impor normas de identidade e sexualidade ao sujeito autobiográfico.
Teóricas e críticas de narrativas autobiográficas femininas insistem que
narrativas autobiográficas femininas devem ser lidas levando em conta um
paradigma historicamente construído e que considere as imbricações de
gênero, raça, etnicidade, classe social e opção sexual.
Escritoras de autobiografias pós-coloniais contemporâneas têm
explorado histórias multiculturais que geram noções alternativas de
subjetividade, e sujeitos híbridos como a “nova mestiça” de Gloria Anzaldúa
em Borderlands/La Frontera, um sujeito que habita dois lugares, que se expressa
em duas línguas, e que vive duas culturas (ANZALDÚA, 1987). Práticas
autobiográficas contemporâneas de origem étnica freqüentemente adotam
formas híbridas para expressar sujeitos híbridos. Autobiografias pós-coloniais
contemporâneas muitas vezes combinam formas literárias e artísticas variadas:
poesia, ensaio, mito, lenda, fotografia, canção, sonho ou visões. Fragmentadas,
porém articuladas, essas múltiplas formas desafiam a noção tradicional de
uma linha narrativa unificada e linear, rompem com a noção de um sujeito
autobiográfico estável e coerente, cuja vida se desenrolaria em progressiva
cronologia.
Em “New Ethnicities”, Stuart Hall discute etnicidade, um
importante componente da formação de identidade. Defendendo uma visão
mais nova e ampla de etnicidade e da política de representação, Hall diz que
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é preciso reconhecer que “todos nós falamos de um lugar particular, de uma
história particular, de uma experiência particular, de uma cultura particular”.
Hall acrescenta que “Nós todos somos, nesse sentido, etnicamente situados
e nossas identidades étnicas são cruciais para o entendimento subjetivo de
quem nós somos” (HALL, 1997, p. 227). Enfatizando que o processo de
desenvolvimento de uma identidade étnica não se dá de forma simples e
direta, Anne Goldman, em “Cooking, Culture, and Colonialism”, argumenta
que esse processo é desenvolvido tanto a nível consciente como
subconsciente. Goldman afirma, também, que em grande parte das
autobiografias de origem étnica as autoras deixam claro que a herança cultural
que receberam está profundamente ligada à palavra e ao trabalho de suas
avós e mães, que transmitiram mitos, lendas e práticas culturais importantes
para a busca de identidade e auto-afirmação (GOLDMAN, 1992, p. 190-91).
Nesse artigo investigo questões de gênero e etnia representadas
em dois textos de caráter autobiográfico: Halfbreed (1973), da canadense de
origem indígena Maria Campbell, e Storyteller (1984), da norte-americana de
origem indígena Leslie Marmon Silko. Os dois textos relatam experiências
de vida de suas autoras/narradoras/protagonistas usando variações do gênero
autobiográfico. A importância das práticas autobiográficas por autoras de
origem indígena fica clara na afirmação de Paula Gunn Allen acerca da
invisibilidade da mulher indígena: “se na visão pública e privada dos
americanos os indígenas, como grupo, são invisíveis, então as mulheres
indígenas são não existentes” (ALLEN, 1989, p. 9). Sarah E. Turner
argumenta que o projeto autobiográfico indígena “é único no sentido em
que ele é uma reação contra uma tentativa politicamente sancionada de
exterminação e de negação de cultura, língua e crenças” (TURNER, 1997,
p. 109).
O estudo de autobiografias de autoras indígenas deve levar em
consideração que a tradição tribal, em suas várias formas, está ancorada em
uma profunda e contextualizada relação com a vida da comunidade indígena
e que a busca e a afirmação de identidade e valores tribais sempre envolve
uma ação política. O entrelaçamento do pessoal, do social e do político
caracteriza as autobiografias de Campbell e de Silko, como também de grande
parte das autobiografias produzidas por escritoras de origem indígena. Para
essas autoras, o uso do pronome “nós”, subentendido ou explícito, é uma
28
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
constante, quer a narrativa seja feita na 1ª pessoa do singular ou na 3ª do
plural. O “nós” do discurso autobiográfico invoca uma comunidade indígena
e enfatiza a subjetividade relacional que teóricos e críticos consideram como
importante norma cultural (DiNOVA, 2005, p. 60-61). Como apontam vários
críticos, o uso de história e mito em práticas autobiográficas produzidas por
escritoras de origem indígena estende os limites da vida individual apontando
para a importância das redes históricas e mitológicas no processo de formação
identitária. Por tudo isso, fica claro que a leitura e a crítica de autobiografias
de origem indígena exigem uma ampliação das definições eurocêntricas do
gênero autobiográfico
Em Halfbreed, Maria Campbell escreve uma autobiografia que mostra
a influência da tradição oral no texto escrito. Embora narrada em primeira
pessoa, a autobiografia de Campbell não exclui a voz da comunidade, e se
dirige a um público bem mais amplo que os membros das tribos indígenas.
Na introdução a Halfbreed, Campbell diz: “Escrevo isso para todos vocês,
para lhes dizer o que significa ser uma mestiça em nosso país. Eu quero lhes
contar sobre as alegrias e tristezas, sobre a pobreza esmagadora, sobre as
frustrações e os sonhos” (CAMPBELL, 1973, p. 8). Descendente de índios
Cree, de franceses, ingleses, escoceses e irlandeses, Maria Campbell nasceu
na província canadense de Saskatchewan em 1940. A autobiografia de
Campbell é considerada por críticos e escritores canadenses a obra que deu,
pela primeira vez, voz às mulheres indígenas, uma obra que, também,
enfatizou a importância de um orgulho étnico para a construção de um
futuro digno para os povos indígenas. Uma metáfora recorrente em Halfbreed
é a do “cobertor”. Ainda jovem, Campbell ouve de sua bisavó que “quando
o governo lhe dá algo, em retorno, ele toma de você seu orgulho, sua
dignidade, todas as coisas da sua alma. Quando já levou tudo, o governo lhe
dá um cobertor para cobrir sua vergonha”. Anos mais tarde, afastada da
família e envolvida com drogas e prostituição, Campbell reconhece, “Eu
entendia a questão do cobertor agora – Eu também usava um” (p. 136).
Halfbreed nos oferece uma visão alternativa da história canadense,
vista pelos olhos de uma de suas minorias oprimidas. Jodi Lundgren afirma
que “Campbell usa o gênero autobiográfico para subverter a narrativa-mestra
da história imperialista” e que Halfbreed “demonstra, com eloqüência, o
impacto da colonização e do racismo sobre o povo indígena” (LUNDGREN,
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1995, p. 72). Em sua autobiografia, Campbell opta por usar o termo pejorativo
“halfbreed” ou “mestiço” para designar seu povo ao invés de optar pelo mais
politicamente correto “Métis”. Sua opção põe em evidência os preconceitos
não só da população branca como também os preconceitos dos índios de
sangue puro, descendentes diretos das “First Nations Tribes”, em relação aos
grupos indígenas de várias origens étnicas. Campbell começa sua
autobiografia relatando acontecimentos importantes na história de sua gente,
ocorridos no século XIX. O foco desses acontecimentos é a luta dos mestiços
pela posse de terras que habitavam há muitos anos. Ignorados pelos tratados
assinados entre o governo de Ottawa e algumas tribos indígenas, os mestiços
se organizaram sob a liderança de homens como Louis Riel e Gabriel
Dumont. Em 1884, após cerca de 15 anos de conflito, 150 mestiços liderados
por Riel e Dumont foram derrotados por 8000 soldados na Batalha de
Batoche.
A partir do segundo capítulo de Halfbreed, Campbell narra a vida
de sua família e dos outros mestiços, empobrecidos, vivendo às margens da
sociedade, e literalmente habitando as faixas de terras governamentais às
margens das estradas canadenses. Conhecidos como “The Road Allowance
People”, os mestiços sobrevivem de biscates, da caça e da pesca em terras
ocupadas por homens brancos. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas,
Campbell narra uma infância rica em brincadeiras e cercada do afeto da
família. Sua imaginação é alimentada por duas tradições distintas: pelo lado
da mãe, as histórias dos livros de autores canônicos ingleses; pelo lado do
pai, a cultura Cree – com suas lendas, rituais e personagens mágicos –
transmitida por sua bisavó, Cheechum. A narrativa de Campbell expõe a
discriminação sentida por sua família e seu povo e a humilhação a que são
submetidos. Rodeados por imigrantes alemães e suecos, eles são tratados
com desconfiança e desprezo: “Eles não nos entendiam, só balançavam a
cabeça e agradeciam a Deus por serem diferentes” (p. 28).
Em suas compras na cidade próxima, os mestiços são vistos e
tratados como ladrões nas ruas e lojas. Quando vão às reservas indígenas,
também são menosprezados: “Nós éramos sempre os parentes pobres, as
awp-peetow-koosons (meias-pessoas). Eles riam e zombavam de nós. Eles tinham
terra e segurança, nós não tínhamos nada” (p. 26). Católicos, os mestiços
são também discriminados na igreja e explorados por padres inescrupulosos.
30
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Mas, apesar de tudo, as lembranças da infância são felizes para Campbell,
‘Eu cresci com algumas pessoas realmente engraçadas, maravilhosas e
fantásticas e elas são tão reais para mim hoje como eram então” (p. 25).
Pouco a pouco o mundo de Campbell, começa a desmoronar. A
pobreza, o alcoolismo, a falta de esperança em um futuro melhor afeta os
membros da família e da comunidade. O pai de Campbell torna-se violento
quando bêbado, espancando a mulher, gritando com toda a família. Campbell
e seus seis irmãos e irmãs sobrevivem vendendo peles de animais que
apanham em armadilhas. Sua avó paterna morre de câncer e, em seguida, a
mãe morre de parto. Maria Campbell assume, aos doze anos, o cuidado da
casa, da família e do bebê recém-nascido. Com o pai procurando trabalho
em outras regiões, e com a partida de Cheechum, Campbell e seus irmãos se
sentem inteiramente desprotegidos.
Aos 14 anos, Campbell começa a trabalhar como doméstica em
várias casas e enfrenta o preconceito das patroas: “Ela não gostava de índios...
e dizia às visitas que nós éramos boas só para trabalhar e trepar”; “Algumas
pessoas ficavam de olho em mim caso eu tentasse roubar algo; outras tinham
medo que eu pudesse desencaminhar seus maridos e filhos” (p. 94). Nesse
período Campbell começa a viver suas primeiras experiências amorosas e
data desta época uma experiência traumática que não é relatada em Halfbreed
por motivos editoriais, mas que é descrita em The Book of Jessica, uma obra
posterior: o estupro de Maria Campbell aos 13 anos por um soldado da
Polícia Montada Canadense (CAMPBELL, 1989). Após um ano de constantes
ameaças dos serviços de assistência social de separar a família, Campbell
decide casar-se. Essa decisão é descrita friamente na autobiografia e o texto
deixa claro que Campbell estava fazendo uma escolha que beneficiaria sua
família: “Eu encontrei meu homem algumas semanas mais tarde... Eu podia
ver por suas roupas caras e carro novo que ele podia sustentar nós todos...
Ele era originalmente de Saskatchewan mas morava em Vancouver”.
Explicitando ainda mais sua motivação, Campbell declara: “Eu me casei em
27 de outubro de 1955. Eu tinha um marido e podia sustentar meus irmãos.
Eu tinha 15 anos” (p. 104).
Casada com Darrel, um homem branco que não tem sobrenome
no texto, Campbell sofre rejeição de membros de sua família e da família de
seu marido. Logo após o casamento, Darrel começa a beber, perde o emprego
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e espanca Campbell. Um dia, já grávida, em uma briga com Darrel, Campbell
rola escada abaixo e é internada, tendo um bebê prematuro. A vida em casa
torna-se um inferno e a assistência social intervém, colocando os irmãos de
Maria Campbell em lares adotivos (p. 107). Darrel decide mudar-se para
Vancouver e lá Campbell vive todo o horror da deterioração urbana, do
racismo, da falta de dinheiro, e da solidão. Darrel a abandona e, em desespero,
ela toma a decisão de ligar para uma conhecida, sabendo que esse telefonema
ela estaria entrando no mundo da prostituição e das drogas. O uso de drogas
torna o mundo mais suportável para Campbell, “elas me ajudavam a dormir,
me faziam feliz e, acima de tudo, me faziam esquecer sobre o ontem e o
amanhã” (p. 118).
Envolvendo-se cada vez mais no mundo das drogas e da
prostituição, Campbell passa a usar heroína, contrai dívidas, transporta drogas
para um traficante e se afunda cada vez mais no submundo de Vancouver.
Depois de várias tentativas de largar as drogas e o álcool, de relações
fracassadas, de uma tentativa de suicídio, de ter mais dois filhos, e de se
mudar para outras cidades em busca de emprego, Maria Campbell encontra
sua possibilidade de recuperação. Nas sessões dos AA de um Centro Indígena
que ela começa a freqüentar, Campbell encontra outras pessoas como ela e
os reconhece: “Eu entendia essas pessoas e elas me entendiam. Foi aqui que
eu encontrei pela primeira vez aqueles que iriam ter um importante papel no
movimento indígena em Alberta” (p. 143).
Na militância do Movimento Indígena, Campbell encontrou seu
rumo e sua identidade. Ativista desde 1965, Campbell foi capaz de largar as
drogas e o álcool, resgatar seus filhos de lares adotivos, reunir a família com
seu pai, irmãos e sua centenária bisavó Cheechum. Maria Campbell publicou
sua autobiografia em 1973, um testemunho de sua luta como mulher e como
mestiça para encontrar sua identidade. Na militância e na literatura Campbell
encontrou sua voz e seu lugar e suas palavras finais em Halfbreed mostram a
dureza do caminho trilhado e a satisfação de ter chegado, de finalmente
pertencer. A metáfora do cobertor, aparentemente quente e protetor, mas,
na verdade, restritivo e opressivo, torna a aparecer: “Os anos de busca, solidão
e dor terminaram para mim. ... Eu tenho irmãos e irmãs por todo o país. Eu
não preciso mais de um cobertor para sobreviver” (p. 157).
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Para escritoras de origem indígena, a comunidade é um lugar, um
povo, uma história, tudo isso interligado por uma complexa rede de narrativas.
Como declara Leslie Marmon Silko, autora norte-americana de origem Laguna
Pueblo, mexicana e alemã, “tudo o que sei é Laguna. O lugar de onde venho
é tudo que sou como escritora e ser humano” (SILKO, 1996, p. 69). Leslie
Marmon Silko, nascida em Albuquerque, Novo México, em 1948, foi criada
em uma comunidade conhecida pela riqueza de sua tradição cultural e, como
afirma Robert Nelson, “por uma tradição oral que preserva as complexas
estratégias de resistência e assimilação que permitiram ao povo Laguna
sobreviver e se ajustar às pressões externas” (NELSON, 2005, p. 245).
Storyteller (1984), a inovadora e subversiva autobiografia de Leslie
Marmon Silko, é construída de fragmentos de histórias – antigas e recentes,
pessoais e tribais – de contos, poemas, trechos de cartas, anedotas e fotografias
de família. Todas essas diferentes formas narrativas são interconectadas em
uma simulação da tradição oral em forma escrita. Storyteller é um livro de
histórias bem como um livro sobre contar histórias, um texto auto-reflexivo
que, como afirma Linda J. Krumholz, examina o papel cíclico das histórias
no recontar e no gerar significados para indivíduos, comunidades e nações
(KRUMHOLZ, 1994, p. 89). Em Storyteller, Silko conta sua própria história,
a história de sua família e a história do povo Laguna Pueblo, posicionandose no papel matrilinear da contadora de histórias e desafiando as
representações tradicionais dos indígenas norte-americanos. Silko inicia
Storyteller com histórias que estabelecem um paralelo com as histórias da
cultura dominante sobre indígenas como figuras trágicas, últimos
sobreviventes de uma cultura moribunda. Usando humor e ironia como
estratégias de subversão, Silko expõe os estereótipos presentes nas
representações feitas dos indígenas americanos e celebra a criatividade e
vitalidade da cultura indígena.
Alguns críticos, como Bernard A. Hirsch e Linda Danielson,
argumentam que há alguns núcleos temáticos em Storyteller (HIRSCH, 1988;
DANIELSON, 1988). Poderíamos dizer que o primeiro núcleo de Storyteller
é formado por histórias que têm como tema a sobrevivência, a luta dos
indígenas para resistir às forças que desestabilizam suas famílias e tradições.
As histórias desse grupo, que inclui as conhecidas “Storyteller” e “Lullaby”,
são marcadas por uma sensação de deslocamento, desenraização e perda.
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Como aponta Linda Krumholz, em muitas histórias desse primeiro grupo
contos, lendas e canções indígenas são uma fonte de consolo para os
personagens, oprimidos e acuados por estruturas de poder da sociedade e
culturas dominantes (KRUMHOLZ, 1994, p. 97). O segundo núcleo é
marcado pelas muitas histórias sobre um personagem lendário da cultura
Laguna Pueblo, a Mulher Amarela ou Kochininako, que se apresenta sob
múltiplos aspectos e revela a força da sexualidade feminina. Em “Yellow
Woman”, a personagem/narradora contemporânea imagina se sua experiência
de ser seqüestrada não a aproxima da lendária Mulher Amarela, também
afastada do marido e dos filhos por um seqüestrador. Nesse grupo de histórias,
Silko explora os papéis femininos na sociedade Laguna Pueblo e mostra
como a tradição indígena valoriza a mulher como transmissora dos valores
culturais, colocando as mulheres com posturas dinâmicas e libertadoras.
Os dois núcleos seguintes têm como temas a seca e a chuva, e as
histórias desses grupos exploram os problemas causados pela seca – muitas
vezes associada a um uso abusivo do poder – e os benefícios trazidos pela
chuva – associada à criatividade, à harmonia e ao crescimento. No núcleo
seguinte, Silko conta inúmeras histórias sobre familiares já falecidos. O tema
das histórias é o mundo dos espíritos, sua presença entre nós e nossa relação
com eles. Silko mostra como os rituais indígenas apontam para a natureza
cíclica dos processos de vida e morte, quando homenageiam os antepassados
falecidos e os animais mortos, trazendo assim o passado de volta à vida e
mantendo viva a tradição indígena.
No último núcleo, Silko conta histórias do Coiote, tradicional
enganador e sobrevivente das narrativas indígenas, personagem associado
aos processos de criação e transformação. Figura altamente subversiva, o
Coiote – que nas histórias indígenas é responsável pela subversão das normas
e das relações de poder – é associado ao contador de histórias. Como diz
explicitamente Silko em uma entrevista: “Eu acredito mais em subversão do
que em confronto direto” (SILKO, 1990, p. 147-48). Ao chegar às páginas
finais de Storyteller, podemos ver o quanto Silko, como contadora de histórias,
usando a palavra, se assemelha ao Coiote, a medida em que todas as narrativas,
entrelaçando histórias, poemas, fotografias e outras formas de representação,
e estabelecendo um movimento cíclico e pleno de humor, desafiam as
representações dominantes de história, poder e conhecimento.
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Halfbreed e Storyteller são exemplos das possibilidades e diversidades
do gênero autobiográfico produzido por escritoras étnicas contemporâneas.
Histórias diferentes, modos de narrar diferentes, obras que nos mostram a
importância da narrativa na formação da identidade pessoal e cultural de
indivíduos e comunidades.
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Artigo recebido em 01.03.2008.
Artigo aceito em 21.09.2008.
Peonia Viana Guedes
Pós-Doutora pela UFMG.
Professora Titular da Universidade do Rio de Janeiro – UERJ.
Coordenadora de linha de pesquisa do CNPq.
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JACOB´S ROOM / JACOB´S GLOOM:
VIRGINIA WOOLF
E SUAS METÁFORAS
PARA UMA CRÍTICA SOCIAL
Soraya Ferreira Alves
[email protected]
RESUMO: A crítica a temas que
caracterizam a sociedade moderna do
início do século XX (guerra, feminismo,
individualismo etc) permeia grande
parte da obra tanto ficcional como
ensaística de Virginia Woolf. Essa
crítica, porém, não é realizada de forma
direta, por meio de discursos
argumentativos, mas de maneira velada,
utilizando-se de metáforas. A partir do
romance Jacob´s Room (1922), pretendese demonstrar como a subjetividade da
escritura woolfiana enlaça o social e
promove um efeito de perplexidade ao
relacionar eventos brutais com a
banalidade da vida cotidiana e assim,
mais do que revelar o problema, faz com
que ele seja sentido.
ABSTRACT: Criticism to themes that
characterize the modern society of the
beginning of the twentieth century can
be seen in great part of Virginia Woolf´s
essayistic and fictional work. Such
criticism, however, is not explicit, of an
argumentative kind, but veiled, carried
out by means of metaphors. Taking the
novel Jacob´s Room as an example of such
practice, this article aims at showing how
the subjectivity of the woolfian
scripture creates an effect of perplexity
by relating brutal events to the banality
of everyday life and, instead of
revealing the problem, makes it to be
sensed.
PALAVRAS-CHAVE: Análise literária. Metáfora. Subjetividade. Crítica social.
KEY WORDS: Literary analysis. Metaphor. Subjectivity. Social critics.
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Jacob´s room (1922) pode ser considerado o romance inaugural de um
conjunto de obras nas quais Virginia Woolf desenvolve sua escritura
experimental. Ela revela, em seu diário, que a partir de um exercício anterior,
que foram os contos de “Monday or Tuesday” (1919), encontra uma nova
forma para sua narrativa:
[I’m] happier today than I was yesterday having this afternoon arrived at
some idea of a new form for a novel. Suppose one thing should open
out of another – as in An Unwritten Novel – only not for 10 pages but
200 or so – doesn’t that give the looseness & lightness I want: doesn’t
that get closer & yet keep form & speed, & enclose the human heart –
Am I sufficiently mistress of my dialogue to net it there? For I figure
that the approach will be entirely different this time: no scaffolding;
scarcely a brick to be seen; all crepuscular, but the heart, the passion,
humour, everything as bright as fire in the mist. (...) conceive mark on
the wall, K[ew]. G[ardens]. & unwritten novel taking hands & dancing in
unity. (WOOLF, 1992b, p.13-14)
Nesse romance, Woolf ainda não vai desenvolver o recurso narrativo
do fluxo de consciência1, que se tornará uma marca de sua escritura, mas,
com um recurso idealizado por ela, assim como explica no trecho acima,
onde as coisas parecem sair umas de dentro das outras, irá criar um ritmo
semelhante ao da memória. Um exemplo bastante claro está no capítulo
VIII, onde, após considerações sobre a inconstância da vida, há uma pergunta:
“What are you going to meet if you turn this corner?”. Então, uma série de
possíveis acontecimentos é descrita como se desenrolando em conseqüência
de outros; porém, com conexões um tanto absurdas, bastante arbitrárias e
inusitadas, como o próprio processo da mente de ligar idéias muitas vezes
distantes da situação do momento, mas que, sem sabermos a razão, vêm à
tona em nosso pensamento.
‘Holborn straight ahead of you’, says the policeman. Ah, but where are
you going if instead of brushing past the old man with the white beard,
the silver medal, and the cheap violin, you let him go on with his story,
which ends in an invitation to step somewhere, to his room, presumably,
off Queen’s Square, and there he shows you a collection of birds’ eggs
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and a letter from the Prince of Whales’ secretary, and this (skipping the
intermediate stages) brings you one winter’s day to the Essex coast, where
the little boat makes off to the ship, and the ship sails and you behold on
the skyline the Azores; and the flamingos rise; and there you sit on the
verge of the marsh drinking rum-punch, an outcast from civilization, for
you have committed a crime, are infected with yellow fever as likely as
not, and – fill in the sketch as you like. (WOOLF, 1992, p. 82)
A história de Jacob Flanders não tem uma trama complexa. Conta a
vida de um rapaz desde a infância até a juventude, quando morre lutando na
Primeira Guerra Mundial. Sua história se compõe de situações quotidianas
típicas de um jovem de classe média em ascensão na escala social,
primeiramente vivida em uma cidade litorânea e depois em Oxford e Londres.
Jacob é o “um qualquer”, ou seja, concentra marcas comuns
compartilhadas por outros indivíduos, geradas por uma subjetividade
alicerçada em uma cadeia de conexões que constroem suas crenças e valores
e inclui educação, família, meio ambiente, arte, etc.
Woolf começa a intensificar sua crítica à sociedade de sua época ao
fazer com que seu “herói” experimente a crua realidade urbana observando
cenas e situações nas ruas, mas como quem vive em um doloroso exílio.
Pessoas entram e saem da história e não temos informações sobre
elas: de onde vêem ou qual o seu destino. A maioria tem passagem
momentânea na vida de Jacob: sabemos seu nome, sobrenome, mas nada
sobre suas vidas. Estão onde Jacob está, influenciam o ambiente que ele está
vivendo naquele exato momento, mas depois desaparecem da narrativa da
mesma forma que entraram. Parecem fantasmas, fantoches2, figuras etéreas
aparecendo e desaparecendo no meio da cidade, mas sem mistério, sem
surpresas, apenas pessoas comuns que estão envolvidas no seu cotidiano,
como que participando, junto com ele, de seu destino cruel, como se
estivessem sendo levadas rumo a um abismo, que saberemos ser a guerra.
No exemplo a seguir, Jacob está em um ônibus e de repente surge
um menino, com nome e sobrenome, que nunca havia aparecido antes, e em
poucas linhas desaparece para sempre da narrativa:
The October sunlight rested upon all these men and women sitting
immobile; and little Johnnie Sturgeon took the chance to swing down
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the staircase, carrying his large mysterious parcel, and so dodging a
zigzag course between the wheels he reached the pavement, started to
whistle a tune and soon was out of sight – forever. (WOOLF, 1992, p.
254)
Como explica Stuart Hall (2002, p. 32), uma visão mais perturbadora
do sujeito começa a surgir nos movimentos estéticos associados ao
Modernismo, que fazem emergir a figura do “indivíduo isolado, exilado,
alienado, colocado contra o pano-de-fundo da multidão ou da metrópole
anônima e impessoal”. Jacob seria, então, a representação do homem
moderno que anda pelas ruas das grandes cidades como alguém anônimo,
absorvido pela multidão.
Há um recurso da narrativa woolfiana que, pode-se dizer, iconizaria
esse isolamento, ou a incomunicabilidade característica de suas personagens,
que seria o discurso paratático como organização frásica dominante.
Além de provocar uma quebra na narrativa, o discurso paratático
impede a construção de um argumento, uma vez que as orações não são
secundárias ou subordinadas. A radicalização da forma, que Woolf começa
a desenvolver, permite uma radicalização do sentido, ou seja, ela passa por
um ponto de mutação da escritura que vinha operando anteriormente para
uma nova experimentação formal, que se abre para a possibilidade de novos
significados.
Pode-se, então, pensar que a crise da narrativa que se instaura na prosa
woolfiana dá-se à medida que o signo narrativo, marcadamente referencial, se
afasta dessa referencialidade e se volta para a linguagem, provocando um
repensamento sobre a sua natureza. O enredo tradicional, ou seja, aquele que
conta uma estória linearmente, tende a pulverizar-se e rarefazer-se em função da
estruturação escritural formal. Se a narrativa convencional for encarada como
um texto de ficção que se desenvolve como um argumento lógico, que visa a um
fim, a narrativa woolfiana, por sua vez, seria entendida como um processo de
experimentação que abala a noção de causa e efeito. Ela aponta para tudo, no
passado e no futuro, mas se recusa a ir além ou aquém desse apontamento. Não
há um futuro a se planejar, não há uma regra que leve ao desencadeamento das
ações. Igualmente, o passado só emerge fragmentariamente, num puzzle de peças
faltantes, onde uma cena jamais se completa.
42
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A opção pela parataxe, feita por Viginia Woolf, põe em xeque os
valores do discurso lógico/hipotático e assim sua crítica insere-se em sua
escritura de forma icônica, pois usando um discurso analógico para falar de
um assunto lógico – uma crítica se faz com base em argumentos conclusivos
– insere uma crítica profunda nos avessos do discurso lógico. A simplicidade
das ações e as preocupações das pessoas contrastam com a complexidade da
estrutura da obra, como um reflexo da complexa e dura realidade social.
Ao se falar em crítica, porém, percebe-se que a crítica exercida por
Woolf não se dá de forma direta, mas velada, ou seja, através da criação de
situações que enredam os indivíduos, como visto acima, ou de metáforas.
Assim, sua crítica é caracterizada mais pela camuflagem do objeto da crítica
do que pela menção direta à sua problemática.
Uma das questões muito abordada por Woolf é a Guerra e suas
conseqüências. Em sua introdução a Night and Day (1992), Julia Briggs tece
alguns comentários sobre as opiniões de Woolf sobre a Primeira Guerra e
seu modo indireto de abordar a questão:
Many illusions had been lost by 1917, when the Great War was in its third
year and scarcely nearer any resolution. Virginia Woolf, a pacifist, was
sickened by it and by the patriotic sentiment and the ‘violent and filthy
passions it aroused. Woolf could never bring herself to write of the war
directly, and even in her third novel, Jacob’s Room (1922), whose subject is
Jacob’s life thrown away in the war, we see only his empty room, and hear
the undertones of his surname, Flanders 3. War remains a distant but
unignorable presence, like the sound of the guns from the front, ‘strange
volumes of sound’ that could be heard rolling over Sussex Downs during
the summer of 1916. Woolf described their sound in an article for The
Times, and the way in which the war was contributing to local superstition,
but sheered away from the thing itself. (p. xi-ii)
Em Jacob’s Room, vemos que a situação de guerra é ignorada. No
final do romance, há dois exemplos contundentes: no primeiro deles, Betty
Flanders, mãe de Jacob, é acordada no meio da noite por fortes estrondos,
mas prefere pensar que não proviriam dos campos de batalha:
“The guns?” said Betty Flanders, half asleep, getting out of bed and going
to the window (...). Not at this distance, “ she thought. “It is the sea.”
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Again, far away, she heard the dull sound, as if nocturnal women were
beating great carpets. (...) [There were] her sons fighting for the country.
But were the chickens safe? Was that someone moving downstairs? (...)
No. The nocturnal women were beating carpets. Her hens shifted slightly
on their perches’. (WOOLF, 1992, p. 154)
Mesmo depois da morte de Jacob, uma das vítimas da guerra, na
última cena do romance, enquanto faz a limpeza do quarto do filho, sua mãe
diz:
“Such confusion everywhere!” exclaimed Betty Flanders, bursting open
the bedroom door.
Bonamy turned away from the window.
“What am I to do with these, Mr. Bonamy?”
She held out a pair of Jacob’s old shoes.” (WOOLF, 1992, p. 155)
Sua preocupação com algo tão simples e exterior ao verdadeiro
problema provoca um choque maior do que se a morte de Jacob fosse
meramente narrada. Com esse recurso, a desolação de Betty Flanders provoca
um vácuo de sentimentos e pensamentos, causando um efeito de perplexidade,
pois o inominável é suprimido e substituído por uma cena que,
metaforicamente, o representa, pois o horror da mãe pela perda do filho é
vivenciado, mas não é falado.
Quando se fala de uma tragédia vivida por dois namorados, separados
pela morte do rapaz na guerra, a história é narrada por uma senhora amiga:
Both were beautiful, both were inanimate. The oval tea-table invariably
separated them, and the plate of biscuits was all he ever gave her. He
bowed; she inclined her head. They danced. They danced divinely. They
sat in the alcove; never a word was said. Her pillow was wet with tears.
(...) Male beauty in association with female beauty breeds in the onlooker
a sense of fear. Often have I seen them – Helen and Jimmy – and likened
them to ships adrift, and feared for my own little craft. (...) And now
Jimmy feeds crows in Flandres and Helen visits hospitals. (WOOLF, 1992,
p. 82-3)
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A tarefa de Jimmy, de alimentar corvos em Flandres, refere-se ao
seu destino cruel, onde o alimento é seu próprio corpo, morto nos campos
de Flandres, na França, enquanto sua noiva agora vaga à sua procura. Já o
sobrenome de Jacob, Flanders, aponta para o seu fim, como observam Mark
Hussey (1996, p. 88) e Julia Briggs (1992, p. xii).
Entremeados a esse tema, há muitos comentários e descrições dos
costumes da época, que promovem o confronto entre um assunto sério e
triste, como a guerra, e a banalidade da vida cotidiana, que parece ser o que
realmente importa. Um exemplo está no início do capítulo VII, no qual fazse a descrição de alguns itens que estão na moda naquele momento, além de
eventos costumeiros, como, por exemplo, flores de papel que se abrem ao
contato com a água, usadas em jantares para enfeitar a lavanda; cartões de
visita que serviam para todo tipo de mensagens; meias elásticas; pudins
decorados; enquanto moças enchem seus diários com trivialidades e tocam
sempre uma mesma sonata ao piano.
Após o comenário sobre tais costumes, o dia de Clara Durant, irmã
de Timmy, amigo de Jacob, é então detalhado:
Clara Durant procured the stockings, played the sonata, filled the vases,
fetched the pudding, left the cards, and when the great invention of paper
flowers was discovered, was one of those who most marvelled at their
brief lives. (WOOLF, 1992, p. 70)
Aqui se vê, Claramente, uma crítica também à futilidade dos costumes
e modismos da época: as preocupações mais imediatas de uma jovem não se
referem à situação que o país atravessa.
O papel da mulher e os preconceitos em uma sociedade patriarcal,
machista, também são foco da crítica velada de Woolf. Os assuntos femininos,
em sua maioria, são privados de importância intelectual, inseridos na bolha
da supremacia masculina:
Whatever or not she was a virgin seems a matter of no importance
whatever. Unless, indeed, it is the only thing of any importance at all.
Jacob observed Florinda. In her face there seemed to him something
horribly brainless – as she sat staring. (WOOLF, 1992, p. 66-8)
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Ao se despedir de Laurette, uma jovem prostituta, Jacob está satisfeito
por ter encontrado, além de sexo, uma conversa inteligente, mas... “Altogether
a most reasonable conversation; a most respectful room; an intelligent girl.
In short, something was wrong (WOOLF, 1992, p. 90).
Na biblioteca do British Museum, Julia Hedge, uma aluna feminista,
ao perceber que em torno da abóboda estão escritos apenas nomes de grandes
escritores homens, comenta com raiva: “Oh damn, (...) why didn’t they leave
room for an Eliot or a Brönte?” Ao que se segue o comentário do narrador:
“Unfortunate Julia! Wetting her pen in bitterness, and leaving her shoelaces
untied.” (WOOLF, 1992, p. 91-2). A metáfora dos cadarços desamarrados e
da caneta sendo molhada na amargura refere-se ao seu desleixo, pois uma
mulher estudiosa perderia sua feminilidade, ficaria amarga e relaxada.
A discriminação educacional também é abordada em Jacob’s Room.
“What are the boys doing in their rooms?”, pergunta o narrador, referindose aos estudantes de Cambridge. Apertados, os dormitórios das moças,
numericamente minoritárias, não propiciam igual conforto ou... liberdade.
A pergunta, em tom sarcástico, põe em questão a capacidade de estudo e
concentração dos rapazes, que em grande parte do tempo, na verdade, não
estariam em seus quartos; além de referir-se, também, à homossexualidade,
pondo em xeque a perfeição de uma instituição predominantemente
masculina.
Como é possível observar, Woolf também usa um recurso muito
característico da modernidade para estender sua crítica, ou seja, o
questionamento do presente por meio de citações de outras obras, antigas
ou contemporâneas, que fragmentam o discurso e colocam em choque épocas
e linguagens4. Segundo Whitworth:
The attitudes of modernist writers to the present shaped their attitudes
to the past. Social order and psychic integration were usually located in
some pre-lapsarian era: for T.S. Eliot, the era of the metaphysical poets,
before the ‘dissociation of sensibility’; for Yeats, the era of Byzantium;
for Pound, early in his career, that of the provençal troubadours. The
order of the past often manifested itself in the form of myth. Many
modernist writers adopted what Eliot christened ‘‘the mythic method’’ as
a means ‘of controlling, of ordering, of giving a shape and significance
to the immense panorama of futility and anarchy which is contemporary
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history’ (Eliot, Prose, p.177). Yeats employed his personal myths of gyres
and cyclical history; Eliot employed the fertility myths in The Waste Land.
(WHITWORTH, 2002, p. 155-6)
Joyce, em Ulysses, transforma a Odisséia de Homero em um dia vivido
por Leopold Bloom, um anti-herói que percorre as ruas de Dublin. À medida
que o dia passa e Bloom atravessa diferentes situações, podemos perceber
as alusões aos grandes feitos do herói Ulisses, que se transformam, com
Joyce, em feitos rotineiros. As sereias que Ulisses e seus homens enfrentam
em sua jornada para casa, por exemplo, se transformam em garçonetes de
um bar. Além disso, a linguagem notadamente elaborada que Joyce usa para
narrar tais banalidades, misturada ao uso da linguagem vulgar das
personagens, também enfatiza o confronto entre discursos e épocas.
Assim como Leopold Bloom, Jacob também é um anti-herói
moderno, imerso na banalidade do mundo. A jornada de um dia pela cidade
dublinense do primeiro e a de uma juventude inteira pela efêmera sociedade
inglesa, do segundo, em nada se comparam aos grandes feitos de heróis do
passado como Ulisses e ainda mostram, pela sua falta de perspectiva, o peso
dos tempos modernos.
Ezra Pound encarna, nas Personae (escrito de 1908 a 1920), autores e
personagens do passado, traduzindo-os em uma linguagem moderna. São
pessoas que “falam” através de Pound.
The Waste Land, o mais famoso poema de T.S. Eliot, é inteiramente
fragmentado e marcado por citações de trechos de obras ou alusões a grandes
autores do passado, como Safo, Ovídio, Dante, Shakespeare, Webster, Milton,
dentre outros. Também citações da Bíblia e dos Upanishads são misturadas
a cantigas populares e cenas do dia-a-dia de Londres. Shakespeare se mistura
a diálogos corriqueiros, como o de duas amigas falando sobre a vida alheia.
Poesia e prosa vão se alternar nesse longo poema; o que, além de manter o
ritmo constante, também dá a idéia do ritmo frenético e dissonante da cidade
de Londres, sua “Unreal City”.
Na obra de Virginia Woolf, também podem ser observadas muitas
referências aos gregos antigos, a Shakespeare, aos clássicos do séc. XVIII,
aos poetas românticos. Jacob é fascinado pelos gregos, cita-os, em diversos
momentos, fala deles pelas ruas e, em uma conversa com seu colega Timmy
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Durrant, onde fazem considerações sobre a literatura mundial, o primeiro
cita Sófocles e o segundo, Ésquilo. No entusiasmo de sua juventude, pensam
na civilização grega dominando e influenciando qualquer outra:
A strange thing – when you come to think of it – this love of Greek,
flourishing in such obscurity, distorted, discouraged, yet leaping out, all
of a sudden, especially on leaving crowded rooms, or after a surfeit of
print, or when the moon floats among the waves of the hills, or in hollow,
sallow, fruitless London days, like a specific; a clean blade; always a miracle.
Jacob knew no more Greek than served him to stumble through a play.
Of ancient history he new nothing. However, as he tramped into London
it seemed to him that they were making flagstones ring on the road to the
Acropolis, and that if Socrates saw them coming he would bestir himself
and say ‘my fine fellows’, for the whole sentiment of Athens was entirely
after his heart; free, venturesome, high-spirited... (WOOLF, 1992, p. 64)
A civilização grega e seu espírito livre e elevado fazem um contraste
melancólico com os dias vazios e infrutíferos de Oxford e Londres, e até
mesmo com Jacob que, além de não levar a fundo seus estudos, também se
sente preso e só:
He went back to his rooms, and being the only man who walked at that
moment back to his rooms, his footsteps rang out, his figure loomed
large. Back from the Chapel, back from the Hall, back from the library,
came the sound of his footsteps, as if the old stone echoed with magistral
authority: ‘The young man – the young man – the young man – back to
his rooms’. (WOOLF, 1992, p. 37)
Jacob’s room, seu quarto, seu lugar tanto físico como metafísico, passa
a “Jacob’s gloom” (p. 40), referindo-se exatamente à sua melancolia e à
incapacidade de conhecer-lhe os motivos, pois, como o próprio Timmy pensa,
Jacob não fala, Jacob cala. Jacob, admirado por todos, também passa entre
eles como um fantasma que atravessa cidades, lugares, ruas, ambientes, sem
pertencer a nenhum deles: “Wherever I seat, I die in exile”, diz, numa
metáfora, ao observar os diversos lugares de um teatro, dividido em ambientes
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e classes; e sem fugir de seu destino de morte – no final, não retorna mais a
seu quarto.
Esse modo de crítica velada, como observada aqui, não passa, porém,
impune pela crítica em geral. Como explica Toril Moi (1999, p. 6), em
relação mais especificamente às críticas feitas ao seu “pseudo-feminiso”, a
idéia principal é de que Woolf não representaria o ideal feminista por não
criar novos modelos e imagens verossímeis de mulheres fortes, com as quais
as leitoras poderiam se identificar, além de envolver suas personagens em
uma “névoa de percepções subjetivas”. Moi explica, justificando a escritura
woolfiana, “In her own textual paractice, Woolf exposes the way in which
language refuses to be printed down to an underlying essential meaning”
(WOOLF, p. 9) e que, complementando esse pensamento, “It´s only through
the examination of the detailed strategies of the text on all its levels that we
will be able to uncover some of the conflicting, contradictory elements that
contribute to make it…” (WOOLF, p. 10).
Observa-se que o feminismo de Woolf está ligado a questões sociais,
político-ideológicas e ao pacifismo. Em um artigo de 1929, intitulado “Women
and Fiction”, Woolf estabelece um princípio de diferença entre a escritura
feminina e a masculina, baseado em seus diferentes valores:
It is probable, however, that both in life and in art the values of a woman
are not the values of a man. Thus, when a woman comes to write a novel,
she will find that she is perpetually wishing to alter the established values
– to make serious what appears insignificant to a man, and trivial what is
to him important. (WOOLF, 1966-7, p. 144)
Percebe-se, assim, que a subjetividade da escritura de Virginia Woolf
enlaça o social e conclui-se que, se a escritura feminina opera uma inversão
de valores, a cultura, marcadamente dominada pelos valores masculinos, a
julgará falível, banal e sentimental. No entanto, é exatamente com essa
consciência notável que Woolf preenche sua ficção com um feminismo que
não é simplesmente discursivo ou doutrinário, mas que impregna cada
pensamento, gesto ou ato das personagens, além da estrutura de suas
narrativas.
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Notas
1
O termo fluxo de consciência foi cunhado por William James em seuPrinciples of
Psychology (1890) onde afirma, a respeito da consciência, que esta teria um fluxo
contínuo ao estabelecer relações entre eventos presentes e passados, em um
movimento ininterrupto de sentimentos e impressões vivenciadas pelo indivíduo.
Tal conceito influenciou vários autores da modernidade, gerando uma técnica
narrativa na qual se apresenta a seqüência de pensamentos de um personagem, em
atividade sempre contínua e associativa, marcada por influências externas e internas,
permitindo que se capture o movimento da consciência; assim, a história é contada
através da mente e das impressões das personagens.
2
Em 26 de julho de 22, Woolf escreve em seu diário: “On Sunday L. read through
Jacob’s Room. He thinks it my best work. But his first remark was that it was
amazingly well written. We argued about it. He calls it a work of genius; he thinks
it unlikely any other novel; he says that the people are ghosts; he says it is very
strange: I have no philosophy of life he says; my people are puppets, moved hither
& thither by fate. He doesn’t agree that fate works in this way (Woolf, 1992b, p.
186).
3
Duas sangrentas batalhas foram travadas em Ypres, Flandres, em 1915. Estima-se
em mais de 100.000 o número de mortos e feridos. (cf. Herwig, Helger H, 1997)
O poeta Rupert Brook, amigo de V.W., morreu naquele mesmo ano, na expedição
brtitânica a Dardanelós. (cf. Columbia Encyclopedia, 5º ed., 1993.)
4
Essas citações também poderiam ser chamadas de “ícones temporais”, dentro do
palimpsesto pensamental que confronta e alinha diferentes tempos e idéias.
REFERÊNCIAS
BRIGGS, Julia (1992). Introduction. In Night and Day by Virginia Woolf. London:
Penguin.
HALL, Stuart. Identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
HUSSEY, Mark. Virginia Woolf A-Z. New York & Oxford: Oxford University
Press, 1996.
MOI, Toril. Sexual Textual Politics – Feminist Literary Theory. London & New York:
Routledge, 1999.
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WHITWORTH, Michael. Einstein’s Wake: Relativity, Metaphor, and Modernist
Literature. Oxford: Oxford University Press, 2002.
WOOLF, Virginia. Jacob’s Room. London: Penguin Books, 1992.
________. Women and Fiction. In: Collected Essays II. Leonard Woolf editor. London:
Chatto & Windus, 1966-7. (p.141-48)
________.The Diary of Virginia Woolf. v. 2. Edited by Anne Oliver Bell. London:
Penguin Books, 1992b.
Artigo recebido em 21.04.2008.
Artigo aceito em 14.09.2008.
Soraya Ferreira Alves
Doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.
Professora da Universidade Estadual do Ceará – UECE, junto ao Departamento
de Letras a ao Mestrado Acadêmico em Lingüística Aplicada.
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A LITERATURA E O SER MULHER:
O UNIVERSO FEMININO
DE MARINA COLASSANTI
Verônica Daniel Kobs
Elizangela Francisca da Luz Andrade
Juciane Gasparin da Costa Castro
Roseli Teresinha Locatelli Persona
[email protected]
RESUMO. Neste artigo, serão
analisados os contos “A moça tecelã”,
“Entre a espada e a rosa”, “Quando já
não era necessário” e “Doze reis e a
moça no labirinto do vento”, de Marina
Colasanti, que têm como temática o
universo feminino. Os textos de
Colasanti serão comparados com os
contos de outras autoras, como: Lygia
Fagundes Telles e Clarice Lispector,
com o propósito de analisar os papéis
da mulher, a busca da identidade e sua
independência no século XXI. Além
disso, serão enfatizadas algumas
características dos textos de Marina
Colasanti muito similares às presentes
nos contos de fada, a partir da
associação entre “A moça tecelã” e
“Rumpelstilzchen”, dos Irmãos Grimm.
ABSTRACT. This article will analyze
the short stories “A moça tecelã”,
“Entre a espada e a rosa”, “Quando já
não era necessário” e “Doze reis e a
moça no labirinto do vento”, by Marina
Colasanti who develops as her main
theme the feminine universe. Colasanti’s
texts will be compared, in this paper,
with works of other women authors:
Lygia Fagundes Telles and Clarice
Lispector, in order to analyze questions
about roles played by women, the search
of female identity and independence in
the 19 th century. Besides that, some
characteristics of Marina Colasanti’s
texts very similar to those found in
fairytale will be emphasized, starting
from the association of “A moça tecelã”
to “Rumpelstilzchen”, by the Grimm
Brothers.
PALAVRAS-CHAVE: Gênero. Feminino. Feminismo. Contos de fada. Masculino.
KEY WORDS: Gender. Feminine. Feminism. Fairytale. Masculine.
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Introdução
O presente artigo pretende reunir escritoras que se detêm sobre o
universo feminino, com destaque para Marina Colasanti, que será o principal
foco de nossas pesquisas. Analisaremos seus contos relacionando-os com a
situação da mulher no século XXI.
A luta das mulheres, desde o século passado, até os dias de hoje,
teve um avanço gradativo, mas ainda há muito o que mudar. Portanto, a
mulher do século XXI, como a de todas as épocas, está constantemente em
busca de sua identidade. A escritora Marina Colasanti enfatiza o universo
feminino, como percebemos em seu conto “A moça tecelã”, que pode ser
comparado, por exemplo, ao clássico conto “Rumpelstilzchen”, dos Grimm,
pois ambos procuram mostrar o desejo de a mulher conquistar a sua liberdade,
ou seja, ir em busca de seus sonhos. Os contos de Marina Colasanti que
retratam o universo feminino funcionam como um alerta às mulheres, fazendo
com que elas pensem sobre o seu papel na sociedade. Na esteira de Virginia
Woolf e Simone de Beauvoir, Colasanti faz parte de um grupo que tentou
mudar a concepção das mulheres em geral, no qual também se destacam os
nomes de Lygia Fagundes Telles e Clarice Lispector, que, através de suas
histórias e personagens, refletem a situação da mulher, na tentativa de trazer
à tona um debate sobre os gêneros e seu aspecto relacional.
Dessa forma, ao compararmos as obras de Marina Colasanti, Lygia
Fagundes Telles e Clarice Lispector, percebemos que, apesar de a reflexão
sobre o universo feminino constituir um ponto em comum, de modo a
enfatizar a constante busca da mulher por mudança, a abordagem do tema é
feita de modo absolutamente distinto, nos três casos, pelo estilo e pelas
características que são próprios de cada autora.
Colasanti utiliza-se de textos parecidos com o modelo de contos de
fada para analisar e criticar o universo real através do maravilhoso e da
magia, debatendo, assim, questões atuais relacionadas ao feminino. A partir
desse recurso, a autora usa simbologia em seus contos, principalmente em
“Entre a espada e a rosa” e “Doze reis e a moça no labirinto do vento”, a
fim de mostrar que a mulher deixou de ser um ser submisso ao homem e
que está em busca de sua identidade.
54
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Enfim, os contos estudados focalizam a mulher, mas não de modo
feminista, consolidando, um discurso político-ideológico. De modo sutil e
indireto, os textos relacionam-se a preceitos que orientaram o movimento
feminista, porque permitem uma identificação “natural” entre o leitor (e,
neste caso, leitoras, fundamentalmente) e a história, sem uma conclamação
explícita, permeada pelos clichês do discurso das ativistas. Em suma, as
autoras expõem algumas situações que, a princípio, apenas tentam representar
o papel da mulher na sociedade. A discussão dessa representação não é
prioridade das autoras, mas é inerente à recepção do tipo de texto escrito
por elas, ainda mais considerando a base patriarcal de nossa sociedade.
Papéis da mulher no século XXI
As mulheres, com o passar dos anos, vêm conquistando o seu espaço
na sociedade, objetivando a igualdade nos direitos e se tornando cada vez
mais fortes e independentes. No século passado, com a geração feminista,
foram quebradas várias regras, pois as mulheres, mostrando que são capazes
de lutar pelos seus ideais, desafiaram o sistema e fizeram mudanças
importantes. Porém, os velhos preconceitos ainda permanecem. O movimento
feminista conseguiu, sim, minar a base da sociedade patriarcal, promovendo
a revisão de conceitos, na reivindicação pela igualdade dos gêneros, mas não
conseguiu destruí-la ou alterá-la por completo.
No giro de poucas décadas, a mulher veio competir com o homem em
todas as suas atividades. Essa alteração substancial no papel da mulher
representou uma queda no que se refere à estrutura familiar, mesmo
quando ela não abre mão de sua concomitante missão de mãe ou de
esposa. A Família, que a Constituição continua considerando a base da
sociedade, já não é a mesma, visto como o seu centro referencial sofreu
uma inflexão violenta, alterado que ficou o pólo condicionador por
excelência de seu equilíbrio, dependente da perene dedicação materna.
Diga-se o que se quiser a respeito, o que se deu foi uma diminuição no
amor como vivência e convivência. (citado em ALMEIDA, 2005, p. 1)
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Como percebemos, no trecho citado acima, o articulista, Miguel Reale,
acaba jogando sobre as mulheres toda a responsabilidade sobre a manutenção
da família, como se os homens não fizessem parte dessa estrutura e fossem
incapazes de transmitir valores ou criar os filhos.
Ao longo da História, a mulher sempre foi vista como um ser
submisso ao homem. Foi o feminismo que trouxe várias mudanças no
mercado de trabalho, no comportamento sexual e também nas relações
pessoais. Assim sendo, as mulheres conquistaram o direito de votar, de
freqüentar uma universidade, de trabalhar. Em suma, de ter os mesmos
direitos dos homens.
Nesse período do feminismo, a mulher queria ser igualada ao homem,
mas, atualmente, procura, ainda, sua identidade, ou seja, deseja não ser a
sombra do homem, mas ela mesma, perante a sociedade. Assim afirma a
jornalista americana, Maureen Dowd, em entrevista à revista Veja: “No
começo as mulheres desejavam igualdade, mas a geração pós-feminismo
está buscando uma identidade [...], ela luta hoje para se refazer, encontrar
um novo papel na sociedade, expressando desejos de mulher e mãe [...]”
(citado em MENAI, 2006, p. 2).
Silvia Pimentel, do Comitê pela Eliminação da Discriminação contra
Mulher (CEDAM), das Nações Unidas, e professora de Direito da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, afirma que o feminismo trouxe algumas
idéias erradas, como o desejo de reproduzir o modelo másculo, como se
todas estivessem dispostas a isso. Atualmente, percebe-se que foi um equívoco
as mulheres quererem ser iguais aos homens.
Antigamente, a mulher era mostrada, sobretudo por escritores
masculinos, como um ser subordinado ao homem. A partir da ação de algumas
escritoras, aquela concepção anterior de machismo sofreu severa mudança.
Susana Funck fala dessa revolução da mulher como escritora e das diferenças
entre o feminino e o masculino na literatura: “A constatação aparentemente
simples de que a experiência da mulher enquanto leitora e escritora é diferente
da experiência masculina levou a uma verdadeira revolução intelectual,
marcada pela quebra de paradigmas e pela descoberta de um novo horizonte
de expectativas [...]” (FUNCK, 1994, p. 18). Virginia Woolf, escritora inglesa
que escreveu vários textos sobre a mulher, faz questionamentos sobre as
dificuldades que as escritoras enfrentaram, numa época em que a literatura
56
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era totalmente masculina. Como vemos, em seu livro Um teto todo seu, a
autora mostra as diferenças e as dificuldades encontradas pelas mulheres
que são escritoras, o quanto elas lutaram para ter um espaço próprio, seu
“teto”, ou seja, o espaço que lhes garantia a liberdade para escrever.
A feminista americana Betty Friedam, no livro A mística feminina, de
1963, declarou que muitos talentos femininos eram perdidos, por estarem
confinados aos limites do lar. Na década de 70, Simone de Beauvoir integrouse ao “novo feminismo” e, hoje, ela é ponto de referência para as mulheres,
devido a sua filosofia encorajadora. Segundo a escritora, o casamento é um
empecilho para a evolução das mulheres e é preciso romper socialmente
essa dependência, porém, é fato que as mulheres desejam se casar e constituir
uma família: “O casamento é o destino tradicionalmente oferecido às
mulheres pela sociedade. Também é verdade que a maioria delas é casada,
ou já foi, ou planeja ser, ou sofre por não ser [...].” (citado em PINHEIRO &
MAXIMILIANO, 2006, p. 48). Para Beauvoir, os homens têm necessidade,
para se valorizar, de ver a mulher como um ser inferior e a mulher está tão
acostumada a se acreditar inferior que é rara aquela que luta pelos seus
direitos. Tentando inverter esse quadro, Marina Colasanti, em um de seus
contos, “A moça tecelã”, cria uma personagem feminina forte e determinada.
O texto mostra, metaforicamente, a questão da liberdade, de como uma
pessoa pode refazer a sua vida, ampliando sua visão e alcançando novas
perspectivas.
Sendo assim, tudo o que parece hoje muito natural foi tabu no passado,
mas foi derrubado por pioneiras que gravaram seus nomes na História. Por
isso, a mulher do século XXI goza de mais liberdade e independência, perante
uma sociedade patriarcal. Sobretudo, ela não deixou de ser mulher e mãe, e
continua, constantemente, buscando consolidar, cada vez mais, a sua
independência, sempre em busca de mudança.
“A moça tecelã”, “Rumpelstilzchen” e “Quando já não era mais
necessário”
Algumas produções de Marina Colasanti e dos Irmãos Grimm são,
de fato, muito semelhantes entre si. Tanto “A moça tecelã” como
“Rumpelstilzchen” têm estruturas similares e narram sobre “tecer a vida”,
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mesmo que em ocasiões diferentes. A mulher, personagem principal, em
ambos os contos, é representada por moças que tecem e vivem envolvidas
nas tramas do tear. As personagens mulheres, nesses contos, não possuem
nomes. Elas passam, fio a fio, a tecer, em busca da felicidade, mesmo que
em aspectos diversificados, ou seja, uma tece com a finalidade de construir
uma família e a outra tece fios de ouro para alimentar uma mentira e também
para não acabar sendo morta pelo rei. Em ambos os textos, apresentam-se
chaves interpretativas, revelando leituras agradáveis e ressaltando que as
personagens dos contos são responsáveis pelos seus sonhos e pelas realizações
deles, ou seja, ambas as realizações são representadas, ou metaforizadas,
pela máquina ou arte de tecer.
Em “A moça tecelã”, a mulher, com o intuito de construir uma família,
acaba por se tornar prisioneira do seu próprio sonho. Assim, num despertar,
“destece” seus sonhos, objetivos e suas conquistas, expressando desejo de
liberdade, para refazer sua vida e iniciar novos sonhos, “novas linhas e cores”,
tomando outros rumos e enxergando novas perspectivas de vida.
No conto “Rumpelstilzchen”, a filha do moleiro é inserida como a moça
que tece fios de ouro, o que, na realidade, não passa de uma mentira inventada
pelo pai, para alcançar seu principal objetivo: ver a filha bem sucedida, casada
com o rei da cidade. Só que, para sobreviver e manter essa mentira, a moça passa
a fazer acordos com um certo homenzinho, que, automaticamente, passa a dar
poder a ela e a fazê-la tecer fios de ouro para o rei, o qual, por sua vez, passa a
tomar posse e a aproveitar-se do poder que a moça tinha.
Nessas duas histórias, as mulheres são enfocadas como seres
enclausurados, em busca de completude e, no entanto, acabam por depararse com a dominação e os caprichos do marido, como comprovam os trechos
transcritos a seguir: “Sem descanso tecia a mulher os caprichos do marido”
(COLASANTI, 1982, p. 12); “Tens que fiar isso durante esta noite, se
conseguires, serás minha esposa” (GRIMM, 2007, p. 1). Essas citações
também evidenciam o quanto o homem, em ambos os contos, quer se
beneficiar com o valor da mulher, ou seja, a mulher é, para eles, um objeto
valioso, o que encontra respaldo na concepção de Susana Funck:
A experiência literária baseava-se no duvidoso conceito de universalidade.
Assim, a viagem do desconhecido – a aventura “por mares nunca dantes
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navegados” – tornava-se metáfora da investigação humana do mistério,
do cosmos; e o ingresso no mundo adulto era quase sempre marcado por
um feito heróico, como a caçada a um animal selvagem ou o resgate de
um objeto valioso. (E muitas vezes este objeto era uma mulher.) (FUNCK,
1994, p. 17)
O ponto mais surpreendente dos contos é que as mulheres são vistas
como seres passivos, mas acabam rompendo as atribuições que lhe são dadas
pela sociedade patriarcal, pois são seres capazes de transformar a realidade
à sua volta, fazendo o homem desejar tê-las, nem que seja para usá-las como
um simples objeto. Eles necessitam delas para que sejam felizes, através de
seus valores e “mágicas”. O diferencial do texto “A moça tecelã”, no entanto,
é o fato de a personagem principal romper com os padrões exercidos
culturalmente, ao revelar a relação conjugal sendo desfeita e optando por
uma realização através da liberdade de ser, mesmo que tenha que ser solitária,
novamente.
É como diz Maximiliano Torres, estudioso da desconstrução do
estereótipo feminino nos contos dos Grimm e de Colasanti: “A mulher não
quer mais ser o espelho do homem, nem mesmo o seu avesso ou contrário;
quer encontrar a sua própria marca, seus valores e direitos, suas satisfações
e desígnios próprios, sua feminilidade, sua identidade; aquilo que a faz ser
único, numa mudança de consciência e de atitude” (TORRES, 2007, p. 3).
Nos textos dos Grimm e de Colasanti, as idéias inseridas são
fomentadas por metáforas, imagens e símbolos, trazendo à tona detalhes
ocultos que formam a vida feminina, enaltecendo o “outro lado” da mulher.
Leoné Astride Barzotto, no texto Intervenção da memória de Marina Colasanti,
explica que, em cada fase da história, país ou sociedade diferentemente
organizada, há um certo clamor da mulher, enaltecido pela escritura de autoria
feminina. Para Barzotto, a mulher luta de igual para igual ao lado do homem,
para alcançar as mesmas condições, e tem os mesmos temores, as mesmas
aspirações, fraquezas e forças:
A história da humanidade é uma história de dores e conquistas proposta
de tal forma que a mulher luta duplamente; ao lado do homem para alcançar
as condições que nos levaram a um processo civilizador e, contra o homem,
para provar que ambos são constituídos dos mesmos temores, aspirações,
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fraquezas e forças; características humanas que em algumas épocas foram
negadas a mulher e ainda o são em determinadas culturas. (BARZOTTO,
2007, p. 3)
O conto, em geral, desafia o leitor a descobrir algumas verdades, que
se revelam durante a jornada do texto. Porém, esses contos estudados vão
além, com suas significações e simbologias, fazendo desabrochar o eu
feminino e caracterizando ou personificando a mulher como um grande ser,
capaz de buscar sua identidade e alcançar o auto-conhecimento. Como diz
Torres: “É a busca de uma reconciliação entre o real e a fantasia, o prazer e
o trabalho, a sensibilidade e a razão, estigmatizados como antagônicos e
heterogêneos pelo mundo moderno mecanizado, pela sociedade repressiva”
(TORRES, 2007, p. 10).
Diferente dos contos citados acima, o conto “Quando já não era
mais necessário”, de Marina Colasanti, passa, de forma direta, a mesma
idéia da mulher como objeto do homem e vista, até, com certa repulsa na
relação conjugal. Assim, a personagem, sem nome, cansa de ser rejeitada e
resolve, mesmo contra sua vontade, sair de seu lar, abandonando toda a sua
vida, que um dia fora construída a partir de seus desejos e sonhos. Logo
após tocar na maçaneta da porta, para ir embora, ela acaba se transformando
numa estátua de sal. Então, o marido, pela primeira vez, joga-se aos seus pés
e começa a lambê-la, ou seja, foi preciso chegar ao extremo para o homem
valorizar a mulher e reconhecer a sua importância.
Segundo a psicóloga Kelen Pizol, no artigo “O que as mulheres
valorizam no homem?”, as mulheres procuram segurança, fidelidade e
companheirismo: “O homem tem que ser carinhoso e presente sexualmente”
(PIZOL, 2007, p. 1). Para ela, o casamento deixou de ser um negócio, pois
ele nem sempre é para a vida toda. Portanto, a mulher tem que se garantir,
de acordo com a profissional. A mulher tem que ter autonomia e estar pronta
para pôr um ponto final na relação, se não estiver satisfeita, assim como no
conto citado acima.
Nesse conto, a mulher é vista como um “nada”. Desde o início, a
personagem queria ser amada, desejada e tocada, porém, o marido a ignorava,
a ponto de rejeitá-la e tornar fria a relação sexual entre eles. A mulher não
tem autonomia, simplesmente se entrega ao marido, sem se questionar sobre
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o que realmente quer sentir. De acordo com essa breve descrição da
personagem, pode-se relacionar seu comportamento ao que analisa Vivian
Volkner Esteves, no estudo Freud e sua obra: reflexões acerca do feminino. A autora
menciona que o estudo freudiano Totem e tabu (1913) apresenta a mulher
como ser não desejante, submisso, sem subjetividade ou autonomia. Em
cima dessas idéias de Freud, Vivian V. Esteves aponta: “A fêmea apresentase resumida a um objeto, objeto de desejo. Objeto porque é desejada, mas
não deseja, porque é submissa a um macho forte fisicamente, pensando
como capaz de inibir algo que é natural dos animais, o impulso para o sexo”
(ESTEVES, 2007, p. 1).
No caso desse conto de Colasanti, há uma tentativa de focalizar
algumas atitudes do homem em relação à mulher, bem como a reação da
mulher ao tratamento que recebe e à função que deve desempenhar, segundo
as regras da sociedade patriarcal, na relação conjugal. No texto, o homem é
visto como o ser que pratica a soberania, com total falta de reconhecimento
pelo valor da mulher. A crítica a esse modelo e a essa atribuição de papéis
aos gêneros masculino e feminino vem na decisão da personagem, radical,
de abandonar aquela vida. Como recado, a revisão das funções impostas à
mulher, o que condiciona nova postura em relação à sociedade: a mulher
tem que impor seus desejos e procurar uma saída para a sua felicidade.
Influência dos contos de fada
Para Marina Colasanti, não há uma pauta orientando os temas
relacionados à fantasia e aos contos de fada. Esses escritos têm o intuito de
que o leitor não perceba, na obra, de maneira consciente, a verdadeira essência
do texto. Os significados, implícitos, devem ir se somando, como se o término
do conto garantisse uma sensação de completude, como se tivesse sido lido
um romance, ou uma história inteira e imensa. Para a autora, principalmente
o adulto tem que encontrar as suas próprias chaves, abrir uma fronteira na
imaginação, ao ler sobre fadas, unicórnios, ninfas, etc. Colasanti diz que,
quando escreve uma história nos moldes de contos de fada, tem que fazer
exercícios e preparar-se, fazendo determinadas leituras, porque, para escrever
contos de fada, segundo ela, não pode ter interferência da razão, tem que
haver introspecção, concentração e “mergulho na atmosfera”.
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Nos textos dos Grimm ou nos de Charles Perrault, a mulher é
retratada de forma passiva, à espera de um príncipe que a acorde. Colasanti,
por sua vez, contrapõe a essa uma nova mulher, dinâmica, ativa, que quer ter
escolha, que não está à espera de um príncipe e não aceita imposição paterna.
Nos contos de Colasanti, “Entre a espada e a rosa” e “Doze reis e a moça no
labirinto do vento”, há exemplos claros dessa inversão de “A bela
adormecida”, história que a autora utiliza em suas obras e que, através das
simbologias e de uma linguagem singular, desmistifica, opondo-se ao mito
de que a mulher deve ser sempre passiva e submissa.
Em “Doze reis e a moça no labirinto do vento”, a heroína é o centro
e, em um primeiro momento, ela é protegida pelo pai, através da criação do
labirinto, mas a personagem quer saber o porquê da proteção e questiona
sempre o pai. Ela não se rende às proibições paternas e sabe qual é o seu
momento de casar: “Este ano, meu pai, sem falta, vou me casar”
(COLASANTI, 1982, p. 41). No entanto, a mulher, nesse conto, não está
destinada a casar, nem irá submeter-se ao primeiro homem que chegar. A
princesa exercerá uma autonomia na escolha, imporá condições: “Caso com
aquele que souber me alcançar — grita a moça do labirinto” (COLASANTI,
1982, p. 42). E assim passam o primeiro, o segundo e o terceiro príncipe
para conquistar a moça, mas nenhum deles é propício a ela. Então,
sucessivamente, mês a mês, vários pretendentes tentam, em vão, alcançar e
conquistar a moça do labirinto do vento. Apenas o décimo segundo príncipe
é aceito, porque, em vez de inseguro, ele mostra-se corajoso e determinado,
conquistando, finalmente, a moça, o que estabelece uma nova ordem,
atrelando a liberdade de escolha ao gênero feminino, já que há muito tempo
a moça estava à espera de alguém especial e que lhe agradasse.
Tanto nesse conto, quanto em “Entre a espada e a rosa”, também de
Colasanti, a mulher é inserida com o propósito de fazer sua própria escolha
e buscar sua identidade. Nele, a personagem, uma princesa, também não
queria casar-se com o primeiro príncipe que o pai lhe ofereceu, pois tinha
sentimentos, idéias de escolha e exigia saber com qual pretendente iria se
casar e se realmente esse lhe agradaria. Para o pai, não importava o valor da
personalidade do pretendente, mas sim a riqueza e o poder: “Se era velho e
feio, que importância tinha frente aos soldados que traria para o reino, às
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ovelhas que poria nos pastos e às moedas que despeja na nos cofres?”
(COLASANTI, 1992, p. 11).
Certa noite, a princesa implorou à sua mente e ao seu corpo para
que lhe ajudassem a achar uma solução para escapar à decisão do pai. No
dia seguinte, como resposta, uma barba havia crescido na sua face e,
desesperada, procurou pelo pai, dizendo que não poderia casar-se mais com
o escolhido. Então, o pai, enfurecido com a barba no rosto da moça, ordenalhe a abandonar o palácio e ela, sozinha, passa a caminhar por aldeias à
procura da sobrevivência, ou melhor, da sua identidade. Assim, luta para
conseguir se impor, no novo meio em que se encontra, e busca força e
coragem para vencer as adversidades: “Não seria homem, nem mulher. Seria
um guerreiro” (COLASANTI, 1992, p. 12).
Essa personagem pode ser relacionada ao mito do Hermafrodito,
que representa a fusão dos dois sexos, sem possuir, portanto, um sexo
definido. Ela torna-se um novo ser, de natureza dupla, sem que possa dizer
que é uma mulher ou um homem. Assim, um guerreiro valente se tornou,
superando-se e vencendo muitas batalhas, até que, certo dia, se apaixona por
um príncipe e implora novamente a sua mente, para que, assim, fizesse sua
barba desaparecer por completo, para que pudesse se casar com o tão sonhado
homem. No dia seguinte, a solução veio: havia desaparecido a sua barba e,
por sua escolha, acaba se casando com o seu pretendente. Aparentemente,
torna-se uma mulher normal, mas há, nela, idéias de imposição e resistência,
o que a faz segura e determinada.
Em ambos os contos citados nesta parte, a mulher procura por seu
poder de escolha e decisão. Maximiliano Torres observa que Colasanti expõe
uma voz feminina calada por vários anos de repressão, sugerindo a
manifestação do desejo de individualização e ascensão. Para ele, investigar
contos de fada tradicionais ou modernos nos possibilita mergulhar nessa
reconciliação, numa época em que a mulher ainda está no desabrochar de
suas potencialidades. No universo da literatura, Colasanti envereda por
caminhos inusitados, passa por castelos, reis, príncipes, princesas, cisnes,
unicórnios, fadas e feiticeiros, levantando questões como o amor e a morte,
o poder e a justiça, a solidão e a amizade. Através, sobretudo, das jovens
ninfas, princesas e tecelãs, a autora dá extrema relevância ao universo feminino,
discutindo a condição da mulher e, por extensão, a condição humana.
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A linguagem dos contos “Entre a espada e a rosa” e “Doze reis e a
moça no labirinto do vento” é poética e simbólica, com significados ocultos
que precisam ser desvendados pelo leitor: “A própria obra de Marina Colasanti
envereda pela linha do maravilhoso e parte do modelo de contos de fada,
aproximando-se da corrente do realismo fantástico, ao provocar o
estranhamento e a sensação de que estamos penetrando num universo
onírico, em que as fronteiras entre o real e o irreal se desvaneceram”
(JARDI, 2007, p. 8).
O feminino nos textos de Lygia Fagundes Telles e Clarice
Lispector
Como Marina Colasanti, também Lygia Fagundes Telles e Clarice
Lispector retratam o universo feminino. Lygia Fagundes Telles cria suas
personagens femininas com uma certa incomunicabilidade ou incompreensão,
o que acaba intensificando o drama em seus contos. Aborda, sobretudo, o
universo feminino e suas diversas facetas, com percepções e desejos próprios
da mulher. As personagens parecem denunciar a densidade da vida e são
portadoras de uma psicologia distinta e autônoma. Podemos constatar isso,
na obra As meninas, que é considerada pelos estudiosos um dos melhores
romances da autora. O enredo traz três estudantes universitárias, cada uma
com um ponto de vista. Essa diferença, além de garantir a singularidade das
personagens, confere certa “totalidade” ao romance. Lygia fundiu as falas,
ações e lembranças do meio interior das personagens, reveladas, através da
linguagem, desmascarando a psique das meninas. A autora, ao apresentar o
feminino, nessa obra, inovou, destacando os múltiplos pontos de vista:
— Lorena, será que você podia me dar um pouco de atenção?
— Fala, Lia de Melo Schultz, fala.
Com movimento brusco, Lia puxou as grossas meias brancas até os joelhos.
A sacola de couro resvalou para o chão, mas ela se concentrava nas meias,
atenta como se aspirasse vê-las escorregar, em seguida apanhou a sacola.
— Será que amanhã sua mãe podia me emprestar o carro? Depois do
jantar. Digamos às nove, entende.
Lorena debruçou-se na janela. Sorriu.
— Suas meias estão caindo. (TELLES, 1998, p. 13)
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O trecho acima demonstra o confronto entre temperamentos
distintos, expressos através das falas e atitudes de ambas as personagens.
Enquanto Lia é extremamente carente de atenção e preocupada com detalhes,
Lorena, representando o avesso disso, evidencia total displicência e
desatenção, chegando mesmo a zombar da outra. Para a crítica em geral, a
autora consegue fundir força e fragilidade em suas personagens, contribuindo
de modo decisivo à formação de um perfil de mulher mais atuante política e
culturalmente. “Todas as meninas se emanciparam: Lorena, Lia, Lygia e eu
— que em 73 tinha cerca de 10 anos. Trinta anos passaram. Trinta anos
metaforizados por Balzac na figura da mulher. Trinta anos que significaram
o encontro da maturidade, da identidade, da definição e da sedução insinuante,
neste caso, em nosso olhar, pela mulher e pela narrativa brasileiras”
(CAMPOS, 2007, p. 12).
Já Clarice Lispector trabalha com o psicológico, a introspecção e o
filosófico. O objetivo é atingir os campos mais profundos da mente das
personagens, para assim sondar os complexos mecanismos da psicologia.
Suas personagens femininas são angustiadas, melancólicas, sentem-se presas
à vida rotineira, desejam liberdade, refletem sobre sua existência e, através
da epifania, buscam despertar para uma nova identidade. Elas são flagradas
no momento em que, a partir do cotidiano banal, acabam alcançando o lado
inusitado e misterioso da vida, como, por exemplo, no conto “Amor”, em
que Ana, que toma consciência de sua vida, após a visão de um cego mascando
chiclete, descobre sua real condição, de completa insatisfação, mas, diante
do novo, que indica uma possibilidade de mudança, opta pela continuidade,
mesmo sabendo que suas expectativas nunca serão, com a vida que leva,
totalmente alcançadas. Clarice Lispector rompe com a tradição, ao propiciar
a reflexão sobre o gênero feminino a partir de uma perspectiva feminina.
Porém, suas personagens acabam, na maioria das vezes, interrompendo o
processo de transformação, o que revela tentativa de refletir a realidade, já
que a imposição de deveres à mulher às vezes a impede de tomar decisões
“radicais”.
Em vista de Clarice e Lygia, Marina Colasanti privilegia uma
linguagem mais poética e simbólica, a qual permite que suas personagens
sejam rodeadas por um mundo mágico, de faz-de-conta. Os ecos dos contos
de fada vão soando em busca de discutir a condição da mulher, suscitando
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reflexões a partir da associação entre o real e o irreal. Dessa forma, o conto
de Colasanti vale-se do maravilhoso para debater questões atuais.
Aquela noite, deitado no ombro dele, a moça pensou nos lindos filhos
que teceria para aumentar ainda mais a sua felicidade. [...]. Sem descanso
tecia a mulher os caprichos do marido, enchendo o palácio de luxos, os
cofres de moedas, as salas de criados. Tecer era tudo que fazia. Tecer era
tudo que queria fazer. E tecendo, ela própria trouxe o tempo em que sua
tristeza lhe pareceu maior que o palácio com todos os seus tesouros. E
pela primeira vez pensou-me como seria bom estar sozinha de novo. [...].
A noite acabava quando o marido estranhando a cama dura acordou, e,
espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia
o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo
as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o seu peito
aprumado, o emplumado do chapéu.
Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha
clara. E foi passando-a de vagar entre os fios, delicado traço de luz, que a
manhã repetiu na linha do horizonte. (COLASANTI, 1982, p. 11)
Com base nas autoras aqui citadas, percebe-se a abrangência do
tema feminino, obtida, principalmente, pela diferença de estilos. De modos
diferentes, elas recusam a unilateralidade. Na crônica Penélope, um símbolo de
fidelidade, de Gabriel Chalita, retrata-se a mesma mulher do mito, que espera
seu amor por muitos anos, estabelecendo a submissão e a fidelidade da
mulher ao esposo. “—Tua mulher continua fiel; lamenta e chora sua ausência
dia e noite” (2007, p. 9). As escritoras em questão não recusam os valores
que Penélope representa, mas os fazem dividir espaço com a quebra de
tabus, com posturas que vão de encontro ao sistema patriarcal, em
conformidade com a concepção e o exemplo de Simone de Beauvoir,
apontada por Gabriel Chalita, em outro texto, como uma espécie de ícone,
norteador de um novo comportamento a ser almejado e seguido pelas
mulheres:
[...] Simone iniciava-se orgulhosamente na pratica de mostrar-se forte ao
lado do companheiro, não submissa a ele durante a suas aparições públicas.
Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir eram mentes unidas que moravam
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em casas separadas. [...] Sartre propôs-lhe casamento em certo momento,
mas ela não via motivos pra institucionalizar aquela forte e eterna relação.
Eram transparentes em sua relação e isso os unia. [...] Nunca viveram
juntos. Simone morava num estúdio, e o apartamento de Sartre ficava
perto dali. Freqüentavam os restaurantes do bairro e, já na velhice, eram
vistos como um casal normal de velhinhos repartindo a refeição matinal
e os jornais diários. (2007, p. 9 e 10)
No entanto, ao passo que algumas mulheres optam pela libertação,
a exemplo das personagens de Marina Colasanti, outras, envolvidas e
manipuladas por um certo ranço da sociedade patriarcal em que foram criadas,
recuam, como muitas personagens de Clarice Lispector, decidindo pela
manutenção dos papéis que lhe foram dados, desde o início dos tempos, em
vez de optarem pela transformação.
Considerações finais
O presente trabalho teve como temática o universo feminino,
trabalhado enfaticamente por Marina Colasanti, através do resgate de modelos
clássicos, como o mito e os contos de fada. Unindo realidade e fantasia, para
tentar a desmistificação da mulher na sociedade, seus textos pretendem refletir
a problemática das mulheres em geral, que se vêem em conflito. A escolha
imposta a elas gira em torno da perpetuação do estereótipo do gênero
feminino e da mudança, mesmo que de modo sutil. Diante disso, é bastante
significativo o uso dos contos de fada como base para seus contos, já que
tais textos trabalham com a idealização. Ao desconstruir os contos de fada,
é como se a autora desconstruísse também o modelo patriarcal e suas
respectivas atribuições de papéis aos gêneros masculino e feminino. Em vez
de seguirem o script, as personagens de Marina Colasanti despertam para a
liberdade de escolha, em busca da felicidade. Na realidade, a mulher, hoje,
seguindo o exemplo das personagens dos textos literários, também busca
constantemente a liberdade, dentro de uma sociedade ainda delineada de
modo machista.
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Além de Colasanti, percebemos que Lygia Fagundes Telles e Clarice
Lispector se preocupam em delinear mulheres a procura de uma nova
identidade, sensação, consciência e determinação. Assim, amplia-se a questão
da liberdade, perante uma sociedade preconceituosa. Para tanto, é preciso
inserir o tema feminino, na literatura, como forma de envolver a mulher em
uma reflexão mais profunda e complexa, em que ela possa se reconhecer e
avançar fronteiras.
Portanto, com relação ao feminino nas obras analisadas, concluiuse que a mulher passou do “espaço doméstico” para a revolução e construção
de uma nova identidade, que tenta desmascarar estereótipos que associam a
mulher apenas à beleza externa, passividade, delicadeza e submissão. As
autoras que discutem o feminino têm o propósito de quebrar tabus, já que a
imagem e a “função” da mulher vão muito além disso e devem ser analisadas
sempre em relação ao masculino, nunca isoladamente, razão pela qual o
casamento ou a vida conjugal sempre envolve e condiciona as ações e os
pensamentos das personagens femininas, nos textos analisados neste
artigo.
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Artigo recebido em 14.12.2007.
Artigo aceito em 03.05.2008.
Verônica Daniel Kobs
Doutoranda em Estudos Literários pela UFPR.
Mestre em Literatura Brasileira pela UFPR.
Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da UNIANDRADE.
Elizangela Francisca da Luz Andrade, Juciane Gasparin da Costa Castro,
Roseli Teresinha Locatelli Persona – Alunas participantes do Programa
Institucional de Iniciação Científica da UNIANDRADE.
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SUJEITOS E CULTURA:
PLURALIZAÇÃO E AUTOREFERENCIALIDADE EM
TEOLINDA GERSÃO, LOBO
ANTUNES E INÊS PEDROSA
Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
[email protected]
RESUMO: Para ler o sujeito na cultura
moderna partimos de uma reflexão da
subjetividade como constructo, buscando
compreender a relação entre
subjetividade, modernidade e
procedimentos narrativos adotados no
romance português pós-74. Em
Teolinda Gersão (Os guarda-chuvas
cintilantes, 1984), escrever o sujeito é
desinventar o diário, abri-lo a outros eus
e a outras micro narrativas, discutindo
a escrita; em Lobo Antunes (Ordem
natural das coisas, 1992), é assumir a
solidão de cada um pela representação
do fosso existente entre os sujeitos,
expresso na pluralização de eus
narrativos não-comunicantes; por fim,
em Inês Pedrosa (Fazes-me falta, 2002),
escrever é potencializar a incomunicabilidade pela representação da morte
como chance única para a encenação do
diálogo não realizado em vida.
ABSTRACT: In order to read the
Subject in modern culture, we depart
from a consideration of subjectivity as
a construct, in order to understand the
relation amongst subjectivity, modernity
and the narrative procedures adopted
in the Portuguese novel after 1974. In
Teolinda Gersão (Os guarda-chuvas
cintilantes, 1984), to write the Subject is
to reinvent the memoir, to open it up to
other selves and to other micronarratives, debating the writing process
itself; in Lobo Antunes (Ordem natural
das coisas, 1992), it is to take on everybody’s
solitude through the representation of the
gap existing between subjects, expressed
in the pluralization of the noncommunicative narrative selves; lastly,
in Inês Pedrosa (Fazes-me falta, 2002), to
write is to potentialize the impossibility
of communication by representing
death as the unique chance for the
staging of the dialogue which never
took place in life.
PALAVRAS-CHAVE: Subjetividade. Modernidade. Procedimentos narrativos.
KEY WORDS: Subjectivity. Modernity. Narrative procedures.
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No bojo de uma cultura que valorizava os sentimentos como
expressão autêntica do indivíduo, coube a Nietzsche desmitificá-los como
constructos que decorrem de idéias que se forjam ao longo da História. Já na
primeira metade do século XIX, Tocqueville apontava para o início da
psicologização da sociedade norte-americana ao mesmo tempo em que se
processava a naturalização do individualismo burguês. Comprovando o
caráter construído da subjetividade, o psiquiatra Franz Fanon mostrou que
os sentimentos e os sintomas dos seus clientes, sobretudo a impotência,
eram conseqüência de sua condição de colonizados na Argélia ocupada pelos
franceses.
Sabemos que a subjetividade surgiu como objeto de estudo a partir
da desaparição das civilizações antigas e do advento do cristianismo com o
deslocamento do foco do mundo para o sujeito, cujo paradigma foram As
confissões de Santo Agostinho. Este processo de auto-interpelação alcançou
brilho nos Ensaios de Montaigne no século XVI e daí para frente proliferou
na modernidade emergente sob diferentes formas e gêneros, com destaque
para as memórias, os diários e as cartas. O culto da subjetividade e do
individualismo ganhou força inusitada no século XIX, no momento em que
a vida privada hipertrofiou-se levando os indivíduos a se afastarem
progressivamente da res publica. Relacionando individualismo e vida familiar,
Tocqueville percebe em sua época que
cada pessoa, mergulhada em si mesma, comporta-se como se fora estranha
ao destino de todas as demais. Seus filhos e amigos constituem para ela a
totalidade da espécie humana. (...) E se, nestas condições, um certo sentido
de família ainda permanecer em sua mente, já não lhe resta sentido de
sociedade. (SENNETT, 1988, p. 7)
Desde o Romantismo, a verdade interior se torna o objetivo de todos,
na seqüência do pensamento de Rousseau, como um ideal a ser naturalmente
perseguido e alcançável. No entanto, ataques contra a subjetividade-como-verdade
foram desferidos por Lionel Trilling ao estudar textos literários, mostrando
que “quanto mais a subjetividade se torna um fim em si mesma, menos
expressiva ela poderá ser” (Apud SENNETT,1988, p. 47), o que corrobora
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a sua condição de constructo. Nesta mesma linha surgiram críticas contra a
suposta verdade das relações sentimentais (privadas) em contraste à chamada
artificialidade das relações impessoais (públicas) por parte de Habermas e
Plessner, ambos da segunda geração da Escola de Frankfurt. Apoiados nas
noções de Marx sobre a “privatização” na ideologia burguesa, eles registraram
a tendência compensatória do capitalismo moderno para que as pessoas
investissem “no âmbito familiar e na educação dos filhos os sentimentos
que não poderiam investir em seu trabalho” (SENNETT, 1988, p. 49),
acentuando-se, desta forma, a cisão entre os dois mundos. O objetivo era o
cultivo de uma impessoalidade conveniente segundo o bom funcionamento
das regras competitivas do mercado.
Na seqüência dos estudos da Escola dos Annales, Sennett fez o
contraste entre a nossa sociedade e a do século XVIII e XIX, mostrando
que conceitos como família, personalidade, sentimento, sinceridade e amor
são expressões e “realidades” produzidas em estreita relação com formas de
organização econômica que ordenaram os espaços público e privado.
Contrariando a idéia de que a família nuclear era um lugar puro onde as
pessoas podiam expressar suas personalidades, ele analisa livros de educação
infantil do século XIX em que a preocupação era evitar expressões
espontâneas, criar regras para estabilizar aparências, regularizar
comportamentos e fixar os papéis de esposo(a) e de pai (mãe) dentro do lar,
provando que não há “uma diferença entre a expressão apropriada às relações
públicas e a expressão adequada às relações íntimas” (SENNETT, 1988, p.
18), o que, em última análise, põe à mostra o caráter não-natural da
subjetividade.
No entanto, estas reflexões não podem ser tomadas de forma radical,
pois, se por um lado somos o resultado das relações que nos envolvem no
plano particular ou público de nossas vidas, por outro, temos a liberdade
para refazer a própria subjetividade em consonância com os interesses
pessoais ou sociais da cultura. Acreditando que a subjetividade é maleável,
podemos aquilatar, em alguma medida, o quanto somos vítimas do meio e o
quanto a ele podemos reagir. Deste modo, desmascarando a barreira entre
subjetividades puras e subjetividades artificiais, respectivamente privadas e
públicas, e condenando as tiranias da intimidade que vigoram nas sociedades
atuais, o pensamento de Sennett se associa ao de Canclini quanto à
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preocupação de resgatar a participação do sujeito nos rumos da sociedade.
O primeiro defende uma espécie de revitalização do espírito do jogo –
aceitação de regras e convenções – como prática da cidadania, desfetichizando o intimismo e a cultura narcisista da atualidade; o segundo
sugere a implementação de negociações interculturais no espaço público,
des-demonizando a globalização vista como um perigo para a dissolução do
sujeito.
Para entender o embate surdo e invisível entre sujeito e sociedade, é
de bom alvitre hoje e sempre ouvir o que diz a arte da ficção, cujas metáforas
se aplicam “ao que não cabe em conceitos unívocos, ao que vivemos e está
em tensão com o que poderíamos viver, entre o estruturado e o
desestruturador” (CANCLINI, 2003, p. 53). Assim o fez Maria Luiza Ritzel
Remédios ao dedicar-se à análise do romance português contemporâneo,
descobrindo a dupla ruptura acontecida em simultâneo na narrativa, na família
e no regime político. Efetivamente, a partir dos anos 70, houve a substituição
do narrador demiúrgico do romance, espécie de alter ego do autor e do
intelectual que ali se representava como dono da verdade, pela pluralização
e auto-referencialidade que problematizaram a voz narrativa num intenso
jogo metalingüístico. Os paradigmas destes dois processos estão
representados pelas obras Bolor de Augusto Abelaira e O delfim de José Cardoso
Pires que, de certo modo, retomaram, no século XX, as contradições
românticas tematizadas por Garrett em Viagens na minha terra.
Como um prólogo de grandes transformações no âmbito da ficção
portuguesa, estes dois romances publicados em 1968 fazem emergir a figura
de um ou mais sujeitos narradores que funcionam como pólo de alteridade
tensa com o leitor, na interação possível entre duas subjetividades num mundo
ainda sob censura. Até então o universo do romance era constituído pela
narrativa da família nuclear e pelas relações intersubjetivas estabelecidas na
sociedade burguesa, que foram criticamente retratadas segundo as diferentes
epistemes realista e neo-realista sob a autoridade de uma voz narrativa central.
A mudança neste padrão diegético coincide, em Portugal, com o fim do
regime patriarcal salazarista em que a queda do Pai, fora e dentro de casa,
fez explodir fronteiras estéticas, inaugurando um processo experimental na
ficção.
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Apoiada nestas reflexões que fazem um diálogo entre literatura e
sociedade, entre identidade pessoal e social, interessa-me compreender três
romances, distantes 10 anos um do outro, como metáforas da transformação
cultural ocorrida em Portugal após a queda do regime em 1974, cujas
conseqüências atingem o âmago da consciência do sujeito sobre si e sobre
os outros, num mundo já transformado pelo 25 de Abril e sob acelerada
mudança pela máquina da globalização. Pretendo abordá-los em seqüência
como cenas diferenciadas que apontam para novas posições quanto às
relações entre estrutura romanesca, subjetividade e cultura.
Sob os guarda-chuvas da escrita
A primeira cena envolve os romances da década de 80 que celebram
a derrubada de valores em nome de uma utopia revivida por ocasião da
Revolução dos Cravos. Sob a ação dos ventos dos novos tempos, a ficção
portuguesa se preocupa em rever a História, o país, a identidade nacional, o
gênero, a família nuclear, a conjugalidade, enfim, buscar no passado ou nas
gavetas fechadas uma verdade esquecida ou sufocada. É o caso do livro Os
guarda-chuvas cintilantes (1984) de Teolinda Gersão que ilustra o chamado
boom que se instalou na narrativa. À semelhança dos textos de Clarice
Lispector, no romance de Teolinda Gersão temos um ambiente familiar
esfumaçado a vibrar por detrás da narradora, que é soberana a despeito dos
laços que a prendem ao mundo doméstico. Sua autonomia se exerce na
prática da escrita de um Diário (informação presente na folha de rosto, abaixo
do título da obra) onde ela busca e encontra a liberdade, tal como praticava
a desvairada Mariana Alcoforado em suas cartas no século XVII. No entanto,
não se trata da mesma subjetividade nem da mesma forma de auto-expressão,
pois, sem qualquer preocupação com a delimitação de um eu identificado,
estabilizado e unívoco, a narradora perpetra a adulteração da cronologia e a
desconstrução da função do gênero neste subgênero menor consentido às
damas, fazendo da escrita, não um depositário de lamentações, mas uma
alternativa para a função pública ainda não plenamente concedida à mulher.
Ela não se preocupa em registrar seus dias como forma de conceder
substância a si mesma, mas antes se ocupa em reunir impressões sobre a
vida em geral e sobre outros indivíduos, inclusive um animal, além de abrigar
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micronarrativas de outros sujeitos enunciadores. Embora não se trate de
uma mulher ressentida, feminista ou resolvida, a figura e o percurso da
narradora contrasta com o destino de outras mulheres de sua geração,
condenadas ora ao trabalho doméstico rotineiro, ora aos desvios do adultério.
Sem fazer proselitismo de uma identidade centrada na condição feminina, a
personagem critica a sociedade e busca escapar aos estereótipos, consciente
dos riscos de que “não coincidir com os espelhos é o maior dos crimes”
(GERSÃO, 1984, p. 30). Estamos, pois, diante de uma subjetividade que
não invoca uma essência identitária, mas também não cede aos paradigmas
vigentes para sua condição de mulher, cidadã e secretamente intelectual.
Ligada ainda ao aconchego de uma família tradicional, unida e estável,
esta mulher sem nome teme o mundo que lhe é próximo, materializado nas
imagens midiáticas que não deixam espaço “para inventar alguma coisa”
(GERSÃO, 1984, p. 58). Sua família corre perigo diante do aparelho de TV,
como diz Pip (seu marido?): “(...) descubro aterrado que não sei onde me
deixei, onde está meu corpo, porque as imagens enchem tudo (...) então
avanço contra elas de martelo em punho (...) as imagens desligam subitamente
(...) minúsculo rectângulo de luz recuando para dentro do nada desaparecendo
na noite conosco dentro” (GERSÃO, 1984, p. 61). O pavor apocalíptico da
era globalizada decorre da anulação das possibilidades de criação que assusta
este homem, embora, paradoxalmente, seja ele o autor das insinuações
desqualificadoras do diário da mulher como forma inferior de escrita,
expressando um residual marialvismo (machismo a portuguesa) que não
esconde uma secreta inveja, ele que “secretamente gostaria de ser poeta”
(GERSÃO, 1984, p. 24). Na passagem acima o romance põe em pauta as
contradições que atravessam os seres na modernidade tardia: a diluição da
subjetividade, a criatividade ameaçada, o questionamento de gênero.
Resistindo à mediocridade dos destinos reservados à mulher, a
pequena escrita quotidiana da personagem procura, singelamente, “(...) deixar
um risco no tempo, um traço na areia, para provar que [está] (...) viva”
(GERSÃO, 1984, p. 23). O exercício de sua subjetividade não se centra no
próprio eu pessoal, mas amplia-se no desejo de contar histórias, em busca
de palavras “como redes em que ela tentava prender o universo (...)”
(GERSÃO, 1984, p. 89), cujo sentido ficava sempre por refazer, restando
pelo menos “(...) algures, um coração batendo e ligando todas as coisas (...)”
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(GERSÃO, 1984, p. 90). Trata-se de uma personagem que ingressa num
processo de reflexidade, preocupada em forjar uma nova auto-identidade.
Na intensa relação com o texto, percebe-se o perfil de uma mulher consciente
da sua possibilidade de realização pela escrita, mas que, por ora, precisa
dedicar-se a outras tarefas práticas no quotidiano doméstico que com a escrita
disputam a primazia, pois tem “ (...) sempre as mãos ocupadas com outras
coisas, panos de cozinha, lençóis, livros, legumes (...) uma infindável multidão
de coisas” (GERSÃO, 1984, p. 83) que se intrometem entre a mão, a caneta
e o papel.
Ainda que desestimulada pelos afazeres da vida familiar, a narradora
se alimenta das “possibilidades de uma língua” (GERSÃO, 1984, p. 120),
convicta de que a “(...) História começa onde começa a escrita (a história
começa onde começa a escrita)” (GERSÃO, 1984, p. 12). Para ela, escrever
o sujeito é desinventar o diário, abri-lo a outros eus e a outras micronarrativas,
numa ênfase da auto-referencialidade dialogante que oblitera o referente e
faz ressaltar o texto, ao mesmo tempo em que dessacraliza a pretensa
intimidade do gênero praticado. Ratificando o caráter exemplar desta obra,
diz Maria Alzira Seixo que no romance desde a década de 70, “adquire um
peso teórico-prático impressionante a noção de escrita (encarados enquanto
urdiduras de escrita) se considerarmos a maior parte das obras que então
vêm a lume” (SEIXO, 1986, p. 50).
Assistimos ao percurso de uma subjetividade que se produz na
escrita, localizada no intervalo entre duas épocas e dois paradigmas em vias
de se trocarem. Também ao fazer a variação de pontos de vista entre primeira
e terceira pessoa, o texto produz o distanciamento capaz de corroer o caráter
intimista e autocentrado do “diário” como escrita feminina, tornando-o
permeável aos problemas da vida pública que atingem a família, as mulheres
e os intelectuais, despojando-se, portanto, de sua condição de prática exclusiva
da vida privada. Seria esta reflexão sobre a escrita um sintoma da impotência
da autoria feminina que nos anos 80 não havia ainda superado as dificuldades
da emancipação da geração nascida sob a ditadura? Ou, ao contrário, em vez
de sintoma, seria uma estratégia de proteção, uma tentativa de escapar à
normatização ainda em vigor naquela altura? Sem a pretensão de responder
conclusivamente a tais questões, sabemos que a escrita pode ser um espaço
de liberdade, mas também de fuga.
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Imersa na experiência da escrita, a mulher teme olhar para “a folha
de papel como armadilha em que a vida cai” (GERSÃO, 1984, p. 89),
tornando-se o diário uma fuga do lugar onde acontecem as coisas e, portanto,
uma outra forma de alienação do sujeito. Surge aqui a preocupação de
abandonar a auto-referencialidade que se pode configurar como uma prática
capaz de abrigar irresponsabilidades frente ao social. Ao final do livro esta
questão retorna – mas não se resolve – num ambíguo diálogo da “autora”
do diário com um cão falante cujo perfil não se ajusta ao dos animais das
fábulas clássicas que conversavam entre iguais. Aqui, numa relação a princípio
assimétrica entre seres, este animal representa um Outro, uma espécie de
“terceiro” no sentido derridiano do termo, com o qual a protagonista discute
sobre o ato de escrever. No enunciado do estranho cão, coloca-se o problema
de a literatura consistir num viver no círculo mágico dos guarda-chuvas
cintilantes, como um “maldito escapismo que os intelectuais têm sempre na
manga” (GERSÃO, 1984, p. 131), protegidos dos males do mundo,
indiferentes à fome e ao trabalho infantil. Nesta direção e por meio de um
processo alegórico em que a voz feminina se transforma em cão, ocorre
uma denúncia ao individualismo do escritor e, ato contínuo, o cão e a mulher
se associam e passam a ladrar alegremente, proclamando: “Rebentemos o
círculo mágico! (...) simbolicamente rasgando com dentes um guarda-chuva
que estoura, silva, rodopia, e finalmente se abate sobre si mesmo, como um
balão desfeito” (GERSÃO, 1984, p. 132).
As coisas na sua ordem natural
No teatro de embates entre sujeito e cultura, a segunda cena gira em
torno do arrefecimento da utopia, do desencanto com a pátria e da amargura
da impotência, metaforizados em A ordem natural das coisas (1992), de Lobo
Antunes, romance da disforia e da indiferença frente à globalização que
arruína a paisagem humana. No corpo narrativo desta obra estão enfileirados
cinco Livros que obedecem a uma escatologia diegética em direção à morte,
cada um subdividido em capítulos numerados escritos por sujeitos narradores
diferentes, alternando-se segundo uma estruturação romanesca de monólogos
que promete, mas não atualiza o diálogo. Não há a figura do narrador
demiúrgico que poderia amarrar as enunciações, o que evidencia a abdicação,
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por parte do autor, de um centro ordenador de sentidos a orientar os
depoimentos. A princípio a subjetividade deste suposto ordenador é
inapreensível, já que ela se multiplica nas diferentes enunciações, não se
identificando com nenhuma delas.
No Livro primeiro, (“Doces odores, doces mortos”), figuram os relatos
de um homem de meia-idade e de um ex-policial da PIDE que o vigia, a
pedido de um suposto escritor a quem se dirige às vezes: “(...) aqui o temos,
amigo escritor (...) com a noite de Lisboa crescendo à sua volta (...)”
(ANTUNES, 1996, p. 67). No Livro segundo (“Os Argonautas”), os monólogos
são produzidos por Domingos, ex-mineiro em Moçambique, sogro do homem
de meia idade do livro anterior, e por sua irmã, Orquídia, que relata as
loucuras e delírios do irmão e do pai, fazendo a ponte entre Portugal e a
colônia, mas também entre a realidade e a fantasia. No Livro terceiro (“A
viagem à China”) figuram os monólogos de Jorge, um preso político, e seu
irmão Fernando. O Livro quarto (“A vida contigo”) abriga os depoimentos
de Iolanda, a rapariga diabética de 18 anos, esposa intocada do solitário
homem de meia idade do Livro primeiro, alternados com relatos de Alfredo,
seu amigo/namorado de Liceu. No Livro quinto e último (“A representação
alucinatória do desejo”) estão as rememorações de Julieta, irmã doente de
Jorge e Fernando, filha bastarda abandonada pela família, alternadas com a
enunciação de Maria Antónia, 70 anos, vítima de um câncer incurável, que
se declara a autora absoluta de todos os relatos anteriores: “(...) e comigo
morrerão as personagens deste livro a que se chamará romance (...)”
(ANTUNES, 1996, p. 259). Assim como nos filmes Crash – No limite (Paul
Haggis, 2004) e Babel ( Alejandro González Iñárritu, 2007), as histórias são
independentes e apenas se tocam por força de uma sutil e casual ligação
entre as personagens que estão imersos no caos da segregação e da falta de
comunicação que marcam a sociedade altamente moderna e civilizada.
A solidão percute em todos as enunciações e mais dolorosamente
no texto da mulher-escritora que, ao despedir-se da vida, é obrigada a aceitar
amargamente a demolição da família, a divisão dos bens, a ruína da casa
deflagrada em 1974. Estas expressões de subjetividade estão intimamente
entrelaçadas com o quadro da vida social e política de Portugal, em especial
Lisboa depois da Revolução de Abril, em que os desencantos com os rumos
do país se cruzam com as tristezas íntimas dos diferentes sujeitos da
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enunciação. Assim como as evidências da vida pública se relacionam a uma
degradação inexorável, as personagens fazem parte de uma rede familiar
esgarçada que se corrói lentamente. No fim anunciado pelo cancro e na
cidade em mudanças, “(...) levantando a nossa volta um presente sem passado
(...)” (ANTUNES, 1996, p. 260), estampa-se a decadência de tudo,
ironicamente vista como “a ordem natural das coisas”, título da obra mais
de uma vez glosado no romance (p. 242, 259). Não seria esta comunicação
frustrada de sujeitos solitários a metáfora de um Portugal despojado de
utopias, sob o desencanto da era da globalização em plena década de 90,
data da produção do romance?
Encarando seu próprio desaparecimento, a mulher fala da morte
simbólica da cidade, sentindo o bairro que “(...) se transformou em terra de
exílio na nossa própria terra (...)”. Ao se dirigir freneticamente às mulheres
sobreviventes de sua família – filha, mãe e irmã – seu desejo é “(...) escrever
este livro que alguém terminará (...)” (ANTUNES, 1996, p. 257), para
preservar aquilo que os novos tempos estão a destruir (ANTUNES, 1996,
p. 260), como se a escrita fosse a última utopia de uma vida em extinção.
Todas as personagens parecem estar em busca de uma comunicação,
invocando interlocutores que jamais respondem. Valendo-nos de conceitos
de Guiddens, aqui se trata da “segregação de experiências”, ao contrário do
romance de Gersão em que a questão reflexiva básica era a “auto-identidade”.
As personagens de Lobo Antunes não se interrogam sobre o próprio eu,
mas antes destilam amarguras com o esfacelamento das relações que deixaram
de ser sólidas. Suas falas são monólogos dramáticos dirigidos a alguém,
cartas sem resposta que, não obstante, chegam ao receptor-leitor, a quem
cabe fazer as conexões e atribuir os sentidos entre elas. Efetivamente
percebemos no conjunto da leitura a inter-relação entre os depoimentos
que, a princípio, pareciam aleatórios. As personagens pertencem a uma rede
de relações tecida entre parentes, vizinhos e conhecidos que compartilham
uma mesma realidade sócio-política por força de serem contemporâneos e
compatriotas. No entanto não conseguem comunicar-se entre si. Tal como
os riscos e traços indecifráveis deixados pelo avô suicida de alguém “(...)
que eram gritos (...)”, os monólogos são gritos solitários e impotentes, à
exceção do relato da mulher em estado terminal que protesta contra a
homogeneização da paisagem e o apagamento da história.
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Na sua igualmente solitária condição, é um desafio para o leitor
alcançar o sentido que possa unir os diferentes relatos, já que geralmente
corremos atrás da “mensagem” ou da “moral da história” que estaria cifrada
sob as palavras das personagens e, sobretudo, dos narradores a quem
interpretamos como alter-egos dos autores. Mas o romance não fornece
saídas fáceis. Se no Livro primeiro vislumbramos a figura de um “escritor”
enunciado como o destinatário do narrador – o ex-policial da PIDE –, no
Livro quinto a função do “escritor” passa para a mulher que aceita a morte
sem lamúrias, “(...) uma mulher de silêncio que não aprecia as efusões nem
as lágrimas” (ANTUNES, 1996, p. 242) e que fala pouco porque as palavras
se lhe afiguram vãs, mas que, “morando no silêncio” (ANTUNES, 1996, p.
242), resiste bravamente à ruína através da escrita do livro que estamos a ler.
O leitor experimenta nova perplexidade quando ela informa que alguém
terminará o livro por ela. Quem é afinal esta mulher? Tem ela relação com
aquele primeiro “escritor” citado que se tornará o finalizador da obra? Na
verdade falta-nos a certeza sobre a localização do eu da enunciação primária
do romance, ao mesmo tempo em que nos interrogamos se haveria uma
relação lógica entre estas três figuras representadas como autorais. Seriam
elas superposições de uma mesma consciência tríplice, uma santíssima
trindade a reger os procedimentos nos bastidores da narração? Seria a
confissão enviesada do caráter múltiplo e compartilhado do eu na composição
da obra de arte, a natureza compósita da subjetividade autoral?
Um sujeito semivivo inicia o romance e uma mulher quase-morta o
fecha ao tempo em que se afivela à figura do “escritor” que, por sua vez,
encomendara as investigações sobre o primeiro sujeito. Há um ciclo que se
fecha, embora não fiquem claras as identidades destes sujeitos que dizem ou
parecem assinar a escrita. Mas não há dúvidas de que o trio alcança uma
posição diferente das demais personagens que estão assujeitadas em
identidades fixas, vítimas das contingências. Ao contrário delas, estes supostos
narradores trazem à cena “a ordem natural das coisas”, que pode ser lida
como um desfile dramático de sofrimentos individuais no corpo de uma
cidade-país em decomposição, ou como um protesto intelectual de uma
tríplice consciência irônica que escapa, graças à escrita, da ordem natural
das coisas. O desfile das demais personagens lembra as “(...)multidões de
pessoas (...) agora preocupadas, mais ou menos, apenas com as histórias de
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sua próprias vidas e com suas emoções particulares” (SENNETT, 1988,
p.17). A representação auto-referencial e plural dos narradores/“autores”
aponta para as possibilidades oferecidas pela escrita como via de
desassujeitamento dos sujeitos na contemporaneidade
A falta que me fazes
Por fim, esgotada a fase depressiva causada pela dissolução dos
laços afetivos e pelo desencanto político diante das mudanças operadas pela
globalização, ilustramos a terceira cena com o romance Fazes-me falta (2002)
de Inês Pedrosa no qual duas subjetividades estabelecem, página a página,
uma tentativa de comunicação de afetos neste mundo tão saturado de formas
de comunicação, como diz a autora em entrevista a Revista Entrelivros
(PEDROSA, citado em ARAÚJO, 2007, p. 15 e 16). Não se trata mais de
sujeitos expressando formas de ser em relatos isolados, ou pela escrita
consciente, nem de questionamentos sobre a auto-identidade. Encena-se um
processo intersubjetivo, imaginado sob a forma de um “diálogo” espectral
entre duas personagens separadas pela morte. Aqui a solidão não tem o tom
desalentado do romance de Antunes, nem a ironia do diário de Gersão, mas,
diferentemente, revela a dor da perda que é fruto de uma afetividade intensa,
agora não mais camuflada como fora em vida: “É esse amor que agora me
falta – o sujo, quotidiano amor dos momentos maus, das frases adversas,
das ausências” (PEDROSA, 2002, p. 61), diz a voz feminina que também
amargamente reconhece que “(...) todo o saber chega demasiado tarde”
(PEDROSA, 2002, p. 58).
Embora estejamos diante da trágica impossibilidade comunicativa
criada pela morte, há neste romance de Pedrosa uma sublimação da dor que,
ao final, permite o encontro das duas vozes numa cena onírica ou alegórica
em que “o pai” volta ao passado e “(...) de repente corre em sonho de vôo”(
PEDROSA, 2002, p. 221) e salva “a filha” adolescente de um atropelamento
fatal, a sua “Sininho”, como lhe chamava. Esta dor da falta procede de uma
relação familiar obliquamente confessada pela autora, como esclareceremos
adiante. A alternância entre as duas enunciações revela uma forte e rica
amizade que sobreviveu à própria morte, ficando o leitor no vértice deste
triângulo comunicacional para o qual é convocado desde a primeira página,
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
chamado a dar sentido a esta estranha “correspondência” entre os
“missivistas”. Apesar de pungentes, tais “cartas” – que não são cartas, mas
breves narrativas / capítulos – não são relatos ao léu, não são retratos de
vidas perdidas, tal como sentimos no romance de Antunes, mas
individualidades que se comprometeram uma com a outra, além do
compromisso maior que têm/tiveram com a realidade social. A voz feminina
não se pergunta quem é, tal como faz uma heroína de diário verdadeiro ou
distorcido, nem vive qualquer tipo de segregação, como as personagens
solitárias de Lobo Antunes. Apesar de ter ultrapassado os umbrais da morte
e ter deixado órfão o seu amigo, a mulher que “faz falta” é uma competente
jornalista, professora de história e deputada, que tem presença atuante na
sociedade. Segundo a terminologia de Guiddens, ela teria ultrapassado uma
“política emancipatória” e alcançado a “política-vida” ao tomar decisões
que derivam da sua liberdade de escolha, encarnando a idéia de que o “pessoal
é político” (GUIDENS, 2002, p. 200 e passim). O romance deixa de lado
opressões culturais e repressões familiares em favor do tratamento das
relações de livre escolha entre pessoas que, não por acaso, podem ser pai e
filha, já que a autora dedica o livro à memória do seu próprio pai, numa
referência paratextual confirmada pela coincidência das idades entre a
protagonista e a escritora. Não se trata mais de denunciar o padrão patriarcal
que fez do homem/pai o sujeito detentor da palavra, e da mulher/filha o ser
predestinado ao silêncio.
Ao usar duas fontes tipográficas diferentes, a narrativa alterna as
duas vozes em primeira pessoa, ora em feminino, ora em masculino, ensejando
uma fruição mono ou estereofônica. Se optamos pela leitura linear da primeira
à última página, encontramos paulatinamente as respostas de uma personagem
no enunciado da outra. Na condição de grande interlocutor do romance, o
leitor atualiza a potência das duas enunciações que encenam, cada uma a seu
modo, a tragédia da comunicação imperfeita – mas possível - entre duas
subjetividades que se produzem exatamente na intersubjetividade. Estamos
diante de um solilóquio a dois, numa rota oposta à tradição do romance
burguês em que a existência se aliena em destino.
Assim como no romance de Lobo Antunes, não temos aqui o
narrador de terceira pessoa a atribuir sentido ao atos vividos pelas
personagens, já que a relação intersubjetiva se dá pelo desnudamento de
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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cada um em seu próprio relato, misto de carta e diário em que nada é
escondido. Na destinação imaginária que entre si fazem, a sinceridade é
favorecida pela situação limite em que se encontram, a saber, o velório no
qual o falecimento da amiga é lamentado pelo amigo sobrevivente. Ambos,
a morta e o vivo, deploram as identidades artificiais que circulam à volta do
ataúde, criaturas feitas de sorrisos de encomenda e de corpos produzidos
segundo a moda, expressões da sociedade do espetáculo que então começa
a invadir a cultura portuguesa: gente a tagarelar sobre os “grandes valores
da vida” sob a luz fúnebre das velas do enterro como se fossem as luzes da
celebridade das media.
Inconformada com o narcisismo, a indiferença e a omissão frente
ao abandono e à morte impune de crianças pelo mundo afora, a heroína
protesta contra os valores de uma sociedade que só se preocupa em manter
um “mundo ideal” onde todos se conformam “(...) ao estabelecido, fazendo
o mínimo ruído possível” (PEDROSA, 2002, p. 122). Apesar de ter optado
por construir uma vida pautada pela liberdade de escolhas, a vida acaba por
trair a personagem ao fazê-la vítima de uma gravidez tubária que a leva
desta vida, revelando-se, por fim, ao leitor, que nem tudo é passível de controle
e que a morte muitas vezes se esconde por detrás do acaso. Ao contrário do
que disse a escritora na entrevista citada, ainda há para a mulher destinos
biológicos inescapáveis.
O livro se conclui com um vigoroso “Obrigada!”, elemento
paratextual destacado em negrito, dirigido às pessoas que ajudaram a autora
na composição da obra, fechando, portanto, a obra com uma inequívoca
imagem de reconhecimento ao Outro. Isto duplica uma fala do protagonista
masculino quando afirma que gostaria que chegasse aos ouvidos da amiga
“o obrigada que [ele] não soube sussurrar-lhe ao ouvido” (PEDROSA, 2002,
p. 29) já que, com ela, entre outros benefícios, aprendeu a conhecer e respeitar
grandes mulheres, como Frida Kahlo e Josefa de Óbidos, exemplos de
destinos femininos não-masoquistas que o fizeram rever o seu machismo
português congênito. Como um longo poema costurado em ponto e
contraponto, a narrativa é salpicada pelo refrão “Fazes-me falta” que reverbera
não só a saudade mas o reconhecimento do Outro como fundamental no
estabelecimento do Eu. No lugar da negatividade e do vazio que vigoram
nas gerações domesticadas, centradas em mentes e corpos narcisistas da
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modernidade tardia, a obra celebra a amizade pela qual se dá a “(...) circulação
conjunta de um corpo e de uma alma em torno do despojado sedimento da
sua verdade” (PEDROSA, 2002, p. 218). Estes dois seres, quando unidos,
são “(...) cintilantes e perigosos como um par de amantes” (PEDROSA,
2002, p. 87) e poderiam efetivamente transformar a sociedade caso se
tornassem aliados em vida.
Nos romances estudados identificamos três momentos e
formalizações estéticas diferentes que correspondem a concepções distintas
de subjetividade e de intersubjetividade. Em Teolinda Gersão o sujeito se
debruça sobre si e sobre o texto, num contraponto com o mundo que está de
certo modo à distância. Podemos dizer que ainda vigora uma “política
emancipatória” na constituição dos sujeitos, preocupados com a autoidentidade e com a libertação das amarras tradicionais que sufocam o eu,
embora nem o mundo público, nem a família sejam renegados completamente.
Em Lobo Antunes os eus enfileirados estão solitariamente desconectados e
o quadro final é desolador e depressivo quanto às formas de relação no
mundo familiar e na vida pública. Parecem sujeitos desadaptados num cenário
em mudança, entre uma cultura tradicional e uma sociedade em vias de
globalização. Em Inês Pedrosa, além da recuperação de uma relação horizontal
entre masculino e feminino, não há cisão entre a subjetividade privada e
pública.
De uma concepção de família ainda preservada no primeiro, passouse para a sua dissolução completa no segundo e para sua transformação no
terceiro. As três obras põem em causa o processo auto-referencial da escritura,
no sentido das estratégias discursivas e da problematização do sujeito
narrador, além de depositar na figura do leitor o papel da consciência que
estabelecerá as relações e os sentidos das ações e das personagens
representadas. De toda forma, ao trabalharem com o imaginário pela prática
de procedimentos estéticos renovadores, como a auto-referencialidade (nas
duas primeiras) ou a pluralização do eu narrativo (nas três), estes textos são
“produtores de conhecimento na medida em que tentam captar aquilo que
se torna fugidio na desordem global” (CANCLINI, 2003, p. 53). Como
afirmou Inês Pedrosa, “o discurso vai muito à frente da prática. Por isso é
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que existir dentro das palavras é habitar um futuro radioso” (PEDROSA
citado em ARAÚJO, 2007, p. 17).
REFERÊNCIAS
ANTUNES, António Lobo. A ordem natural das coisas. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.
ARAÚJO, Luciana. Inês Pedrosa: “Sem desejo não há nada”. Entrelivros, São Paulo,
Ano 2, n. 24, p. 14-19, abr. 2007.
CANCLINI, Nestor G. A globalização imaginada. Trad. Sérgio Molina. São Paulo:
Iluminuras, 2003.
GERSÃO, Teolinda. Os guarda-chuvas cintilantes. Lisboa: O Jornal, 1984.
GUIDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
2002.
PEDROSA, Inês. Fazes-me falta. 9. ed. Lisboa: Dom Quixote, 2002.
REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. O romance português contemporâneo. Santa Maria:
Edições UFSM, 1986.
SEIXO, Maria Alzira. A palavra do romance: ensaios de genologia e análise. Lisboa:
Livros Horizonte, 1986.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. Trad.
Lygia Araújo Watanabe, São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
Artigo recebido em 14.05.2008.
Artigo aceito em 15.08.2008.
Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira
Pós-Doutora pela Universidade de Campinas.
Professora da Universidede Federal Fluminense.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
RELATIONAL POETICS:
REFLECTIONS ON O. PAZ,
E. GLISSANT AND WOLE SOYINKA
Eliana Lourenço de Lima Reis
[email protected]
ABSTRACT: This essay reflects upon
theories that discuss the relations among
the so-called central and peripheric
cultures, based on the writings of
Octavio Paz (Mexico), Edouard Glissant
(Martinique) and Wole Soyinka
(Nigeria), as well as of Silviano Santiago
(Brazil). It starts from a historical
perspective of the relations among
cultures since Modernism and then
discusses the growing tendency towards
a less nationalistic and more
transnational and relational approach to
cultural appropriations, as well as to the
concept of identity.
RESUMO: Este texto busca refletir
sobre teorias que focalizam as relações
entre as culturas consideradas centrais
e periféricas a partir do pensamento do
mexicano Octavio Paz, do caribenho
Edouard Glissant e do africano Wole
Soyinka, tomando também em
consideração as idéias do brasileiro
Silviano Santiago. Parte-se de uma visão
histórica das relações entre as culturas
desde o modernismo para, em seguida,
discutir a tendência em direção a uma
visão menos nacionalista, mais
transnacional e relacional das
apropriações culturais, bem como da
noção de identidade.
KEY WORDS: Hybridity. Relational Poetics. Octavio Paz. Edouard Glissant. Wole
Soyinka.
PALAVRAS-CHAVE: Hibridismo. Poética da relação. Octavio Paz. Edouard
Glissant. Wole Soyinka.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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One gain for me as I change: I learn a way of looking at the world
that is more accurate, complex, multi-layered, multi-dimensioned,
more truthful: to see the world of overlapping circles.
Minnie Bruce Pratt
The current configuration of the world system and the consciousness
of the hybridity characterizing all cultures alike have brought about new
approaches both to the issue of identity and to the relationships among the
different cultural traditions. In other words, “Third World” and postcolonial
subjects are not forced to choose between two opposing attitudes — between
acting either as native or as “mimic men”, or else, between playing the role
of the rebellious other or emulating the hegemonic cultures.
In contrast with the simplification inherent in the opposition between
“margins” and “centers”, “Third World” cultures are gradually coming to
be seen as complex and sophisticated, able to receive “First World” cultural
imports critically, to filter and mediate them before turning these imports
into hybrid cultural artifacts. Therefore, instead of an oppositional poetics,
writers have proposed and put into practice artistic projects based on the
circulation of ideas as well as “travelling theories” (SAID, 1983, p. 226-47).
In the terms of the Caribbean poet Edouard Glissant, now it is time for a
“relational poetics” (GLISSANT, 1997).
Glissant relies on the consciousness that cultures and civilizations
live in permanent contact with each other and on the possibility of
communication despite uneven power relations. The task of the writer would
then be to “experience in his sensibility and in his need of expression
everything that is going on in this field of world relations” so that these
experiences may be “expressed through him and through the values of his
own culture” (BADER, 1984, p. 84). The emphasis lies on positionality and
on the refusal to admit cultural positions (major/minor literatures, the margin/
the center) as final or static. Writing, then, takes place in the liminal space of
culture, in the continual movement between cultures and traditions; it is “a
poetics of travel”, based on continual nomadism (KAPLAN, 1990, p. 361).
In Latin America the Mexican poet Octavio Paz was one of the first
critics to counter the nationalistic approach to literature characterizing the
sixties and seventies. Despite his thorough critique of Eurocentrism, Paz
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
argues both for the creation of a Latin American identity and for the
acknowledgement of Latin America as part of a supranational cultural world.
Therefore, his locus of enunciation, as well as that of other artists and
intellectuals in “Third World” countries, is a liminal or in-between site, an
entrelugar, as the Brazilian writer and critic Silviano Santiago puts it. For
Santiago, this is the space chosen by “a new society, that of mestizos, whose
main characteristic is the realization that the notion of unity has undergone
a complete reversal of position, and got contaminated by favoring a subtle
and complex mixture between the European element and the indigenous
element” (SANTIAGO, 1979, p. 17).
The process of decolonization that followed the Second World War
gave visibility to similar societies of mestizos, composed of the inhabitants
of the former European colonies in Africa, Asia and the Caribbean, whose
appropriation of the European languages and cultures by means of the
colonial educational systems had turned them into hybrid cultural subjects.
Although the Western gaze has tended to preserve the image of the excolonials as Europe’s others, in fact the “natives” now share the Western
culture (for better or worse) and expect to assert their right to act as Europe’s
interlocutors. As their Latin American counterparts, postcolonial intellectuals
and writers also speak from a liminal space, and often attempt to negotiate a
bridge between cultures. This similar stance towards intercultural exchanges
as well as the problems faced by most “Third World” countries contribute
to the emergence of critical discourses that can be read comparatively.
Therefore, despite the differences between Latin America and postcolonial
countries in Africa, the theories of Octavio Paz and Silviano Santiago can
be related to those of the Nigerian writer Wole Soyinka, as all of them aim
at the reciprocal illumination not only of their critical stances but also of
their parallel struggle to come to terms with hegemonic cultures.
“Literatures come into existence as a response to historical realities
and, frequently, as a response against these realities”, Octavio Paz argues in
“Literatura de fundación” (“Foundation Literature”). In Latin America,
literature arises as “a response of Americans’ real reality to the utopian
reality of America”, or else, as a rejection of the cultural representation of
America as a product of the European imagination. Latin Americans must,
then, refuse the view of the continent as “a projectile aimed at the future”,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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invent an identity of their own, and reinvent their past by means of a literature
which distinguishes itself from that of Europe (1976b, p. 127). However,
this process does not entail the refusal of the Western tradition, since Paz’s
quest for a self-constituted identity relies on the view of the American
historical roots as manifold, thus encompassing not only the indigenous
cultures but also the European heritage. Yet, for most Latin American writers
and intellectuals the native cultures constitute a reality to be rediscovered,
since they are seldom part of their everyday experience. As a consequence,
the search for the “real” America is usually marked by a sense of rootlessness,
which becomes especially evident during modernism.
The modernist poets were, for Paz, the first to be seriously committed
to the creation of an autonomous literature in Latin America. However,
“they do not turn their eyes to their homeland; instead, they turn their eyes
to Paris”. According to Paz,
The first Latin American writers who were conscious of themselves and
of their own historical singularity made up a generation of exiles. (...) The
experience of these poets and writers confirms the fact that, in order to
return home, one must first risk leaving it. (...) Our rootlessness made it
possible for us to recover our portion of reality. Distance was the condition
for discovery. (PAZ, 1976b, p. 128-9)
Distance and dislocation — in geographical as well as in cultural
terms — mediated the modernists’ search for their homelands and their
imaginative recreation of America. It was from Europe that these writers
viewed America, defining it by means of what turned out to be escapist
literature: the European gaze was still at work in the reinvention of America
either as nature or as the site of vanished pre-Colombian civilizations — in
both cases, mirages of America.
A second stage soon followed: the experience of rootlessness inspired
the rediscovery of traditions which had been disregarded before — the native
and African civilizations — and their incorporation in the contemporary
arts. Nevertheless, the discourse of the modernists reveals the traces of
their cultural in-betweeness. According to Paz, “when Rubén Dario writes
Cantos de Vida y Esperanza, what we have is not an American writer who
90
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
discovers the modern spirit, but a modern spirit who discovers the American
reality” (p. 129). This modern spirit is characterized by the cosmopolitanism
of the avant-garde movements: the dislocation to Paris enables the Latin
American writers to “merge into the universal mainstream” (p. 128) in
preparation, as it were, to reinvent America.
In Brazil this process resulted in the new value ascribed to the native
“primitive” cultures and arts, brought to the fore by the artistic trends of the
beginning of the century in Europe, eventually giving rise to Oswald de
Andrade’s “technologized barbarian”. “To see with free eyes”, advises Oswald
de Andrade in his “Manifesto da poesia Pau-Brasil” (p. 330). However, the
caraiba gaze is ineluctably mediated by the European utopia and the current
idealization of “primitive” peoples.
A similar process occurred in the visit to Minas Gerais organized by
a group of modernist writers (among them Mário de Andrade, Oswald de
Andrade and Tarsila do Amaral), who had as a guest the Swiss poet Blaise
Cendras — an event whose significance Silviano Santiago discusses in “A
permanência do discurso da tradição no modernismo” (“The Permanence
of the Discourse of Tradition in Modernism”). These artists leave on a
journey in search of the Brazilian colonial past; however, they act as “modern
spirits” who discover the baroque heritage of Ouro Preto and other historic
sites. Theirs is a cosmopolitan gaze in contact with a culture that looks only
partly familiar, for it is viewed mainly as something new and original; actually,
the Brazilian modernists react as partial outsiders. One of the consequences
of this encounter with the roots of the country turns out to be Tarsila do
Amaral’s decision to return to Paris in order to learn restoration techniques.
Thus, Europe no longer represents only the place to get in touch with the
latest artistic trends; for some artists Europe becomes the source of a
knowledge that can be used in favour of the arts produced in Latin America
(SANTIAGO, 1989, p. 104-6).
“The route to Palenque or Buenos Aires always passed through
Paris. (...) Distance was the condition of discovery”, as Octavio Paz observes
(PAZ, 1976a, 129). Likewise, the route leading to the reinvention of Latin
America must include Europe. This process is enacted by Octavio Paz’s text
itself: “Literatura de fundación” was written in Paris in 1961 as a prologue
to a special issue of Lettres Nouvelles, focusing on Latin American literature
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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— a fact that calls our attention, as the place and date are recorded at the
end of the essay. In other words, Paz’s seminal discussion of Latin American
literature also resulted from an act of dislocation in which distance offered
an opportunity to recreate his homeland. Therefore, his locus of enunciation
is neither Europe nor Latin America, but in-between, an entrelugar.
Octavio Paz’s cultural location lies at the roots of his artistic project.
In “Literatura de fundación”, Paz addresses a European audience that is
being introduced to the then emerging Latin American literature. Although
he argues for a distinction between writing in Spanish in Europe and in
America, Paz does not associate the question of identity with the nationstate, for literature was supposed to disregard any geographical or political
frontiers. According to Paz, “nationalism is not only a moral aberration, but
also an aesthetic fallacy. (...) Of course artistic movements are born in this
or that country; yet, if they happen to be fertile, it will not take them long to
go beyond boundaries and to take roots in other lands” (p. 126).
Literature, then, is made up of “rotating signs”, which often come
together to form “constellations of signs”. These ideas are discussed in
“Invención, subdesarrollo, modernidad” (“Invention, Underdevelopment,
Modernity”), which presents not only Octavio Paz’s approach to the
contemporary world but also a theory of relations among cultures and
literatures:
The end of modernity is, therefore, the end of nationalism and of the
“world’s art centers” (...). All of us speak simultaneously the same tongue,
as it were, or at least the same language. (...) The distinct times and spaces
now get together in a here-and-now that is everywhere and that happens
anytime. To the diachronic view of art a synchronic view is superposed.
(...) The works of the nascent time will not be ruled by the idea of linear
succession but by the idea of combination: conjunction, dispersion, and
assembly of languages, spaces and times. Celebration and contemplation.
The art of conjugation. (p. 136-7)
Two key notions deserve special attention: the concept of
“simultaneism” and the view of art as ars combinatoria, issues that Paz
introduced in “Literatura de fundación”. He argues that America was created
as the land of the future, so that the colonists were supposed to forget their
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past on their way to the future. As a consequence, the present was disregarded.
Paz reacts to this view by refusing the linear concept of time, which should
be replaced by the ideas of “simultaneism” and “nowness” (agoridad),
encompassing both time and space. Therefore, instead of History, he believes
that we are faced with a multiplicity of simultaneous histories: “At five o’clock
p.m. in Delhi it is five a.m. in Mexico and midnight in London” (p. 136). The
world is then made of “overlapping territories, intertwined histories”, as
Edward Said puts it (1994, p. 3).
Octavio Paz proposes a re-examination of the concept of history
and, according to Silviano Santiago, “invites us to conceive a history in
which the ways of progress are plural”. Moreover, Paz invites us to restore
the value of the present, viewed as the conjunction of the three dimensions
of time. This results in what Silviano Santiago calls a “poetics of the here
and now” (1989, p. 99), which rejects the break from the past, the aesthetic
of the “make-it-new” and the utopian view of the future. The key word is
combination, which opens up the way for the “art of conjugation”, or else, the
attempt to conciliate the several temporalities (colonial, modern, postmodern)
and spaces (regional, national, international). This attitude reflects an element
that Paz considers to be one of the key characteristics of Latin-American
literature: its cosmopolitanism.
In “Poesia latinoamericana?” (“Latin American Poetry?”) Paz
discusses the “curiosity” and “cosmopolitanism” of Latin American writers,
which are supposed to indicate an open-minded approach to the literary
other. According to him, the first haikai ever published in Spanish was written
by a Mexican in 1917; moreover, Jorge Luís Borges’ Babelic library, “a private
cosmopolis”, is located neither in London nor in Paris, but right in Buenos
Aires (p. 147). Actually, this cosmopolitanism characterizes Paz’s texts
themselves: Signos em Rotação (Rotating Signs), an anthology of his essays
published in Brazil, analyses themes ranging from Spanish, Latin American,
French, Portuguese and North American literatures to Japanese poetry and
surrealist cinema.
“Literatures are wider than frontiers”, he argues; likewise, artistic
styles tend to ignore frontiers in their process of dissemination. As a
consequence, the notions of origin and identity should be seen as relative
concepts, whereas the circulation of signs is given a central role. Octavio
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Paz’s approach to translation emphasizes its power in the communication
among cultures. In his opinion, translation constitutes a “civilizing” activity,
as it “presents us with an image of the other and thus makes us realize that
we are not the world and that man means actually men” (p. 151).
Octavio Paz’s aesthetic project relies on an attempt to reconcile the
need to create a Latin American identity to the recognition of Latin America
as part of a wider cultural world. Since he works both as a critic and as a
poet, Paz’s essays provide an insider’s view of the development of Latin
American writing and of its struggle to create an autonomous identity.
Wole Soyinka’s essays on African literature perform a similar role,
as his main object of interest has been the review of the literary scene in
postcolonial Africa. Being basically a creative writer, Soyinka views the
development of contemporary African writing from within, as it were — a
perspective he shares with Paz. Also as his Latin American counterpart,
Soyinka discusses the different approaches that the issue of identity has
received in Africa and argues for a notion of Africanness that not only
eschews essentialist definitions but also takes intercultural exchanges into
consideration. Although the historical periods focused by the two authors
are quite different, the object of analysis remains the same: the aftermath of
colonialism and the creation of a new self-image and literature.
As in Latin America, the “first step” towards self-assertion in Africa
would be “to tear down the walls, to wake up what lay dormant, to clean out
consciences from their specters” (PAZ, 1976b, p. 128). During this process
of liberation from, a foundation counterliterature emerged, inspired by
movements such as Negritude and Pan-Africanism, generally based on the
binary opposition between the black and the white races as well as on the
radical rejection of European civilization. This often resulted in the
idealization of the black race and of a Golden Age which supposedly
preceded the European colonization. Although the writing produced from
this perspective was frequently marred by its binarisms, it succeeded in its
function of operating a “semantic detoxification” (MUNANGA, 1986, p.
45) of the negative characteristics attributed to the colonized peoples,
especially the black.
As in Latin America, postcolonial literatures often came into existence
as escapist literature: the reinvention of Africa or the West Indies as nature
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or as the ruins of ancient civilizations. Also as in America, “escape literature
was soon turned into exploration and return literature”, as novelists and
poets started writing “not about but from their condition” (PAZ, 1976b, p.
129). This reversal of perspectives resulted from a new consciousness:
postcolonial writers had to accept their cultural hybridity and to attempt to
reach a balance — even if precarious — between their indigenous cultures
and the cosmopolitan tradition to which they had access either by means of
the imperial educational systems or by the experience of dislocation, diaspora
or exile. These cultural subjects turned out to be what Michael Ondaatje
defines as “amphibians”: “international bastards — born in one place and
choosing to live elsewhere. Fighting to get back to or get away from our
homelands all our lives” (Qtd. in IYER, 1993, p. 46). These are the “translated
men” to which Salman Rushdie refers, who offer “stereoscopic vision (...) in
place of whole sight” (RUSHDIE, 1996, p. 900). Frequently characterized
by “their hyphenated status”, usually inhabiting (at least) “two half-homes”,
postcolonial writers address audiences that turn out to be as hybrid as they
are (IYER, 1993, p. 46-48).
The earlier phases of postcolonial literatures relied on a binary view
of the world: “us” versus “them”, the “center” versus the “margins”, a
“Western” identity versus a “non-Western” identity, the West versus the
other. This attitude resulted in the creation of an oppositional consciousness
leading to the assertion of a radical difference and to the idea that the margins/
the other should defiantly “write back to the centre” (RUSHDIE, 1982).
Actually, the antagonistic relationship to the dominant culture on the part of
the nascent literatures was expected not only by the newly-established nations
but also (and especially) by the former empires. Both European and nonEuropean audiences considered it “obvious” that “new literatures in new
nations should be anticolonial and nationalist” (APPIAH, 1992, p. 149).
Thus, when postcolonial literatures reinvent the “Third World” as other, in
fact they are responding to the needs and interests of the “First World”.
When the “margins” want to stress their marginal state by speaking as others
and by resorting mainly to nativism, they usually claim a new poetics of the
exotic, once more confirming the European image — Chinweizu’s Towards
the decolonization of the African literature constitutes one of the best examples
of this aesthetic project.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Wole Soyinka’s essays of the sixties and early seventies provide an
uncompromising critique of the excesses of nativism, especially what he
calls the “anthropological novel” and the “narcissism” involved in the
“indifferent self-acceptance” of an idealized view of the African past (1988,
p. 7-14). Although Soyinka’s aesthetic project is mainly based on his native
tradition, his approach to cultural practices aims at building a bridge between
cultures. Thus, a “poetics of travel” can be observed in many of his writings,
especially in his re-elaboration of African cosmology, developed in his essays
“Morality and Aesthetics in the Ritual Archetype” and “The Fourth Stage”
(1976, p. 1-36, p. 140-60). Born in Nigeria into a Yoruba family, Soyinka
received his formal education in schools supported by the British Empire as
well as in England. His constant dislocations have given him the opportunity
to get in touch with different cultures and artistic traditions. Actually, Soyinka’s
writings are affiliated with both his native tradition and the cosmopolitan
culture; he is a cultural hybrid, whose locus of enunciation is the liminal
space, the crossroads between different spaces and temporalities. This cultural
location is in fact enacted in his discussion of the African worldview, based
on the function and characteristics of the orisa Ogun, god of the road, of
war and of creativity, in permanent movement between the worlds making
up the Yoruba cosmology.
According to the Yoruba mythology, the gods once lived on earth
with men; however, either sin or default provoked an estrangement and the
gods withdrew to their own world. The long isolation from the world of the
living created an impassable barrier, a thick undergrowth of matter and
non-matter. The only deity who could destroy this barrier was Ogun: by
using the first instrument, which he had forged from iron ore, Ogun was
able to clear up “the primordial jungle” and to cross the abyss, soon followed
by the other gods. This heroic feat led the other deities to invite Ogun to
rule over them, but he refused. While inspecting the world with the other
gods, Ogun helped the town of Ire to fight an enemy; he was again offered
the crown, which he declined, and retired to the mountains to live by himself,
hunting and farming. Although Ogun showed himself to the inhabitants of
Ire in his leather war-kit smeared in blood, they still insisted that he should
be their leader. Ogun finally consented and was crowned king. But one day,
during a battle, the trickster Esu left a gourd of palm wine for Ogun, who
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
drank all of it. The god then became more and more violent, and killed not
only his enemies but also his friends. As a form of punishment, Ogun must
undertake his original voyage annually, thus ensuring permanent
communication between the gods and men (SOYINKA, 1976, p. 27-30).
The notion of cyclic time, present in Ogun’s periodic journeys, is
reflected by his emblem, the self-devouring snake. Both the god and his
symbol stand for the eternal condemnation to the doom of repetition, the
continual cycle of creation and destruction as well as the recurrence of the
human patterns of behavior (p. 54). Ogun’s emblem as well the emphasis on
eternal recurrence are charged with a certain sense of inescapable fatality
inherent in the idea of a circle: the snake bites its own tail and the whole
cycle starts once more. Although Soyinka argues that this does not mean the
return of the same, but the return with a difference, in fact he feels that, to be
more akin to his aesthetic and theoretical purposes, he needs to develop the
metaphor into something similar, yet freer. This is why he chooses a Western
equivalent to Ogun’s snake as an image of the Yoruba thought system as
well as of his own: the Möbius Strip.
Usually represented by the Greek sign for infinite (∞), the Möbius
Strip becomes Wole Soyinka’s personal reinterpretation of the myth of Ogun
and of a holistic view of the universe. Since the Strip indicates a sequence
with neither beginning nor end, hence with no fixed center, it turns out to be
a perfect metaphor of decenterment and of non-hierarchical relationships.
Being an image of unity in diversity, the Möbius Strip stands for what Soyinka
calls the African “consciousness of cosmic entanglement” (p. 26). In this
case, it constitutes a keen insight into the interdependence of the three realms
of existence in the Yoruba cosmology as well as a view of this world as a
web of relationships.
In these lines of his long poem “Idanre” (SOYINKA, 1967, p. 83),
Soyinka describes the Möbius Strip:
multiform
Evolution of the self-devouring snake to spatials
New in symbol, banked loop of the “Möbius Strip”
And interlock of re-creative rings, one surface
Yet full of angles, uni-plane, yet sensuous with
Complexities of mind and motion.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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The intricacy of the image seems to have led Soyinka to define the
Möbius Strip in a note to the poem. According to him, the Strip is a “mathemagical ring, infinite in self-recreation into independent but linked rings and
therefore the freest conceivable (to me) symbol of human or divine
relationships”. And Soyinka adds:
A symbol of optimism (...) as it gives the illusion of a “kink” in the circle
and a possible centrifugal escape from the eternal cycle of karmas that
has become the evil history of man. Only an illusion but a poetic one, for
the Möbius strip is a very simple figure of aesthetic and scientific truths
and contradictions. In this sense, it is the symbol of Ogun in particular,
an evolution from the tail-devouring snake which he sometimes hangs
around his neck and symbolizes the doom of repetition. (p. 87-88n)
Instead of the idea of inescapable repetition suggested by the selfdevouring snake, its Western counterpart has a much larger scope, since it
gives relevance to movement, the possibility of change and the free intercourse
between independent yet linked phenomena and beings. In African traditional
societies time is a bi-dimensional phenomenon, composed of a long past, a
present, and virtually no future. The Western linear time concept, graphically
represented by an arrow and characterized by an indefinite past, the present,
and an infinite future, is totally unfamiliar to the African thought system,
which practically ignores the future: since future events have not happened
yet, they are not supposed to constitute time. Accordding to African culture,
events which are sure to occur and those integrating the inevitable natural
rhythms make up potential, but not real time; moreover, it is the present that is
a value in itself.
Contrary to the Western conception, in traditional societies time is
not seen as change and succession, but as a continuous flow of a permanent
present encompassing all times. According to Soyinka’s view of Yoruba
cosmology, there are three realms of existence, the world of the living, of
the dead and of the yet unborn, which are not considered separate entities,
since the Yoruba thought system “denies periodicity to the existences of the
dead, the living and the unborn” (1976, p. 10). The gods are seen as “a
product of the conscious creativity of man” (SOYINKA, 1976, p. 2): “The
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
deities exist in the same relation with humanity as these multiple worlds and
are an expression of its cyclic nature”. Likewise, the expression “the child is
father of the man” is not only an image of development, but “a proverb of
human continuity which is not uni-directional”. Thus, not only are the three
areas of existence equally old and important, but also they coexist. This
affects the Yoruba social principles: the multiple existences are perceived as
so absolutely intertwined that an elderly man may refer to a child as “Baba”
(elder, or father) if the circumstances of his actual life look retrospective (p. 11).
The close relationship uniting the three worlds as well as their coexistence prevents the creation of any notion of center. Contrary to the antiterrestrialism characterizing both Buddhism and Judaeo-Christianity, the three
realms are not seen as separate entities. In fact, the African holistic view of
the universe is based on the idea of cosmic totality. Man is supposed to
derive his essence from the Great Ancestor, the source of life, and to
compound with this essence the totality of a universal consciousness which
includes all things. Life and death are but one indistinguishable continuum:
man partakes of the divine essence, therefore he has a certain spirituality
and creative power as well as the possibility of withdrawing into the spirit
world in order to function as a force for good over the living. The dead, the
living and the unborn make up the eternal cyclic order; blood, the most
meaningful force for the living, unites them to the dead, so that no family
ever diminishes: the ancestors, turned into minor deities, are bound by blood
with their descendants and act as their guides and protectors. In other words,
a communion, an active line of communication is kept open between the
living and the dead: the ceremony of libation (invocation) brings the dead,
the living and the unborn together and ritually renews the bonds uniting all
beings (AWOONOR, 1975, p. 49-51).
This philosophical construct depends on a ritual view of time, as
rituals create an interval when the past is momentarily negated, suspended
or annulled and the future has not yet begun. It is this suspension of time
that makes it possible to bring together the past and the future in a long
present. As Octavio Paz puts it:
Time stops being succession and becomes again what it used to be and
what it is originally: a present where past and future are, at last, reconciled.
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[...] The festival [fiesta] (...) reproduces an event: it splits the chronometrical
time in two so that, during the span of some brief incommensurate hours,
the eternal present is restored. (1976a, p. 46 e189)
In Yoruba cosmology, it is up to Ogun to open up the roads of the
universe and to establish a continuous mediation between the three levels of
existence by bridging the “abyss” separating one world from the other. Then,
the “gulf of transition” becomes Ogun’s pathway, a sign of communication,
interdependence and complementariness, which Soyinka translates into the
Möbius Strip. Instead of the idea of repetition that cannot be escaped,
suggested by Ogun’s snake, the Möbius Strip throws attention onto
movement, the possibility of change, and the relationship among independent,
yet interconnected, phenomena and beings. This makes the Strip an adequate
metaphor not only for the contemporary cultural subject but also for Wole
Soyinka’s approach to literature and tradition. The Möbius Strip may be seen
as a metaphor for the contemporary concept of self — actually Jacques
Lacan has used this image to refer to the symbolic order, which leads man to
an endless process of substitution of signs. Determined by the unconscious
— as Lacan puts it — or lost within language — according to Foucault and
Derrida — man is no more considered the center of the universe. The self
is also the other, therefore identity and subjectivity can no longer be related
to unity and coherence. Instead, identity and subjectivity have come to be
seen only as a matrix of subject positions that can be inconsistent or even
contradictory. In fact, the subject is in a permanent process of construction
and change due to the vast number of positions from which it perceives
itself and its relations with reality. Identity, then, can only exist in theoretical
terms, for it is something to be permanently redone or reconstructed.
Like the Möbius Strip, the subject slips from one subject position to
another in a centerless continuum; moreover, the two sides of the Strip
show themselves like the speaking I and the conscious I: there is no way to
tell the right side from the reverse side of the Strip, as there is no way to
distinguish clearly between the two parts of the self. Likewise, the cultural
subject runs along the loops of the Strip, presenting itself either as self or as
other. As Paz observes, “Like the Möbius Strip, there is neither outside nor
inside; alterity is not out there, but in here: alterity is nothing but ourselves”
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(PAZ, 1976a, p. 239). As a consequence, the other will certainly emerge as a
constitutive element of identity, for identity depends on intersubjective
relationships, or else, on a process of “trans-subjectivity”.
In personal terms, we can no longer view the subject as individual
(in-divisus, etymologically); likewise, if identity necessarily includes alterity, it
is impossible to conceive of a national / ethnic / racial identity as unity, but
as unity despite diversity. This will entail the acknowledgment of the hybrid
aspect of both peoples and cultures. As Homi Bhabha points out in
“DissemiNation”, the concept of identity we should have in view now is
what he calls the “performative” notion, which must take into consideration
the ambivalence of the nation as a discursive strategy. What Bhabha suggests
is a “liminal” form of space and time, “the ‘double and split’ time of national
representation”, which speaks from the margins, “in-between” through the
“gap” or “emptiness” of the signifier that punctuates language difference.
The result is a double-writing or dissemi-nation, a space internally marked
by cultural difference, the heterogeneous histories in conflict with each other
and tense cultural places (BHABHA, 1990, p. 295-9).
The end of colonialism contributed to intensify the tendency towards
the dislocation and dissemination of peoples and cultures. In Culture and
Imperialism, the Palestinian-American critic Edward Said draws attention to
the fact that the European expansionist project initiated an irreversible process
of globalization, which brought to the fore the interdependence between
the histories of the empires and of the colonies, between the European and
the non-European, the “centers” and the “peripheries”. According to Said,
“partly because of empire, all cultures are involved in one another; none is
single and pure, all are hybrid, heterogeneous, extraordinarily differentiated,
and unmonolithic” (1994, p. xxv).
This configuration of the world system prevents the creation of
cultural identities based on essences, as identities exist as “contrapuntal
ensembles”: identities can only exist by means of oppositions. The Greeks
could only view themselves as Greek when set in opposition to the barbarians;
likewise, Europeans can only define themselves in opposition to Africans,
Asians, Latin Americans, and others. Furthermore, all these identities are
based on equally hybrid cultures, all of them resulting from mutual
borrowings, appropriations, common experiences, in short, from
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101
interdependence (SAID, 1994, p. 217). The consequence is the existence of
a multipolarity founded on reciprocal influences and the dissemination of
knowledge, “the interdependence of various histories on one another, and
the necessary interaction of contemporary societies with one another” (p. 38).
Since contemporary nations are ethnically and culturally hybrid, the
artists living in these same nations can not help being like them. The culturally
hybrid writer must open himself up to the multiple cultural worlds he is
faced with; in this sense, the writer works from a double perspective, at the
same time ethnic/national and inter-national. Actually, his voice comes at
the same time from his center and from the cultural margins, as well as from
the several times articulating in the present time. His narrative position is
among subjects, cultures and nations/groups. If one must now face a
transnational or inter-national culture, literature and culture can only be seen
as a “net of relationships”, where signs circulate both temporally and spatially,
as if in the loops of the Möbius Strip. The consequence are, first, a creative
dialogue between the present and the past — in fact, past, present and future
are no longer considered values in themselves — and, second, the
acknowledgment that there is no longer a privileged space (either a city or a
country) to be regarded as the center.
The liminal location of culture, in-between spaces and times, makes
it necessary for the writer to speak from “the space of transition”. This is
why Soyinka has chosen Ogun not only as the paradigmatic African deity
and role model, but also as the patron of the African writer. Like Ogun,
Soyinka presents himself as the subject who moves along the Möebius Strip,
showing several perceptions of the world and multiple faces — at the same
time Yoruba, African and cosmopolitan (literally, citizen of the world). Like
Ogun in the liminal space, “the gulf of transition”, Soyinka commutes
between different traditions and temporalities, in an attempt to build a bridge
joining multiple universes. Also like Ogun, Wole Soyinka’s location is the
passage, a liminal or transitional form of space and time, the mediation
between several cultural worlds. This turns him into a “border intellectual”,
someone able to act as a shuttle between social and cultural locations
(JANMOHAMED, 1992, p. 114). Actually, the term “border intellectual”
can be used to define not only Soyinka but also the other writers whose
“relational poetics” we have discussed: Octavio Paz, Silviano Santiago and
102
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Edouard Glissant. All of them share the view of literature as a vast system
of cultural exchanges. This attitude contributes to the relative value attributed
to notions such as origin, originality and property as well as to the emphasis
given to the exchange of knowledge and to communication — though not
necessarily to an idealist concept of dialogism.
The type of communication proposed by these “relational poetics”
cannot be associated with an irenic approach to communication, but, instead,
with an agonistic view, based on the idea that the word is not always
cooperative and that communication must take place despite distance and
dislocation. Thus, communication may exist even when faced with absence
and the lack of reciprocity:
If we no longer think of the relationships between cultures and their
adherents as perfectly contiguous, totally synchronous, wholly
correspondent, and if we think of cultures as permeable and, on the
whole, defensive bondaries between polities, a more promising situation
appears. (...) Cultures may then be represented as zones of control or of
abandonment, of recollection and of forgetting, of force or of
dependence, of exclusiveness or of sharing, all taking place in the global
history that is our element. Exile, immigration, and the crossing of
boundaries are experiences that can therefore provide us with new narrative
forms or, in John Berger’s phrase, with other ways of telling. (SAID, 1989,
p. 225)
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Artigo recebido em 03.03.2008.
Artigo aceito em 14.06.2008.
Eliana Lourenço de Lima Reis
Pós-doutora em Literatura Comparada pela Universidade de Duke, EUA.
Doutora em Letras – Estudos Literários, Literatura Comparada pela UFMG.
Professora Associada de Literaturas em Língua Inglesa na Faculdade de Letras,
UFMG.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
OPERAÇÕES ESTÉTICAS
E POLÍTICAS EM MÁRCIO SOUZA
André Soares Vieira
[email protected]
RESUMO: Este trabalho objetiva
mapear algumas das categorias
problematizadas no romance Operação
Silêncio, de Márcio Souza, especialmente
no que respeita à hibridação dos
gêneros em um processo que remete à
montagem literária. Ao fragmentar a
narrativa, justapondo elementos
oriundos de gêneros discursivos
diversos (ensaio, crítica cultural,
romance e roteiro cinematográfico), o
texto de Souza apresenta-se como um
mosaico de linguagens imbricadas que
responde ao contexto social e político
de sua época.
ABSTRACT: This article aims to
analyze some of the categories
highlighted in Márcio Souza’s novel
Operação Silêncio, especially in what it
respects to the collage/assembly
technique in a process of literary
montage. When breaking up the
narrative, juxtaposing deriving elements
of different discursive orders (essay,
cultural criticism, novel and
cinematographic script), the text by
Souza is presented as a mosaic of
multiple languages that answers to the
social and historical context of its time.
PALAVRAS-CHAVE: Montagem literária. Gêneros. Hibridação. Operação silêncio.
KEY WORDS: Literary montage. Genres. Hybridism. Operação silêncio.
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Quando uma geração é impedida de experimentar seus caminhos,
quando é impedida de fazer um filme, de escrever um livro, se
põe a falar da realização do filme e do escrever o livro, e tornase uma geração tagarela.
Márcio Souza
Boa parte da ficção brasileira produzida a partir do golpe militar de
1964 caracteriza-se pelo uso de técnicas de montagem e de desmontagem
do texto literário e está associada a uma forma de contestação do status quo.
Percebe-se que o uso das técnicas de montagem normalmente esteve ligado
à fragmentação e ao jogo propiciado pela dispersão dos elementos da narrativa
no intuito de se romper com a ordem linear do discurso. Neste trabalho,
analisaremos o modo como um romance do escritor brasileiro Márcio Souza,
Operação Silêncio, de 1979, opera com tais categorias ao problematizar de
forma complexa as relações entre o cinema e a literatura como possibilidade
de resposta a um momento de exceção social e política.
Procedimento técnico desenvolvido como etapa essencial de
produção cinematográfica, a montagem diz respeito, grosso modo, à organização
dos planos de um filme em termos de ordem e de duração. Enquanto recurso
capaz de traduzir a fragmentação/justaposição de gêneros distintos no seio
da narrativa moderna e contemporânea, a montagem foi paulatinamente
assimilada, desenvolvida e desconstruída por escritores que nela vislumbraram
a possibilidade de uma escritura híbrida. Nesse sentido, a técnica da montagem
aproximar-se-ia da colagem como procedimento de composição intertextual,
favorecendo uma escritura de caráter híbrido ao incorporar fragmentos de
várias instâncias discursivas, de contextos literários e não-literários. O caráter
móvel da montagem permitiu a diversos autores um uso especializado da
mesma, desde a fase inicial do cinema, seja por intermédio da justaposição
de elementos díspares ou pela fragmentação espaço-temporal do romance.
Para Serguei Eisenstein, o cinema é a montagem. Nessa perspectiva,
a linguagem do cinema se aproxima dos novos experimentos com a linguagem
literária já em voga nas duas primeiras décadas do século XX. Conforme
sublinhou Haroldo de Campos (s/d), a montagem eisensteiniana seria vista
como uma sucessão de imagens fragmentárias ordenadas, de cuja seqüência
ou colisão surgiria uma nova imagem maior do que as imagens separadas ou
diferente delas. Para as vanguardas históricas do início do século XX, a
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montagem caracterizou-se como forma de articular signos, sentenças e
seqüências na fragmentação e na simultaneidade, justapondo e relacionando
elementos heterogêneos sem ligação direta entre eles. Na literatura, o uso de
formas da montagem vem revelar um processo operador de fragmentos que
se apóia no corte e faz fluir múltiplas direções significantes (em James Joyce, por
exemplo). De certo modo, remete ao padrão de montagem de Eisenstein.1
A utilização de princípios da montagem cinematográfica na narrativa
brasileira tem em Oswald de Andrade um de seus precursores. Ao optar por
uma escrita telegráfica cuja articulação entre os elementos compositivos se
dá por meio de pausas e não por conexão, Oswald rompe com a antiga
retórica, concebendo uma sintaxe despojada, fragmentada e telegráfica,
acentuada pela técnica do corte. Nesse sentido, Márcio Souza pode ser
considerado um dos maiores herdeiros da estética fragmentária de Oswald
de Andrade, caracterizada pela descontinuidade cênica e pela busca do
simultaneísmo das ações. Já em seu primeiro romance, Galvez, Imperador do
Acre, de 1976, Souza faz uso de uma linguagem telegráfica calcada em
pequenos quadros que remetem a cenas ou tomadas de um filme. O caráter
fragmentário do romance se aproxima, com efeito, das técnicas oswaldianas,
e muitos críticos já apontaram as similitudes entre Galvez e Serafim PonteGrande e Memórias Sentimentais de João Miramar.
No entanto, é com Operação Silêncio, de 1979, que Márcio Souza leva
ao paroxismo suas preocupações formais. Se a região amazônica serve de
palco para Galvez, Imperador do Acre e Mad Maria, agora é a vez da cidade de
São Paulo no ano de 1968, quando o autor era estudante da antiga Faculdade
de Filosofia da USP. A complexidade do romance advém de sua fragmentação
espaço-temporal, cujo único fio condutor é a figura de seu protagonista, o
cineasta Paulo Conti.
Operação Silêncio focaliza o cinema em sua relação com a política. O
Cinema Novo é o centro das atenções de Conti. Em suas discussões, o
cineasta “se indaga sobre a criação de filmes que criticam o capitalismo, em
meio a modos de produção capitalistas. Ele critica o Cinema Novo, por ter
se apoiado na exploração da mais valia” (JOHNSON, 2005, p. 128-129). O
romance discute ainda a relação entre a arte, sobretudo o cinema, e a revolução,
o papel social do escritor e do cineasta no auge do regime militar e a
necessidade de diminuir a distância entre o artista e sua época.
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A fim de discutir todos esses elementos da cultura nacional, Operação
Silêncio se apresenta como uma obra híbrida, misto de romance, ensaio, crítica
cultural e roteiro cinematográfico. A dedicatória do romance exemplifica
com bom humor a relação com o cinema: “À Ida, em 24 fotogramas por
segundo”. A multiplicidade de discursos e gêneros justapostos de maneira
fragmentária se traduz por cortes no tempo e no espaço diegéticos, alternando
diálogos entre o protagonista e as demais personagens com trechos do roteiro
de um filme histórico escrito por Conti: os dois planos narrativos se imbricam
sem qualquer divisão. A obra também evidencia as reflexões do protagonista,
espécie de duplo do autor enquanto crítico da cultura nacional, focalizando
de forma ensaística o papel e a responsabilidade dos meios da indústria
cultural, em particular o cinema, sua utilização política, a figura emblemática
de Glauber Rocha. O romance divide-se em duas partes: O sobrevivente Paulo
Conti e O rio de sangue.
Ao longo da primeira parte, apresentam-se múltiplos fragmentos,
alguns ocupando apenas uma linha e contendo anotações breves precedidas
por subtítulos que enfocam frases da China maoísta da era da Revolução
Cultural: “O Inimigo é Induzido a Cometer Erros: Beirando os trinta anos,
estávamos muito longe de aceitar uma confissão de impotência”(SOUZA,
1985, p. 14).
Percorrendo as ruas de São Paulo, a caminho do apartamento de
Melusine, a “Embaixatriz”, produtora de seu próximo filme, Conti relembra
as conversas com amigos, sobretudo com PPP, crítico de cinema engajado na
luta armada contra a ditadura. Em um estilo extremamente cinematográfico, a
narrativa se faz pela alternância dos planos ficcionais, entre a crítica ensaística,
as reflexões acerca da literatura, do cinema, do teatro e do tropicalismo e os
eventos diegéticos.
Nossa Tarefa Presente É Organizar o Aparato do Estado Popular
Chinês:
O impacto da criatividade oswaldiana não podia se confundir com
indignação; Caetano Veloso trazia a guitarra elétrica para a cena e
estilhaçava; os concretistas na base teórica do tropicalismo; os baianos na
paulicéia mostrando o jogo e destruindo mitos (SOUZA, 1985, p. 99).
110
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O processo de montagem se apresenta de maneira caótica, intercalando e
unindo elementos de espaço e tempo distintos como em uma colagem de
cenas. Trata-se aqui do uso da montagem paralela, recurso característico da
linguagem do cinema, responsável pela espacialização do tempo e pela
temporalização do espaço na sintaxe fílmica. Os diálogos entre a Embaixatriz
e o general Braylly são intercalados às conversas de Conti com seus companheiros,
separados temporal e espacialmente:
– Braylly, sempre tão conservado! – disse a Embaixatriz retirando a mão
que acabava de ser beijada pelo general [...]
– O pessoal todo fodido, Paulo – diz Abelardo, os óculos sujos de poeira.
– Não dava para fazer outra coisa, depois da derrota era mais sensato
reconhecer as causas. [...]
– E você? – diz o General Braylly. – A mais bela Embaixatriz em BadenBaden. Ainda conserva a mesma pele de romã, os mesmos tornozelos
felinos.
– Paulo está lendo um livro de Cony – disse Patrícia como se tivesse
fazendo uma denúncia.
– Pele romã, tornozelos felinos? – disse a Embaixatriz. – Deixa de
bobagens, Braylly.
– É Pessach: a travessia, conhece? – Abelardo não conhecia e pegou o livro
olhando para Patrícia que está deitada na cama irritada [...]
– Eu estou falando a verdade, querida – disse o General Braylly. (SOUZA,
1985, p. 138)
Se a primeira parte do romance aponta claramente para uma
linguagem fragmentada em sua estruturação sincopada e facetada em planos
díspares, montados e desmontados em uma seqüência não-linear, a segunda
parte mostra uma estrutura ainda mais complexa. O estilhaçamento da
narrativa que em O sobrevivente Paulo Conti corta, interpenetra e desdobra a
sintaxe literária na sucessão dos fragmentos dá lugar a uma escritura em
bloco, compacta em sua apresentação. No entanto, estamos longe do estilo
linear de construção narrativa, pois logo se percebe o largo uso que faz o
autor de longas seqüências sem pontuação ou marcação de parágrafos,
intercaladas por diálogos e diferentes termos da técnica cinematográfica
(travelling, off, plano americano, contra-campo, contre-plongé, câmera lenta, etc.)
quando da inserção do roteiro concebido por Paulo Conti.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Plano de conjunto das icamiabas que atravessam uma viela. Um soldado
espanhol, embriagado, agarra uma das guerreiras. Lutam. A outra abre a
garganta do soldado com sua adaga. Plano de conjunto das duas icamiabas
na porta do Corincancha, entram. Sérgio: a organização de você era um
grupelho, companheiro. Paulo: olha aqui, amigo, esta não é a hora para
esse tipo de discussão. Interior do Corincancha, noite. Primeiro plano de
uma das icamiabas [...] Plano geral das duas icamiabas que entram na sala
de grandes celebrações [...] Rodolfo está caído no chão e agoniza. Um
policial da equipe de captura do DOI-CODI abaixa-se para ver Rodolfo
de perto [...] Plano de conjunto das icamiabas que se aproximam de uma
parede em ruínas, onde havia um nicho com imagens sagradas. Travelling
lento em direção ao nicho quase demolido [...] Rodolfo recebeu uma rajada
de metralhadora que quase o cortou pelo meio. (SOUZA, 1985, p. 152)
O filme de Conti, chamado Rio de Sangue, trataria do massacre dos
Incas pelos espanhóis. Tornam-se evidentes os paralelos entre a violência
perpetrada ao povo inca pelos conquistadores e a violência imposta pela
ditadura militar à população brasileira. Rio de Sangue igualmente constitui o
título da segunda parte de Operação Silêncio. Aqui o imbricamento das partes
opera de forma direta, sem marcações ou qualquer outra forma de divisão.
O início da segunda parte apresenta-se como a continuação direta da última
frase da primeira, quando Conti finalmente chega ao apartamento da
Embaixatriz e lá encontra Maria, sua empregada e protegida:
de um só fôlego porque ao chegar encontrou a porta aberta por onde foi
entrando e viu ela de costas sem nada perceber do que estava acontecendo
enquanto ele se aproximava com os passos abafados pelo ruído do aspirador
de pó até que finalmente ele chegou perto abraçando-a pelas costas
apertando-a de uma maneira que se poderia chamar de lúbrica enquanto
cheirava-lhe o pescoço suado e furtivamente acariciava-lhe os seios por
tantas vezes quanto lhe veio à cabeça acariciar já que em 1536 Manco
Capac Imperador dos Incas tentara libertar seu povo dos invasores
espanhóis e foi violentamente reprimido pelas hordas de Francisco Pizarro
e foi obrigado a capitular não se sabendo ao certo o que aconteceu a este
libertador porque mito e realidade se confundem na História do Peru e
112
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
este filme é um filme mítico e real dedicado à memória de todos os incas.
(SOUZA, 1985, p. 111)
Ao serem enxertadas passagens do roteiro cinematográfico no texto
do romance, o leitor é colocado entre a história da conquista do Peru e a
história de Paulo Conti em seus dramas frente ao poder institucional, as
dificuldades que enfrenta para realizar seu filme e a violência da repressão
política instaurada no Brasil. O caráter disjuntivo da obra de Souza vem
refletir a situação dividida do protagonista-cineasta em um país igualmente
dividido, do artista hesitante entre a ação política e a luta através da arte. A
fragmentação do texto, justapondo diferentes discursos por intermédio da
colagem de elementos oriundos da crítica, do ensaio, do romance e do filme,
tende a criar um espaço antiilusionista ao serem realçadas as descontinuidades
e disjunções tão caras à estética eisenteiniana de montagem. Trata-se, com
efeito, de uma escritura híbrida, descontínua e não-linear caracterizada pelo
simultaneísmo das ações que envolve pessoas diferentes em tempos e espaços
também distintos e apontando para uma forma lúdica de montagem e
desmontagem do texto literário. Em Operação Silêncio, percebe-se a atualização
de elementos da montagem cinematográfica através da inserção do cinema
na técnica narrativa e na própria ficção, o que vem comprovar o espaço
privilegiado que o gênero romance pode ocupar no âmbito dos experimentos
com a linguagem.
Segundo Mikhail Bakhtin (1993), o romance admite introduzir em
sua composição gêneros diversos, literários ou extraliterários, mantendo-se
normalmente conservadas sua elasticidade estrutural, sua autonomia, bem
como sua originalidade lingüística e estilística. Nesse sentido, alguns gêneros
especiais chegam a determinar a estrutura do conjunto, criando variantes
particulares do gênero romanesco: a confissão, o relato de viagens, a biografia,
as cartas, entre outros. Todos eles podem não apenas ser introduzidos no
romance enquanto elemento estrutural básico, mas também determinar a
forma do romance como um todo. É o caso do romance-confissão, do
romance-diário, do romance epistolar, etc. A essas categorias apontadas por
Bakhtin, poderíamos acrescentar os cine-romances de Alain Robbe-Grillet e
de Marguerite Duras, bem como o romance-teatro de Sérgio Sant’Anna (A
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Tragédia Brasileira) e o romance-ensaio-roteiro de Márcio Souza, Operação
Silêncio.
Para Janet Paterson (2001), o entrecruzamento genérico deu lugar a
uma multiplicidade de representações textuais, abrindo novos campos de
criação literária, sendo a intertextualidade uma de suas numerosas práticas.
Se, por um lado, tal mistura de discursos e de gêneros atinge seu ponto
culminante e criativo ao longo das três ultimas décadas do século XX, a
prática de hibridação literária não é um fenômeno recente, encontrando seus
antecedentes em escritores como Defoe, Laclos, Sterne, entre vários outros.
Tampouco são novos os discursos críticos e teóricos acerca do problema,
como o demonstram os trabalhos de Bakhtin sobre a interação dos gêneros
no romance. Para o teórico russo, os gêneros intercalados representam uma
das formas mais importantes de introdução e organização do plurilingüismo
no romance (BAKHTIN, 1993, p. 127).
Assim, uma vez que a prosa romanesca é estranha à idéia de uma
linguagem única, indiscutível e sem reservas, a consciência da prosa deve
orquestrar suas próprias intenções semânticas. “É apenas numa das muitas
linguagens do plurilingüismo que essa consciência se sente comprimida, um
único timbre lingüístico não lhe basta” (BAKHTIN, 1993, p. 127). O emprego
de gêneros enquadrados, como o diário, o relato de viagens, a correspondência
ou a biografia permitiu, portanto, a elasticidade do romance, ampliando os
horizontes literário e lingüístico e ajudando a literatura na conquista de novos
mundos de concepções verbais, mundos esses já percebidos e parcialmente
conquistados em esferas extraliterárias da vida lingüística.
A hibridação não é, portanto, um fenômeno recente. No entanto, tal
prática assumiu novos contornos a partir da introdução do conceito de
montagem cinematográfica, no início do século XX, quando da redefinição
de procedimentos de inserção de formas que fracionam a estrutura linear do
discurso. Além disso, conforme Paterson (2001), a fragmentação dos gêneros,
representada nos híbridos romanescos, estaria diretamente ligada à poética
pós-moderna enquanto reivindicação da multiplicidade e da heterogeneidade
próprias ao pós-modernismo. Note-se ainda que as práticas híbridas
perpassam os mais diversos domínios artísticos, como as artes visuais, a
arquitetura, o cinema, bem como os campos epistemológicos:
114
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Ce qui rend cette pratique particulièrement significative de nos jours, ce qui sollicite
notre attention à son égard, ce qui nous convie à en examiner les formes et le sens, c’est
la vitalité et le foissonement de l’hybride dans la fiction contemporaine. Tout se passe
comme si le mélange des genres avait produit, depuis à peu près les années soixante, une
nouvelle effervescence créatrice dans de nombreux pays. On ne peut guère parler de
genre marginal, tant l’hybride s’est imposé à une échelle internationale. (PATERSON,
2001, p. 83)2
Em Operação Silêncio, o emprego de procedimentos advindos da
montagem e desmontagem do discurso, bem como a hibridação dos gêneros
representam uma prática transgressiva que produz uma ruptura com relação
às normas do romance em sua forma tradicional. Com efeito, ao pensarmos
em uma concepção de gênero literário normativo, o texto de Márcio Souza
renuncia aos princípios de homogeneidade, de unidade totalizante e de
códigos do conceito de gênero. Entretanto, ao fragmentar a narrativa,
montando e desmontando o discurso e inserindo a crítica cultural e a
linguagem cinematográfica do roteiro no âmbito da própria diegese, Márcio
Souza corrobora a tese bakhtiniana do híbrido como mecanismo capaz de
ajudar a literatura na conquista de novos mundos de concepção verbal. No
caso especifico de Operação Silêncio, trata-se da conquista de um mundo que
represente de maneira original e criativa o ambiente social e político de uma
geração. Nesse sentido, entre dissolução do literário e sua renovação, haveria
não uma oposição, mas «un point de rencontre selon lequel l’éclatement des genres
constituerait à la fois la désintégration d’une conception normative du roman et l’avènement
d’une autre forme d’écriture » (PATERSON, 2001, p. 87).3
Longe de “dissolver o literário”, ou de ilustrar a tese de declínio do
romance, tornado ininteligível ou incoerente, textos como o de Márcio Souza
apontam, através de suas estruturas heterogêneas e pela resistência em
diferenciar o literário do não-literário ou do extraliterário, para a vontade de
renovação dos procedimentos romanescos. O híbrido apresenta-se, assim,
como uma forma especial de experimentação que investe o texto de sentido
ao invés de esvaziá-lo. Em Operação Silêncio, o caráter fragmentário da obra, a
relativa autonomia dos “capítulos” da primeira parte e o emprego de práticas
de montagem que justapõem, cortam e recortam fragmentos são decisivos
para a compreensão do significado do texto bem como de sua temática
política.
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115
Conforme percebeu Randal Johnson (2005, p. 131), “Operação Silêncio
coloca a situação do cinema brasileiro num contexto histórico mais amplo,
discutindo o papel e a responsabilidade de intelectuais frente à realidade do
subdesenvolvimento”. Nessa perspectiva de análise, para Johnson (2005), o
romance de Márcio Souza problematiza o debate sobre as complexas relações
entre literatura, cinema e política durante o período da ditadura, dissecando
de forma aguda as perplexidades e dilemas de toda uma geração que viveu
a ambiência opressora do regime militar brasileiro.
A rapidez com que ocorrem os acontecimentos estéticos, políticos e
sociais da época, marcada pela contracultura e pelos movimentos de protesto
ao regime militar, contamina o discurso do narrador que não se permite
ordená-los de forma linear. A sintaxe tradicional é abandonada em prol da
velocidade e da fragmentação desordenada numa espécie de jorro contínuo
de perplexidades políticas e existenciais do protagonista.
Ao retratar uma era conturbada da história brasileira, na qual os
direitos elementares do indivíduo são violentamente cerceados, o autor
apresenta sua visão dos acontecimentos na perspectiva de um personagemcineasta dividido quanto ao modo de luta contra o sistema. As contradições
são percebidas nos atos do próprio Conti, ao tentar conseguir patrocínio
para seu filme junto à Embaixatriz e ao General Braylly, representantes de
uma elite que colabora com o regime. Apresenta, dessa forma, o esfacelamento
das consciências individuais por um regime opressor e a dificuldade de optar
por uma ação efetiva.
Os dilemas de Paulo Conti ilustram aquilo que Silviano Santiago
aponta em seu ensaio sobre repressão e censura na década de setenta. Para
Santiago (1982), em termos quantitativos, a produção cultural brasileira sob
a censura não chega a ser afetada em função da própria natureza da obra de
arte e do processo criador que tendem a se reinventar, alimentando-se de
tudo em condições adversas. Do ponto de vista econômico, no entanto, o
artista tende a sofrer ao ver suprimida sua principal fonte de renda, sobretudo
em se tratando de artes mais caras como o teatro e o cinema. “Esse
cerceamento econômico pode levar o artista a se aviltar, política e
economicamente, ao aceitar cargos ou posições que normalmente não
aceitaria, ao endossar conchavos econômicos que, em circunstâncias normais,
rejeitaria” (SANTIAGO, 1982, p. 49).
116
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
A fragmentação formal constitui uma das constantes da ficção
brasileira dos anos setenta, na tentativa de dificultar a apreensão do sentido
e a expressar esteticamente a segmentação do contexto. Operação Silêncio surge,
no entanto, em 1979, em plena abertura política, e se junta a uma série de
obras literárias, cinematográficas e teatrais que tentam retratar o período da
ditadura militar. É o momento em que explodem as memórias e os
testemunhos de participantes da luta armada à ditadura. No mesmo ano,
Fernando Gabeira publica O que é isso, companheiro?; em 1980, surge Os
carbonários, de Alfredo Sirkis. Em 1981, Leon Hirszman lança Eles não usam
black-tie, filme baseado na peça homônima de Gianfrancesco Guarnieri. Pra
frente Brasil, de Roberto Farias, é lançado em 82. No entanto, Operação Silêncio
afasta-se das obras citadas ao criticar as ações muitas vezes equivocadas da
esquerda para a luta contra o sistema. Questiona a validade da luta armada
e das perdas humanas em seu nome e, de forma niilista, mas não conformista,
apresenta as contradições e angústias de toda uma época, calcada em modelos
culturais igualmente equivocados (o Cinema Novo, por exemplo). O escopo
dessas contradições vem coroar a necessidade de novas estratégias formais
para a produção literária do final dos anos setenta e início dos oitenta. O
texto de Souza se inscreve, portanto, nessa categoria de obras que
“desconstroem” uma leitura heróica da história através de uma escritura
caótica, fragmentária e multidiscursiva. Segundo Tânia Pellegrini,
O que a crítica comumente tem interpretado como negativo nos romances
do período que se utilizam das técnicas de reportagem jornalística e dos
meios da indústria cultural [...], dando a tais recursos o caráter de subtração
ao “intocável” gênero romanesco, na verdade são acréscimos que
reformulam a forma-romance, pois a pureza simbólica da linguagem não
dá mais conta de narrar um mundo que se tornou inenarrável; não são
perdas, são adventos, ao mesmo tempo origem e explicação das
transformações pelas quais passa a narrativa. Tais transformações devem
ser repensadas em função dos fatos técnicos da situação da época, que
exigia formas de expressão adequadas às novas energias literárias.
(PELLEGRINI, 1996, p. 178)
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
117
Trata-se, portanto, de um período extremamente rico e inovador da
cultura brasileira, refletindo sobre as incertezas quanto ao papel do artista e
do intelectual no novo cenário democrático que lentamente se configura.
“Ser intelectual neste país é ser aquele que esquece, que vai largando pelo
caminho a sua carga, aliviando as costas, como se o ato de ser intelectual
não passasse de um meio de transporte” (SOUZA, 1985, p. 84). Paulo Conti
representa esse intelectual, hesitante, angustiado e contraditório, protótipo
do artista de esquerda no Brasil do final dos anos setenta.
O discurso genericamente híbrido e fragmentário da narrativa de
Márcio Souza sugere a impossibilidade de se apresentar uma visão totalizante
da época retratada. Trata-se, com efeito, de um período marcado pela ausência
de lógica, harmonia e organicidade, o que se reflete na forma dispersa do
texto, nas experimentações com a linguagem e na relativização das fronteiras
entre os gêneros, sobretudo o cinema e o ensaio crítico:
Há quem tenha visto a obra como um “genial romance autobiográfico”.
Embora possa incluir elementos sobre a vida do autor, limitar Operação
Silêncio a esse aspecto é extremamente reducionista e ignora a sua
caracterização híbrida, uma combinação de roman à clef, ensaio, crítica e
roteiro cinematográfico. (JOHNSON, 2005, p. 123)
Em se tratando da inserção do gênero ensaio e da crítica cultural no
texto de Márcio Souza, cumpre ressaltar a importância das páginas dedicadas
a Euclides da Cunha, Graciliano Ramos e Oswald de Andrade, vistos como
representantes de um modelo ideal de pensadores da cultura. São também
significativos os comentários acerca do cinema, sobretudo a crítica ao Cinema
Novo, inicialmente visto como movimento de resistência política e portavoz do discurso cultural, para finalmente se transformar em cinema comercial:
“Então era isso: o cinema dito político de ontem e o cinema perplexo e
individualista de hoje eram frutos da mesma semente: ambos reacionários e
anêmicos” (SOUZA, 1985, p. 33).
A mescla de gêneros em Operação Silêncio evidencia a técnica de
composição do romance em sua absorção de outras ordens discursivas. Ao
mesmo tempo suscita o questionamento do papel do intelectual e do artista
em um contexto conturbado da história brasileira em sua crítica às regras e
118
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
normas do fazer literário. Já a fragmentação e justaposição de elementos
separados espacial e temporalmente em termos diegéticos também indicam
a impossibilidade em se narrar de modo direto e linear os acontecimentos
aludidos, a violência do sistema, a imposição de um regime totalitário e a
consciência equivocada da esquerda.
Por sua vez, o cinema está presente no texto de Márcio Souza tanto
na técnica narrativa quanto na diegese, ao ser introduzido um protagonistacineasta que conta a história de um filme, seu fazer em processo por meio
do roteiro, e as reflexões sobre a cultura cinematográfica no Brasil dos anos
de chumbo. Discute-se, assim, a realização material de um filme, enxertandose seu roteiro no texto principal, entrecruzando-se as duas narrativas e
promovendo o debate acerca das condições de produção do artista diante
das dificuldades frente à censura e aos problemas econômicos.
Tais motivações e procedimentos estéticos não podem ser dissociados
do momento vivido por toda uma geração de escritores, na qual se inclui
Márcio Souza, momento esse responsável pelas condições de produção de
recepção do texto literário. Para Fábio Lucas (1985), a ficção brasileira pós64 pode ser dividida em duas tendências recorrentes. Por um lado, temos a
análise da violência nas relações humanas (em Ivan Ângelo, Moacyr Scliar,
Rubem Fonseca, entre outros) e, por outro, a opção pelo drama existencial
de uma personagem intelectualizada, representando assim o choque entre
os fatores sociais e políticos externos e a sensibilidade do escritor. É nesse
aspecto que Operação Silêncio se inscreve. De um modo geral, no entanto,
O registro da opressão ideológica pós-64 refletiu-se na ênfase de
determinados recursos retóricos e estilísticos. O interesse documental,
por exemplo, aperfeiçoou a técnica da montagem, operando o sincretismo
entre o realismo descritivo, de cunho mimético, e a tendência ao
desmembramento do discurso, com a fragmentação textual e temática.
(LUCAS, 1985, p. 102)
Durante o período em que o regime militar se impõe pela força no
Brasil, muitos escritores, subitamente paralisados pelas interdições e violências
impostas à sociedade como um todo, optam por uma saída entre cínica e
criativa ao tangenciarem o problema. Segundo Fábio Lucas (1985), a migração
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
119
da linguagem para a metalinguagem, enfatizando o texto que se auto-refere,
é característico da última fase da produção literária pós-64, na qual se insere
o texto de Márcio Souza. Se não é possível fazer um filme ou escrever um livro,
resta falar sobre a realização de um filme e do ato de escrever um livro,
constituindo-se, assim, uma espécie de “geração tagarela” a que se refere o autor.
Ao incorporar ordens discursivas diversas no âmbito mesmo da
narrativa, Márcio Souza justifica seu processo estético calcado no drama
existencial de sua geração à deriva em um sistema repressor do pensamento
e da ação política. Nesse sentido, os recursos estilísticos tomados de
empréstimo, sobretudo, ao cinema, através da montagem paralela, da
fragmentação narrativa e da hibridação dos gêneros, contribuem para a criação
de um espaço que possibilite o questionamento do papel do intelectual em
um sistema de exceção.
O romance de Márcio Souza, por sua recusa em distinguir o literário
do extraliterário, por seu desejo em renovar práticas de composição narrativa,
apresenta-se como espaço possível de experimentação estética. Ao contrário
do que afirmam alguns críticos, o processo de hibridação, conforme sublinhou
Paterson (2001), não mais perturba nossos hábitos de leitura e de percepção,
mas se inscreve naturalmente em nossos sistemas cognitivos e
epistemológicos. Coerente em sua própria incoerência, ao misturar gêneros
e discursos diversos, montando e desmontando a narrativa, o texto de Márcio
Souza demonstra a capacidade do romance de se renovar constantemente,
respondendo, de forma original, às condições adversas de produção artística
em um contexto totalitário. Se incoerências existem, advindas dos sistemas
de fragmentação, montagem e hibridação genérica, estamos diante de uma
escritura incoerentemente significante em sua essência de obra de arte.
Notas
1
Segundo Haroldo de Campos (s/d), Eisenstein, depois de um encontro com
James Joyce, ficou entusiasmado com a idéia de filmar Ulysses, que lhe parecia
feito sob medida para a aplicação de sua teoria da montagem.
2
“O que torna essa prática particularmente significativa em nossos dias, chamando
nossa atenção e nos convidando a examinar suas formas e sentidos, é a vitalidade
do híbrido na ficção contemporânea. É como se a mistura de gêneros produzisse,
desde os anos sessenta, aproximadamente, uma nova efervescência criadora em
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diversos países. Não podemos mais falar em gêneros marginais, tamanha a imposição
do híbrido em uma escala internacional”(tradução minha).
3
“Um ponto de encontro segundo o qual a fragmentação dos gêneros constituiria
ao mesmo tempo a desintegração de uma concepção normativa do romance e o
advento de outra forma de escritura” (tradução minha).
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do romance. Trad:
Aurora F. Bernadini. São Paulo: Editora Unesp; Hucitec, 1993.
CAMPOS, Haroldo de. Miramar na mira. In: ANDRADE, Oswald de.
Memórias sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, s/d.
JOHNSON, Randal. Operação cinema. Cadernos de literatura brasileira: Márcio
Souza. Rio de Janeiro, n. 19, p. 118-133, 2005.
LUCAS, Fábio. Vanguarda, história e ideologia da literatura. Sao Paulo: Ícone,
1985.
PATERSON, Janet. Le paradoxe du postmodernisme: l’éclatement des genres
et le ralliement du sens. In : DION, Robert et alii (direc.) Enjeux des genres
dans les écritures contemporaines. Québec : Nota bene, 2001. p. 81-101.
PELLEGRINI, Tânia. Gavetas vazias: ficção e política nos anos 70. São Carlos:
Edufscar; Mercado de Letras, 1996.
SANTIAGO, Silviano. Vale quanto pesa. São Paulo: Paz e Terra, 1982.
SOUZA, Márcio. Operação silêncio. São Paulo: Marco Zero, 1985.
Artigo recebido em 20.02.2008.
Artigo aceito em 21.05.2008.
André Soares Vieira
Doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
Professor adjunto do Departamento de Letras Estrangeiras Modernas e do
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Santa Maria
(UFSM), RS.
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A BUSCA DA VERDADE E A
RECONSTITUIÇÃO DA MEMÓRIA
EM ROMANCES DE JONATHAN
SAFRAN FOER
Mail Marques de Azevedo
[email protected]
RESUMO: Em Tudo se ilumina, o
bestseller internacional do jovem
escritor americano Jonathan Safran
Foer, bem como em seu segundo
romance, Extremely Loud and Incredibly
Close, o leitor é conduzido a um
mergulho na memória ancestral dos
protagonistas, atravessando diferentes
estágios cronológicos que atingem, no
primeiro romance, um recuo de 200
anos no tempo. A temática da busca pela
verdade, comum aos dois romances, é
o foco deste artigo, que estabelece
paralelos entre duas diferentes
realizações do tema, do ponto de vista
de um jovem autor de origem judaica.
A partir de um esquema adaptado da
estrutura básica da busca mitológica do
herói, na visão de Joseph Campbell e
Vladimir Propp, este trabalho analisa o
emprego pelo autor de diferentes recursos
narrativos - o mito, a fantasia, a paródia e
a comicidade – a fim de (re)criar a
memória familiar de suas personagens.
ABSTRACT: In Everything is Illuminated,
young Jonathan Safran Foer’s
international bestseller, as in his second
novel Extremely Loud and Incredibly Close,
the reader is taken into his protagonists’
ancestral memory through different
chronological stages that go as far back
as 200 years. This paper establishes
parallels between these two different
realizations of the search-for-the truth
theme in contemporary American
literature, from the standpoint of a
young author of Jewish origin. Starting
from an adaptation of the basic scheme
of the mythological hero’s quest as seen
by Joseph Campbell, and Vladimir
Propp, this work analyzes Foer’s use of
different narrative resources – myth,
fantasy, parody and comicity - to
(re)create his characters’ familial
memory.
PALAVRAS-CHAVE: Jonathan Safran Foer. Jornada mítica. Memória ancestral
KEY-WORDS: Jonathan Safran Foer. The mythical journey. Ancestral memory.
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Acolhido pela crítica como revelação de um talento literário original,
o romance de estréia de Jonathan Safran Foer, jovem escritor judeu-americano,
Tudo se ilumina _ Everything Is Illuminated (2002) _, tornou-se um best-seller
internacional. A um tempo cômico e profundamente comovente, o romance
aborda os perigos de confrontar um passado doloroso e a sua redenção pelo
riso, mesmo nas situações mais traumáticas.
Dos campos da Ucrânia, onde o protagonista do romance, o escritor
homônimo Jonathan Safran Foer, busca a mulher que teria salvado seu avô
dos nazistas, _ a legendária Augustine _, bem como seu shtetl natal, uma
aldeia desaparecida do mapa, o segundo romance de Foer, Extremely Loud
and Incredibly Close (2005b), conduz o leitor a um cenário de destruição recente,
as torres gêmeas do World Trade Center. O protagonista e principal narrador
do romance, um menino de nove anos, tenta desesperadamente reconstituir
os últimos momentos do pai, vitimado pelo ataque terrorista, e para isso
lança-se em uma busca aparentemente estéril pelo mundo variegado de Nova
Iorque.
Ambos os romances têm como eixo o périplo do narradorprotagonista na reconstituição de um passado mais ou menos recente – o
ataque de 11 de setembro de 2001, e a destruição do shtetl de Trachimbrod,
que a narrativa situa em 18 de março de 1942, respectivamente. Este trabalho
focaliza tal eixo comum, a temática da busca da verdade de acontecimentos
relativamente próximos, desencadeada em ambas as narrativas pelo
sentimento de perda, o que implica, como corolário, a reconstituição da
memória ancestral, em níveis temporais mais remotos.
Jonathan Safran Foer cresceu em uma família extremamente unida
que mantém suas tradições judaicas sem ortodoxia religiosa. É neste ambiente
de sólida união familiar que ouve a história da mulher que teria salvado a
vida de seu avô materno, falecido logo depois de sua chegada à América, e
que vem a inspirar a temática central de Tudo se ilumina: um jovem escritor
chamado Jonathan Safran Foer que viaja à Ucrânia em busca de um shtetl
(vilarejo) desaparecido e da heroína salvadora. O fato de que Foer
efetivamente viajou para a Ucrânia, há alguns anos, para pesquisar a vida do
avô, e a presença de um personagem homônimo tornam complexo o status
literário de uma narrativa que escancara suas amarras ao factual, ao mesmo
tempo em que recorre à fantasia e à comédia.
124
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Na questão da memória, como observa Didl, um dos personagens
caricatos do romance, o importante não é o quê lembrar, mas o ato de lembrar.
Ademais, de acordo com o Livro de Antecedentes, que registra as minúcias do
dia-a-dia do shtetl fictício, os judeus têm seis sentidos tato, paladar, visão,
olfato, audição... memória. O que conta é escrever... escrever... escrever... É
a memória de acontecimentos passados – de 1791 a 1998, em gradação do
realismo cruel à mais absurda das fantasias, sempre temperada com o humor
bizarro do estilo –, que vai “iluminar” a narrativa da busca do protagonista
pelo shtetl de Trachimbrod e por suas raízes familiares.
Como membro de um grupo que cultiva as mesmas tradições, o
jovem autor Joanthan Safran Foer partilha das memórias do trauma atávico
que acompanha a diáspora do povo judeu, através dos séculos. No nível
mais restrito da família, as memórias de um avô – situado a meio caminho
entre as gerações - fazem parte daquelas histórias familiares que a gente
sempre soube, sem saber como descobriu.
A esse respeito, é apropriado lembrar o caráter coletivo da memória
na conceituação de Maurice Halbwachs. As lembranças não dependem de
testemunhos no sentido literal da palavra, ou seja, da presença material dos
indivíduos, porque sempre levamos conosco e em nós certa quantidade de
pessoas que não se confundem. Assim, nossas impressões de lugares que vemos
pela primeira vez vêm carregadas da associação mental que fazemos ao nos
situar em pensamento em um ou outro grupo social com que tivemos contato,
em diferentes circunstâncias, cujos membros estavam familiarizados com
aquele determinado local ou acontecimento (HALBWACHS, 2006, p. 30-31).
Do mesmo modo, a memória de abalos sofridos por um grupo
nacional, mesmo que não sejam percebidos diretamente pelos indivíduos
mais jovens, estes estavam certamente em contato com membros mais velhos
do grupo, abertos a muitas influências: “em parte, eles eram o que eram
porque viviam em tal época, tal país, em tais circunstâncias políticas e
nacionais (HALBWACHS, 2006, p. 77). Como membros de um grupo,
partilham sua memória histórica.
No resgate da memória ancestral, indispensável para a percepção de
sua própria identidade, é crucial para os protagonistas – tanto nas elucubrações
bizarras de Tudo se ilumina, como nas soluções imaginativas para os problemas
humanos, propostas pelo herói de Extremamente alto e incrivelmente próximo –,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
125
estabelecer contato mesmo que metafórico com o avô, que é o indivíduo
mais próximo ao presente que se procura explicar, e ao passado a ser
desvendado.
O esquema temporal das duas narrativas abrange, assim, três níveis:
1) a busca propriamente dita, que representaria o presente da ação; 2) uma
incursão a um passado relativamente recente; 3) a volta às raízes dos ancestrais
do herói, num período que recua até 200 anos no tempo, no caso de Tudo se
Ilumina. Para efetivar esses recuos, Foer se utiliza de narradores secundários,
de cartas, diários e outros textos, que reconstituem experiências ligadas à
situação presente.
Na reconstituição da memória imaginária de seus ancestrais, Foer
emprega amplamente a fantasia, que assume proporções paródicas no
nascimento de Brod, “a mãe da mãe da mãe da minha tataravó”, “um bebê
ainda coberto de muco, rosado como a polpa de uma ameixa” (2005b, p.
22), que emerge do rio do mesmo nome, qual Moisés feminino, para trazer
amor, mas também conflito, dissensão e controvérsia. A fantasia atinge as
raias do grotesco e adquire contornos de farsa na história do casamento de
Brod, quando o marido Kolker sobrevive a um acidente com uma serra
circular encravada no crânio.
Já em Extremely Loud and Incredibly Close (Extremamente Alto e
Incrivelmente Próximo), o emprego da fantasia resulta, principalmente, da
imaginação fértil do protagonista Oskar Schell, capaz de elaborar invenções
as mais esdrúxulas, que ele considera “extremamente” úteis, advérbio
recorrente na narrativa. Tal é o caso de “arranha-céus” subterrâneos a serem
construídos debaixo dos arranha-céus dos vivos, para enterrar o número
crescente de mortos no mundo. Ou então um arranha-céu que se movesse a
um toque de botão. Assim, se você estivesse no 95o andar e um avião atingisse
um andar abaixo de você, o prédio levaria você em segurança até o solo e
todos se salvariam.
A narrativa de Oskar se entrelaça com os relatos do avô, Thomas
Schell, cujas cartas reconstituem o panorama físico e emocional de Dresden,
às vésperas do destruidor ataque aliado com bombas incendiárias, em 1945,
e estabelece o nível temporal mais remoto da trama.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Tanto as fantasias tecnológicas de Oskar Schell como as criações
bizarras do personagem-autor Jonathan Safran Foer respondem à necessidade
essencial do ser humano de encontrar respostas às perguntas últimas da
existência, ou de interpretar os fenômenos do mundo natural, que dá origem
à narrativa mítica. As características de uma busca primeva estão presentes
nos dois textos em foco, que podem ser proficuamente analisados de uma
perspectiva arquetípica. A ação de ambos os romances, concentrada no herói/
heróis e sua busca, corresponde em muitos aspectos à jornada exemplar do
herói mitológico, que percorre o mundo e enfrenta obstáculos em busca de
uma recompensa final: a reposta a suas questões.
Trata-se do processo básico de separação, iniciação, retorno, que
constitui o núcleo do monomito, designação que Joseph Campbell toma
emprestada a James Joyce, para analisar a saga do herói mitológico, em sua
obra seminal O herói de mil faces1 (1973, p.30). Campbell lista uma série de
situações que ocorrem na jornada de busca, que podem ser reduzidas, com
algum detalhamento adicional, às três fases do processo básico:
1. Uma situação inicial de desequilíbrio impele o herói à aventura.
2. O herói é testado no caminho das provas (enfrentamento do
monstro, descida ao mundo das trevas); ajuda sobrenatural.
3. Conquista da suprema benesse e retorno.
Existem semelhanças entre as fases da jornada, segundo o
esquema de Campbell e as trinta e uma funções em que Vladimir Propp
agrupa os traços constitutivos do conto popular europeu, em seu
conhecido estudo Morphology of the Folktale. Segundo Todorov, cada uma
das funções de Propp corresponde a uma ação isolada, vista na perspectiva
de sua utilidade para o conjunto do conto, como parte do encadeamento
cronológico e às vezes causal de unidades descontínuas da narrativa
(TODOROV, 1980, p. 63). Na medida do necessário, este estudo faz
referência também às funções de Propp para detalhar os itens de maior
importância da busca do herói: tempo e espaço da busca; as características
do herói; fases da jornada mítica.
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SITUAÇÃO DE DESEQUILÍBRIO
O herói recebe o chamado à aventura
Segundo o esquema de Propp, o desequilíbrio da situação inicial é
causado pela ausência de um dos membros da família. De fato, é a necessidade
de conhecer as circunstâncias da morte do pai que impele Oskar à busca.
Profundamente traumatizado, o menino se auto-inflige ferimentos toda vez
que situações, mesmo corriqueiras, lhe parecem críticas.
Em Tudo se ilumina, Jonathan Safran Foer, o personagem-autor assume,
em nome do avô que não conhecera, a missão de recompensar Augustine. É
assessorado em sua busca pelo intérprete ucraniano, Alex Perchov, o narrador
da moldura realista do romance, que compreende a jornada pelas aldeias da
Ucrânia. Sua situação familiar é conflituosa: um pai exigente e agressivo,
“um homem temível, que sempre obtém o que deseja”, um avô que se diz
cego, após a morte da mulher, e o sentimento de responsabilidade pelo irmão
mais novo, Pequeno Igor, que Alex vem “lecionando a ser um cidadão do
mundo” (FOER, 2005b, p. 10-11).2
Em termos de diálogo e compreensão, o pai está ausente. Afastandose de um relacionamento problemático com o pai, Alex se torna ele também
um viajante que percorre o mundo. Motivados a deixar o lar, os heróis partem
em sua jornada, em busca de uma verdade essencial.
A resposta ao chamado à aventura está intimamente relacionada às
características dos personagens de narrativas mitológicas, que detêm a
capacidade de se apresentar sob formas diferentes, de se fracionar em uma
multiplicidade de “eus”.
O perfil de Oskar Schell, o herói de 9 anos, apresenta as discrepâncias e
incertezas de uma criança, apesar de sua privilegiada inteligência e capacidade de
introspecção. Seu cartão de apresentação revela suas múltiplas identidades:
OSKAR SCHELL
INVENTOR, DESENHISTA DE JÓIAS, FABRICANTE DE JÓIAS, ENTOMÓLOGO AMADOR, FRANCÓFILO, ORIGAMISTA, PACIFISTA,
PERCUSSIONISTA, ASTRÔNOMO AMADOR, CONSULTOR DE INFORMÁTICA, ARQUEÓLOGO AMADOR, COLECIONADOR DE:
moedas raras, borboletas que morreram de morte natural, cactos em miniatura, memorabilia dos Beatles, pedras semipreciosas, e outras coisas.
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Veste apenas roupas brancas – regra que não muda nem mesmo
para usar uma preciosa camiseta colorida, presente de Ringo Star – e sacode
um pandeiro em suas andanças pelo bairro. Finge-se de doente, para faltar à
escola e iniciar sua busca, e as razões que apresenta para a mãe refletem suas
múltiplas preocupações existenciais. Coisas que o deixam triste: “a carne e
os laticínios em nossa geladeira”, acidentes de carro, como o sol um dia vai
explodir, pesadelos, ser impopular na escola; belas canções que me deixam
triste por não serem verdadeiras - nada que é bonito pode ser verdadeiro;
como não haverá mais seres humanos dentro de cinqüenta anos, etc.
“Você é pessimista ou otimista?” costuma perguntar a todos. Que
ele mesmo é pessimista se revela em suas invenções, sempre ligadas a morte
e doença, a exemplo de ambulâncias extremamente compridas, ligando locais
de acidentes diretamente aos hospitais. Tenta inventar invenções otimistas,
“mas as pessimistas eram extremamente ruidosas” (FOER, 2005a, p. 235).
Na peça da escola, uma versão de Hamlet, faz o papel de Yorick, o
crânio – obviamente, não tem nenhuma fala para decorar –, o que lhe inspira
mais uma conclusão fúnebre: Há mais pessoas vivas hoje do que mortos
desde o início dos tempos, de modo que não haveria crânios suficientes se
todos os habitantes da terra resolvessem representar a cena do cemitério, em
Hamlet.
O processo de afastamento é desencadeado pela descoberta de uma
chave misteriosa, em um pequeno envelope, no guarda-roupa do pai. A que
revelação esta chave conduziria? Racionaliza que a palavra Black, escrita no
verso do envelope, indica um sobrenome e parte em sua jornada, apesar do
cálculo desanimador de que existem 162.000.000 de fechaduras a pesquisar
em Nova Iorque e mais de quinhentas pessoas com sobrenome Black na
lista telefônica.
No caso dos heróis-narradores de Tudo se ilumina, a fração de
identidade se torna mais evidente. Pode-se dizer que Alex Perchov, o intérprete
e narrador ucraniano funciona como alter ego de Jonathan Safran Foer, a
quem se refere como “o herói” judeu, ao colaborar na escritura do livro em
que o personagem-escritor reconstitui a memória de seus ancestrais. “Sou
eu não você que nasceu para ser escritor”, afirma a Jonathan. O sonho de
satisfazer uma necessidade interior, para Alex, paradoxalmente toma caminho
inverso ao de Jonathan: seu objetivo maior é buscar a realização material na
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
129
América. A fotografia da bela e misteriosa Augustine é o elemento concreto
que desencadeia a busca, a chave para o mistério do avô Safran em terras da
Ucrânia.
O AFASTAMENTO
O caminho das provas, ajuda sobrenatural
Para Campbell, a unidade nuclear do monomito apresenta “Um herói
(que) se aventura em uma região de fenômenos sobrenaturais, para muito
além dos limites do mundo cotidiano; encontra forças fabulosas e obtém
uma vitória decisiva: o herói retorna dessa aventura com o poder de dispensar
benesses a seus semelhantes” (1973, p. 30).
Este mundo sobrenatural tem características específicas de tempo e
de espaço, que fogem à cronologia rígida e aos espaços geográficos definidos
do mundo factual. No caminho das provas nos romances, traços de ambos
os mundos se confundem, numa contaminação da realidade pelo sonho.
Os primeiros obstáculos que o herói-menino deve enfrentar são seus
temores irracionais. Imaginar as circunstâncias da morte do Pai causa-lhe
pesadelos constantes. Sem saber por quê, tem pavor de tomar banho de
chuveiro e, por motivos óbvios, não entra em elevadores. Embora seja
convencido a tomar o elevador para ir ao terraço do Empire State Building,
desce os quase 2000 degraus a pé. Muitas coisas lhe causam pânico: pontes
pênseis, germes, aeroplanos, foguetes, gente com jeito de árabe no metrô
(embora não seja racista), gente com jeito de árabe em qualquer lugar público,
andaimes, grades de esgoto e do metrô, mochilas sem dono, sapatos, gente
de bigode, fumaça, nós, prédios altos, turbantes. Parece-lhe estar perdido no
meio de um imenso oceano negro ou no espaço sideral, incrivelmente longe
de tudo (FOER, 2005a, p. 36).
Caminha durante 3 horas e 41 minutos para atingir o primeiro Black
da sua lista alfabética, – o transporte público lhe causa pânico –, sacudindo
o pandeiro o tempo todo, para se lembrar de que, embora estivesse em
lugares estranhos, ainda era ele mesmo (FOER, 2005a, p. 88).
No caminho das provas, à semelhança do herói mitológico, Oskar
recebe ajuda do homem sábio, um ente com poderes extraordinários,
representado na narrativa por A R Black, paradoxalmente seu vizinho no
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prédio, de onde não saía há mais de 24 anos. Nascido com o século XX, em
1o de janeiro de 1900, A R Black, ex-jornalista e correspondente de guerra
em 112 países, é um repositório do conhecimento da história e da política de
seu tempo. Além de introduzir o jovem iniciando nos segredos do mundo,
Black preenche outros constituintes da esfera de ação do ajudante, propostas
por Propp: a) transferência espacial do herói – Black consegue convencer
Oskar a tomar o metrô, o ferryboat para Long Island e até mesmo o elevador
para subir ao topo do Empire State, no decorrer da busca; b) proteção do
herói contra possíveis inimigos; c) liquidação da falta de sorte ou ausência:
a ajuda de A R Black é essencial para a solução do mistério da chave, servindo
de intérprete e mediador.
Na ânsia de encontrar respostas para aquilo que, na realidade, tem
medo de saber, a maneira como o pai teria morrido, Oskar percorre o caminho
do herói do mito, subindo simbolicamente aos céus e descendo às entranhas
da terra. Do observatório do Empire State Building, agarrado à mão de A. R
Black, ou arrastando-se de joelhos até um dos binóculos do mirante, Oskar
vê uma réplica em miniatura da cidade. Extremamente solitário e afastado
de tudo sente medo – há tantas maneiras diferentes de morrer –, mas também
segurança, por se saber rodeado de tantas pessoas. Vê todas as fechaduras
que tentara abrir e as 161. 999. 831 que faltavam. Parece-lhe ver o pai, em
uma das janelas que consegue divisar de seu posto de observação. Sente que
precisa encontrar a fechadura em que a misteriosa chave se encaixaria, para
provar seu amor pelo pai (FOER, 2005a, p. 251).
O caminho das provas assume contornos de paródia em Tudo se
ilumina: à semelhança de um D. Quixote moderno, o “herói” judeu percorre
o mundo, em companhia de seu fiel escudeiro, em um carro “tão merda”
que não passa de sessenta quilômetros por hora. Completam o grupo o avô
– também chamado Alex – que “tem dentes dourados, e cultiva amplos
pêlos no rosto.” A comicidade de situação tem origem principalmente na
aversão do “herói” americano por cães e na atração que a cadela-guia do avô
motorista, que se diz cego, sente por ele, “sexualmente estimulada” pelo
cheiro de sua água-de-colônia. Vegetariano, tem de se alimentar apenas de
batatas, recusando as salsichas do cardápio ucraniano costumeiro.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Cerceado pelo problema da língua, as intervenções do “herói” judeu
limitam-se às tentativas de identificar a velha fotografia. Na seqüência da
jornada, os próprios nomes que Alex atribui aos capítulos indicam uma
gradual mudança no tom da narrativa: “A busca muito rígida”; “Começando
a amar”; “O que vimos quando vimos Trachimbrod ou começando a amar”;
“Uma abertura para a iluminação”, e, finalmente, “Iluminação”. A pergunta
que ocorre a Alex, desde o início da jornada: “O que o avô fizera durante a
guerra?” levanta dúvidas e sugere possibilidades perturbadoras que terminam
por se concretizar.
Assim, a busca por Augustine, a “busca muito rígida”, passa a
constituir missão de avô e neto que, de meros coadjuvantes histriônicos, se
transformam, respectivamente, em protagonista e narrador-tradutor da trama
que revela o destino dos habitantes de Trachimbrod. “Eu sou Trachimbrod”,
declara a estranha mulher que encontram em uma casa minúscula em meio
à desolação dos campos. Seria ela Augustine? Sua identidade permanece
dúbia, mas não é dúbio seu testemunho da destruição do shtetl pelos nazistas,
apoiado na memória concreta dos habitantes de Trachimbrod, de que sua
casa é um repositório vivo: caixas e mais caixas de objetos que recolhera,
fotografias, etc. Embora não seja a tão procurada Augustine, é a única
sobrevivente de Trachimbrod, capaz, portanto, de identificar na fotografia a
moça e o avô do herói, Safran.
Na função de ajudante, conduz os protagonistas ao local de
Trachimbrod, onde existe apenas uma peça de pedra, colocada no meio do
campo, com dizeres em russo, ucraniano, hebraico, polonês, iídiche, inglês e
alemão, em memória dos 1.204 habitantes de Trachimbrod, mortos pelas
mãos do fascismo alemão, em 18 de março de 1942. Fornece, assim, a ajuda que
havia sido negada de modo estranho e mesmo agressivo, por todos as pessoas
a quem pedem informações, que se calam ao ouvir o nome do shtetl. As
palavras da mulher misteriosa narram a destruição total da aldeia. Resta aos
agentes da busca colocar em palavras a história do shtetl, numa narrativa que
parecem escrever a quatro mãos: o desenvolvimento do romance é objeto das
cartas de Alex a Jonathan, depois que este regressa a seu país.
À semelhança de Oskar, o narrador judeu de Tudo se ilumina dá largas
à imaginação para reconstituir a história da avó remota, Brod, e do avô,
Safran. Para isso percorre simbolicamente, no livro que escreve, o caminho
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
do herói: mergulha no rio, para narrar o episódio do resgate do bebê coberto
de muco que dá origem à narrativa e à sua linhagem familiar, e sobe aos
céus, ao tornar a minúscula Trachimbrod visível do espaço. A presença mágica
de Brod, objeto de paixão de todos os habitantes do shtetl, deflagra uma
orgia de amor que produz energia “suficiente para eletrificar os céus polacoucranianos”, permitindo que a minúscula vila de Trachimbrod possa ser
vista do espaço, pelos astronautas. A fantasia corre solta na descrição do
brilho que não pode ser confundido com luz. “É uma radiância coital que
leva gerações a se derramar pela escuridão”:
Em cerca de um século e meio – depois que os amantes que fabricavam o
brilho estiverem deitados permanentemente de costas – as metrópoles
serão vistas do espaço. Elas brilharão durante o ano todo. As cidades
menores também serão vistas, mas com grande dificuldade. Os shtetls serão
virtualmente impossíveis de detectar. Cada um dos casais será invisível.
Mas no Dia-de-Trachim, o grande festival que reúne todos os anos
os habitantes da aldeia, a minúscula vila de Trachimbrod pode ser vista do
espaço, em virtude da geração de altíssima “voltagem copulativa”: “Nós
estamos aqui, dirá o brilho de 1804 daqui a um século e meio. Nós estamos aqui
e estamos vivos” (FOER, 2005b, p. 132).
Reconciliação com o pai
No caminho das crenças primitivas, o iniciando deve enfrentar a
figura assustadora do pai, aquele que detém o poder de punir e disciplinar,
quer nas relações sociais, quer religiosas (CAMPBELL, 1983, p. 130). Com
certas adaptações, esta fase da saga aparece nos dois romances.
Oskar, depois do seu caminho de provações, consegue chegar ao
âmago de sua culpa: não tivera coragem de atender à última chamada do
celular do pai, antes do desmoronamento das torres gêmeas. A busca pela
revelação do mistério da chave o leva a William Black, outro filho que lamenta
a falta de comunicação com o pai já falecido. É para ele que Oskar consegue
confessar o seu segredo. Mesmo assim, não atinge a paz. Para isso, deve
descer às entranhas da terra, para desenterrar o caixão do pai, o que faz
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
133
acompanhado de um segundo ajudante mágico, a quem se refere apenas
como “o inquilino”, homem misterioso, incapaz de se comunicar a não ser
por escrito, e que a avó lhe apresenta como seu pensionista.
A aparente confiança da avó, a quem Oskar dedica profundo carinho,
o predispõe favoravelmente em relação ao inquilino. Este acompanha o
menino na tarefa de abrir o caixão que servira ao funeral simbólico, e enchêlo com objetos que tivessem algum significado. O “inquilino” carrega duas
malas, cujo conteúdo se revela, quando Oskar abria a tampa do ataúde:
Três horas mais tarde, quando desci no buraco, espanei a terra, e abri a
tampa, o inquilino abriu as malas. Estavam cheias de papéis. Perguntei-lhe
o que eram. Ele escreveu, “Perdi um filho.” “Sério?” Ele me mostrou a
palma da mão esquerda. “Como foi que ele morreu? “”Eu o perdi antes
que ele morresse.””Como? “”Eu fui embora.””Por que?” Ele escreveu,
“Eu estava com medo.” “Medo de quê?” “Medo de perdê-lo.” “Você
tinha medo que ele morresse?” “Eu tinha medo que ele vivesse.””Por
que?” “A vida é mais assustadora do que a morte.” (FOER, 2005a, p. 322)
Neste ponto, Oskar é incapaz de fazer a conexão entre as cartas e os
envelopes que observara na penteadeira da avó. Só mais tarde percebe tratarse do avô, cujo retorno é tão silencioso quanto fora sua partida, quarenta
anos antes.
“É a solução simples para um problema impossível”: enfrentar a
verdade, porque o Pai amava a verdade. “Que verdade?” “Que ele está morto”.
O caixão está vazio, como Oskar sabia. Mas agora ele aceita a verdade,
conquistada pelo sofrimento.
O confronto com o Pai se realiza na moldura “realista” de Tudo se
ilumina, que se abre com o capítulo intitulado “Abertura para o encerramento
de uma jornada muito rígida”, em que se apresenta Alexander Perchov, o
narrador em primeira pessoa do périplo dos personagens ucranianos, que
acompanham o “herói” em sua busca por Augustine. Fecha-se com uma
carta de janeiro de 1998, em que o avô se despede da vida e relata a Jonathan
sua renúncia ao filho, expulso de casa por Alex, e sua opção pelos netos, o
próprio Alex e o caçula Iggy: “Tudo é por Sasha e por Iggy, Jonathan. Você
entende? Eu daria tudo para que eles vivessem sem violência. Paz. É só o
que eu quero para eles” (FOER, 2005b, p. 364).
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Assim, há uma inversão na relação pai-filho: Alex expulsa o pai, que
é incapaz de conquistas espirituais, reconcilia-se com o avô e assume o papel
de mentor da família.
CONQUISTA DA SUPREMA BENESSE
De posse do tesouro material ou espiritual almejado, o herói deve
retornar para partilhá-lo com os seus. O personagem-autor, Jonathan Safran
Foer, retorna a seu país. Não encontrara Augustine, mas sua busca não
fracassou, pois sua capacidade criadora lhe permite construir a memória
que não conseguiu desvendar. Lembrando as palavras de um dos personagens
menores da trama, o importante não é o quê lembrar, mas o ato de lembrar
em si. O romance que o herói escreve vai “iluminar” suas raízes ancestrais e
a “verdade” da história do avô Safran.
Alex Perchov, o terceiro do nome, em seu papel de intérprete e
dispensador da verdade, deve decidir o que revelar. Nem mesmo seu linguajar
desajeitado esconde a profundidade de seus sentimentos:
O que eu informaria ao herói (...)? O que informaria a Vovô? Durante
quanto tempo poderia fracassar até nos rendermos? Sentia que todo o
peso estava sobre mim. Tal como naquelas ocasiões com Papai, é limitado
o número de vezes que você pode pronunciar “Não dói” antes que a
coisa comece a doer até mais do que a própria dor. Você fica iluminado
com a sensação de sentir dor, o que é pior, estou certo, do que a dor
existente. Não-verdades pendiam diante de mim como frutos. Qual eu
colheria para o herói? Qual eu colheria para Vovô? Qual para mim mesmo?
Qual para Pequeno Igor? (FOER, 2005b, p. 163)
A revelação do papel do avô, que apontara o amigo judeu aos nazistas
para salvar a própria família, atribui novos parâmetros à questão da culpa.
Assim, pede a Jonathan que os faça bons, no livro que escreve. A estrutura
familiar sofre um processo de inversão total: Alex expulsa o pai, que é incapaz
de compreender que “a coisa dói mais que a própria dor” e procura proteger
o avô do sentimento de culpa: “É isso que você nunca consegue entender.
Apresento não-verdades a fim de proteger você. É também por isso que eu
tento tão inflexivelmente ser uma pessoa engraçada. Tudo para proteger
você. Eu existo caso você precise ser protegido (FOER, 2005b, p. 305-306).
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Com a morte do avô, assume a responsabilidade pelo irmão mais
novo e renuncia a seus sonhos de partir para a América.
Para Oskar, o confronto com a verdade permite-lhe amar
incondicionalmente a mãe, que sempre acompanhara em segredo o seu
caminho de provações do menino. Entretanto, o seu lado de inventor
predomina até o final. O romance termina com sua nova versão para a
destruição das torres gêmeas, em que um corpo que cai do edifício (seria seu
Pai?) faria o caminho contrário, para cima, até entrar novamente pela janela,
e o avião se afastaria do prédio para regressar a Boston, voando para trás.
Também de costas o Pai sairia do prédio, da estação do metrô e entraria em
casa, para ler o jornal da direita para a esquerda. Estariam todos salvos.
CONCLUSÃO
Os romances não se limitam a apresentar um desfecho para a história
da busca empreendida pelos heróis, mas tornam claro o poder redentor da
escrita, na criação de “verdades” consoladoras. Esta é a suprema benesse
que os heróis trazem para o mundo do cotidiano, completando a estrutura
circular da saga mítica. A arte da ficção permite confrontar traumas de um
passado extremamente doloroso, promovendo a regeneração de sentimentos
e das relações entre seres humanos.
“Ao escrever nós recebemos segundas chances”, diz Alex a Jonathan.
“Sou eu não você que nasceu para ser escritor”. “Fazer graça”, afirma ainda,
“é a única coisa certa a fazer”, o que encontra eco no argumento de Jonathan:
– “Eu pensava que o humor era o único modo de apreciar o quanto o
mundo é maravilhoso e terrível, de celebrar como a vida é grande. (...) Mas
agora acho o contrário. O humor é um meio de se retrair desse mundo
maravilhoso e terrível” (FOER, 2005a, p. 216). Afinal, citando novamente o
Livro de Antecedentes dos habitantes de Trachimbrod: O que conta é escrever.
. .escrever... escrever...
A voz de Alex novamente sintetiza o problema do escritor, entre as
restrições da realidade e o poder da imaginação: “Inventei coisas que achei
que apaziguariam você. Tenho certeza de que você me avisará quando eu
viajar para longe demais”. Outro ponto em comum: tudo o que se escreve,
- as cartas não enviadas de Thomas Schell, os relatos da jornada, a reconstituição
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
de memórias _, tem como tônica o amor. Trata-se de uma conclusão resultante
não apenas das viagens pelo mundo exterior, mas de uma jornada às raízes
da percepção do espiritual e do transcendente. Referindo-se à jornada interior
do ser humano, Joseph Campbell diz a respeito dos mitos, o que se aplica
também à arte:
Uma coisa que se revela nos mitos é que, no fundo do abismo, desponta a
voz da salvação. O momento crucial é aquele em que a verdadeira mensagem
de transformação está prestes a surgir. No momento mais sombrio surge a
luz. (1990, p. 39)
Notas
1
CAMPBELL, Joseph. The Hero with a Thousand Faces. Princeton: Princeton
University Press, 1973. As citações da obra referem-se às páginas do original inglês,
apresentadas no texto em tradução livre de minha autoria.
2
FOER, J.S. Extremely Loud and Incredibly Close. London: Hamish Hamilton, 2005b.
As citações da obra referem-se às páginas da edição inglesa, apresentadas no texto
em tradução livre de minha autoria.
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, J. The Hero with a Thousand Faces. Princeton: Princeton University
Press, 1973.
__________. O poder do mito. Trad. de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Associação
Palas Athena, 1990.
FOER, Jonathan Safran. Everything Is Illuminated. New York: Perennial, 2003.
_______ . Tudo se ilumina. Trad. Paulo Reis e Sérgio Moraes Rego. Rio de Janeiro:
Rocco, 2005a
_______ . Extremely Loud and Incredibly Close. London: Hamish Hamilton, 2005b.
HALBWACHS, Maurice. A memória coletiva. Trad. de Beatriz Sidou. São Paulo:
Centauro, 2006.
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137
PROPP, V. Morphology of the Folk Tale. 2. ed. Austin: University of Texas Press,
1979.
TODOROV, T. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.
Artigo recebido em 20.05.2008.
Artigo aceito em 01.09.2008.
Mail Marques de Azevedo
Doutora em Estudos Lnguísticos e Literários em Inglês pela Universidade de
São Paulo – USP.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Professora da Universidade Federal do Paraná – UFPR (aposentada).
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
HIBRIDISMO E MÍMICA NO CONTO
“MONSIEUR CALOCHE”,
DE JESSIE COUVREUR
Cristiane Busato Smith
[email protected]
RESUMO: Este artigo aborda a fase de
construção da literatura australiana por
meio da análise do conto “Monsieur
Caloche” de Jessie Couvreur. Discutemse as estratégias narrativas empregadas
no conto que articulam um ambiente
de tensões importantes na dinâmica
dialética da “identidade cultural
australiana”. Couvrer não apenas busca
retratar uma Austrália mais “autêntica”
ao tratar de temas que revelam o ethos
australiano; a autora vai mais longe e
apropria-se da matriz moral dos contos
de natal de Dickens. Deste modo,
“Monsieur Caloche” é inserido dentro
de um universo híbrido que relativiza a
complexa relação entre o colonizador e
o colonizado. O conto de Couvrer
torna-se exemplo de um texto sensível
a este cenário. “Monsieur Caloche”
contra-escreve a realidade conflituosa da
colonização inglesa na Austrália.
ABSTRACT: This article addresses the
construction of Australian literature
through the analysis of the short-story
“Monsieur Caloche”, by Jessie Couvrer.
It investigates the narrative strategies
used in the text to dramatize tensions
and space, reflecting the conflicting
formation of “Australian cultural
identity”. Couvrer not only seeks to
portray a more “authentic” Australia in
dealing with themes and motifs that
reveal the Australian ethos, but also goes
a step further, appropriating the moral
matrix of Dickens’s Christmas stories.
By so doing, the author inserts
“Monsieur Caloche” in a hybrid
universe which brings to light the
complex relation between the colonizer
and the colonized. Couvrer’s short-story
becomes a paradigmatic example of a
text that writes back to the English
colonization in Australia.
PALAVRAS CHAVE: A literatura de Jessie Couvrer. Pós-colonialismo. Estudos
Culturais.
KEY-WORDS: Jessie Couvrer. Post-colonial Studies. Cultural Studies.
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Who am I when I am transported?
Alan Lawson
O conto “Monsieur Caloche” foi escrito por Jessie Couvreur (184897) e publicado em 1890. A autora, nascida em Londres, é mais conhecida
como Tasma por ter morado muito tempo na Tasmânia. Considerada uma
das mais importantes escritoras e jornalistas australianas do século XIX, sua
obra (romances e contos) trata da situação colonial e da difícil posição da
mulher na Austrália do século XIX. Tasma é mais valorizada no século XX
a partir dos anos 70, por meio do resgate feito pela teoria feminista na
Austrália. No estilo de muitos escritores australianos, Tasma, em suas
freqüentes viagens a Europa, publica a sua obra fora da Austrália para ganhar
visibilidade.
A época1 da publicação de “Monsieur Caloche” testemunha uma
série de conflitos entre empregadores e empregados e o surgimento de vários
sindicatos que reivindicam melhores condições de trabalho e salários mais
justos para os australianos. Após cem anos de exploração da mão de obra
barata, após muitos terem feito fortunas através da aquisição de grandes
fazendas a preços irrisórios, o sonho que a Austrália seria um edênico novo
mundo para o imigrante não se sustenta mais. Trata-se de uma época de
grande crise financeira, caracterizada pela falência de diversos bancos, escassez
de grandes áreas de terras anteriormente adquiridas com facilidade, greves e
desemprego que atinge 30% da população. Entre as greves mais importantes,
estão a marítima e a dos tosquiadores de carneiros de Queensland. Apesar
das inúmeras tentativas de represálias às greves por parte do governo
australiano e dos chamados wool kings (reis da lã), algumas até sanguinárias,
os trabalhadores juntam forças e fundam o Partido Trabalhista Australiano.
A partir daí acontece a “reconstrução” nacional, e novas leis entram em
vigor para que o trabalhador ganhe um lugar mais justo na sociedade
australiana.
É neste ambiente conflituoso que os artistas e escritores australianos
procuram encontrar uma voz “genuinamente” australiana, distintas dos
modelos culturais da Inglaterra. Os escritores buscam retratar uma Austrália
mais autêntica, com uma linguagem mais informal que incorpora termos
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regionais assim como temas que revelam o ethos australiano, quais sejam: a
vida no sertão – chamado bush2 – e os trabalhadores itinerantes como peões
e tosquiadores de carneiros; o tema do confinamento e a questão da
identidade.
De acordo com Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin em
The Empire Writes Back (1989), os textos do primeiro momento tentavam dar
conta do novo mundo, descrevendo com esmero e detalhe um país com
uma paisagem, flora, fauna e nativos exóticos. Os escritores desta primeira
fase, inevitavelmente privilegiavam o “centro”: “enfatizando a ‘pátria’ sobre
o ‘nativo’, a metrópole sobre a província ou o colonial [...]” (1989, p. 4-6).
Passada a fase inicial, estamos na segunda geração de escritores que
tenta dar conta desta nova fase da colonização, quando uma diversidade de
vozes emerge na literatura. Como observa Geoffrey Dutton em Snow on the
Saltbush (1984):
A neve anglo-saxã que continuava caindo no sertão australiano havia
derretido há tempos. Para os primeiros escritores imigrantes, o exílio
fornecia o seu próprio assunto; com a emergência da segunda geração de
escritores, que se sentia em casa em duas culturas e traduzia uma realidade
na outra, a experiência de imigrante poderia ser a condição – não apenas
a causa visível – de sua resposta criativa à vida. (citado em WILDE, 1994,
p. 397)3
Portanto, há na época uma clara tendência em prol de uma linguagem
autenticamente australiana, ainda que dentro de um contexto literário onde
a tradição inglesa ocupe um lugar canônico e inquestionável. Escritores como
Tasma, pertencentes a uma cultura marginal e periférica, ameaçam e
questionam esta tradição, realizando contra-narrativas que, nas palavras de
Homi Bhabha: “continuamente evocam e rasuram suas fronteiras
totalizadoras [entre império e a colônia] e (...) perturbam aquelas manobras
ideológicas através das quais ‘comunidades imaginadas’ recebem identidades
essencialistas” (1998, p. 211).
“Monsieur Caloche” pertence claramente a esse segundo momento
literário, quando a fase inicial da colonização já havia passado e a literatura
celebratória de paisagens e seres exóticos já ficara para trás. Este conto reage
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exatamente contra a situação colonial. Minha hipótese é que o conto seja um
híbrido literário, no sentido proposto por Homi Bhabha. Em outras palavras,
Tasma se apropria de uma forma consagrada – os contos de natal, entre os
quais o paradigmático “Um conto de Natal” de Charles Dickens – e transpõe
a fórmula para o universo australiano. Porém, ao utilizar personagens “outros”
e um cenário “outro”, diferente da Londres de Dickens, Tasma acaba por,
intencionalmente ou não, abordar a especificidade da situação colonial
australiana. Assim, “Monsieur Caloche” pode ser entendido como um
discurso híbrido que dramatiza a presença das formas literárias do império
e da colônia, mas já de maneira diversa, como discutirei a seguir.
Partindo, portanto, da perspectiva pós-colonialista, este ensaio se
debruça sobre o tema da identidade australiana. Enfocarei, primordialmente,
a condição de imigrante em um país colonizado há pouco mais de dois
séculos. Pretendo mostrar como Tasma aborda a experiência colonial desde
o início do conto, através da descrição antagônica dos personagens principais,
da diferença de códigos lingüísticos, da mudança de ambiente cênico, do
significado das palavras bog e pig sticker e, mais significativamente, através da
idéia do travestimento e do crime cometido por Matthew Bogg contra
Monsieur Caloche. Este crime dramatiza a tensão do império inglês opressor
vis-a-vis o estrangeiro/a que tenta fazer da Austrália sua nova terra.
Uma das várias maneiras com as quais Tasma introduz a posição
inferiorizada do recém chegado Monsieur Caloche perante o futuro patrão
Sr Bogg é via um exacerbamento da tensão da espera da entrevista. Esta
tensão é evidenciada através dos olhos dos funcionários que antecipam a
terrível experiência que espreitava o jovem francês: vítimas da crueldade
cotidiana do Senhor Bogg, cuja presença todos evitam, os funcionários
simpatizam com o “frágil” Monsieur Caloche. A tensão da espera também é
personificada pelo vento, o qual, naquele dia escaldante, soprava loucamente,
“desarrumando todos os planos metódicos do dia”, “alvoroçando os chapéus
e os temperamentos das pessoas (...)” e “se mostrando um grande fanfarrão
no caráter de um exaltado imigrante, no seu papel original do frígido [vento]
Boréas da antiguidade” (p. 39, minha ênfase)4. Em outras palavras, o vento
funciona no texto como um “outro” vento, um vento imigrante, procedente da
antiguidade grega, um vento que alvoroça não apenas os chapéus, mas
também o temperamento das pessoas. Tasma recorre, portanto, à natureza
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para ilustrar o conflito da chegada do imigrante europeu ao novo mundo,
empregando antíteses como: desarrumado x metódico; exaltado x frígido; e
o imigrante x o antigo.
A tensão do texto surge também na caracterização antagônica do
Sr. Bogg e de Monsieur Coloche. Monsieur Caloche é descrito, já nas primeiras
linhas, como “não-inglês” (un-English, p. 33)” e “não-colonial” (uncolonial, p.
33), caracterizado não apenas por sua aparência física – seu rosto é todo
marcado com os sinais deixados pela varíola, “a doença diabólica” (the diabolical
disease, p. 33) – mas também pela sua maneira de ser, evidenciada em descrições
tais como: “suscetibilidades não masculinas” (unmanly susceptibilities, p. 33),
“algo misterioso” (something mysterious, p. 34), “transpirando” (perspiring p. 34)
e “triste” (sad, p. 41). Enfim, Caloche aparece como um jovem estrangeiro,
que por ter sido tão desfigurado pelas marcas da varíola, cria em torno de si
um ar de mistério e inspira pena nos funcionários, que se identificam com
sua fragilidade por terem sido vítimas do Sr. Bogg.
Do outro lado da sala de espera, num escritório mobiliado por móveis
da melhor madeira, está “Sir Bogg”, “Sir” sendo o título adquirido por
Matthew Bogg, um self-made man (p. 34), típico aventureiro inglês que, apesar
de chegar à Austrália matando e sangrando porcos e limpando o deque do
navio Sarah Jane, aprendeu na nova terra a explorar a situação colonial para
fazer fortuna. Bogg adquiriu terras por preços irrisórios e depois as vendeu
lucrando “três mil por cento por cada penny investido”:
Ora, Bogg, agora Sir Matthew Bogg, da empresa Bogg & Cia., era um selfmade man, no sentido de que o dinheiro faz o homem e que, se ele havia
feito dinheiro, o dinheiro poderia, com toda possibilidade, fazê-lo. Pois
ele fez dinheiro despejando-o na caixa registradora nos bons tempos
quando todos os comerciantes vitorianos eram como Midas e viam seus
espíritos e farinhas transformarem-se em ouro com seus toques; fez
dinheiro embolsando algo como três mil por cento de cada centavo
investido na terra miserável recebida pelo governo [...] Sua sorte e sua
visão, estavam no mesmo nível que sua diligência e, ao cabo de todo o
seu trabalho de escravo e sagacidade, sua recompensa, aos sessenta anos
de idade, foi um bom fígado, uma barriga, uma renda beirando a cem mil
libras e o título de Sir Matthew Bogg. (p. 36, minha ênfase)5
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Homens como Bogg mapearam a geografia australiana no século XIX
com seu dinheiro, pois, se o dinheiro faz o homem, ele faz também o mapa.
No caso da Austrália, o dinheiro logo redefiniu os contornos do espaço e
modificou a paisagem, uma vez que foi ele que permitiu a construção de
horríveis edifícios azuis, responsáveis pela estéril e lúgubre aparência de
Melbourne, chamada de “a cidade do luto” (city of mourning, p. 36). Em
outras palavras, Matthew Bogg é um oportunista que possuía um tino aguçado
para negócios. Em seu projeto capitalista, projeto este que é explicitamente
o da posse de seres humanos e terras, as pessoas se reduzem a meros objetos
de exploração. A fortuna, o título e as terras de Bogg permitem que agora
ele se dedique ao luxo de um perverso hobby: humilhar os seus funcionários
que dependem dele para o ganha-pão. Seu deleite é fazer tremer vítimas
impotentes e aterrorizadas, cada vez que lhes lança um olhar de desprezo.
As descrições de Caloche e Bogg os caracterizam como opostos:
“decididamente [...] de espécies diferentes. Um era um mastim robusto com
características de lobo e o outro era um delicado galgo italiano, suave, tímido,
tiritando com sensibilidade” (p. 39, minha ênfase)6.
Seres de espécies diferentes, Matthew Bogg e Monsieur Caloche
incorporam perfeitamente as dicotomias de “colonizador” e “colonizado”;
“oppressor” e “oprimido”. Sir Bogg é o próprio “sangrador de porcos” (pigsticker) aguardando a sua próxima vítima para sangrá-la, e Monsieur Caloche,
com a sua fragilidade e estrangeiridade, estava totalmente a mercê do seu
predador. A descrição dos personagens realiza as diferenças entre eles e
marca a inexorabilidade do conflito que emerge dessa diferença.
O contraste entre os dois personagens se manifesta ainda na escolha
de seus nomes. O substantivo bog, em inglês, significa lodo, e o verbo to bog
significa atolar ou afundar no lodo, remetendo, numa primeira análise, ao
“lodo”, à “sujeira” pela qual Sir Bogg conquista fortuna e título. Caloche,
em contrapartida, sonoramente lembra callous no sentido de calejado, caloso,
aqui entendido simbolica e literalmente por conta das marcas cutâneas
deixadas pela varíola. Ao contemplarmos estas possibilidades semânticas,
conseguimos antever o triste destino do “calejado” Monsieur Caloche, que
afundará metaforica e literalmente, no “lodo” do Sr Bogg.
Além da diferença na aparência física, no temperamento, e na
oposição semântica dos nomes Bogg e Caloche, o contraste entre os dois
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personagens está também expresso na linguagem que adotam. Caloche, como
dito anteriormente, é francês e fala mal a língua inglesa. Ele emprega, por
exemplo, frases afrancesadas como “I’m going to do my possible” (Je vais faire
mon possible), quando o apropriado seria “I’m going to do my best” ou “I’m going
to do what I can”, em inglês. Em relação ao francês, é de supor que, como
indica seu currículo, segundo o qual ele seria um Homme des Lettres, que
Caloche tenha recebido educação formal. Por seu lado, Bogg, que se intitula
Sir, ironicamente não fala a linguagem das classes altas da metrópole inglesa;
ao contrário, sua linguagem constitui um claro exemplo do cockney falado
pelos primeiros colonizadores. Esses colonizadores, como narra a história,
eram, com efeito, os prisioneiros despejados na Terra Australis Incognita a fim
de minimizar o problema da superpopulação das prisões na Inglaterra7.
Portanto, a diferença dos códigos lingüísticos de Bogg e Caloche funciona
para tornar o abismo ainda maior entre eles.
Assim, por meio da linguagem, a oposição entre o colonizador e
capitalista Bogg e o imigrante estrangeiro e pobre Caloche é ironicamente
desconstruída. Ambos são, na verdade, imigrantes. Muito embora Bogg recuse
conceber-se como estrangeiro e rotule Caloche como o Outro, o que vem de
fora, o subordinado, os dois, na realidade, compartilham uma origem similar:
ambos são imigrantes em um país colonizado por imigrantes. O que os
distingue não é a origem, mas tão somente o fato de um – Bogg – ocupar
uma posição de poder. Contudo, Matthew Bogg parece ter esquecido as
suas origens, pois, para ele, Monsieur Caloche não é mais do que um
“aventureiro estrangeiro” (foreign adventurer, p. 41) – cuja situação, vale repetir,
ele próprio havia vivido e, ironicamente, esquecido. Para Bogg, Caloche é
um aventureiro que traz consigo o estigma de não compartilhar a “nossa
língua” (our language, p. 41)”; ele fala a língua do outro. Por isso, Bogg adverte
severamente o acuado francês: “Eu não quero nenhum do seu parle-vous no
meu escritório” (I don’t want any of your parley-vooing in my office, p. 41) – ou
seja, a língua do outro não era bem-vinda. Esta situação faz-nos lembrar do
início da colonização australiana quando o Império Inglês insistentemente
fez tudo ao seu alcance para destruir a população autóctone, contribuindo,
desta forma, para destruir as próprias culturas e línguas das diversas tribos
aborígines.
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Outro exemplo lingüístico que ilustra adequadamente a questão da
“nossa” língua versus a língua do “outro” é evidenciado pelo substantivo
trap: Matthew Bogg, querendo livrar-se rapidamente do francês, envia-o para
uma de suas fazendas, dizendo: “Vá então juntar os seus trapos! Eu dou-lhe
um emprego no interior! (Go and get your traps together, I say! I’ll find you a job
up-country!, p. 42, minha ênfase)” e Monsieur Caloche, tentando entender o
inglês do Sr. Bogg, lembra que trap significa: “um instrumento que serve
para capturar animais” (an instrument for snaring animals, p. 42). Na realidade,
Matthew Bogg estava se referindo pejorativamente aos pertences, aos trapos
de Monsieur Caloche. Esta confusão de significados por meio da duplicidade
das palavras exemplifica o conflito lingüístico de Bogg e Caloche: há a clara
sugestão que Monsieur Caloche cairá na armadilha / trap do senhor Bogg
(bogg/lodo), o que de fato ocorrerá no final do conto.
Se Tasma problematiza a tensão colonial através dos seus
personagens principais – Sir Matthew Bogg como opressor, representando
o colonizador e o Império Britânico e Monsieur Caloche como oprimido,
colonizado – da mesma maneira o espaço cênico e seu movimento evolutivo
da metrópole para o sertão australiano (the bush) projeta o desenrolar do
conto e a involução negativa dos acontecimentos. O acuado francês chega
numa das fazendas de Matthew Bogg e, a despeito de ser bem diferente dos
tosquiadores e peões, acaba por se beneficiar da liberdade e isolamento que
o local lhe proporciona. Contratado como cavaleiro (boundary rider), não havia
cavalo que ele não conseguisse montar. Os peões achavam que ele tinha
algo de sobrenatural, pois até os cavalos mais arredios tornavam-se mansos
nas rédeas do habilidoso francês. E todos o achavam estranho, pois:
(...) com o cair da noite, ele geralmente desaparecia. Um de seus trabalhos
era o de separar a lã e ele tinha mania de limpar a graxa das mãos na menor
oportunidade que se apresentava. Outra peculiaridade era a sua aversão a
sangue. Por uma estranha coincidência, ele nunca era encontrado em
nenhum lugar aonde algum animal tivesse sendo abatido. (...) Da mesma
forma, ele nunca foi persuadido a aprender boxe, o passatempo favorito
das manhãs de domingo e das noites de verão dos peões. Quando algum
nariz era golpeado, parecia que doía em si próprio. (p. 43, minha ênfase)8
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Se, por um lado Monsieur Caloche era considerado um tanto quanto bizarro,
por outro, os empregados apreciavam o seu jeito delicado. Seu poder de
“encantamento” com os cavalos estendia-se para com os seus colegas:
Quase valia a pena torcer um membro ou cortar um dedo para que os
dedos destros de Monsieur Caloche fizessem o curativo. Seu horror a sangue
nunca interferia quando havia um ferimento a ser tratado. Suas mãos
suaves trabalhavam o ferimento com ternura e delicadeza, de forma que a
vítima sentia-se aliviada e quase curada pelo contato. O mesmo acontecia
com a sua manipulação das coisas. Havia um refinamento na maneira pela
qual ele organizava um ambiente rústico que o fazia parecer diferente. (p.
44)9
Difícil precisar, entretanto, se Monsieur Caloche sentia-se feliz no
campo. O narrador, nesta parte do conto, observa-o com um distanciamento
que talvez revele o isolamento e a liberdade desejados por Monsieur Caloche
e preserva o mistério do personagem, fundamental, como veremos adiante
para a resolução do conflito.
Muito embora a mudança do espaço ficcional – de Melbourne para
o campo (the bush) – enfatize a beleza e a liberdade transitória que Caloche
usufrui naquele local, esse mesmo campo será, paradoxalmente, o cenário
de sua morte. Num dado dia, Matthew Bogg chega para fiscalizar a sua
fazenda que está acometida por um período de seca. Surpreende os
empregados no meio de um dia monótono, que, contaminados pela preguiça
causada pelo calor do meio dia, largam-se, momentaneamente, ao prazer de
não fazer nada. Sir Matthew Bogg revolta-se com a tranqüilidade e apatia
dos empregados, que, a seu ver, mesmo naquela hora, deveriam estar
trabalhando exaustivamente e decide achar um “bode expiatório para a seca”
(a scapegoat for dry weather, p. 45) para extravasar a sua irritabilidade. Que
vítima melhor que o frágil estrangeiro, homme des lettres, Monsieur Caloche?
Bogg, no entanto, não o encontra de início e pede ao administrador que o
leve até ele. Notando o humor irascível de seu chefe, o administrador, apesar
de nunca ter se manifestado em favor de qualquer empregado, neste momento
fala em defesa de Caloche – “esse rapaz é um bom trabalhador senhor!” (he’s
a good working chap, that, sir!, p. 46). Instigado pelo perverso desejo de vitimálo, Bogg insiste em encontrar Caloche e, junto com o administrador, vai ao
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seu encalço. Depara-se com Caloche galopando um dos cavalos de sua posse
e decide, então, ensinar-lhe uma lição por arruinar as pernas do seu cavalo:
“Você vai galopar no inferno! Vou te ensinar o que dá estragar as ‘perna’ do
meu cavalo” (You can gallop to hell! I’ll teach you to ruin my ‘orses’ legs!”, p. 47). Ao
falar isso, Bogg dá uma chicotada violenta em Caloche, cujo rosto se desfigura
em medo. Caloche foge, chorando desesperadamente, em direção da floresta
– the wild bush (p. 47) – onde é mais tarde encontrado morto.
Bogg retorna a casa, porém, perseguido pela imagem de pavor da
face transfigurada do francês, resolve voltar à floresta com o administrador.
Quando eles finalmente localizam o corpo de Caloche, o administrador
confirma sua morte e, ao desabotoar a camisa, para o horror de Bogg, eles
se deparam com: “uma moça com um seio de mármore, revelando sua
brancura fria em pleno dia, ante o seu olhar ardente. Desnuda, sem nenhum
protesto dos olhos semi-abertos, indiferente, atrás do véu translúcido que os
vitrificava. Um seio virgem, sem sequer uma mancha, a não ser por uma
marca roxa que desenhava uma linha escura colo abaixo” (p. 50-51)10.
Bogg será perseguido por essa imagem porque nela está o
reconhecimento de que a causa da morte de Henriette Caloche não tinha
sido a exposição ao “faminto sol australiano” (p. 50), como havia sido
aventado, e sim “a sua própria mão sanguinária” (p. 51).
Desde o momento de revelação, Matthew Bogg sente-se contaminado
pela palidez mortuária de Henriette Caloche pelo resto de sua vida a ponto
de se tornar um “homem mudado” (p. 52), desistindo de seu hobby cruel.
Após sua morte, Bogg deixa a maior parte de sua fortuna para a construção
de uma ala para tratamento de varíola em um hospital francês, chamada de
Ala Henriette. Aqui encontramos, portanto, duas claras influências da
literatura canônica vitoriana: a varíola como ameaça de desfiguramento –
principalmente com relação ao sexo feminino – e a cena de regeneração.
Em uma época em que a beleza feminina era um dos poucos
passaportes para o casamento, este sim uma das únicas possibilidades abertas
para as mulheres, a varíola era um fantasma que habitava o imaginário
feminino. Em Bleak House, por exemplo, a protagonista Esther contrai a
doença e apenas sua natureza submissa permite que ela não se revolte e
aceite o seu destino. Portanto, vemos que Tasma se apropria deste que é um
tropo freqüente na literatura canônica inglesa.
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Em relação à regeneração do vilão, novamente Tasma se volta para
Dickens. Segundo a tradição dos contos de natal, os malvados se regeneram
através de alguma lição importante. Em “Um conto de Natal” de Charles
Dickens, o avaro Scrooge é levado por espíritos de natais passados a uma
viagem ao seu passado no intuito de que ele reconheça a sua perversidade e
crueldade principalmente com relação aos seus empregados. No final do
conto vemos um Scrooge totalmente regenerado, comemorando o natal com
bondade e generosidade.
A conversão de Bogg é feita nestes moldes. Cabe enfatizar, no
entanto, que a mudança drástica no comportamento de Bogg é artificial e é
narrada de um ponto de vista irônico. Como adverte o narrador, que tenta
justificar a súbita conversão moral relacionando-a aos famosos contos de
natal ingleses, “[r]eceio que seja apenas em histórias natalinas que, em
deferência a uma época tão festiva, tudo tende a dar certo no final: a natureza
das pessoas é revolucionada em uma noite e vilões mesquinhos tornam-se
Serafins caridosos” (p. 51-2)11.
À parte a repentina transformação de Bogg e a moldura moral do
conto, típica das narrativas do século XIX, “Monsieur Caloche” certamente
problematiza importantes questões políticas de sua época: o lugar do
imigrante, o poder do colonizador e também, por intermédio do final do
conto, a posição da mulher em uma sociedade onde a luta contra o espaço
físico torna os homens mais aptos para o sucesso.
A revelação de que Monsieur Caloche era uma mulher, complexifica
duplamente o problema da alteridade. Caloche não era somente o “outro” o
“colonizado”, o “oprimido”, mas o “outro” feminino, sem voz e sem lugar.
A prática do travestimento, de acordo com Judith Walkowitz, não era recurso
estranho no século XIX e exercia “uma influência ainda mais acentuada
sobre a imaginação feminina: vestir-se de homem e fazer-se ao mar ou alistarse no exército era a fantasia de adolescente mais freqüente nos diários
femininos ao longo de todo o século” (1991, p. 431). O travestimento traduz
bem a sensação de inferioridade de uma mulher que busca na Austrália uma
nova vida, construindo-se como homem, já que sabia que como mulher não
teria chance alguma. Com um rosto deformado pela varíola, Henriette Caloche
renega o seu sexo, sua condição de mulher e esconde-se por trás de uma
nova identidade que lhe traria trabalho e um reinício. É principalmente através
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dos silêncios da narrativa e da imagem indelével da sua morte, imagem esta
que Matthew Bogg não consegue esquecer, que a voz sufocada desta jovem
se faz ouvir. Em certo sentido, tanto Bogg quanto Henriette se forjam como
“self-made men”: um é o imigrante que assume a “identidade” de “Sir” e
consegue sucesso financeiro à custa do trabalho alheio. O outro é a mulher
desfigurada que se faz passar por homem e apenas no sentido literal é um
self-made man, isto é, se torna um homem, mas sem que isso implique em
abraçar a ideologia capitalista do sucesso a qualquer custo. É nesta relação
reflexiva que o conto “Monsieur Caloche”, constrói estas duas visões do
self-made man: o capitalismo colonial e a performance da masculinidade,
metáforas adequadas para o enfoque deste estudo.
A questão da mudança de identidade pode ser compreendida quando
pensamos na beleza feminina como único valor de troca das mulheres no
século XIX. Tendo perdido essa beleza, Henriette teve que procurar outra
estratégia para sobreviver em um mundo onde há poucos caminhos abertos
para as mulheres fora do casamento. A idéia do travestimento também recebe
relevo quando a lemos através do estudo de Homi Bhabha sobre a mímica e
a ambivalência nos discursos coloniais. Bhabha argumenta que apesar destes
discursos representarem o Outro dentro da ‘norma’ do discurso ocidental é
exatamente dentro desta representação que, paradoxalmente, encontra-se o
Outro, um estrangeiro a estas normas. Esta estratégia enfatiza a ambivalência
como elemento central ao discurso colonialista e Bhabha conclui que esta
ambivalência é inerente ao que ele denomina de “mímica colonial”:
(...) a mímica colonial é o desejo de um Outro reformado, reconhecível,
como sujeito de uma diferença que é quase a mesma, mas não é exatamente. O que
vale dizer que o discurso da mímica é construído em torno de uma
ambivalência; para ser eficaz, a mímica deve produzir continuamente seu
deslizamento, seu excesso, sua diferença. (...) A mímica é, assim, o signo
de uma articulação dupla, uma estratégia complexa de reforma, regulação
e disciplina que se “apropria” do Outro ao visualizar o poder. A mímica
é também o signo do inapropriado, porém uma diferença ou recalcitrância
que ordena a função estratégica dominante do poder colonial intensifica
a vigilância e coloca uma ameaça imanente tanto para os saberes
“normalizados” quanto para os saberes disciplinares. (2007, p. 130)
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É por meio dessas tensões da estratégia retórica de hibridismos,
deformação, disfarce e inversão dos elementos narrativos, que podemos
afirmar que “Monsieur Caloche” problematiza a diferença entre a literatura
da metrópole e da margem. “Monsieur Caloche” como literatura ultrapassa
a fórmula do conto de natal inglês. Ao problematizar as questões coloniais
australianas e abordar o peculiar espaço vital do país, bem como o de seus
habitantes, o conto de Tasma se torna um híbrido narrativo. É neste “entrelugar”, no sentido da mímica colonial explicitada por Homi Bhabha, que
“Monsieur Caloche” articula as diferenças e identidades culturais inerentes
à formação da nação australiana. É dentro deste ambiente traduzido,
emoldurado por uma estrutura transgressora e travestida, que o conto de
Tasma é desenvolvido; pois, como o conto narra, Sr. Bogg fica simbolicamente
contaminado pela varíola de Henriette: ele fica “marcado” com as cicatrizes
da vergonha de seu crime. Desta forma, Tasma articula duas idéias ao mesmo
tempo: a primeira é a de que, a despeito da súbita regeneração do colonizador
Bogg, a marca de seu crime – a colonização do corpo de Henriette – “deve
queimar em sua testa para sempre” (p. 51). A outra idéia é a da contranarrativa que, ao se apropriar criticamente da estrutura do conto de natal
inglês, assinala, ao mesmo tempo, o seu distanciamento. A ironia pela qual
Tasma descreve o final não deixa sombra de dúvidas: homens como Sir
Bogg não se transformam em Serafins de um momento para o outro.
Concluindo, ao travestir a matriz moral do conto de natal inglês
dentro de um universo outro, Tasma, intencionalmente ou não, nos fala de
um crime outro através do crime cometido por Bogg. A colonização, o crime
da exploração e devastação de terras, culturas e pessoas, tal qual a imagem
de Henriette Caloche morta que persegue Bogg até o fim de seus dias, marca
a história australiana, como as feridas na face de Henriette.
Vítima da colonização de Sir Bogg, Henriette Caloche se torna maior
do que a própria personagem – ela se torna uma estatueta de mármore,
símbolo da virgem branca. De acordo com esta perspectiva, o corpo puro e
intocado de Henriette passa a simbolizar a própria terra australiana virgem,
antes da presença destruidora do colonizador branco.
A cena do crime de Caloche é enquadrada pelo caráter transgressor
do texto. A disseminação no conto de referências propositais ou não, como
a varíola e o crime de Caloche, permite entrever um fato extratextual que a
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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eles remete: a varíola trazida pelo colonizador e o crime colonial. Essa
perspectiva de leitura, passível de ser também descortinada através da citação
shakespeariana que é encontrada no bolso de Henriette – “A beleza uma vez
maculada, é para sempre perdida!” (So beauty blemished once for ever’s lost!, p. 51)
– mostra que não há como recuperar a beleza de Henriette ou da terra
nativa.
Se, por um lado, o enredo de “Monsieur Caloche” tem um desfecho
triste que espelha a recente e cruel história de exploração da terra e de pessoas,
por outro, a estratégia narrativa de hibridismo e mímica utilizada por Tasma
implica em e aponta que a literatura australiana já se encontrava em pleno
processo de questionamento e redefinição.
Notas
1
Sobre o período de 1889-1913, chamado de Reconstrução Nacional (National
Reconstruction), ver MCINTYRE, Stuart A Concise History of Australia, p. 122-154;
WILDE, William et alli, The Oxford Companion to Australian Literature, p. 579-580.
2
Bush é o termo que designa a terra selvagem e inóspita do interior australiano, não
cultivada; floresta ou deserto. Parte importante da ‘identidade australiana’, o folclore
e a literatura incorporam a imagem do bush. Escritores como Henry Lawson e
Joseph Furfy exploram o tema e descrevem a luta de fazendeiros que tentam cultivar
um solo difícil numa terra inóspita.
3
“The Anglo Saxon snow that kept falling on the Australian saltbush has long since melted.
For early immigrant writers exile had provided its own subject matter; with the emergence of
second generation writers, at home in two cultures and practised at translating one reality into
another, the immigrant experience coud be a condition – not simply a visible cause – of their
imaginative response to life”. Esta e todas as outras traduções do artigo são de minha
responsabilidade.
4
“...upsetting all orderly arrangements for the day (...) “...bringing havoc with people’s hats and
tempers”, “ proving itself as great a blusterer in its character of a peppery emigrant in its
original role of the chilly Boreas of antiquity”
5
“For Bogg, now Sir Matthew Bogg, of Bogg and Company, was a self-made man, in the sense
that money makes the man, and that he had made the money before it could by any possibility
make him. Made it by dropping it into his till in those good old times when all Victorian
storekeepers were so many Midases, who saw their spirits and flour turn into gold under their
152
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
handling, made it by pocketing something like three thousand per cent upon every penny invested
in divers blocks of scrubby soil […] His luck, his foresight, were only on a par with his industry,
and the end of all his slaving and sagacity was to give him at sixty years of age a liver, a paunch,
an income bordering on a hundred thousand pounds, and the title of Sir Matthew Bogg”
6
“Decidedly ... of a different order of species. One was a heavy mastiff of lupine tendencies - the
other a delicate Italian greyhound, silky, timorous quivering with sensibility.”
7
Em 1770 o capitão inglês James Cook aporta em Botany Bay, baía próxima a
Sidney, e toma posse da terra no nome da coroa britânica. Em 1778, chega à
Austrália a primeira frota britânica composta de 11 navios na clara intenção de
consumar a posse da terra. Esta primeira frota leva em torno de 1.000 prisioneiros,
além de provisões alimentícias para dois anos. Sobre a história da colonização
australiana, ver MCINTYRE, Stuart. A History of Australia. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999, p. 17-121.
8
“…with the setting of the darkness he regularly disappeared. [...] He was given odd jobs of
wool-sorting to do, and was found to have a mania for washing the grease off his hands whenever
there was an instant respite. Another peculiarity was his aversion to blood. By some strange
coincidence, he could never be found whenever there was any slaughtering on hand. [...] Equally
he could never be induced to learn how to box – a favourite Sunday morning and summer evening
pastime among the men. It seemed almost to hurt him when damage was done to one of the
assembled noses.”
9
“It was almost worth while spraining a joint or chopping at a finger to be bandaged by
Monsieur Caloche’s deft’s fingers. His horror of blood never stood in his way when there was a
wound to be doctored. His supple hands [...] had a tenderness and a delicacy in their way of
going to work that made the sufferer feel soothed and half-healed by their contact. It was the same
with his manipulation of things. There was a refinement in his disposition of the rough
surroundings that made them look different after he had been among them.”
10
“a girl with a breast of marble, bared in its cold whiteness to the open daylight, and to his
ardent gaze. Bared, without any protest from the half-closed eyes, unconcerned behind the filmy
veil which glazed them. A virgin breast, spotless in hue, save for a narrow purple streak,
marking it in a dark line from the collar-bone downwards.”
11
“It is only in Christmas stories, I am afraid, where, in deference to so rollicking a season,
everything is bound to come right in the end, that people’s natures are revolutionized in a night,
and from narrow-minded villains they become open-hearted seraphs of charity.”
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REFERÊNCIAS
ASHCROFT, Bill, GRIFFITHS, Gareth and TIFFIN, Helen. The empire writes
back. Theory and Practice in Post-Colonial Literatures. New York: Routledge, 1989.
BABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998
KENT, Hillary (ed.) The Australian Oxford dictionary. Melbourne: Oxford University
Press, 1998.
GOLDSWORTHY, Kerry (ed.) Australian Women’s Stories. Melbourne: Oxford
University Press, 1999.
MCINTYRE, Stuart A Concise History of Australia. Cambridge: Cambridge
University Press, 1999
WALKOWITZ, Judith R. “Sexualidades perigosas”. In: DUBYS, Georges e
PERROT, Michelle. História das mulheres. O século XIX. Porto: Edições
Afrontamento, 1991.
Artigo recebido em 17.04.2008.
Artigo aceito em 14.06.2008.
Cristiane Busato Smith
Doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paraná.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
UMA ABELHA, DUAS APARIÇÕES –
UM CASO DE REPRESENTAÇÃO EM
MISHIMA E MURAKAMI
Benedito Costa Neto Filho
[email protected]
RESUMO: Este artigo trata da
comparação entre os textos Mar inquieto,
de Yukio Mishima, e Minha querida
sputnik, de Haruki Murakami. Parte da
representação para mostrar como os
dois autores trabalham a questão do
amor. Ambos discutem o seguinte lugarcomum sobre o Japão: um país entre a
tradição e a modernidade. Ambos,
igualmente, escolhem um triângulo
amoroso para investigar os meandros
dos discursos sobre o amor.
ABSTRACT: This paper compares the
novels Mar inquieto, by Yukio Mishima,
and Minha querida sputnik, by Haruki
Murakami. It deals with the authors’
concepts of love as worked in the texts.
Both authors discuss the following
common-place notion about Japan: a
countr y between tradition and
modernity. Both authors equally choose
a love triangle to investigate the
meanderings of the discourses about
love.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura comparada. Romances japoneses. Discurso sobre
o amor.
KEY WORDS: Comparative Literature. Japanese novels. Discourses about love.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Quem tem acesso ao acervo do Ohara Museum of Art pode se
deparar com a tela Scarlet Rug, com data de 1932. Como o museu foi fundado
com ênfase em arte moderna, a tela faz parte de um conjunto impressionante
de Monets, Pissaros, Cézannes. Nada mais natural do que pensar que Scarlet
Rug seja um Gauguin, pois o museu conta, por exemplo, com Te nave nave
fenua, deste pintor francês, que retrata uma mulher do Pacífico, provavelmente
numa das passagens de Gauguin pelo Taiti. O que se vê na tela de 1932:
duas mulheres orientais a se deliciar ao sol, lânguidas, a um só tempo sensuais
e contemplativas. Poucos traços definem suas feições, há pinceladas fortes,
grossas, e o fundo em cores chapadas não deixa dúvidas – trata-se de um
Gauguin. Mas algo incomoda: a data da pintura, 1932. Gauguin morrera
trinta anos antes. A tela também não faz parte do acervo de pinturas européias
e sequer tem exposição permanente, como Degas ou Poussin. O especialista,
claro, sabe tratar-se de uma pintura com influência de Gauguin, mas o leigo
precisa fazer a leitura: “Scarlet Rug, oil on canvas, Mitsutani Kunishiro, 1932”.
Mitsutani estudou na França, como tantos outros artistas japoneses. Suas
primeiras telas são composições de estudante, com traços ora do
impressionismo, ora do expressionismo, mas seguiu “caminho próprio” e,
em 1932, dois anos antes de sua morte, homenageou Gauguin. Curiosamente,
o jovem Gauguin, meio século antes, deixara-se levar por um certo modo de
retratar, típico da pintura e da gravura japonesas, maravilhado com suas
possibilidades. É de se pensar que o caminho contrário tenha sido seguido.
Evidentemente, o exemplo aqui poderia ser de um brasileiro, como Victor
Meirelles ou Pedro Américo, pois ambos estudaram na Europa e deixaramse influenciar pela pintura européia. Em A primeira missa no Brasil, por exemplo,
o conjunto dos padres celebrantes pode ser visto de forma quase idêntica na
pintura de um francês, Horace Vernet, que retratou outra primeira missa, a
de Kabilie. Porém, no caso dos brasileiros, não se viu o caminho contrário;
afora isso, o exemplo de Misutani está dentro do contexto deste artigo.
Podemos imaginar que Mitsutani não tentava ser Gauguin, assim
como Gauguin não tentou ser Hokusai ou Sharaku. Jamais um seria o outro
por uma onipresente ordem lógica das coisas, e não é necessário esmiuçar as
diferenças das pinceladas de ambos para se afirmar isso. Por mais que Gauguin
amasse o Oriente e a Oceania, foi distante da Europa que encontrou a morte,
após um terrível aprisionamento. Mitsutani, por seu turno, assim como tantos
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
outros artistas, voltou ao Japão, sem poder viver na Europa, porém sem o
reconhecimento que Gauguin alcançou. Entretanto, podemos falar em
influência, em cópia, ou mais sutilmente em homenagem, pois isso é muito
nítido na pintura de ambos. Misutani permitiu-se influenciar por Gauguin,
assim como Gauguin houvera permitido influenciar-se pela arte japonesa,
notadamente a gravura.
Algo semelhante ocorre na literatura e não são poucos os exemplos.
Yukio Mishima e Haruki Murakami seguiram caminho semelhante ao de
Gauguin e de Misutani e é tal discussão que agora nos interessa. Para
possibilitar um discurso coeso, foram escolhidas obras recentemente
publicadas no Brasil, vertidas para a língua portuguesa. Após a premiação
de Kenzaburo Oe, com o Nobel, em 1998, muitos textos da literatura japonesa
ganharam publicação ou reedição.
Sabe-se o quão complexo é discutir obras produzidas em outra língua,
principalmente quando de trata de uma língua distante, porém não se pode
negar a existência das publicações e a possibilidade de investigação, mesmo
que no interior de um território muito estreito. Deve ser lembrada, a todo
tempo, a humildade com que devemos estudar cometas.
Foram escolhidos trechos de Mar inquieto, de Yokio Mishima, e de
Minha querida Sputnik, de Haruki Murakami. Para facilitar a leitura, optou-se
por uma descrição geral do painel onde estão inseridas as duas escrituras.
Neve ao pé do Fuji
Mar inquieto é um livro estranho, se comparado a Confissões de uma
máscara e a Cores proibidas. Quem conheceu o Mishima das duas primeiras
obras deve ter sentido o impacto da terceira e podemos dizer que o caminho
inverso também proporcionou – e ainda proporciona – surpresa. Em Confissões,
temos a devassa do meio homossexual de Tókio. A homossexualidade até
então era tema tabu na literatura japonesa, embora haja indícios (bem difíceis
de serem localizados, em verdade, mas apontados por historiadores como
Spencer, em sua obra Homossexualismo, uma história, ou exegetas como
Marguerite Yourcenar, que no fim da vida se dedicou ao estudo do japonês
e da obra de Mishima) de que a condição homossexual era vista com menos
preconceito do que no Ocidente. Ao menos, era vista sob outro prisma,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
157
como outra problemática, pois a concepção de “homossexualidade” é
ocidental e comum ao discurso cientificista do século XIX. Como não
desejamos questionar tal situação neste texto, partimos de uma constatação:
nos textos clássicos da literatura japonesa o tema é raríssimo, exceto no caso
de relatos de moças com disfarces masculinos, talvez inspirados no texto
chinês Mu-lan, o que, de qualquer forma, não é caso de homossexualismo.
Na Europa do mesmo período, obras que devassavam o meio homossexual
eram comuns. André Gide, Marguerite Yourcenar, Thomas Mann, entre
outros, já tinham traçado o caminho, principalmente em primeiras obras que
eram como libelos, uma espécie invertida de autos- de-fé. Uma obra
extremamente famosa de Gide, Córidon, não apenas fazia levantamento do
universo homossexual masculino como encontrava na natureza, nas artes e
no mito respaldo para provar o quanto o homossexualismo era natural, na
esteira do discurso científico do século XIX, usando, inclusive, as mesmas
ferramentas da condenação para uma absolvição. O texto de Gide é de 1911,
com reedição em 1920. O autor francês, porém, enaltecia a relação que
chamava de urânica. Mesmo ao mostrar o quanto ela podia trazer sofrimento,
Gide era extremamente sutil, como no caso de O imoralista. Anos depois,
produziria uma obra em que o homossexualismo propiciava felicidade,
mesmo que transgredisse outro tabu, o da família, embora necessitasse
prescindir da liberdade, caso de Os moedeiros falsos. Yourcenar, por sua vez,
mergulharia no universo homossexual masculino em diversas obras, sendo
sua primeira Alexis, ou o tratado do vão combate, que era uma resposta a um
Tratado do vão desejo, da juventude de Gide. Nas obras de Yourcenar, o
sofrimento homossexual não era intrínseco à sua condição maldita ou
(re)negada e sim por sua condição de amor, simplesmente. Embora Yourcenar
houvesse lido O banquete e tivesse como horizonte a divisão entre amor
urânico e pandêmico (tão discutida por Gide), o amor homossexual era
“natural”. Obras posteriores deixariam isso bem claro, como O golpe de
misericórdia e Memórias de Adriano. O amor causa sofrimento quando distante,
o que era mais uma visão sagrada do amor do que propriamente uma
discussão sobre seu universo escuro, seus porões tétricos. (Sobre essa condição
sagrada do amor, vale a pena conferir a discussão feita por Joseph Campbell
em seu famoso livro de entrevistas O poder do mito.) Mas nem tudo eram
rosas na literatura européia. Muitas décadas foram necessárias para uma
158
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
visão “natural” do amor urânico proposta por Gide e obras de escritores
consagrados mostravam o amor homossexual (em diversas formas,
pandêmico, urânico) como um problema. Isso ocorre, por exemplo, em
Thomas Mann, como no caso de Morte em Veneza (e em sutis lembranças de
amores infantis na Montanha mágica, em Félix Krull). Paralelamente, o caso
real da vida de Oscar Wilde era forte o bastante para estar presente – podemos
supor – na consciência de quem produzia literatura na primeira metade do
século XX. Outros escritores, mais tarde, descreveriam o universo
homossexual como submundo, deportado do universo sofisticado de Gide,
Yourcenar, Mann ou Forster. James Baldwin submeteria seu Giovanni a um
universo underground, com trágicas conseqüências para suas personagens,
assim como o livro de estréia de Gore Vidal, A cidade e o pilar, destinaria a
seu protagonista algo extremamente infeliz. Mas talvez nenhum outro escritor
mostrasse o universo homossexual de modo mais dramático que Jean Genet:
sujo, torpe, ignóbil. Em nenhum dos autores citados, o homossexualismo
tinha sido construído sob o viés de uma específica condição física, de esperma
seco e de excrementos. Houvera pedofilia, mortes, suicídios, tristeza,
amargura, mas pela primeira vez travestismo, roubo, e a condição do amor
homossexual como mais física que espiritual ou de condição de alma.
Descarta-se, aqui, a comparação com Sade, por merecer ela um texto a parte,
com investigação mais profunda. Jean-Paul Sartre, todavia, tentou provar
que o universo genetiano era o da “decadência como triunfo” (SARTRE,
2002, p. 46). De fato, se analisamos a personagem Querelle de Brest,
constatamos um pundonor que o lugar-comum imputa aos príncipes.
Confissões é um passeio por esse universo de encontros intensos. Os
biógrafos de Mishima procuram encontrar em suas obras diálogos com Gide
ou Mann e, embora tal exercício exegético seja comumente de difícil defesa,
não podemos negar o quanto o escritor japonês era fascinado pela literatura
européia, principalmente quando entrou em contado com a obra de Bataille.
Com muita liberdade, poderíamos encará-lo, sim, como um livro de iniciação,
como os demais citados, grande parte com situações autobiográficas, mais
ainda com um passeio à Dante pelo universo homossexual, o que o
aproximaria mais de Gore Vidal (que não sabemos se Mishima leu) do que
de Gide ou até mesmo Genet, que, a esse sim, sabemos, admirava. Em
Confissões, há o susto da descoberta de um universo absolutamente novo,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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repleto de maravilhas e de horrores, como num sonho, recurso bastante
comum em autores tão diversos como o Schnitzler de Breve romance do sonho
ou Kafka. Situação similar ocorre em Cores proibidas. Nesse extenso romance,
Mishima descreve as torpezas do meio acadêmico e das relações sexuais e
afetivas em geral, as quais são mostradas sempre como incertas, duvidosas,
interesseiras.
Por isso Mar inquieto é tão estranho. Há uma ilha, isolada do mundo
cheio de maravilhas e horrores, dois personagens heterossexuais e puros,
perfeitos um para o outro. O amor de ambos é cristalino e apenas realizável
se recíproco, como em tantas outras narrativas de amor, abarcadas pelo
discurso acadêmico como literárias ou míticas, religiosas ou da tradição oral.
Tal pureza é intrínseca ao protagonista, Shinji, um Genji moderno. O herói,
embora seja retratado como raro exemplar da beleza masculina, está muito
mais para a formosura típica dos heróis mitológicos do que para a descrição
física dos personagens homossexuais dos autores citados. Mishima assim o
descreve: “é alto e magnificamente constituído, e o único detalhe físico que
condiz com sua idade são as feições, que ainda conservam certo ar infantil”
(MISHIMA, 2002, p. 14). Entretanto, há uma condenação: “mas tal limpidez
é apenas uma dádiva do mar àqueles que fazem dele seu local de trabalho”
(MISHIMA, 2002, p. 14). A heroína, embora não receba tantos elogios quanto
à sua formosura, bem poderia ser uma princesa das narrativas zen ou uma
das muitas mulheres fortes encontradas em narrativas antigas. Em suma,
ambos são merecedores do amor do outro. Também têm caráter, são incapazes
de más ações, são filhos diletos e, se não são ricos, fazem parte de uma elite.
O rapaz é o mais belo e o mais respeitável pescador da ilha; a moça é filha
do maior mercador do local. O rapaz é decidido, além do mais, e a menina
consegue mostrar à mãe dele o quanto pode ser corajosa e capaz ao conseguir
mergulhar profundamente, atrás de algas, atividade comum das mulheres da
ilha.
Vejamos um trecho da obra:
Ao ver que Hatsue depositava os baldes à beira da fonte, Yasuo pensou
em dar um salto e surgir diante dela, mas hesitou. Resolveu então conterse até que a moça acabasse de encher de água os vasilhames. Armou o
bote de modo a poder pular-lhe em cima a qualquer momento e, com o
braço esquerdo erguido e apoiado a um galho, imobilizou-se. E assim,
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feito estátua de pedra, observou as mãos grandes da moça, avermelhadas
de frio, encherem os baldes de água em ruidosos gorgolejos, e imaginou
com intenso prazer o resto daquele corpo saudável e fresco.
Àquela altura, no pulso do rapaz apoiado na árvore, o relógio – de que
tanto se orgulhava – continuava a emitir seu brilho fosforescente, bem
como o tênue mas pontual tique-taque, a marcar a passagem dos segundos.
E foi esse barulho que, segundo pareceu chamou a atenção e assustou as
abelhas adormecidas no interior de uma colméia em formação no galho.
Uma delas pousou sobre o relógio com certo temor. Logo descobriu que
o estranho besouro de luz pálida e zumbido preciso protegia-se sob uma
couraça vítrea escorregadia, e viu-se frustrada em seu intento. Decidiu
então transferir o alvo do ferrão para a pele do pulso do rapaz, e ali picou
com força e gosto.
Yasuo soltou um berro e Hatsue voltou-se para ele com expressão severa.
A garota não era do tipo que grita de susto.
[...]
Yasuo procurava desesperadamente impedir. Se Hatsue lhe fugisse antes
de consumar o ato, ela com certeza correria a contar tudo ao pai. Mas, se
ele conseguisse o que queria, a moça talvez não se queixasse a ninguém.
O rapaz adorava ler, em revistas baratas que comprava na cidade grande,
as confissões de mulheres que haviam sido “subjugadas”. Era maravilhoso
infligir aos outros agonias inconfessáveis.
Com muito custo, Yasuo conseguiu imobilizar sua presa a um canto da
fonte. Um dos baldes tombou e a água correu sobre o tapete de musgo.
No rosto da garota, as narinas fremiam e o branco dos olhos arregalados
brilhava à luz que vinha do poste. Metade de seus cabelos tinha-se molhado.
Repentinamente, os lábios da moça se franziram e Yasuo sentiu um
cusparada atingir-lhe o queixo. A reação atiçou o desejo do rapaz, que,
sentido o peito arquejante da moça sob o seu, aproximou o rosto do dela.
Neste exato momento, Yasuo soltou um grito e deu um salto. A abelha o
havia picado de novo na nuca. (MISHIMA, 2002, p. 81- 82)
Pesa sobre Mishima a acusação de que seria ocidentalizado demais.
Também é lugar comum imaginar o escritor como um desvairado, descrito
como aquele que está entre o Japão moderno e o antigo. Tal imagem, presente
em biografias e no famoso texto de Marguerite Yourcenar (YOURCENAR,
2000, p. 11), é comum em outras redes discursivas. Yourcenar, por exemplo,
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161
gostava dessa oposição entre Ocidente e Oriente e a utilizou para descrever
uma escultura ou a própria vida do imperador Adriano, um de seus mais
famosos trabalhos. Lembramos também que o próprio Japão, nos livros de
história escolares, nos filmes atuais e nas conversas de bar, é descrito como
um país entre a tradição e o futurismo. No mesmo país convivem a alta
tecnologia e o povo aino... De fato, pode parecer estranha, exótica,
fantasmagórica ou simplesmente bela a convivência entre o antigo e o novo,
mas a história do Japão mostra que isso faz parte de sua cultura e de sua
formação. Mesmo durante o suposto “fechamento” de suas portas para o
mundo, o país conseguiu elaborar técnicas próprias de fabricação de pontes,
de prédios, estradas e diques que permaneceram em pé durante fortes
terremotos, típicos da região do globo onde se encontra o país. Afora isso, já
no século XIX, o Japão contava com uma das melhores frotas comerciais e
de guerra do mundo, que venceu os poderosíssimos russos, em 1904, na
famosa batalha de Tsushima.
Se Mishima, como seu país, estava entre o passado e o futuro, talvez
fosse hora de se voltar um pouco para sua tradição. Nota-se na vida de
Mishima essa preocupação, ora paramentado como São Sebastião, na melhor
tradição genetiana, ora paramentado como um samurai, embora não se afirme
aqui que vivesse uma dualidade. A tradição japonesa tinha como exemplo
máximo da escrita literária duas obras da passagem do século X para o XI:
A narrativa de Gengi e O livro de cabeceira1. Ao mesmo tempo, as narrativas do
budismo japonês, influenciadas pelas narrativas indianas, persas, chinesas,
faziam parte de uma tradição oral muito difícil de abarcar. O texto de Mishima
faria, então, uma ponte entre duas modalidades de escrita, de representação
do mundo, porém o discurso de Mishima é absolutamente novo, diferente
até mesmo dos mais modernos escritores que a tradição acadêmica elencou
como grandes, entre eles Junichiro Tanizaki, Yonossuke Akutagawa e Yasunari
Kawabata. De qualquer forma, se o texto de Mishima dialoga com os clássicos
japoneses, convém fazer algumas considerações.
É comum definir-se o texto de Sei Shonagon como algo entre o
ingênuo e o elegante. As listas imensas, a preocupação com o vestuário e a
quase obsessão pelos elementos naturais pode levar a esta definição, mas, ao
pensar assim, não se mergulha na condição sociocultural da famosa escritora
japonesa: uma mulher da corte, educada a escrever sobre a beleza que a
162
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envolvia. Acostumados a ler os textos literários como os define a tradição
ocidental, procuramos neles uma lógica definida por uma rede de discursos
razoavelmente recente. O texto de Shonagon, para nós, está entre a narrativa
de costumes, a memória pura e simples, o diário e ainda a investigação
histórica. Porém, o conceito de “costume”, de “memória” e principalmente
de “histórico” é criação do pensamento ocidental e Shonagon não teve contato
com culturas ocidentais e, acreditamos, com sua rede de discursos. Seu
universo era o do Japão, da China e da Coréia. Comparando-se o texto de
Shonagon com o de um europeu da baixa Idade Média, temos uma idéia
dessa diferença. A preocupação de Dino Campagni, por exemplo, era que
seu texto trouxesse a verdade sobre os acontecimentos terríveis, segundo
ele, que haviam assolado a Toscana. Ele, memorialista ou historiador, utilizou
os ancestrais mecanismos textuais e discursivos dos historiadores europeus
desde Herótodo: ter vivido os acontecimentos para poder narrá-los, para
que a verdade viesse à tona. Campagni ainda se preocupou em estabelecer
um território físico (descreve o quanto a Toscana é distante de Roma ou
próxima a Milão) e um temporal, com o reinado de tal monarca e ainda o
respectivo anno domini. A preocupação de Shonagon é absolutamente distinta.
Não há a localização num tempo histórico, dado pela datação astronômica
ou pela datação feita a partir de algum reinado em particular, exatamente
como ocorre nas narrativas de sua tradição. A concepção histórica de
Campagni é, obviamente, outra.
No caso de Mishima, temos um diálogo com a tradição, mas Mishima
não tenta copiar Shonagon ou Murasaki. Digamos que a forma enunciativa
de seu discurso é muito semelhante ao das duas mulheres da Idade Média
(aqui vale nossa medida histórica das coisas), no que se refere à preocupação
com roupas e com a Natureza, muito em particular, mas os universos diferem
imensamente. Se o universo de Sei Shonagon não tem a preocupação histórica
que os textos ocidentais da época (e ainda os modernos), descreve a corte
como um território mítico. De fato, muitas cortes o eram, representação do
céu ou da morada dos deuses, mas esse campo discursivo é outro, complexo
e, nesse momento, impenetrável.
Mar inquieto é um romance de (ou sobre o) amor, como outros tantos
textos conhecidos: Laila e Majnun, o texto da tradição persa, Eros e Psique, da
tradição grega ou mesmo Romeo e Julieta, cujo relato foi um resgate da tradição
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medieval por Shakespeare. Mas não é a narrativa ingênua que aparenta ser,
principalmente se o comparamos com outro texto sobre o Oriente e sobre o
amor, caso da famosa narrativa história de Pearl Buck sobre a última
imperatriz da China. Ao mesmo tempo, como em outras tantas histórias de
amor, descreve um triângulo amoroso (Hatsue, Shinji e Yasuo, com ainda
um complicador, Chyoko, que ama Shinji.). Mas há diferenças bastante
interessantes entre Mar inquieto e demais narrativas de amor. De fato, no
texto de Mishima, o amor é incondicional e os amantes são valorosos a
ponto de não haver no mundo outro que correspondesse àquele amor puro
e irrestrito, mas num escritor que havia descrito os subterrâneos de Tóquio,
entre a “decadência como triunfo”, que seria uma idéia sartreana, e “o amor
como sacramento”, que seria um discurso comum a Wilde 2, há uma
estranheza incômoda em algum lugar. Primeiramente, Mishima não copia as
narrativas de amor tradicionais (como as citadas) e não copia as narrativas
modernas (como a de Pearl Buck). Ao mesmo tempo, sabemos, há uma
espécie de vilão na figura de Yasuo, mas ele não chega a atrapalhar de vez a
relação amorosa dos protagonistas, como se poderia esperar de um romance
romântico, por exemplo, ou de uma narrativa popular. Uma leitura atenta
mostra ainda que existe um Japão que acena de muito perto para a população
da ilha: é o Japão do mundo moderno do pós-guerra, cujos gritos estão
abafados pela presença do exército americano, mas cujo empenho em crescer
é muito forte. Perceba-se também que as abelhas são despertadas por um
relógio demasiadamente moderno para um ilhéu dos anos 50. De fato, na
narrativa, os demais ilhéus, ao pegarem uma barca, vão para outro mundo,
como é o caso da estudante que ama Shinji, Chyoko, também ela quase
aliegínena, cuja fraqueza talvez tenha sido a de deixar-se influenciar por
outro mundo, que coexiste ainda pacificamente. É de se supor que tal situação
pacífica não perdure, mesmo que haja amores puros e corpos naturalmente
belos nas entranhas da ilha, vivendo idílicas relações amorosas, eróticas ou
filiais. É possível que haja uma corrupção vinda da cidade grande, mesmo
que os deuses ainda possam manifestar-se para os bons ou para os fiéis. Na
ilha, prevalece a prática de um xintoísmo antigo, ainda não maculado pela
presença veneranda do budismo, mesmo que no texto de Mishima se
observem influências de narrativas da tradição zen. Hatsue é devota, assim
como Shinji. A crença de ambos tem resposta na natureza: a) com a ação
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dos ventos que trazem respostas para suas dores, b) e principalmente com a
atuação da abelha, que livra Hatsue da desonra. Ao mesmo tempo, a aparição
miraculosa da abelha não deixa de ter laços com outra tradição dos textos
japoneses, um certo humor, com matiz estranho para os padrões ocidentais,
mas radicalmente presente em filmes e desenhos de animação japoneses.
Poderíamos dizer que a narrativa de Mishima ocorre num espaço ahistórico (ou a-temporal), como o de Shonagon, ou ainda mítico, como é o
caso das narrativas zen, mas não é o que ocorre. Ou Mishima tinha a intenção
de criar tensão opondo dois universos, o mítico/antigo/a-histórico com o
moderno ou foi sutilmente irônico, simplesmente. A favor da segunda
hipótese está a comparação com suas duas obras anteriores, já citadas.
Outras obras mais recentes − dentre tantas − trazem para o mundo
contemporâneo situações míticas de narrativas antigas: pensemos no caso
de Naguib Mahfuz e de Salman Rushdie, como exemplos. Isso não faz de
Mishima um precursor de tal recurso, mas o posicionaria num rol de escritores
cuja ironia em polemizar o discurso mitológico, mítico ou religioso, é notória.
A abelha, provocada pelo relógio, que acaba por salvar Hatsue, se não é de
nosso gosto humorístico (por ser absurda, ridícula ou inocente em demasia),
é o tom central da narrativa de Mishima.
Entre o ingênuo e o elegante
Em Murakami, a presença do estranho em relação ao real, difere
terrivelmente. Vejamos um trecho de seu romance:
São dois mundos diferentes, percebi. Esse é o elemento comum aqui.
Documento 1: Relaciona-se ao sonho que Sumire teve. Ela está subindo
uma longa escada para ir ao encontro da mãe morta. Mas, no momento
em que chega, sua mãe está retornando para o outro lado. E Sumire não
consegue detê-la. E ela é deixada no topo de uma torre, cercada de objetos
de um mundo diferente. Sumire teve vários sonhos semelhantes.
Documento 2: Esse refere-se às experiências estranhas que Miu teve há
quatorze anos. Ela ficou presa, durante uma noite inteira, na roda-gigante
de um parque de diversões em uma pequena cidade suíça e, ao olhar com
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o binóculo para seu próprio quarto, viu um segundo eu lá. Um
doppelgänger. E essa experiência destruiu Miu como pessoa – ou, pelo
menos, tornou palpável essa destruição. Como Miu colocou, ela foi dividida
em duas, com um espelho entre os dois eus. Sumire tinha convencido
Miu a contar a história e a transcrever na melhor forma de que foi capaz.
Este lado – o outro lado. Esse era o fio comum. O movimento de um
lado para o outro. Sumire deve ter sido motivada por isso, e o bastante
para passar tanto tempo o transcrevendo. Usando suas próprias palavras,
escrever tudo isso a ajudava a pensar.
O garçom veio limpar os restos de minha torrada, e eu pedi mais um
copo de limonada. Com muito gelo, eu disse. Quando ele trouxe o refresco,
bebi um gole e usei o copo, de novo, para refrescar a testa.”E se Miu não
me aceitar, o que vai ser?” Sumire tinha escrito. Pensarei nisso quando for
a hora. Sangue deve ser derramado. Afiarei minha faca, deixá-la pronta
para cortar a garganta de um cachorro em algum lugar.”
O que ela estava tentando transmitir? Estaria insinuando que poderia se
matar? Eu não podia aceitar isso. Suas palavras não exalavam o cheiro
acre da morte. O que eu sentia era mais a vontade de seguir adiante, de
lutar por um recomeço. Cachorros e sangue são apenas metáforas, como
eu tinha lhe explicado naquele banco do parque Inogashira. Eles extraem
seu significado das forças mágicas vitais. A história sobre os portões
chineses era uma metáfora de como uma história captura essa mágica.
Pronta para cortar a garganta de um cachorro em algum lugar.
Em algum lugar.
Meus pensamentos chocaram-se contra uma parede sólida. Um impasse
total.
Aonde Sumire poderia ter ido? Há algum lugar, nesta ilha, a que ela
precisava ir? (MURAKAMI, 2003, 185 – 186)
O caso de doppelgänger (a aparição de uma mesma pessoa em dois
lugares) não é da tradição japonesa, embora haja nos relatos do Japão um
sem número de aparições de fantasmas e seres “de um outro mundo”. Temos
em Murakami mais uma história de amor e ambém um triângulo, entre o
professor sem nome, Sumire e Miu.
Nos textos de apresentação da obra de Murakami, também há uma
espada que pende sobre a cabeça do escritor: ele é descrito como um autor
166
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pop, como se o adjetivo classificasse sua obra como um todo e desse conta
de sua complexidade.
O caso de amor de Murakami, se não chega a ser novidade no
universo literário, é curioso. Sumire ama Miu, mas não tem certeza disso, e
essa é a primeira estranheza. O professor sem nome ama Sumire, mas não é
correspondido. Miu, por sua vez, tem relação estreita com ambos, mas se
diz incapaz de amar. Transitam tais personagens num território de esterilidade:
não têm família, não sabem como tratar o amor, não são correspondidos,
estão perdidos no universo da modernidade (ou da pós-modernidade), em
que é possível atravessar o mundo em apenas um dia, mas é impossível
entender situações muito simples, como o desejo do outro de fumar um
cigarro. É um universo repleto de informações e de grifes famosas, de vinhos
caros e de quartos de hotel, porém o brilho das marcas famosas é ofuscado
pela melancolia e os quartos de hotel são vazios e tristes. Murakami também
estende seu enredo até o terreno das narrativas policiais. Repentinamente, o
leitor se vê enredado com um relato de desaparecimento e precisa encontrar
respostas por vezes indigestas, como é o caso do relato de doppelgänger e
ainda como o próprio desaparecimento de Sumire.
Se nos interessasse a acusação de ocidentalização contra Mishima,
poderíamos acusar Murakami também disso. Sabemos que é fácil derrubar
tal discurso, bastando fazer a pergunta: o que é ocidental? Mas Murakami
mereceria mais a fatídica condenação, pois dialoga abertamente com escritores
do Ocidente. Porém, qualquer estudioso atual de Literatura sabe que diálogos
desse tipo já eram presentes nas obras de Mishima, Akutagawa ou Tanizaki
e que os escritores (nomes não muito adequado para eles) do medievo japonês
dialogavam abertamente com textos da tradição chinesa principalmente, sendo
exemplo disso os próprios textos memorialistas de Murasaki e Shonagon.
Ocorre que o Japão de Murakami é um país da pós-modernidade, não no
sentido corrente desse “pós” e sim com uma sociedade para muito além da
modernidade. Após o milagre de sua economia na segunda metade do século
XX e após o crescimento recorde ocorrido nos anos oitenta do século anterior,
o Japão vive um período de estagnação, os habitantes do Japão são outros,
enfim, e vivemos um mundo diferente do de Mishima. No caso de Murakami,
enquanto a Europa nos anos 1980 se debruçava sobre as descobertas do
mundo yuppie, o escritor japonês já mostrava o marasmo que o consumo
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desenfreado e o mundo perverso do excesso traziam consigo: numa cena de
Caçando carneiros, os estudantes de uma universidade assistem pela TV notícias
da morte de Yukio Mishima (que ocorreu em 1970), mudos, sem sequer
desejarem saber do que se trata. A morte do escritor, que cometeu seppuku,
o suicídio ritual, foi um trauma nacional e repercutiu pelo mundo todo, mas
em seu próprio país, os jovens nada queriam saber do ritual ou de suas
conseqüências.
Costuma-se dizer que o Brasil é um país de contrastes violentos,
mas o Japão poderia carregar consigo este lugar-comum de modo igualmente
eficaz. Sumire aprendeu literatura ocidental (em detrimento, talvez, da
oriental), mas sua vida não melhorou após Baudelaire e Rimbaud, leituras
obrigatórias em sua faculdade. Cidadã de um país conhecido pela riqueza,
ela é pobre e vive mal. O trabalho que Miu lhe oferece é alternativa para que
possa sustentar-se. Miu é rica porque conseguiu as benesses possíveis do
universo capitalista e um casamento por conveniência, que lhe trouxe
dividendos. Mas a literatura de Sumire e o dinheiro de Miu de nada valem se
não sabem para onde ir, pois seu universo é um labirinto, cujas saídas
reconhecem, mas para as quais não encontram escolha.
O trecho escolhido nos mostra o momento em que o professor faz
um pequeno dossiê do emaranhado de situações que tem à frente. Está num
país estranho, a Grécia, cuja língua não domina, quente, à beira do
Mediterrâneo, e com pouco tempo para descobrir o paradeiro de Sumire.
Ele tenta reconstruir os passos de Sumire por documentos escritos e por
gravações e ainda tem em mente os diálogos que teve com Miu. Tenta
desesperadamente desatar um nó górdio ou ainda desesperadamente atar
pontos de várias linhas aparentemente distantes o bastante para jamais se
encontrarem. Rudimentarmente, faz análise psicanalítica dos sonhos de
Sumire e tenta desvendar como o suposto caso de doppelgänger teria a ver
com sonhos e metáforas. No início da narrativa, o professor tentara explicitar
a Sumire a diferença entre símbolo e signo, em vão, para ambos. E nesse
momento reside a grandeza de Murakami: perceber que entre as mais fortes
redes discursivas do século XX não há respostas. Em Mishima, é forçoso
dizer que há respostas, o que não diminui o interesse de sua obra,
evidentemente. Num outro texto, da década de 1960, Mishima retomou a
história dos homens que trabalham no mar. Dessa vez, descreveu parte da
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vida de Ryuji, que, ao abandonar o mar, encontrou o ódio de um enteado. A
descrição de tal ódio e a investigação de Mishima sobre as relações familiares
são devastadoras em O marinheiro que perdeu as graças do mar. Se Mar inquieto
provoca espanto em relação às obras anteriores, em comparação com as
posteriores parece absolutamente deslocada, o que faz aumentar o interesse
por ela.
Se Mishima ironizava o encontro entre o Ocidente e o Oriente, entre
mundo moderno e mundo antigo, Murakami segue o mesmo caminho,
levando-o ao extremo. Não apenas desloca fisicamente suas personagens
das ilhas japonesas, como os posiciona frente a frente com uma realidade
estranha, que muitas vezes beira o absurdo. Se o conhecimento ocidental
não resolve a vida dos próprios ocidentais, não é o conhecimento ocidental
que resolverá os dilemas dos japoneses. Não há, também, intervenção divina
que possa trazer, para o professor, Sumire de volta, assim como nenhum
discurso científico, religioso ou político revelará a complexidade de Miu.
Murakami faz parte de outro grupo de escritores, como Kazuo
Ishiguro, cuja primeira obra é a única do escritor a tratar do Japão em
particular, do Japão pós-guerra, como antes dele fizeram escritores do quilate
de Masuji Ibuse. Em Um artista do mundo flutuante, Ishiguro discute o dilema
de um pintor acusado de compactuar com o regime de ultra-direita japonês.
Após a publicação de tal trabalho, Ishiguro, que escreve em inglês, passou a
se preocupar com seu novo país, a Inglaterra. De qualquer forma, Murakami
participa, sem querer, de um grupo de desterrados cosmopolitas. São autores
que geralmente ou abandonam seu país ou adotam língua estrangeira, caso
de Michael Ondaatje e Jhumpa Lahiri. A lista é grande e vale um texto novo.
Ocorre que Murakami é desafiador como Mishima, que evidencia em cada
texto primeiramente a experimentação e depois a ironia à burocracia de cada
lugar-comum a ele imposto. Murakami, em particular, pode não lançar mão
da elegância da tradição da literatura japonesa, mas de ingênuo seu discurso
tem muito pouco, pois ele se serve das formas enunciativas pré-concebidas
de outros discursos para, a partir deles, estabelecer um discurso da dúvida.
Ambas as obras escondem em suas fímbrias os elementos-chave para uma
possível descoberta de suas maiores preocupações: numa narrativa amorosa
aparentemente ingênua, Mishima insere uma abelha despertada por um
relógio, enquanto Murakami lança mão de um caso de doppelgänger ou de
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uma discussão saussureana para mostrar os meandros do discurso amoroso.
Tais manifestações discursivas fazem destes dois autores dois grandes
representantes dos dilemas modernos e autores que aguardam, ainda,
investigações de fôlego.
Notas
1
Para este trabalho, foram tomadas como base as seguintes edições: MURASAKI,
Shikibu. The tale of Genji. Trad. para o inglês de Edward G. Seindensticker. New
York: Vintage Classics Edition, 1990 e SHONAGON, Sei. The pillow book. Trad.
para o inglês de Ivan Morris. Londres, Oxford University, 1967.
2
Nas palavras de Oscar Wilde, cujo destino já foi citado: “o amor é um sacramento
que deveria ser recebido de joelhos, com as palavras Domine, non sunt digno, nos
lábios e no coração”. Cf. WILDE, Oscar. De profundis. Trad. de Júlia Tettamanzy e
Maria Ângela Saldanha Vieira
REFERÊNCIAS
CAMPBELL, Joseph. O poder do mito. São Paulo: Palas Athena, 1996.
COMPAGNI, Dino. The Chronicle of Dino Campagni. Trad. para o inglês de Else C.
M. Benecke. Londres: Aldine House, 1906.
MISHIMA, Yukio. Confissões de uma máscara. Versão e apresentação de António
Mega Ferreira. 3° ed. Lisboa: Assírio e Alvim, 1995.
________. Cores proibidas. Trad. de Jefferson José Teixeira. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002.
________. Mar inquieto. Trad. de Leiko Gotoda. São Paulo: Companhia das Letras,
2002.
________. O marinheiro que perdeu as graças do mar. Trad. de Waltencir Dutra. Rio de
Janeiro: Rocco, 1995.
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MORRIS, Ivan. The Pillow Book of Sei Shonagon – A Companion Volume. Londres:
Oxford University Press, 1967.
MURAKAMI, Haruki. Minha querida sputnik. Trad. de Ana Luiza Dantas Borges.
Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.
________. Caçando carneiros. Trad. de Leiko Gotoda. São Paulo: Estação Liberdade,
2001.
MURASAKI, Shikibu. Diary and Poetic Memoirs. Trad. para o inglês de Richard
Bowring. New Jersey: Princepton University Press, 1982.
________. The Tale of Genji. Trad. para o inglês de Edward G. Seindensticker. New
York: Vintage Classics Edition, 1990.
PLATÃO. O banquete – diálogos. Trad. de Carlos Alberto Nunes. Belém: Edufpa,
2001.
SARTRE, Jean-Paul. Saint Genet – ator e mártir. Trad. de Lucy Magalhães. Petrópolis:
Vozes, 2002.
SHONAGON, Sei. The Pillow Book. Trad. para o inglês de Ivan Morris. Londres:
Oxford University, 1967.
SPENCER, Colin. Homossexualismo, uma história. Rio de Janeiro: Record, 1999.
WILDE, Oscar. De profundis. Trad. de Júlia Tettamanzy e Maria Ângela Saldanha
Vieira de Aguiar. Porto Alegre: L & PM, 1998.
YOURCENAR, Marguerite. La vision du vide. Saint-Armand: Gallimard, 2000.
Artigo recebido em 02.04.2008.
Artigo aceito em 19.07.2008.
Benedito Costa Neto Filho
Doutor em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
Professor do Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
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171
172
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SOMBRAS E FANTASMAS DA
GRANDE GUERRA
SOB O OLHAR DE
AUGUSTO ROA BASTOS
Naira de Almeida Nascimento
[email protected]
RESUMO: O trabalho discute o
estatuto da representação a partir de
duas narrativas de Augusto Roa Bastos,
incluídas em O livro da Guerra Grande
(2002), composto por textos de quatro
autores sul-americanos e que
apresentam como tema a Guerra do
Paraguai (1865-1870). As narrativas, no
lastro de Jorge Luis Borges, questionam
o poder da representação artística e os
limites da criação através do confronto
com fontes documentais, como é o caso
das Cartas dos campos de batalha do Paraguai
(1870), de Richard Burton, ou ainda no
diálogo da literatura com a pintura, tal
como ocorre na ficcionalização de
Cándido López. Objeto de discussão
desde Platão e Aristóteles, o estatuto
ficcional vem conquistando um lugar
central na reflexão contemporânea.
ABSTRACT: This article discusses the
concept of representation by way of
two narratives by Augusto Roa Bastos,
included in O livro da Guerra Grande
(2002), which is composed of texts by
four South American authors which
present the Paraguayan War (1865-1870)
as their theme. These two narratives,
following Jorge Luis Borges’ style,
question the power of artistic
representation and the limits of creation
through the confrontation of
documental sources, as is the case of
Cartas dos campos de batalha do Paraguai
(1870), by Richard Burton; this
questioning is further extended to the
dialogue betweeen literature and
painting, as seen in Cándido López’s
fiction. The concept of fiction, which
has become an object of argument since
Plato and Aristotle, has been conquering
a central place in contemporary thought.
PALAVRAS-CHAVE: Ficção contemporânea. Augusto Roa Bastos. Guerra do
Paraguai. Ficção histórica. Metalinguagem.
KEY WORDS: Contemporary fiction. Augusto Roa Bastos. Paraguayan War.
Historical fiction. Metalanguage.
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173
A Grande Guerra ou Guerra do Paraguai (1865-1870) opôs paraguaios
a brasileiros, argentinos e uruguaios em pleno século XIX na mais célebre
guerra sul-americana. Sua relevância na sócio-política e na economia desses
países, em especial o Paraguai, que dela saiu completamente arrasado, mas
também o Brasil pela configuração política brasileira, com a derrocada do
Segundo Império, e social, através da formação de uma classe militar e do
tensionamento do elemento negro numa sociedade escravista, já justificam
a revisão do fato historiográfico.
Além desses fatores, a integração proporcionada pelo Mercosul coloca
em evidência nos últimos anos os laços entre os países do cone sul e reabilita
a reflexão sobre o acontecimento que até os nossos dias sustenta traumas
antigos e disputas apaixonadas.
É sobretudo por meio desse viés que a literatura vai interagir. A ficção
contemporânea vem demonstrando seu interesse pelo tema ao colocar em
jogo projetos bem variados de formas representacionais. Um deles é oferecido
pela leitura do conjunto intricado de textos que compõem O livro da Guerra
Grande (2002). Contando com a participação de autores oriundos dos países
envolvidos na guerra, a reunião prima pelo diálogo ficcional entre perspectivas
originalmente antagônicas. Augusto Roa Bastos, pelo Paraguai, assina duas
narrativas bem diferentes entre si, Em frente à frente argentina e Em frente à
frente paraguaia. Alejandro Maciel, argentino, é o autor de Fundação, apogeu e
ocaso do Quilombo do Gran Chaco, enquanto Omar Prego Gadea, do Uruguai,
responde pelo texto Os papéis do general Rocha Dellpiane. Por último, o brasileiro
Eric Nepomuceno, autor de Um barão não mente, envelhece.
Enquanto o título original em espanhol, Los conjurados del Quilombo do
Gran Chaco, privilegia o argumento definido como central pelos seus
integrantes, a tradução brasileira opta pelo destaque da guerra em si, fixando
a forma denominativa que induz a uma perspectiva de leitura sobre o evento.
Vale lembrar que a leitura revisionista procurou ressaltar a denominação de
“Grande Guerra”, em lugar de Guerra do Paraguai ou Guerra da Tríplice
Aliança, como forma de reivindicar a perspectiva guarani. Outro dado não
menos importante talvez explique a tradução. A palavra “quilombo” em
espanhol comporta outras conotações mais próximas, como “desordem”,
“escândalo”, “prostíbulo”.
Todos os textos estão entrelaçados à idéia da construção de uma
174
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sociedade alternativa aos modelos impostos pela guerra e que congregava
civis e militares provenientes daqueles países. A sugestão do tema parece
pertencer a Richard Burton, no livro Cartas dos campos de batalha do Paraguai
(1870). Publicado na Inglaterra após ter servido como diplomata do governo
britânico no Brasil, o livro assemelha-se a um diário de viagem. As cartas de
Burton são dirigidas a um misterioso “caro Z...”, interpretado normalmente
pela crítica como a rainha da Inglaterra. Dentre as inúmeras descrições da
viagem que empreendeu entre o Rio de Janeiro e Assunção, oferecendo uma
descrição minuciosa pelo trajeto, como Montevidéu, Buenos Aires, Paissandu,
Rosário, Corrientes e Humaitá, Burton faz uma pequena referência a um
possível quilombo: “...diz-se até que existe no Gran Chaco um enorme
quilombo, ou colônia de desajustados, onde brasileiros, argentinos, uruguaios
e fugitivos paraguaios convivem em amizade mútua e em inimizade com o
restante do mundo” (BURTON, 1997, p. 365).
E é o próprio autor das Cartas..., Richard Burton, que se converte
num dos principais personagens na trama rocambolesca da coletânea. Produto
ficcional que nada fica a dever a seu fascinante currículo:
Ele explorou as nascentes do Nilo; foi um dos primeiros ocidentais a penetrar
na proibida Meca; passou por faquir na Índia; foi expulso de Oxford por se
envolver em duelos; era fluente em 29 línguas e dialetos, traduziu As mil e
uma noites do árabe, o Kama Sutra do sânscrito, Os Lusíadas de Camões;
estudou esoterismo, cabala, alquimia, teosofia, espiritualismo, catolicismo,
islamismo; criou a expressão “percepção extra-sensorial”; como agente
secreto disfarçado de diplomata foi peça importante na disputa entre o
Reino Unido e a Rússia pela Ásia, no século XIX. Esses foram apenas
alguns dos feitos de sir Richard Francis Burton, que serviu no Brasil de
1865 a 1868. Cônsul britânico em Santos, morou em São Paulo, visitou o
Rio de Janeiro, viajou pelas províncias de Minas Gerais em busca de ouro e
diamantes, desceu o rio São Francisco até a cachoeira de Paulo Afonso e
percorreu o teatro de operações da Guerra do Paraguai, enviando informes de
primeira mão à Inglaterra. (MUGGIATI, 2005, p. 76-79)
Considerando a extensão limitada do artigo, optamos pelo enfoque
aos dois textos de Augusto Roa Bastos.
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Em frente à frente paraguaia: fantasmas revisitados
Invertendo a ordem original do livro, que antecede esse texto por Em
frente à frente argentina, pretendemos com a seguinte lógica atentar para um
outro possível ponto de partida para o volume. O texto intitulado como Em
frente à frente paraguaia compõe um romance do autor falecido em 2005. Tratase de El fiscal, de 1993. Como o texto mais antigo do conjunto, não nos
parece improvável que ele tenha ressurgido quando o tema da reunião entre
seus autores se revelou como o da Guerra do Paraguai. Vislumbramos, quem
sabe, nesta atitude também uma homenagem de seus pares ao veterano
escritor.
Estabelecemos este ponto de partida também devido à impressão de
pouca familiaridade do texto com os moldes ficcionais. A feição mais próxima
a ele é a do ensaio. De fato, uma nota de pé de página esclarece o leitor sobre
sua composição a partir de fragmentos retirados do romance de 1993 (ROA
BASTOS, 2002, p. 55).
O seu ritmo, às vezes, parece obedecer apenas à associação livre de
imagens. Pode-se até mesmo concluir que, muito mais do que na diegese, o
acento recai quase exclusivamente na impressão causada neste suspeito
narrador pelas estranhas personagens desta guerra e as fortes imagens
relacionadas a ela: Burton, Lynch, Solano López, o balão observador, Cándido
López e o Padre Fidel Maíz. Do mesmo modo que a patética cena da
condecoração de López aos cerca de trinta oficiais praticamente no leito de
morte de Cerro-Corá o perturba: “Algum cronista esquecido menciona este
fato mínimo, incrível, verdadeiramente fantástico, das condecorações aos
trinta fantasmas em meio ao terrível fragor da hecatombe. Todo ato extremo
está feito de símbolos. O homem busca o absoluto na cúspide da glória ou
no monturo da miséria mais extrema” (ROA BASTOS, 2002, p. 95).
É também esta a peça do “romance a oito mãos” (ROA BASTOS,
2002, p. 10), conforme sentencia Alejandro Maciel, que mais se detém no
autor das Cartas dos campos... Roa Bastos não se mostra indiferente aos dotes
literários de Richard Burton nem a sua aura romântica. No entanto, constrói
um texto que a princípio os coloca à parte. Evoca, assim, a singular
neutralidade do observador e a sua imparcialidade na análise da disputa na
Região do Prata: “...Cartas dos campos de batalha do Paraguai, muito inferior aos
176
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outros [livros do autor] em qualidade literária e magia criativa, mas superior
a todos eles como crônica do holocausto de um povo.” (ROA BASTOS,
2002, p. 56). Ressalta, diferentemente do que se previa, a sobriedade e a
diplomacia de Burton. Na ficção de Roa Bastos, Burton servia como
intermediário de D. Pedro II para acordar a paz com Solano López, o
presidente paraguaio à época, tarefa em que não logrou êxito. Transcreve
numerosos trechos das Cartas... de Burton, denunciando, principalmente, o
trágico fardo imposto à pequena nação paraguaia. Solano López impressiona
a este Burton de Roa Bastos não só pelos seus excessos mas também por
suas atitudes de gentleman.
Este discurso que se desenha, por onde a leitura revisionista é
anunciada, na acusação do interesse comercial britânico ao insuflar o Brasil
contra o pequeno mas potente país americano, vai sendo minado pela
confissão do narrador. Já logo de início, ele levanta a dúvida sobre o
testemunho de Burton:
Em alguns momentos não se sabe se sir Richard está relatando o que
realmente viu ou se está traduzindo em palavras, necessariamente mais pobres
que as imagens, e como que ligeiramente deformadas, as visões delirantes
de Cándido López, o pintor da tragédia. Burton viu e admirou esses quadros
que iam saindo “do natural”, mas também de uma visão de além-túmulo;
chegou a ver Cándido López ser pintado, sentado entre os mortos, no final
de uma batalha. “Parecia um surdo-mudo ou um sonâmbulo completamente
fora do mundo real”, escreve em uma de suas cartas (a décima terceira),
totalmente dedicada ao pintor. (ROA BASTOS, 2002, p. 58)
E é no capítulo das transcrições que se iniciam as agruras do leitor.
As transcrições e citações às cartas de Burton normalmente remetem, como
no exemplo acima, à sua numeração no volume original. Contudo, tal
indicação não confere com os capítulos da edição de Cartas... A princípio, o
leitor dirige sua dúvida para as diferentes edições ou, quem sabe, para algum
problema na tradução. Até concluir que se trata de dois livros distintos.
Onde andará este segundo livro citado pelo narrador de Roa Bastos?
É com o desdobrar dos acontecimentos, que intuímos a estratégia do
texto, a de tentar adentrar no universo resgatado por Burton, através da sua
tradução das Mil e uma noites. Lembremo-nos que o “livro das Arábias”
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também enfrenta uma disparidade de versões, sendo algumas de suas mais
famosas noites produto de intercalações ao longo do tempo. O dado
biográfico de Burton e o texto ficcional de Roa Bastos, aparentemente
ensaístico, ou vice-versa, passam a se confundir.
O desenvolvimento volta-se para o arremedo de uma Xerazade às
avessas, diante de um leitor ainda crédulo do discurso perpetrado pelo
narrador. Desviando o trajeto de sua viagem daquele descrito na versão
original, Burton dirige-se ao acampamento paraguaio, que, também pelo
nomadismo da experiência, aproxima-se dos cenários desérticos do Oriente
dos contos evocados. Lá, o autor inglês trava contato com o casal López,
desfruta da sua hospitalidade e se torna amigo e admirador de Mme. Lynch,
esposa do ditador.
Como se tratasse de matéria onírica, o fantasma de Burton se interpõe
entre Solano López e a esposa. Assim, a imagem de Lynch vai seduzindo
também o leitor:
Burton dedica um longo parágrafo ao toucado, às jóias, às maneiras refinadas
de anfitriã de Madame Lynch nas tertúlias do acampamento, que faziam
esquecer a guerra e transportavam na imaginação a cena, que se passava na
selva selvagem, ao ambiente cortesão de Paris. Destaca ironicamente o
constraste entre a grande dama da corte durante a noite e sua postura de
amazona durante o dia, suas ordens na veludosa voz de contralto, idêntica à
maravilha de seu corpo, seus briosos galopes na faxina bélica, envolta em
seu uniforme da marechala, cor de folha seca, chapéu bicorne de cetim
preto, altas botas envernizadas de granadeiro e sua sombrinha com cabo de
ouro, engastado de fina pedraria, que empunhava ao sol e à sombra.
Cavalgando, levava-a pendurada em seu cinturão como um espadim de ouro
embainhado em alvo cetim. (ROA BASTOS, 2002, p. 66)
A descrição de Solano já é bem menos generosa. Atacado por terríveis
dores de dente, ele aparece enfaixado por um lenço vermelho a prender-lhe
a mandíbula, “do qual flui um fio de baba manchado de tabaco” (ROA
BASTOS, 2002, p. 67). Prevendo já os recursos narrativos lançados, o narrador
ironicamente ajuiza: “A prosa de Richard Francis Burton esquecia, às vezes,
o tom descritivo e jovial dos viajantes ingleses e se inflamava de um
arrebatamento trágico de segunda mão.” (ROA BASTOS, 2002, p. 63).
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Tendo sido acusado como um pervertido pelas traduções do Kama
Sutra, Ananga Rana, O jardim perfumado, além das Mil e uma noites, em plena
época vitoriana, a narrativa aproveita para reforçar o caráter femeeiro de
Burton e até criar um ambiente passional: “...autor de quase uma centena de
livros, a metade dos quais sua mulher, lady Isabel, destruiu e queimou com
sanha implacável” (ROA BASTOS, 2002, p. 56).
Ao final de um exuberante jantar, “a noite das noites” , La Lynch
pede que Burton conte algumas histórias das Mil e uma noites, enquanto o
marido, “vencido pelo sono, começou a roncar, sacudido de tanto em tanto
por tremores palúdicos” (ROA BASTOS, 2002, p. 70). A narrativa esbanja
sensualidade:
Inventei outros relatos mais intencionados e picantes em uma delicada
gradação. Sentia que ia penetrando em terreno minado, mas não podia nem
queria voltar atrás. Não podia esquecer aquela manhã em que, passeando
pelo acampamento, surpreendi Madame Elisa saindo nua do banho, assistida
por suas criadas, na improvisada tenda de asseio levantada entre copudas
árvores. Eu estava vivendo interiormente a aventura de outra história que
não pertencia ao Livro das Noites; uma aventura na qual o risco da sedução
era seu maior incentivo. (ROA BASTOS, 2002, p. 71)
Ciente de que toda a tradução constitui também uma versão, o narrador
delega a Burton a responsabilidade autoral, “o autor das Noites” (ROA
BASTOS, 2002, p. 68). A história contada embriaga até mesmo o seu narradorautor: “Parei um instante, embargado pela originalidade do imprevisto achado
narrativo (a narradora [Xerazade] transformada em personagem de um conto
desconhecido para ela, de uma história que não está no Livro)” (ROA
BASTOS, 2002, p. 72).
Em vez do rigor e da neutralidade do observador europeu, apregoadas
no início, o narrador admite: “Burton era um hábil manipulador do
subterfúgio narrativo. Tinha a arte da insinuação capciosa na maneira de
dizer que diz pela maneira. Seria razoável, entretanto, não se fiar
excessivamente das parolagens do cônsul” (ROA BASTOS, 2002, p. 73).
Diante da possibilidade de passar de um fantasma entre Solano e
Elisa, modificando os rumos da História, o Burton de Roa Bastos não logra
seus intentos com a primeira dama, diferentemente da espectral Xerazade.
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No entanto, a investida deixa seus frutos. Enquanto Burton narrava as
histórias, os serviçais usufruíam secretamente da audição. O narrador
questiona sobre ter sido esse o principal feito de Burton em relação ao
Paraguai: “servir de ponte pela qual as histórias das Noites do Oriente
passaram para o imaginário coletivo paraguaio, por meio das criadas da
marechala” (ROA BASTOS, 2002, p. 74). Histórias que sofrem modificações
nas futuras narrações. Nada mais natural para Burton que acredita num
“único mito de origem que se bifurca e que atravessa, em constante mutação
e proliferação de narrativas, as culturas de todos os povos e de todos os
tempos” (ROA BASTOS, 2002, p. 74).
Do fascínio de Burton por Lynch, a narrativa desloca-se para a imagem
do balão dirigível brasileiro e de sua captura pelas forças paraguaias. Descrevea como uma das últimas conquistas paraguaias. A ela associa-se Cándido
López que pintou uma tela sobre o tema. O artista argentino torna-se ao
lado de Burton outra testemunha histórica: “Há um testemunho irrefutável
desta façanha, que não é uma invenção do obnubilado sir Francis” (ROA
BASTOS, 2002, p. 77). O epílogo trágico da guerra, a que a captura do balão
marca o início, caminha paralela à degeneração sofrida ficcionalmente pelo
pintor. Além da perda do braço direito, episódio retratado por sua biografia,
Cándido López torna-se a imagem do sacrifício humano. Perde também o
braço esquerdo, “que já começava a ser destro” (ROA BASTOS, 2002, p.
79), por um estilhaço de obus. Logo a seguir, é a vez das pernas. À maneira
de um Quasímodo, ainda assim insiste na sua arte: “Aprende a pintar com o
pincel preso entre os dentes” (ROA BASTOS, 2002, p. 79). O seu drama é
identificado ao povo paraguaio: “Cándido López pintou em quadros
memoráveis a tragédia da guerra, mas seu próprio corpo era o comentário
mais terrível dela” (ROA BASTOS, 2002, p. 78).
A agonia paraguaia faz-se pretexto para o enfoque dos últimos dias
do império de Solano López. O clima é fantasmagórico: López condecora
com insígnias de latão seus últimos oficiais; o Padre Fidel Maíz sugere ao
presidente, a exemplo de Júlio César, a inclusão de mais um dia no calendário
de fevereiro; o conde pianista que executa, a mando de López, as mazurcas
e polonesas em plena selva, como meio de incentivar o fiapo da tropa
paraguaia. Por fim, prepara-se o confronto sob as cores de um exótico
misticismo: “No acampamento brasileiro ferve ruidosa a macumba invocando
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Exu. Oficia de ´sacerdote´ o cabo, jogador de capoeira e cavaleiro de circo,
o mulato Chico Diabo, a quem o Grande Xangô, Exu e outras divindades
afro-brasileiras untam com os óleos selvagens do Grande Poder” (ROA
BASTOS, 2002, p. 86).
As representações finais da guerra, apesar de não destoarem do
consagrado pela historiografia, são captadas por um filtro que distorce a
imagem, a exemplo do onírico, na forma de um pesadelo. As sugestões
ficcionais são atribuídas mais uma vez a Burton: “É preciso voltar ao livro
do tradutor das Mil e uma noites para conhecer um pouco mais alguns dos
estranhos personagens da Guerra Grande” (ROA BASTOS, 2002, p. 88).
Um deles é a polêmica figura do Padre Fidel Maíz, que conclamou a
Prostituição Patriótica durante a guerra: “Em sua degradação, em seus crimes,
em seu pecados, é o anti-herói mais puro e virtuoso do Paraguai” (ROA
BASTOS, 2002, p. 92).
Novamente Cándido López torna-se objeto das reflexões do narrador.
Mediante as diferenças que marcam a sua pintura em duas fases distintas, o
narrador aventura a hipótese do duplo: “Toda realidade simbólica pode
desdobrar-se em múltiplas e diferentes configurações. Algumas delas são as
lendas que são capazes de gerar. A propósito de Cándido López, pintor e
guerreiro da Tríplice Aliança da Argentina, Brasil e Uruguai, existe em meu
país uma versão legendária de outro pintor chamado também Cándido López”
(ROA BASTOS, 2002, p. 94-95).
Havia, assim, um pintor argentino dedicado a representar a guerra do
Paraguai e outro cuja vocação era testemunhar a destruição do país vencido.
O tema do duplo em López ilumina a estranheza causada pelos livros
diferentes de Burton. Um marcado pelas qualidades da crônica histórica. O
outro, “pela delirante fantasia criativa, muito superior à simples tradução do
Livros das Noites” (ROA BASTOS, 2002, p. 88).
Curiosamente, Roa Bastos oferece um texto que evidencia claramente
várias estratégias ficcionais utilizadas em larga escala por Jorge Luis Borges,
comentador de Burton e admirador do trabalho de Cándido López, tais
como o tom ensaístico na ficção, o tema do duplo e do livro único, a
indefinição e amálgama entre as matérias históricas e as apócrifas e o
maravilhoso muitas vezes associado ao longínquo, como o Oriente. Além
disso, vigora continuamente aquele jogo entre o fictício e o factual.
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A princípio, constrói-se uma idéia de verossimilhança que é
ironicamente rompida. Mas, para desespero do leitor, o que aparenta ser
mais fictício é o que pode ser comprovado, como a caracterização de Burton
e a carbonização de seus escritos pela esposa (RICE, 1991, p. 488-492). O
que leva à conclusão de que tudo que aparenta ser fictício possa ser também
factual. Daí o teatro de sombras montado por Roa Bastos, em que estranhas
personagens resolvem-se entre a lenda e a história, pouco importando se
elas são apenas objeto de representação ou uma instância autoral, como no
caso de Burton e Cándido López, responsáveis também por outras
representações. Percebe-se, deste modo, como o Livro Único evocado pelo
narrador (ROA BASTOS, 2002, p. 56) reúne escritores tão díspares como
Plínio, Joyce e Borges, todos marcados pela irremediável incorporação do
biográfico como impressão ficcional.
Em frente à frente argentina: um diálogo entre a literatura e a pintura
Enquanto o texto anterior privilegia o poder de sedução advindo de
antigas representações, sobretudo aquele experimentado por Xerazade por
meio da narrativa, o conto inicial do volume volta-se com mais atenção para
o estatuto da representação através de um único diálogo entre Bartolomeu
Mitre, então presidente da Argentina e primeiro comandante dos países
aliados contra o Paraguai, e o seu ajudante, o oficial do exército argentino e
pintor Cándido López.
A escolha de Mitre como personagem não incide apenas na sua atuação
política, mas também como criador de representações. Neste caso, privilegiase o seu trabalho de tradução da Divina Comédia, em meio à guerra. Cándido
López conclui: “Nós dois misturamos tinta, trememos um pouco e depois
recriamos o mundo do nosso jeito e segundo nossos reais caprichos” (ROA
BASTOS, 2002, p. 17).
Obcecados com a fidelidade ao modelo (DINIZ, 1997, p. 21), Mitre
e López no conto de Roa Bastos dividem-se entre dois pontos de vista
distintos sobre a representação artística. Enquanto López crê numa arte
sujeita à verossimilhança externa, Mitre mostra-se mais cético: “Você por
acaso pensa que essas imagens são fiéis à matança? A memória do momento
é a mais enganosa. Nunca estamos no tempo presente, salvo na memória
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que se torna copiosa...” (ROA BASTOS, 2002, p. 23). É Mitre quem dedica
ao outro os atributos de neo-realista ou pré-rafaelita (ROA BASTOS, 2002,
p. 18). Vale-se ainda do reforço de seu nome, “candoroso Cándido”, para
ironizar aquela postura.
Já Mitre revela a consciência de que a arte pode ser usada pelo poder:
“A arte é a arma para corrigir a realidade.” (ROA BASTOS, 2002, p. 16). Sua
perspectiva coaduna melhor com a de uma leitura ufanista da guerra, que se
propõe a convencer o leitor/espectador sobre as suas razões: “É preciso
inventar a glória, mestre. Se nossas tropas recuaram, faça com que avancem
em sua pintura” (ROA BASTOS, 2002, p. 16). É contra esta utilização da
arte que se insurge Cándido, considerando-a espúria: “Você pintou o
fuzilamento do brigadier Aranda? Não, dom Mitre. Como quer que eu retrate
essa farsa? O pelotão fuzilou um boneco de estopa. Imagine, não seria decente
reproduzir uma reprodução sem origem, uma pantomima bastarda, dom.
Note que essa comédia de justiçamento transforma a justiça em um truque”
(ROA BASTOS, 2002, p. 18).
Constrói-se deste modo uma oposição entre representações artísticas
que também rivaliza sobre os modos de ler a Guerra do Paraguai. Mitre
aproxima-se da leitura oficial, enquanto López, da revisionista. A fala do
pintor expressa a denúncia de uma guerra que massacra um povo enquanto
uns poucos dela se beneficiam. Atribui insistentemente a Mitre, como
comandante das forças aliadas, a autoria daqueles crimes, apelando ao juízo
final: “Não esqueça que firmou o Tratado e que a tinta da morte não se
apaga como os fogos de minhas telas” (ROA BASTOS, 2002, p. 49).
Entretanto, a esperança figurada pelo poder da transfiguração pela arte,
presente no primeiro texto, já não tem lugar aqui: “Para que viver se não
podemos retificar nenhum retalho de justiça em um mundo manifestamente
iníquo e arbitrário?” (ROA BASTOS, 2002, p. 49).
A posição de Mitre mostra-se um pouco mais complexa. Utiliza como
argumento para a guerra a tese expansionista de Solano López: “O marechal
estava se aliando com os uruguaios por um lado e com Urquiza por outro,
mestre. Queria usar uma pinça para me asfixiar” (ROA BASTOS, 2002, p.
52). Por outro lado, pressente que os dividendos da guerra não lhe serão
favoráveis: “Esta guerra me queima os calcanhares, mas não posso recuar”
(ROA BASTOS, 2002, p. 27). Divide-se entre o político, comandante dos
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exércitos aliados, e o intelectual, tradutor de Dante. Os boletins oficiais
constituem sua dor de cabeça: “A História se faz com datas... Mas faltam
dados para o boletim, esta parte será um parto. Quando escrevo sobre o
passado, existem apenas as palavras rabiscadas do escrito, que vão ficando
sobre o papel como o suor de minha alma” (ROA BASTOS, 2002, p. 29). É
ainda Mitre quem desmascara o pretenso realismo de López, traçando uma
leitura sobre o estilo do pintor e seus “soldadinhos de chumbo”:
Formigas indo e vindo pela areia da praia. É assim que se imprime uma
guerra? Seria melhor ter usado o daguerreótipo, que não suaviza nenhuma
sevícia. Não, meu lugar-tenente. Ficando em seu lugar você está fora, longe,
retratando as nugas de uma crueldade que ainda não entendeu inteiramente.
Se fosse fiel, sua infidelidade estaria à frente, fazendo-o fantasiar cores e
formas que nem você nem eu nunca vimos. Ou você pensa que a guerra é
essa fileira de soldados uniformizados como brinquedos mirando o céu
azul? (ROA BASTOS, 2002, p. 24)
Insinua-se ao longo da narrativa uma outra metáfora. A que delega o
espaço celeste a Cándido López, ao passo que o Inferno torna-se objeto de
Mitre. Neste ponto, a intertextualidade acentua a idéia já trabalhada de
representação. A geografia pantanosa e de grandes rios vai marcando o espaço
que liga a Guerra do Paraguai ao Inferno, de Dante: “Quem pode se salvar no
inferno do Gran Chaco?” (ROA BASTOS, 2002, p. 19). Mitre reclama
novamente do realismo de López, recuperando agora o cenário para as cores
sombrias do Hades e relativizando o conceito de representação: “Estou
documentando a verdade! Por que você não pintou aquelas brenhas
espinhentas que quase me esfolaram vivo? Já se esqueceu de todo o restolhal
que atravessou nosso caminho? Este rio cheio de bocas não poderia vomitar
mais aguadas e aguaçais, nessa imundície de cólera e varíola, febre e diarréia”
(ROA BASTOS, 2002, p. 30).
Como Dante e Virgílio, Cándido e Mitre refazem o caminho dos
círculos do Inferno. Enquanto isso, as Fúrias do texto clássico dialogam
com as amazonas do espaço americano. Mas, desta vez, é Cándido quem
denuncia a máscara que a dramatização esconde: “Não sei pintar a dor,
desenho apenas o que vejo em seu rosto e nunca vi dor alguma, nem nos
piores momentos, general” (ROA BASTOS, 2002, p. 30).
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Se o universo literário recebe o reforço da Divina Comédia, para o
espaço de pintura é convocado a figura de Diego Velázquez, referência
quando se trata de pensar os universos envolvidos nas representações. Ainda
assim Mitre alerta seu ajudante sobre os perigos da autofagia: “Cuidado
para não acabar engolindo sua manufatura” (ROA BASTOS, 2002, p. 29).
O que Roa Bastos coloca mais uma vez em jogo é a velha discussão
sobre a teoria nominalista: “Dante fundou o Inferno, mestre. Só a poesia
podia edificar do nada...” (ROA BASTOS, 2002, p. 25). Teoria tão antiga,
mas ainda hoje pouco resolvida, como nos lembra Gustavo Bernardo:
A situação atual da nossa civilização, conseqüentemente de boa parte de
nosso pensamento, é a de niilismo incipiente, fruto da combinação paradoxal
de uma valorização desmedida do intelecto com o desespero em relação à
capacidade do mesmo intelecto: podemos ou não podemos mais ter contato
com a realidade? A realidade é acessível, é nossa morada e referência, ou
tornou-se inacessível, como dizem, ou pregam, Lacan, Baudrillard e tantos
outros? É como se, quanto mais pensássemos, não mais víssemos o quanto
ainda tínhamos de pensar, como queria Sócrates, mas sim para quão pouco
serve tanto pensamento, tanto blá-blá-blá, enfim. (BERNARDO, 2000)
Passado e presente na América Latina
A partir da segunda metade da década do século passado, o realismo
maravilhoso cumpriu a função, dentre outras, de indagar a história latinoamericana escrita nos moldes do racionalismo científico. O elemento
maravilhoso que se revestia na possibilidade de uma história não-eurocêntrica
respondeu de forma afirmativa sem contudo subjugar a arte ao exercício
panfletário. Nas últimas décadas verificamos a primazia de um movimento
que sem desdenhar daquele se vale da metalinguagem até às bordas do seu
limite, como se tivesse em mira a implosão da própria linguagem.
Cruzando cenas em que o elemento maravilhoso não está de todo
ausente, Roa Bastos elege nesses dois textos como objeto de diálogo com a
história a figura do artista e sua relação com a arte, dando vazão assim para
refletir sobre a eterna questão da representação.
Ambos os textos põem em confronto leituras divergentes sobre o
conceito do realismo artístico para concluir que até mesmo esse antagonismo
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torna-se ilusório. O escritor viajante representado por Richard Burton que
primordialmente se pauta pela observação e pela descrição fiel converte-se
no ser mais espectral da narrativa, transmutando o mundo a seu redor em
puro encantamento. Bartolomeu Mitre e Cándido López, por sua vez,
deflagram por detrás de suas insistentes defesas sobre a arte, posições
claramente empenhadas ideologicamente.
Contudo, é a referência, presente nos dois textos, ao pintor argentino
reabilitado a partir dos anos 60 do século passado que melhor testemunha o
jogo ambíguo entre a tomada histórica e a representação artística, insinuando
as diferentes leituras ao longo do tempo.
REFERÊNCIAS
BERNARDO, Gustavo. O nominalismo medieval na base da fenomenologia
moderna: de Guilherme de Occam a Vilém Flusser. In: MALEVAL, Maria do
Amparo. Atualizações da Idade Média. Rio de Janeiro: Ágora da Ilha, 2000. Disponível
em: http://paginas.terra.com.br/arte/dubioergosum/flusser37.htm. Acesso em:
23 mai 2006.
BURTON, Richard Francis. Cartas dos campos de batalha do Paraguai. Trad. José Lívio
Dantas. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 1997.
DINIZ, Alai Garcia. Máquinas, corpos, cartas: Imaginários da guerra do Paraguai. São
Paulo: USP, 1997. Tese de Doutorado.
MUGGIATI, Roberto. Um agente inglês na corte de Pedro II. Nossa História, Rio
de Janeiro, Biblioteca Nacional, n. 24, p. 76-79, out. 2005.
RICE, Edward. Sir Richard Francis Burton: o agente secreto que fez a peregrinação
a Meca, descobriu o Kama Sutra e trouxe As mil e uma noites para o Ocidente.
Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
ROA BASTOS, Augusto et alli. O livro da Guerra Grande. Trad. Josely Vianna Baptista.
Rio de Janeiro: Record, 2002.
Artigo recebido em 04.02.2008.
Artigo aceito em 14.05.2008.
Naira de Almeida Nascimento
Doutora em Letras pela Universidade Federal do Paraná.
Professora do Curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
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VIDA E MORTE:
TANGÊNCIA PELAS PALAVRAS
Raquel Illescas Bueno
[email protected]
RESUMO: No conto “Sem tangência”,
publicado inicialmente em 1965 e
incluído na obra póstuma Ave, palavra,
Guimarães Rosa aborda o tema da
morte e da possibilidade de alguma
forma de existência posterior a ela. Este
trabalho tem por objetivo iluminar as
concepções do autor acerca do binômio
“surpresa” e “inevitabilidade”, atributos
da própria morte e da expressão verbal.
Para tanto, além da análise do conto,
serão investigadas circunstâncias
biográficas da morte do autor. Não se
pretende aqui reforçar as leituras
esotéricas que atribuem a Rosa a
capacidade de predizer sua própria
morte, mas sim observar como o autor
tematizou a morte num determinado
texto literário, cujo título nega o que
sugere: a existência de algum ponto em
que vida e morte pudessem se tocar.
ABSTRACT: In the short story entitled
“Sem tangência”, first published in 1965
(in Ave, palavra, a posthumous book),
Guimarães Rosa deals with the theme
of death and the possibility of some
form of existence after it. This essay
intends to work with the author’s
understanding of the concepts of
“surprise” and “inevitability”, which are
attributes of death itself and of its
verbal expression. To that purpose,
besides the analysis of the short story,
biographic circumstances of the
author’s death will be investigated. We
have no intention of reinforcing esoteric
readings which consider that Guimarães
Rosa could predict his own death.
Instead, the essay intends to analyze how
Rosa develops the theme of death in
one specific literary text whose title
denies what it suggests: the existence
of some point where death and life
could touch one another.
PALAVRAS-CHAVE: Guimarães Rosa. Conto brasileiro. Ave, palavra.
KEY WORDS: Guimarães Rosa. Brazilian short story. Ave, palavra.
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Memória
Amar o perdido
deixa confundido
este coração.
Nada pode o olvido
contra o sem sentido
apelo do Não.
As coisas tangíveis
tornam-se insensíveis
à palma da mão.
Mas as coisas findas,
muito mais que lindas,
essas ficarão.
Carlos Drummond de Andrade
Uma introdução ao que não se pode tocar
Noções hauridas em diversas correntes filosóficas e religiosas
embasam a investigação poética de Guimarães Rosa sobre as possibilidades
de existência de vida após a morte, ou de uma zona ambígua entre ambas,
tema presente em parte significativa de sua ficção. No conto “Sem tangência”
(de Ave, palavra, 1965), a comunicação entre os homens é tentativa
interrompida de compreender esses mistérios.
O conto, muito breve, dá conta de cena igualmente breve mas
reiterada, vivida num cemitério. Lá, o protagonista (o “forasteiro”) –
freqüentador habitual daquele lugar – é interpelado por um coveiro, que lhe
pergunta se ele era parente do homem enterrado na cova próxima à qual
estavam. O que o protagonista fazia, na verdade, era observar diariamente
os gestos de uma mulher que, assim como ele, aparecia regularmente por ali.
A troca de palavras entre os dois homens é permeada por outras palavras,
que o narrador – como o protagonista – não sabe quem pronuncia. A frase
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mais significativa desse discurso de alguém (do além?): “Refuja o denso viver,
pela levez da morte...”
O diálogo entre o protagonista e o coveiro, personagem mais
pragmático, pouco esclarece sobre o malfeitor recentemente enterrado ou
sobre a moça de vestido preto que todos os dias visitava aquele túmulo.
Conversa feita de silêncios e de palavras que o narrador não sabe quem
pronuncia, ou mesmo se foram efetivamente pronunciadas, chamá-la de
“diálogo” é já forçar a nota.
Quem (e como) são os mortos, quem (e como) são os vivos? De
onde vêm as palavras trazidas pelo “vento, devolvedor de palavras”, e que
se intrometem nas falas das personagens? Segue, adiante, outra breve troca
de idéias, desta vez envolvendo o ajudante do coveiro, rapaz que “tinha as
petulâncias da vida”. Quem conscientemente fala (os dois trabalhadores da
morte e o protagonista) pouco sabe sobre o morto – ou sobre a morte. Não
há tangência no plano mais racional, mas ela fica sugerida quando se
intrometem “outras” vozes.
Dentre os vários significados do verbo “tanger” e do substantivo
“tangência”, interessa destacar, no campo da geometria, as curvas, linhas ou
superfícies que se tocam num único ponto. Mas não se descarte, por outro
lado, o significado que remete à música, ao mundo dos sons: tanger um
instrumento, fazer ressoar. Entre falas parcas e silêncios medeia a não
tangência no conto ora analisado. E o mais certo é que, havendo ou não
tangência entre vivos e mortos, impõe-se de súbito para os primeiros o
“inenarrável rapto”.
Foi assim também, dois anos depois da escrita desse conto, para o
então recém-imortalizado Guimarães Rosa. A permanência de sua obra
independeria, é claro, de o artista ter assento em alguma instituição como a
Academia Brasileira de Letras. Mas esse dado biográfico – a imortalidade
institucionalmente obtida – sempre é lembrado quando se faz referência à
morte do autor, que adiou sua posse na ABL por quase quatro anos, para
morrer três dias depois, de fulminante enfarte súbito e mortal (se o gênero
permite o excesso de adjetivos, fiquem todos esses grafados). Foi uma morte
inesperada, pelo menos para os que permaneceram vivos.
Qual o lugar da palavra viva de Guimarães Rosa neste universo de
que participamos nós, pesquisadores de sua obra? Ou, como indaga o
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narrador de “Sem tangência”: “Quem morre, morreu mesmo?” Para
Drummond, citado em epígrafe, quando as coisas são belas elas sobrevivem
na memória. A beleza não tem prazo prescricional. Mas o jogo de ambigüidades
se renova cada vez que alguém procura conceber racionalmente a dimensão da
memória, cujo limite é o olvido, essa outra forma de morrer.
Mesmos motivos, outros sentidos
Com pouco mais de duas páginas, “Sem tangência” apresenta aquela
intensa concentração dos recursos formais própria do idioma de Guimarães
Rosa em suas produções maduras. Nesse conto, a linguagem foi colocada a
serviço da ambigüidade, para expressar a permanente indecisão do narrador
externo que, assim como o forasteiro que protagoniza a narrativa, avança e
recua na sua curiosidade sobre o que pode haver para além da vida de
tangências que todos conhecemos.
A primeira frase do conto é eloqüente: “A morte é lúgubre lorde; a
ambígua” (ROSA, 1995, p. 1031). Essa ambigüidade está presente, sobretudo
na caracterização da moça que visita o túmulo recente. Ela é e não é a morte,
ela é e não é a transição entre a vida e a morte: bela, misteriosa, calada, ela se
veste de preto, talvez por ser a filha de alguém que está enterrado ali, talvez
antecipando seu próprio enterro, como sugere o auxiliar do coveiro.
O arcabouço retórico convocado pelo autor estende ao máximo os
limites dos símbolos tradicionais. No plano dos significantes, a lógica racional
é questionada – “a morte é maior do que a lógica” – gerando essa flutuação
dos sentidos tão característica do texto rosiano. O autor não dispensa os
elementos mais tradicionais dos contos de mistério: cemitério, cor negra,
silêncio seguido de vozes que não se sabe de onde vêm, a porta primitiva
enferrujada, urtigas e roseiras bravas. A eles, somam-se as imagens sugestivas
de um “coveiro, toupeireiro operador”, e de “querubins em cavernas
gritantes”, dentre outras.
O cemitério vai assumindo um caráter de terceira margem, ambíguo
como a própria morte. A moça era mais esbelta e mais rara que as outras
todas da cidade; o cemitério, por sua vez, era sítio aprazível, menos aborrecido
que outros daquela cidade “fabricada”. Sabemos que o protagonista escolheu
ir até ali mais para passear do que para cortejar algum morto, e também para
190
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
viver experiências estéticas ligadas à vida. Ele considerava a necrópole como
locus amenus, mas também como espaço capaz de surpreender: “Ali, o mar era
o cemitério.” Possível referência a Brasília (lembre-se a fabricação da grande
cidade no chapadão, em “As margens da alegria”, de Primeiras estórias), a tal
cidade era, para esse forasteiro, “fatal, fabricada, enfadonha” (fff...). Considerese que em 1965, Brasília tinha apenas cinco anos de idade.
Caso buscássemos apoio nas teorias críticas de Deleuze (1995), os
conceitos de desterritorialização e deslizamento caberiam como uma luva
para a análise do conto de Rosa, pois permitiriam multiplicar à enésima
potência o poder sugestivo da figurativização que permeia a abordagem da
possível existência de uma zona intermediária – se assim se pode dizer –
entre a vida e a morte. Nas palavras do narrador: “A gente vê só o cinzento:
mas têm-se de adivinhar o branco e o preto” (ROSA, 1995, p. 1031).
Porém, nesta breve investigação, preferimos afastar embasamento
de fundo psicanalítico, para assim minimizar o risco – neste caso, indesejado
– de se ler “Sem tangência” como alegoria das representações inconscientes
do sujeito biográfico João Guimarães Rosa. Estando o cemitério definido
pelo narrador como local de “desexílio”, optou-se por ler o neologismo
simplesmente como metáfora da sensação de conforto correspondente a
uma “volta para casa”, e não, por exemplo, como deslizamento de algum
desejo íntimo de morte. Deixemos de lado, portanto, a sugestividade dos
Mil platôs e dos Mil planaltos de Deleuze e Guattari; voltemos ao espaço de
“Sem tangência” – talvez estejamos volvendo assim ao planalto central do
Brasil, local de nascença de Rosa e espaço geográfico preferido para suas
tramas, seja por seus sertões, seja por suas veredas.
O parágrafo de abertura do conto, como foi dito, inverte as
compreensões mais usuais de cidade e necrópole, ao descrever a primeira
como fatal e monótona e, a segunda, como locus amenus, capaz de proporcionar
conforto espiritual. A cidade é inóspita; o cemitério, acolhedor. Mas, atenção:
não tanto como para suscitar o desejo de ali se habitar. O que o protagonista
fazia era passear por ali, ir e voltar, à sua vontade: “Podia-se procurar passeio,
o desexílio, em seu reduzido espaço, dos que perderam para sempre o
endereço”. No último parágrafo, a cidade segue sendo “fácil, fatigadora,
fingida” (fff...), mas aparece uma novidade: o narrador informa que o
personagem não mais permanecerá nela (“Deveria em seguida partir, o
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
191
forasteiro” – ROSA, 1995, p. 1033). Naquele momento, entretanto, o narrador
tinha ainda um endereço, ainda que bastante provisório, naquela cidade
“árdua”.
No diálogo com o coveiro, problematizam-se os limites da vontade
de conhecimento de cada um. Num primeiro momento, o forasteiro
(estrangeiro, que não pertence àquele lugar) parece sentir-se superior por ter
uma visão da morte que inclui elementos do tipo “especulação poética” e
“mistério esperançoso”. Ele se orgulha de sua capacidade de ouvir do nada
a palavra “Amor” e, mesmo amedrontado, prosseguir sua investigação.
Depois, os papéis se invertem. O coveiro, que achou o forasteiro
parecido com a moça de preto, estaria disposto a falar do parentesco entre
ela e Seo Visneto, o morto recente. Nessa altura, o leitor já foi conduzido a
pensar que os homens são todos parecidos entre si, que todos são (somos)
parentes de todos, os mortos e os vivos, igualados por alguma finitude sabida
e insabida: “Sim, a moça era quase prevista surpresa.” (ROSA, p. 1032,
minha ênfase). Se a palavra “moça” fosse substituída por “morte”, a frase
faria outro sentido, ou o mesmo? Rosa propõe nova reflexão, na seqüência
dessa mesma passagem do conto: “Um dia, haverá sábios. E, que nos vem
da vida, enfim? – com o continuitar do ar, do chão e do relógio. A morte: o
inenarrável rapto” (ROSA, 1995, p. 1032).
O homem supostamente visitado em sua morada eterna pela moça
de preto tinha fama de mau, pertenceria a uma linhagem de perversos. Seu
nome ou apelido – Visneto – remete a genealogia, herança, atavismo. Assim
como em “Os irmãos Dagobé”, a pressuposição de que a maldade é
hereditária comparece como assunto. Essa é a crença popular, que fica
relativizada, mas influencia pré-julgamentos sobre a moça de preto e traz ao
texto o tema da maldade como característica indissociável da natureza humana
ao longo das gerações (lembre-se do mesmo assunto em “Os chapéus
transeuntes”, de Estas estórias). Por outro lado, o coveiro identifica Seo Visneto
como um homem “justo, bom, mas vagaroso”.
O forasteiro resiste ao relato do coveiro sobre relações sangüíneas e
afasta-se dali. Nessa atitude, questiona-se quão absurdo pode ser o exercício
da liberdade de escolha, quando limita os conhecimentos possíveis, em vez
de ampliá-los. “Ainda não”, diz o narrador, acompanhando o recuo do
192
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
protagonista. Mas quando, então? Somos forasteiros em uma cidade
enfadonha? Não importa: “De repente, quando a gente não espera, o sertão
vem.”, já dizia Riobaldo. Antes disso, o medo da morte se sobrepõe e abafa
a capacidade de sentir e de avançar na interpretação da beleza do cemitério
e de seus habitantes, tanto os mortos como os vivos, tanto os que parecem
estar já em contato com uma outra forma de existência (como a moça de
preto), quanto os operários envolvidos no prosaísmo das dificuldades e
contradições cotidianas (o coveiro se queixa de dor nas costas; seu ajudante,
apesar de exercer tarefa tão desprestigiada socialmente, e apesar de andar
descalço, fuma cigarros caros).
Retornando à frase inicial: a expressão “lúgubre lorde” fala de luto,
mas também de riqueza e ostentação. A morte embrulhada para presente, a
morte e sua festa. No caixão de Nhinhinha, em “A menina de lá” (de Primeiras
estórias), os “funebrilhos” cor-de-rosa sobre o caixãozinho verde faziam do
ritual de despedida da menina a inauguração festiva de uma nova fase da sua
existência. Os enfeites no caixão haviam sido providenciados a pedido dela,
que adivinhara a própria morte.
Contra a lógica que atua contra a vida
Não se estranhe que o lúgubre seja também festivo, uma vez que a
morte é concebida a partir de uma visada mística, cara ao pensamento religioso
e matizada pela filosofia oriental. A morte é iniciação, ressurreição, fim de
um ciclo para início de outro, liberação de forças, renascimento em outro
plano de existência.
Em sua entrevista a Gunther Lorenz, Guimarães Rosa declarou:
as regras [da matemática] não valem para o homem, a não ser que não se
creia na sua ressurreição e no infinito. Eu creio firmemente. Por isso
também espero uma literatura tão ilógica como a minha, que transforme
o cosmo num sertão no qual a única realidade seja o inacreditável. A
lógica, prezado amigo, é a força com a qual o homem, algum dia, haverá
de se matar. Apenas superando a lógica é que se pode pensar com justiça.
Pense nisto: o amor é sempre ilógico, mas cada crime é cometido segundo
as leis da lógica. (ROSA, 1995, p. 57-8)
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
193
Como aponta Eduardo Coutinho, Rosa não despreza o racionalismo,
mas relativiza sua autoridade, o cunho hegemônico e dogmático que adquiriu
na tradição ocidental. Por isso, os que estão fora do senso comum ganham
espaço em suas narrativas, sejam loucos, cegos, doentes, feiticeiros, artistas
populares, crianças ou velhos:
ao erigir este universo, em que a fala dos desfavorecidos se faz também
ouvir, Rosa efetua verdadeira desconstrução do discurso hegemônico da
lógica ocidental, e se lança na busca de terceiras possibilidades, tão bem
representadas pela imagem, síntese talvez de toda a sua obra, que dá título
ao conto “A terceira margem do rio”. [...] A contestação da lógica
dicotômica, alternativa, da tradição cartesiana, em favor da busca de uma
pluralidade de caminhos é uma das tônicas de toda a ficção rosiana, que
se expressa, entre outras coisas, pelo leitmotiv “Tudo é e não é”, repetido
com freqüência ao largo do Grande sertão: veredas. (ROSA, 1995, p. 21-2)
Depoimentos de familiares e de amigos dão conta do temor
confessado, poder-se-ia dizer ilógico de Rosa, que o levou a adiar sua posse
na Academia Brasileira de Letras por quase quatro anos, da eleição em 1963
a novembro de 1967. A primeira publicação de “Sem tangência”, vale
observar, aconteceu no período entre a divulgação do resultado da eleição e
a posse (julho de 1965).
Leia-se o depoimento de Carlos Heitor Cony, na época vizinho de
Rosa, narrando um encontro acontecido na véspera da cerimônia, quatro
dias antes da morte do autor mineiro:
Chovia e era de noite. Apesar da miopia, da chuva e da noite, os olhos de
gato de Guimarães Rosa me descobriram dentro do carro. [...]
– Olha, não me deixe sozinho amanhã. Eu preciso de suas palmas na
Academia.
– Você terá muitas palmas. Nem estará sozinho.
– Mas vá, assim mesmo. [...]
A sua glória – segundo alguns – não precisava da Academia, mas ele
precisava dela e por isso se emocionava, e por isso temia a morte em
plena tribuna, envolto no fardão, como um clown das letras que encontra –
ou busca – o seu ato final no próprio picadeiro. Para o seu bom gosto, a
194
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
cena seria exagerada. [...] Seu amor pela ordem impediu a fraqueza e ele
reagiu. Mas sabia-se marcado.” (Cony, [1972?], p. 30)
Em 1937, pouco tempo depois de tomar posse na mesma Academia,
o diplomata João Neves da Fontoura havia dito a Rosa: “Você um dia será
também acadêmico. Mas, mais tarde...” (“Ainda não.”). Rosa estava ali para
receber um prêmio por Magma. Era ainda um escritor desconhecido, que só
viria a estrear em livro quase dez anos mais tarde. Rosa comenta, no discurso
de novembro de 1967, que julgou despropositados os prognósticos otimistas
daquele conhecido, que nem amigo dele era (ainda não): “tão avulso, cabível
sem antecedência nem conseqüência, que pôde me parecer até enganoso,
fora de esquema, lapsos de improbabilidade. Só no futuro iriam assentar
nexo” (ROSA, 1983, p. 435).
Superado o tempo dos adiamentos, Rosa decidiu marcar sua posse
para o dia em que se comemoraria o aniversário de 80 anos de João Fontoura:
Foi há mais de 4 anos, a recém. Vésper luzindo, ele cumprira. De repente,
morreu: que é quando um homem vem inteiro pronto de suas próprias
profundezas. Morreu com modéstia. Se passou para o lado claro, fora e
acima de suave ramerrão e terríveis balbúrdias. (ROSA, 1983, p. 455)
Para condenar a atitude lutuosa dos vivos, Rosa cita um trecho do
Bhágavad Gita, parte do Mahabharata, texto basilar do hinduísmo. Nele, o
mestre Krishna orienta seu discípulo Arjuna: “Choras os que não devias
chorar. O homem desperto nem pelos mortos nem pelos vivos se enluta.”
Na seqüência, Rosa pede que se comemore o aniversário – no “plano terreno”
– do amigo morto. Beleza vital e morte se interpenetram, como em “Sem
tangência”, “A menina de lá”, “Recado do morro” (“É festa? Só se for morte
de alguém...”), ou ainda, noutro sentido, “Os chapéus transeuntes”.
Como qualquer outro acadêmico homenageado em discurso por
seu sucessor, João Neves da Fontoura comparece à cerimônia de sua sucessão
como um lorde lúgubre, o falecido-imortal cuja obra é exaltada nas palavras
do recém-eleito que chega, festivo, para ocupar sua cadeira e alguma farda.
Diferentemente dos demais acadêmicos – por força das palavras e de uma
escolha de Rosa –, João Neves da Fontoura estava ali também como
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
195
aniversariante. Imortais ambos os Joões, daquela imortalidade obtida pela
lógica interna da casa de Machado de Assis.
Dentre os protocolos da Academia Brasileira de Letras, inclui-se a
obrigação formal do sucessor de homenagear seu antecessor no discurso de
posse. Nesse sentido, Rosa não estava antecipando a própria morte ao falar
em morte, estava apenas cumprindo o protocolo. Todo imortal desse naipe
faz a homenagem de um morto-imortal que lhe tenha cedido a cadeira.
Com a maior felicidade e intensa emoção, de que dão conta os
depoimentos dos presentes, João Guimarães Rosa cumpria. Citou além do
hinduísmo o taoísmo (wu wei – não interferência), para ressaltar as idéias de
inevitabilidade e de surpresa quanto à morte do amigo. Morte e luto são
temas naturais naquele contexto. Assim também a própria idéia de sucessão.
Este último é tema recorrente da ficção de Guimarães Rosa: sucessão
por hereditariedade, por compartilhar crenças, por pertencer a uma mesma
espécie. É possível adiar a sucessão por hereditariedade? Certa feita, um
filho adiou a tomada do lugar do pai, depois se arrependeu. (“A terceira
margem do rio”). Como saber o que acontece na terceira margem sem ao
menos embarcar na canoa que leva a ela? Mas como embarcar nessa canoa
se o sujeito encontra-se radicalmente cindido entre o “ser” e o “estar”? O
filho permaneceria por isso à margem, “com as bagagens da vida”. Esse
filho esperara muito tempo pelo momento de suceder seu pai, mas todo esse
tempo não fora capaz de eliminar a surpresa que o inevitável retorno paterno
causou. Vale lembrar: tal inevitabilidade foi sentida exclusivamente por ele,
que permaneceu à margem. Toda sua família, tendo antes encontrado
respostas mais racionais para o sumiço do pai – loucura e lepra, dentre
outras – há tempos exilara-se para bem longe daquele rio. A cena do
reencontro entre pai e filho é bastante forte, permeada de surpresa e susto:
Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e
lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas
quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar
a voz: - Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece
mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo
o seu lugar, do senhor, na canoa!...” E, assim dizendo, meu coração bateu no
compasso do mais certo.
196
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n’água, prova para cá,
concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha
levantado o braço e feito um saudar de gesto – o primeiro, depois de
tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os
cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto
que ele me pareceu vir: da parte de além. (ROSA, 1995, p. 412)
Como a chegada da moça ao cemitério, em “Sem tangência”, a vinda
do pai era certa e esperada. Como a morte. Mas nem por isso deixava de ser
misteriosa, remetendo à impossível definição da identidade de quem está à
margem e tem consigo pouco mais que a linguagem pela qual pode tentar
verbalizar parte dessa certa incerteza, desse claro enigma, dessa inevitável
surpresa. O percurso do filho rumo a sua identidade pessoal não se
complementa. A lei do pai lhe pesa mais que as bagagens da vida.
Em “Sem tangência”, por outro lado, a subjetividade forte é matizada
pela incerteza quanto ao futuro, pela imprecisão das fronteiras entre os espaços
da vida e da morte. Protagonista e narrador parecem fazer uníssono, o recurso
à terceira pessoa soa como artifício literário (no bom sentido da palavra).
Narrador aproximadamente igual a forasteiro-protagonista, que por sua vez
é aproximadamente igual a João Guimarães Rosa.
Tanto a cidade como o cemitério repousam sobre um mesmo chão,
e não há rio, nessa história, que simbolize a impermanência. No chão, quase
no final do conto, “[R]etomava o trabalho o coveiro, dolorento, sabedor de
ofício. Já como fósseis os ossos que ele transplantava, naquele bom lugar
universo” (ROSA, 1995, p. 1032). A matéria – de osso a fóssil – resistirá o
quanto possa à impermanência. Até sucumbir às forças da terra. Bom lugar,
o nosso universo feito de terra, água, fogo e ar? Quem o diz é o narrador –
Rosa?
Não concluindo
A morte de Rosa, três dias depois de sua posse na ABL, tem inspirado
alguma mistificação que prefiro redirecionar para o campo da linguagem,
tangência possível. Uma frase de seu discurso é, com justiça, das mais
conhecidas e citadas: “as pessoas não morrem: ficam encantadas”. Além
disso: “A gente morre é para provar que viveu”, variação de um trecho de
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“Os chapéus transeuntes”: “A morte é o que é por conseguinte. A gente
morre é para provar que não teve razão” (ROSA, 1995, p. 749).
“Antes” e “depois”, “causa” e “conseqüência” são noções relevantes
mesmo para o pensamento cíclico, mítico. Independente de existir vida após
a morte – dúvida que põe na encruzilhada qualquer lógica – a temporalidade
importa. Em “Sem tangência”, Rosa tematiza a consciência dos limites do
conhecimento, o desafio assustador de avançar em direção ao mistério. Entre
oximoros e metáforas de largo vôo, a ambigüidade persiste.
Prever que a literatura de Rosa tem força para durar muitos anos é
quase o óbvio. Sua atitude simbólica, feita palavra, gerou imagens tão
ricamente ambíguas que prorrogam indeterminadamente o prazo da tentativa
de sua compreensão. De seu domínio formal da língua portuguesa, não é
necessário fazer o elogio, ou lembrar que ele vem sendo feito, mais e mais,
pela sempre crescente crítica especializada que se detém sobre essa portentosa
obra.
Do gosto literário futuro, nada sabemos. Talvez um dia a recepção
(a falta de) venha a transformar Homero, Shakespeare ou Drummond em
escritores obscuros. Será? Quando? Por quê? E quanto a Guimarães Rosa?
Ainda não. Amar o perdido? Apelo do Não? Escreve Rosa, em “O grande
samba disperso” (Ave, palavra): “Amor perdido é amor que não foi achado:
não-amor. Não o amor-mor, o mor amor. [...] O amor não precisa de memória,
não arredonda, não floreia: faz forte estilo. E fim” (ROSA, 1995, p. 942).
No que tange a mors-amor, o binômio elidido, subentendido nessa
frase de Rosa, convém ceder a palavra novamente a Drummond: se “as
coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão”, por outro lado, ou –
noutra estrofe (ainda não) – “as coisas findas, muito mais que lindas, essas
ficarão”.
REFERÊNCIAS
CONY, Carlos Heitor. As obras-primas que poucos leram - 2; Grande sertão:
veredas. In Manchete. Rio de Janeiro: Bloch Editores, [1972?].
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Felix. Mil platôs. v. 1. São Paulo: Ed. 34,
1995.
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ROSA, João Guimarães. Ficção completa, v. I e II. Rio de Janeiro: Nova
Aguilar,1995.
ROSA, Vilma G. Relembramentos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.
Artigo recebido em 29.05.2008.
Artigo aceito em 03.09.2008.
Raquel Illescas Bueno
Doutora em Literatura Brasileira pela USP.
Professora Adjunta do Departamento de Lingüística, Letras Clássicas e
Vernáculas da Universidade Federal do Paraná – UFPR.
Vice-Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPR.
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199
200
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
P. K. PAGE: PERCEPÇÃO POÉTICA E
CONSCIÊNCIA CULTURAL EM
“BRAZILIAN FAZENDA”*
Sigrid Renaux
[email protected]
RESUMO: Para Northrop Frye, “não
é uma nação, mas um ambiente que
causa impacto nos poetas e a poesia
consegue tratar apenas dos aspectos
imaginativos deste ambiente”. Partindo
desta afirmação, o presente trabalho
investiga o efeito que o ambiente
específico de uma fazenda brasileira
causou em P. K. Page, como revelado no
poema “Brazilian Fazenda”. Ao descrever
a paisagem que a cerca a partir de uma
perspectiva singular, ela não apenas
acentua a precisão imagística de sua
percepção visual, como também põe em
destaque sua sensibilidade poética, ao
transformar os aspectos referenciais da
fazenda em intensa experiência poética
e cultural.
ABSTRACT: Starting from Northrop
Frye’s statement that “it is not a nation
but an environment that makes an impact
on poets, and poetry can deal only with the
imaginative aspect of that environment”,
this paper investigates the effect that the
specific environment of a Brazilian farm
has made on P. K. Page, as revealed in
her poem “Brazilian Fazenda”. In the
description of her surroundings from an
unusual perspective, she not only
highlights the imagistic precision of her
visual perception but simultaneously
foregrounds her poetic sensibility, as she
transforms the referential aspects of the
fazenda into an intense poetic and
cultural experience.
PALAVRAS-CHAVE: P. K. Page. Poesia. Subjetividade. Cultura brasileira.
KEY WORDS: P. K. Page. Poetry. Subjectivity. Brazilian culture.
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201
No “Prefácio para uma Antologia não Coletada”1, Northrop Frye
apresenta certos princípios críticos que considera essenciais ao tratar da
poesia canadense: “O primeiro desses princípios é o fato de o canadense
culto ter o mesmo interesse pela poesia que tem pela história ou política
canadenses. Quaisquer que sejam seus méritos, é a poesia de seu próprio
país e ela lhe dá uma compreensão do mesmo que nada mais pode lhe dar”.
Frye também enfatiza que “as qualidades na poesia canadense que contribuem
para tornar o Canadá imaginativamente mais expressivo para o leitor
canadense são valores genuinamente literários, coincidam estes ou não com
outros valores” (FRYE, 1971, p. 163).
Apesar de ambas as constatações já serem significativas para uma
compreensão da postura canadense vis-à-vis à poesia do próprio país e
portanto poderiam servir de meio de comparação com a atitude adotada em
outras culturas, é na realidade a afirmação seguinte de Frye que se tornará o
ponto de partida de nossa argumentação: “Não é uma nação mas um ambiente
que causa impacto nos poetas e a poesia pode apenas tratar do aspecto
imaginativo desse ambiente” (FRYE, 1971, p. 164). Ela nos fornece a chave
para uma compreensão melhor não apenas da poesia canadense, mas também
dos poemas que P. K. Page escreveu sobre sua experiência no Brasil, deste
modo tornando a paisagem de nosso próprio país subitamente mais
significativa – “imaginativamente mais expressiva” – ao ser vista não através
dos olhos de nossos conterrâneos, mas através dos olhos de uma poeta canadense.
Como esposa de William Arthur Irwin, embaixador canadense no
Brasil, P. K. Page já era conhecida como escritora quando chegou ao Brasil,
em 1957: além de poemas publicados em diversas revistas canadenses de
poesia, ela também já havia publicado um romance, The Sun and the Moon
(1944), e dois livros de poemas, As Ten, as Twenty e The Metal and the Flower,
que recebeu o Governor General’s Award para poesia. Como os comentários
críticos enfatizam, os poemas de As Ten as Twenty (1946) mostram seu
“profundo conhecimento das tendências poéticas inglesas na década de 1930”
e seu compartilhamento das “preocupações psicoanalíticas dos poetas ingleses
contemporâneos”, enquanto os poemas de The metal and the flower (1954)
refletem, “em suas representações nitidamente visuais de situações concretas
(...) as percepções cinematográficas” que ela havia adquirido quando
trabalhava como roteirista para o National Film Board (TOYE, ed., 1983, p.
630-31). De 1942 em diante Page também se associou ao grupo Preview em
Montreal onde conheceu F.R.Scott, A.J.M.Smith e outros poetas e escritores
202
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
que haviam introduzido a estética do Modernismo nas letras canadenses
(ORANGE, 1987, p. 9).
O fato de Page ter estudado arte no Brasil e aprendido a falar
português já sugere quão fascinada e intrigada ela deveria estar com seu
novo ambiente. Como ela afirma numa entrevista em 1975, “Bem, eu acho
que o Brasil me deu uma dimensão plena ou enfatizou uma dimensão que
eu já tinha, não sei bem como explicar, mas sinceramente eu senti de certa
maneira que minha perceção havia se alterado” (KEELER, apud ORANGE,
1987, p. 4).
Se a percepção de Page havia sido “alterada” pelo ambiente brasileiro,
o impacto desta nova paisagem em sua sensibilidade poética seria
transformado em versos apenas muitos anos mais tarde, pois durante o
tempo em que viveu fora do Canadá (de 1953 a 1964, quando W.A.Irwin
serviu como embaixador do Canadá na Austrália, no Brasil e no México) ela
escreveu comparativamente pouca poesia, concentrando-se em pintura e
em desenhos intrincados. Ambos mostram como suas diversas artes refletemse mutuamente, pois elas evocam imagens poéticas bem como estéticas
(TOYE, ed. 1983, p. 631).
Lembrando-nos deste contexto e também do fato bem conhecido
que as tradições das quais surgiu a poesia de Page são o movimento simbolista
francês, o surrealismo e os modernistas – ela própria inclui em sua relação
Lorca, Rilke, Auden, Eliot e Stevens, entre outros, como influências
(ORANGE, 1987, p. 8) – torna-se ainda mais desafiador avaliar um poema
como “Brazilian Fazenda” (PAGE, 1997, p. 123), no qual os elementos
históricos, religiosos e culturais da paisagem externa são transmutados e
reaparecem como visão lírica.
O título – “Brazilian Fazenda” – imediatamente cria em nós um
sentimento duplo: uma sensação do déjà vu, devido à familiaridade que a
imagem de uma fazenda transmite a nós brasileiros. Pois a fazenda faz parte
de nosso contexto histórico e cultural e, assim, acrescentar o qualificativo
“brasileira” ao termo “fazenda” torna-se quase uma tautologia. Por outro
lado, o título também cria em nós uma sensação de expectativa, a curiosidade
de ver como uma estrangeira iria ser afetada por este ambiente novo e
estranho. Esta dupla sensação é ainda corroborada pelo fato de “Fazenda”
significativamente aliterar com “Brazilian” deste modo aproximando ambas
as palavras no som e no significado (JAKOBSON, 1970, p. 151), apesar de
pertencerem a duas línguas e culturas diferentes.
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203
A combinação de duas palavras e de dois mundos diferentes também
irá caraterizar a posição “suspensa” da autora no poema. Page, dividida
entre duas culturas, está não apenas vendo um país com a perspectiva de um
outro mas também está dividida entre um mundo real, representacional, e
um mundo imaginário, entre a linguagem referencial e a emotiva, ao fundir
a transposição literal ou cênica da fazenda com o impacto que esta visita à
fazenda causou nela. Como Page agora relembra a ocasião – numa resposta
esclarecedora à nossa pergunta se ela poderia recontextualizar a experiência
específica que deu origem ao poema – ela comenta :
A experiência específica que deu origem ao poema aconteceu em 1957,
apesar de eu não ter escrito o poema senão muitos anos mais tarde. No
Brazilian Journal, p. 43-35, descrevo nossa visita a uma fazenda em São
Paulo de propriedade da família Meireles. Era antiga, elegante e muito
bonita. (...) Foi a primeira fazenda que eu vi e sua beleza tornou o dia
especial para mim. (PAGE, carta de 29/06/2001)
Este duplo distanciamento no tempo e no espaço – lembrando-nos
do conhecido princípio poético de Wordsworth de que a poesia “origina-se
da emoção recolhida na tranqüilidade” (VIZIOLI,1987, p. 85) – enfatiza
ainda mais como esta experiência deve tê-la afetado (o poema foi publicado
em 1967 e “escrito nessa época”), e como a beleza desta fazenda tornou o dia
“especial” para ela, como será revelado através da mensagem verbal do poema.
Apesar de “Brazilian Fazenda” ser composto de vinte e três linhas
de comprimento irregular, agrupadas em sete estrofes, esta irregularidade
grafológica – tão característica do verso livre – é ilusória. Examinando o
poema mais atentamente, percebemos que cada estrofe encapsula uma cena
ou evento completo e que o padrão prosódico de cada estrofe está ainda
ligado não apenas por enjambement mas também por sutís paralelismos sonoros
que realçam as relações semânticas entre as imagens que impregnam cada
cena. Simultaneamente, as frases nas primeiras seis estrofes – nas quais a
persona nos dá uma descrição cênica mas ao mesmo tempo surrealista da
fazenda – são compostas de orações coordenadas, de valor igual, exercendo
portanto um efeito cumulativo sobre essas imagens; por outro lado, a oração
complexa na última estrofe – na qual as orações estão unidas por
subordinação – irão expor os efeitos desta experiência “extraordinária” que
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
a visita a uma fazenda brasileira causou na persona: seu pedido para retornar
num dia qualquer, para poder ver a fazenda com olhos literais.
Esta organização sintática é confirmada ainda pelo fato de que as
unidades semânticas das seis primeiras estrofes (linhas 1-17) são na realidade
dominadas pela locução adverbial com a qual o poema se inicia – “aquele
dia” – e também pelo uso do passado no qual a persona narra os acontecimentos.
Contrastivamente, a sétima estrofe (linhas 18-23) está controlada pela locução
adverbial “num dia” e o “eu” lírico se dirige a si mesmo no presente. Desta
maneira, vem à tona uma estrutura lingüística sofisticada e de muitas camadas
que irá transformar a aparente casualidade dos detalhes referenciais captados
pelo olhar de uma estrangeira num todo coerente mas complexo como
também numa intensa experiência poética e cultural.
Ao penetrarmos nesta fazenda, somos imediatamente atraídos não
apenas para dentro do passado, com conotações de distância temporal e
lembrança, contidos em “naquele dia”:
That day all the slaves were freed
their manacles, anklets
left on the window ledge to rust in the moist air
and all the coffee ripened
like beads on a bush or balls of fire
as merry as Christmas
and the cows all calved and the calves all lived
such a moo.
[Naquele dia todos os escravos foram libertados
das algemas, argolas
deixadas no beiral da janela a enferrujar no orvalho
e todo o café amadureceu
como contas num arbusto ou bolas de fogo
tão alegres como o Natal
e todas as vacas deram cria e todos os bezerros
soltaram mugidos.]
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Somos também atraídos para um dia específico no passado, através
do dêictico “aquele”, já conhecido ou compreendido pela persona, ao ela
evocar ou visualizar “aquele dia” no qual “todos os escravos foram
libertados”, lembrando-nos do dia real no qual a escravidão foi abolida no
Brasil pela Lei Áurea: 13 de maio de 1888. Outro vínculo entre o dia e o
evento é estabelecido pela assonância em “day/slaves”, enquanto “freed”
tem seu significado ainda mais ressaltado por estar colocado no final de um
enjambement e portanto ser visualmente mais proeminente.
Libertados da escravidão e conseqüentemente de suas correntes
simbólicas, os escravos têm suas algemas metaforizadas em ornamentos – a
justaposição de ambas as imagens em “manacles, anklets”, levando à sua
sobreposição não apenas no conteúdo e na forma (ambos são substantivos
plurais) mas também fonologica e grafologicamente, pois “anklets” está
virtualmente contida em “manacles”. Significativamente colocada em
primeiro plano na linha 2 e mencionada no Brazilian Journal de Page ao ela
descrever sua visita à primeira dessas “duas fazendas do início do século
XIX” – “Depois da entrada, uma sala cheia de troféus e relíquias dos escravos
e, adiante, o quarto dos escravos” (PAGE, 1988, p. 43) –- , essas “relíquias
dos escravos” se tornam, destarte, os signos concretos da abolição da escravidão
não apenas nesta fazenda mas, por extensão, também em todo o país.
O fato de que foram “deixados no beiral da janela”, esquecidos ou
abandonados, “a enferrujar no orvalho”, para serem corroídos e deteriorados
pela própria natureza, é acentuado fonologicamente pela aliteração em “left/
ledge” e “manacles/moist” e pela consonância em “rust/moist”. Além disso,
ao nos fazer visualizar a janela como porta de entrada para o ar, a luz e a
visão, a imagem também confirma a antinaturalidade e crueldade da
escravidão como instituição. Pois “air”–- colocada estrategicamente no final
do primeiro terceto e fonologicamente introduzida por “their” –- como o
primeiro elemento, a primeira necessidade essencial da vida humana, é
simbólico não apenas do espaço como meio para o movimento e para a
emergência dos processos de vida mas também da liberdade como
desmaterialização (VRIES, 1974, p. 7)2 deste modo lembrando a liberdade
recém-adquirida dos escravos e a remoção de seus emblemas materiais de
cativeiro. Como conseqüência, “moist air” ou “moisture”, sugerindo um
estado de indeterminação entre o formal e o informal, como também
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
sugerindo ser a causa da fertilidade, não irá apenas destruir o que é antinatural
mas simultaneamente nos preparar para a renovação da natureza que
acontecerá nas próximas duas estrofes. Esta transição também está
fonologicamente prefigurada na aliteração “rust/ ripened”:
and all the coffee ripened
like beads on a bush or balls of fire
as merry as Christmas
Paralelizando a justaposição “manacles/anklets” como emblemáticos
da abolição da escravidão, a conexão sintática entre o primeiro e o segundo
tercetos efetuada por “and” estabelece diversos elos entre a data da libertação
dos escravos e a época do amadurecimento do café na fazenda. Em primeiro
lugar, traz à tona um aspecto seminal da história e cultura brasileiras, por
lembrar como, no século XIX, as plantações de café principalmente no Rio
de Janeiro, Minas Gerais e parte de São Paulo eram mantidas pela exploração
do trabalho escravo, deste modo tornando a relação temporal estabelecida
entre a libertação dos escravos e o amadurecimento do café ainda mais
significativa, ao enfatizar as conexões profundas e contraditórias que existem
entre cativeiro, liberdade, natureza humana e natureza. Pois o “café” – o
cafeeiro como vegetação em todas suas formas – tem duas implicações principais:
com referência a seu ciclo anual, é simbólico de morte e ressurreição seguindo
o ciclo do inverno e da primavera; e, devido à sua abundância, está conectado
com fertilidade e fecundidade (CIRLOT, 1971, p. 359).
Essas implicações se tornam ainda mais pertinentes se lembrarmos
que os grãos simbolizam não apenas uma forma elementar de alimento,
mas também energia, ressurreição, encarnação, enquanto as sementes estão
associadas com fertilidade, crescimento e natureza humana.
Conseqüentemente, a data adquire uma dimensão ainda mais ampla ao
vincular um acontecimento histórico a um natural – a renovação e fertilidade
da vegetação enfatizando a unidade fundamental da vida, pois a vegetação, assim
como o homem, nasce da terra, e um circuito ininterrupto corre através dos
níveis inferiores e superiores da vida. Deste modo, a combinação de ambos os
acontecimentos torna-se uma metáfora para a “unidade fundamental da vida”,
pois o amadurecer do café não apenas coincide com a data da libertação dos
escravos, mas, como as argolas, torna-se emblemático de sua liberdade.
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Esta sobreposição é ainda enriquecida pela comparação “like beads
on a bush or balls of fire” através das analogias estruturais e conceituais
estabelecidas entre o teor e os veículos da comparação. Através da semelhança
com contas e bolas de fogo, esses grãos vermelhos de café são visualizados
como ornamentos brilhantes pendurados nos arbustos verdes, fazendo a
função da semelhança – sua esfericidade, cor e esplendor amadurecido –
tornar-se um “momento pictórico ou icônico” (RICOEUR, 1979, p. 143).
Se compararmos essas linhas à descrição que Page fez da fazenda de café,
dez anos antes, percebemos novamente como o olhar da poeta e pintora
manteve vívidas as cores e a luz de sua experiência: “Após o almoço visitamos
a fazenda de café. Arbustos verdes brilhantes, lustrosos, com frutinhas
vermelhas – pássaros num arbusto, contas de fogo. Até onde os olhos
alcançavam, arbustos de café pontilhavam a terra ondulante e bela”(PAGE,
1988, p. 44).
Concomitantemente, as analogias conceituais que foram projetadas
em “beads” (“contas” conotando não apenas enfeite mas também oração),
“balls of fire” (“bola” como simbólica de terra, perfeição, eternidade, o
círculo; e “fogo”, como a essência da vida, sol, fertilidade), confirmam e
especificam ainda mais a “unidade fundamental da vida” simbolizada pela
vegetação, atribuindo-lhe uma atmosfera festiva, alegre e religiosa. Pois não
podemos separar o uso específico da imagem das contas, como uma
comparação explícita com os grãos de café, de suas associações simbólicas
de oração, não apenas porque num país católico como o Brasil (na década
de 50) a palavra “contas” seria imediatamente associada às contas de um
rosário, mas também porque essas associações simbólicas são ainda
complementadas pela comparação “as merry as Christmas”: ao amalgamar
as imagens dos férteis arbustos de café e de seus ramos cheios de contas e
brilhando ao sol com as associações folclóricas do sol brilhando através das
árvores no Natal como simbólico de muitas frutas. E, enquanto a árvore de
Natal simboliza vida permanente, fertilidade e ressurreição, o Natal não
apenas se entrelaça com o simbolismo da vegetação expressando esta unidade
fundamental da vida, mas a acentua ainda mais, através de sua associação
com uma época de alegria e renovação em nossas almas. Desta maneira,
poderíamos até dizer que a imagem negativa do círculo, prefigurada em
algemas/ argolas, é agora transformada numa imagem positiva de grãos de
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
café/ contas/ bolas de fogo, fazendo a alegria da época de Natal se tornar
também um “correlativo objetivo” da alegria dos escravos libertados.
Aproximadas ainda mais por diversos paralelismos sonoros, como
aliteração em “beads/ balls/ bush”, aliteração parcial em “coffee/ Christmas”
e assonância em “ripened/ fire”, enquanto a estrutura sintática e fonológica
“as merry/ as [Christ]-mas” funciona como uma corrente sonora subterrânea
para realçar a enfatização de “Christ/-” como a palavra mais importante da
linha, todas essas associações visuais e semânticas serão transpostas para a
terceira estrofe, sugerindo novamente como as plantas e os animais produzem
novos frutos e filhotes quando a natureza está fértil:
and the cows all calved and the calves all lived
such a moo.
A cena original no Brazilian Journal é um claro exemplo de como
Page selecionou uma imagem e a remodelou de tal maneira que irá se encaixar
nesta atmosfera de libertação, alegria e fertilidade estabelecida nas duas
primeiras estrofes: “Na vacaria visitamos os bezerros, que chupavam nossos
dedos como se fossem úberes quando estendíamos a mão para acariciá-los
e vimos a previsão minuciosa, mês por mês, do número de bezerros que
iriam nascer”(PAGE, 1988, p. 44). Pois aqui a natureza continua seu ciclo
de fertilidade, ao passarmos do homem, à vegetação e aos animais: a imagem
das vacas dando cria projetando as associações simbólicas das vacas com
terra e fertilidade, enquanto a imagem dos bezerrinhos acrescenta um toque
de inocência e de fragilidade à cena, complementado pelo “moo” humorístico
e onomatopaico. A aliteração acentuada em “cows/ calved/ calves”,
reverberando retroativamente para incluir “coffee/ cows/ calves”, aproxima
ainda mais as imagens da vegetação e dos animais no som e significado, ao
simultaneamente visualizarmos o grande número projetado pela repetição
de “all the cows/ all the calves”.
Além disso, a estrutura paralelística aparente na padronização das
orações (sintagma nominal + sintagma verbal) nas primeiras três estrofes –
all the slaves were freed
and all the coffee ripened
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and the cows all calved
and the calves all lived
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– ressalta ainda mais nitidamente as profundas conexões estabelecidas nos
três níveis de descrição lingüística – realização, forma e semântica (LEECH,
1971, p. 37) – ao se sobreporem as analogias estruturais e conceituais, fazendo
as quatro afirmações ou unidades semânticas adquirirem uma equivalência
de sentido: todos os escravos foram libertados = todo o café amadureceu =
todas as vacas tiveram filhotes = todos os filhotes viveram. As estrofes
assim se tornam, por equivalência paradigmática e sintagmática, novamente
uma só metáfora da “unidade fundamental da vida”.
Ainda subordinado a “aquele dia”, as três estrofes seguintes – linhas
9-17 – apresentam um outro ângulo da fazenda, as passarmos de uma
paisagem externa para a varanda da casa colonial:
On the wide veranda where birds in cages
sang among the bell flowers
I in a bridal hammock
white and tasseled
whistled
[Na ampla varanda onde pássaros em gaiolas
cantavam entre campânulas
eu numa rede nupcial
branca e enfeitada com borlas
assobiava]
Esta cena, como se encontra descrita no Brazilian Journal (PAGE,
1988, p. 43) – “numa ampla varanda, sombreada por trepadeiras com
campânulas cor-de-rosa, havia pássaros em gaiolas e uma rede nupcial branca
enfeitada com borlas” – e, em contraste com a liberdade dos imensos campos,
implícitos na fazenda de café, apresenta uma série de imagens de encapsulação
parcial ou total:
– “a ampla varanda”, tão típica de uma fazenda, com seus espaços abertos
ao longo dos lados da casa e o telhado sustentado na frente por pilares,
conotando abrigo, segurança, mas também contato com a paisagem e com o
mundo exterior;
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
– as “gaiolas” – emblemáticas, como as algemas, de crueldade e
encarceramento – destacando ainda mais as associações simbólicas positivas
dos pássaros com o ar, o vento, o sol, a essência divina, imortalidade e
criação, e de seu canto com os ventos, fertilidade e fascinação, por negá-los,
deste modo projetando igualmente a falta de liberdade dos pássaros;
– as vistosas “campânulas cor-de-rosa”, lembrando indiretamente o
simbolismo do canto dos pássaros por suas associações com beleza, alegria,
transitoriedade e alma, e portanto lembrando as conotações do próprio sino
como adoração, liberdade, fertilidade, poder criativo do som, mas
simultaneamente retomando, através de seu formato, o sino e a gaiola como
imagens de encapsulação.
Como que concentrando em si mesma todas essas imagens de
encapsulação, visualizamos finalmente o “eu” da persona exatamente no centro
do poema, circunscrito pelas orações anteriores e posteriores,
simultaneamente envolto e suspenso “numa rede nupcial”. Sugestivamente
“branca e enfeitada com borlas” – e portanto não apenas ornamentada com
tufos em formato de sinos, mas também, em sua brancura e beleza nupciais,
simbólica de pureza, iluminação, intuição, o inconsciente – a rede, novamente
um artefato tão tipicamente brasileiro, projeta, em primeiro lugar, a suspensão
literal da persona entre o ar e o chão.
Ao envolvê-la num estado de iluminação e intuição, a rede também
conota estar a persona suspensa entre dois mundos – como mencionado na
introdução – entre um passado histórico e seu momento presente, entre sua
liberdade e o aprisionamento dos escravos e dos pássaros. A suspensão,
como desejo não realizado ou expectativa ansiosa, propiciará deste modo a
fusão de realidade e surrealismo da próxima estrofe.
Ademais, se todos nossos sentidos já haviam sido estimulados ao
passarmos pelas três estrofes iniciais, visão, som, perfume e tato também
percorrem esta rede de intrincados paralelismos visuais de enclausuramento
– varanda/ gaiola/ campânula/ borla/ rede – todos eles novamente unidos
por sutís paralelismos sonoros: além de a aparição do “eu” (“Ï”) poético
estar precedida e seguida fonologicamente por sua assonância assimétrica
com “wide/ bridal/ white”, e o uso seqüencial de nasais e líquidas em
“sang/ among/ bell” reproduzir a sonoridade do canto dos pássaros, com
um leve reecoar de “among” em “hammock”, outros efeitos sonoros –
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aliteração parcial ou total em “bird/ bell/ bride”, consonância em “sang/
among” e assonância em “tasseled/ hammock” – contribuem igualmente
para aproximar som e significado. Além disso, as similaridades grafológicas
em “wide veranda” justificam a modificação de Page do original “deep
veranda”, no Brazilian Journal, para “wide”, no poema.
Chegamos agora à unica ação que a persona desempenha no poema:
assobiar. Se numa primeira leitura, assobiar apenas implica em que o “eu”
poético, ao imitar o canto dos pássaros, está tentando de maneira
inconseqüente passar o tempo, enquanto os efeitos aliterativos e a similaridade
visual entre “white/ whistled”, a rima “tasseled/ whistled” e a já mencionada
assonância “I/ bridal/white” projetam novamente a relação íntima entre
som e significado, entre assobiar e estar suspenso. Ademais, equivalência
paradigmática e sintagmática entre as duas orações “birds in cages sang
among the bell flowers/ I in a bridal hammock, white and tasselled, whistled”
faz as conotações simbólicas do ato de assobiar – como ato mágico, um
expediente para atrair deidades teriomórficas – não apenas reforçar o fato
de a persona estar suspensa entre um mundo real e um surreal, mas
efetivamente levar à fusão desses dois mundos. Ao assobiar, ela executou
um ato mágico pois a paisagem externa reaparece a ela como visão, na
estrofe seguinte:
and bits fell out of the sky near Nossa Senhora
who had walked all the way in bare feet from Bahia
[e partículas caíram do céu perto de Nossa Senhora
que andara descalça por todo o caminho desde a Bahia]
Essas partículas de céu azul – cor associada com a imensidão do
espaço superior e com profundidade e portanto com liberdade,
espiritualidade, eternidade – não apenas caem “perto de Nossa Senhora”
mas são emblemáticas de suas próprias cores –- azul e branco – sugerindo a
conexão íntima que pode ser estabelecida entre esta visão de Nossa Senhora,
envolvida simultaneamente pelo céu azul e em seu manto cor-do-céu e a
maneira como ela está retratada em imagens e pinturas nas igrejas católicas,
212
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
e como Page provavelmente a viu ao visitar a capela na fazenda, “com uma
linda Nossa Senhora” (PAGE, 1988, p. 45). Esta visão – que ressalta tão
claramente a união da realidade exterior com a interior dos surrealistas, para
os quais o real e o imaginário, o passado e o futuro, o alto e o baixo, o
comunicável e o incomunicável cessam de ser percebidos como contraditórios
(PREMINGER, ed., 1974, p. 821) – é então ainda amplificada na próxima
linha, quando a persona, com intuição quase metafísica, imagina a chegada
desta imagem à fazenda.
Este distanciamento no tempo e no espaço – deste modo
acrescentando outra moldura à visita real que Page fez à fazenda e à
composição do poema – contribui ainda mais para tornar esta visão repleta
de conotações religiosas, culturais e históricas:
– o mais-que-perfeito já coloca a ação num tempo anterior a “aquele dia”,
isto é, o dia da libertação dos escravos, enquanto “descalça” – simbolizando
humildade e servidão voluntária porque o pé toca o pó da terra – retoma
não apenas a imagem de Nossa Senhora descalça, mas também o fato de os
escravos estarem descalços;
– “desde a Bahia”, além de lembrar a longa jornada a pé a ser percorrida
para alcançar a fazenda, simultaneamente resgata sua fascinante história: a
Bahia como o primeiro lugar em que aportaram os portugueses quando
descobriram o Brasil, o local em que a primeira missa católica foi celebrada,
a primeira capital do Brasil e também a capitania ou província mais rica na
primeira metado do século XVIII devido a seus produtos, gado, porto, centro
de exportação e também de comércio de escravos3.
Como Page confirma,
Examinando agora o poema, acho, em relação aos escravos, que eu estava
tentando incorporar a ele uma pequena parcela da história do Brasil. Não
havíamos [o marido e ela] estado na Bahia quando visitamos a fazenda
[em 1957], de modo que do ponto de vista de 1967 [quando compôs o
poema] eu estava tentando tornar a fazenda uma divulgadora de outros
aspectos do Brasil que me impressionaram ou comoveram (PAGE, carta
de 29/06/2001).
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Deste modo, se uma leitura preliminar desta linha dá seqüência à experiência
surrealista da persona, ao ela transmitir como que magicamente a vinda de
Nossa Senhora à fazenda ainda na época da escravidão, não podemos ignorar
o fato de que uma imagem de Nossa Senhora poderia ter sido literalmente
trazida da Bahia por escravos descalços carregando-a numa padiola com
andores – como ainda é costume em procissões religiosas.
A linha também relembra as peregrinações religiosas, nas quais as
pessoas andam descalças, ou até de joelhos, para obter ou pagar por uma
certa graça recebida, deste modo realçando sua religiosidade. Além disso, o
uso literal e metafórico de andar “descalço” não é apenas questão de
transferência de sentido, uma “metáfora concretiva” (LEECH, 1969, p.
158) atribuindo existência física à imagem de Nossa Senhora. Andar “de
pés descalços” na realidade funde a imagem de Nossa Senhora andando
descalça com a dos escravos, como se, ao andar descalça, ela estivesse se
identificando e mostrando sua piedade para com eles, ou caminhando em
direção a eles, naquele “dia especial” de sua libertação.
Expressivamente ressaltada como a linha mais longa no poema e
portanto icônica de “walked all the way in bare feet”, esta linha está ainda
entremeada de paralelismos fonológicos, como aliteração em “bits/ bare/
Bahia; Nossa/ Senhora”; assonância em “I/ sky; bits/ lit”; “feet/ Bahia”; e
aliteração e assonância em “walked all the way – além de “all” estar
visualmente contido em “walked” – enquanto a assonância “bits/ lit”
simultaneamente fornece uma transição entre esta estrofe e a seguinte:
and the chapel was lit by a child’s
fistful of marigolds on the red velvet altar
thrown like a golden ball.
[e a capela ficou iluminada por um punhado
de cravos amarelos jogados como uma bola dourada
por uma criança no altar de veludo vermelho.]
Ainda subordinada a “aquele dia”, a atmosfera mágica da última
estrofe, como conseqüência do ato de assobiar da persona, continua nesta
outra e tem novamente sua origem em trechos do Brazilian Journal:
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
A segunda fazenda, menor que a primeira, era antiga como aquela (...). A
sala principal no andar térreo tinha o formato de um haltere (...). Flores,
em pequenos maços, sem folhas (...) comprimidas em vasos com formato
de caneco, estavam perfeitamente dispostas como que por olhos de pintor
(...) Após o semen [na visita à estrebaria], a capela, com uma bela Nossa
Senhora e no altar, como na casa, os mesmos buquês de criança, pequenos
e apertados, de flores – cravos amarelos, desta vez, em contraste com o
pano de veludo vermelho no altar. (PAGE, 1988, p. 44-5)
Da abertura da paisagem externa na última estrofe, retornamos a
uma imagem de encapsulação: como a origem da palavra “capela” confirma
(de cappela, dim. de cappa – manto), esta pequena igreja envolve os visitantes
ou fiéis em sua atmosfera religiosa, tanto como construção separada ou
como parte do casa principal. Geralmente dedicada à Virgem Maria, a capela
– como local de culto na fazenda – está “iluminada por um punhado de
cravos amarelos”. Pelo fato de desabrocharem do amanhecer até ao meiodia e depois fecharem à noite, os cravos amarelos se tornam emblemáticos
do sol, enquanto sua cor dourada os associa ainda mais com iluminação
espiritual e luz pura – o elemento celestial no qual vive Deus (FERGUSON,
1972: p. 42) –, deste modo justificando a atmosfera mágicamente ígnea e
espiritualmente iluminada dentro da capela.
Simultaneamente, “o punhado de cravos amarelos” resgata a imagem
de Nossa Senhora, pois no simbolismo cristão esta flor é também um atributo
da Virgem Maria, enquanto a cor dourada simboliza a cor dos cabelos da
Virgem. Por esta razão, outras conotações relacionadas com o cravo amarelo,
tais como constância, piedade, devoção e misericórdia, tornam-se igualmente
virtudes que estão associadas à mãe de Cristo. Além disso, o cravo amarelo
também participa do simbolismo geral da flor – regeneração – deste modo
recuperando a atmosfera de renovação na natureza enfatizada nas estrofes
II e III, “naquele dia” em que os escravos foram libertados.
O fato de o punhado de cravos amarelos ser jogado no altar por
uma criança – projetando sua associação com pureza, primavera, fertilidade
e unidade na natureza –, faz a imagem da criança participar da mesma
atmosfera de renovação da natureza. Além disso, o simbolismo da criança
como mediadora e arauto de cura também pode sugerir uma fé renovada no
futuro da humanidade. Desta maneira, seu simbolismo corrobora ainda mais
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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intensamente o simbolismo dos cravos amarelos como regeneração e
expressa, novamente dentro da atmosfera religiosa da capela, a unidade
fundamental da vida.
Esta atmosfera religiosa atinge sua significância máxima na imagem
do altar, tão emblemático, na arte cristã, da presença de Cristo no Sacramento
da Eucaristia (FERGUSON, 1972, p.161) e também de devoção, sacrifício e
fé. Sua importância é ressaltada mais uma vez por estar coberta de veludo
vermelho, pois a cor vermelha, além de suas associações com luz, ressurreição,
ouro, amor e fogo – todas relevantes neste contexto –, também é usada
durante a época de Pentecostes, inserindo assim “aquele dia” ainda mais
profundamente em uma época religiosa, estabelecida na estrofe II e depois
reafirmada na estrofe V.
Terminando a estrofe, a comparação “jogada como uma bola
dourada”, enfatiza a analogia estrutural entre um punhado de cravos amarelos
e uma bola dourada por causa de seu formato redondo e de sua cor, deste
modo não apenas reiterando as conotações da cor dourada contidas em
“marigold” – sol, fogo, fertilidade, imortalidade, pureza, iluminação spiritual,
poder místico, espírito divino, a cor dos cabelos da Virgem – e em “golden
ball” – emblemática da terra, perfeição e eternidade, já mencionados. A
sobreposição de ambas as imagens, além de fundir suas analogias estruturais
e conceituais, confirma novamente, ao resgatar simultaneamente a imagem
e o simbolismo projetados em “bolas de fogo”, a conexão íntima entre a
renovação da natureza e o ambiente religioso que impregna a estrofe II, e a
cena espiritualmente iluminada dentro da capela. Acima de tudo, também a
colocação da comparação no final da primeira parte do poema, subordinada
a “aquele dia”, torna as associações visuais e simbólicas de “bola dourada”
uma imagem final esclarecedora da perfeição deste dia “extraordinário” no
qual os escravos foram libertados, perfeição que lembra, novamente, a
unidade fundamental da vida.
Todas essas imagens estão novamente intercaladas com paralelismos
sonoros ressaltando suas relações semânticas: “chapel/ child” estão unidos
por aliteração; “chapel/ marigolds”, “red/ velvet”, “gold/ golden/ thrown”
e “altar/ ball”, por assonância; e, mais enfaticamente, a repetição das líquidas
/l/ em quase todas as palavras desta estrofe e /r/, em menor número, além
de interligar ainda mais as imagens em “chapel/ lit/ child”, red/velvet/
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altar”, “golden/ball” e “fistful/arigold”, ambas as consoantes líquidas
acrescentam um toque especial de suavidade às imagens e de fluidez às
linhas. Esses paralelismos são então transpostos para a segunda parte do
poema, com a assonância em “thrown/ golden/ Oh” também estabelecendo
uma transposição sonora entre ambos os segmentos.
A última e mais longa estrofe contém o segundo momento do poema:
Oh, let me come back on a day
when nothing extraordinary happens
so I can stare
at the sugar-white pillars
and black lace grills
of this pink house.
[Ah, deixe-me voltar num dia
em que nada de extraordinário aconteça
para que eu possa contemplar
os pilares brancos como açúcar
e as grades de renda negra
desta casa cor-de-rosa.]
Introduzida enfaticamente pela interjeição “Oh,” com seu som exclamatório
de saudade ainda mais ressaltado pelo acento silencioso que segue a vírgula,
deste modo contribuindo para projetar o forte sentimento ou emoção que
tomou conta da persona ao proferir sua prece ou invocação – “deixe-me
voltar num dia/ em que nada de extraordinário aconteça” – a oração principal
imediatamente estabelece um contraste entre “aquele dia” no qual
acontecimentos “extraordinários” (de extra-ordinem> fora da ordem usual)
aconteceram e este dia “qualquer” (dentro da ordem usual) no qual ela
gostaria de retornar.
Quando o “eu” poético percebe a distância imaginativa que separa
o “comum” daquele momento mágico – quando o mundo referencial se
tornou um mundo imaginário, o passado histórico se fundiu com o aqui e
agora da revelação poética e um brilho dourado imbuiu e fundiu as paisagens
externa e interna – seu apelo para retornar num dia comum torna-se uma
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
217
prece para ver, “contemplar” a realidade novamente, como se o surrealismo
de sua visão tivesse sido intenso demais para seus olhos.
Estrategicamente prefigurado em “nothing extraordinary” – pois
“nothing”, anulando “extra”, permite o aparecimento de “stare” – e por ter
suas letras entrecruzadas, formando um quiasmo com “extra”, revelar suas
implicações contrastivas de visão x realidade, o verbo “stare”, enfaticamente
colocado no final da linha, torna-se deste modo a palavra mais significativa
deste verso. Como a conjunção conclusiva “so” confirma, introduzindo a
oração “so I can stare”, a persona deseja apenas contemplar, literalmente,
com os olhos fixos e bem abertos, a fachada:
at the sugar-white pillars
and black lace grills
of this pink house.
[os pilares brancos como açúcar
e as grades de renda negra
desta casa cor-de-rosa.]
Poderiamos quase dizer que o “eu” póético, ao olhar fixa e intensamente
para a fachada de concreto da casa, não se permitia visualizar acontecimentos
“extra”- ordinários tendo lugar, como se “stare” anulasse (como “nothing”)
as implicações de “extra”.
Comparando essas três últimas linhas com o registro no Brazilian
Journal – “Visitamos duas fazendas do início do século XIX. A primeira,
uma casa colonial, cor-de-rosa com pilares brancos e grades negras rendadas
nas janelas” (PAGE, 1997, p. 43) – parece haver pouca alteração, à primeira
vista, entre o que foi registrado como “fato” no Journal e como “ficção” no
poema. Entretanto, ao especificar os pilares brancos como “sugar-white”,
ao remover “nas janelas” das “grades negras rendadas” e ao simplificar
“uma casa colonial, cor-de-rosa” para “esta casa cor-de-rosa”, essas
características exteriores – ainda sutilmente vinculadas pela consonância
em “pillars/ grills/ house” – tornam-se ainda mais ressaltadas, além de
inevitavelmente acentuarem, mais uma vez, associações históricas e culturais
para o leitor brasileiro:
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
– os pilares, simbólicos de propriedade, com sua cor branca como açúcar
lembrando que o açúcar era o produto mais importante nas fazendas
brasileiras até o final do século XVII;
– as grades de renda negra, conotando proteção contra intrusos apesar das
delicadas linhas ornamentais, mas também, ao resgatar a imagem das algemas,
associadas a encarceramento; o qualificativo “negro”, além do mais, associa
“grades” novamente a escravos;
– a “casa cor-de-rosa”, uma última imagem de enclausuramento, retoma a
imagem da casa colonial com a qual Page iniciou seu registro no Brazilian
Journal, mas em ordem invertida, deste modo projetando o contraste entre a
visão de liberdade estabelecida na primeira linha e de escravidão conotada
na última linha do poema.
Desta maneira, as três últimas imagens simultaneamente se tornam
emblemáticas dos três elementos básicos na estrutura econômica colonial
brasileira – a grande fazenda, a mono-cultura e o trabalho escravo – fazendo
o poema terminar com uma visão concreta de dominação econômica e
cultural, apesar do desejo da persona de apenas “observar”, em contemplação
estética, a beleza desta casa colonial.
Concluindo, poderíamos dizer que nossa entrada nesta “fazenda
brasileira” nos forneceu não apenas uma descrição cênica do ambiente,
projetando as imagens que causaram impacto na percepção visual da poeta.
A descrição da topografia externa também revela o olhar interior da poeta –
em seu devaneio e com sua sensibilidade poética – ao ela evocar e transformar
os acontecimentos naturais, através da riqueza de suas conotações simbólicas,
numa experiência transcendental. Acima de tudo, ao associar sua percepção
quase metafísica a seu conhecimento cultural do Brasil – salientados ainda
pelo lapso temporal entre a experiência poética e a composição do poema –
ao resgatar associações históricas, religiosas e culturais, deste modo realçando
a fusão da realidade exterior com a interior, Page criou uma visão lírica
inolvidável de uma fazenda brasileira.
Como mensagem verbal – ao projetar a função emotiva da linguagem
transmitida pelo “eu” lírico e ao quebrar a arbitrariedade da linguagem
referencial através do destaque de paralelismos fonológicos, morfológicos e
sintáticos como também de equivalências paradigmáticas e sintagmáticas,
todos eles intensificando as relações semânticas entre as configurações de
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imagens – esta visão simultaneamente estabelece a função poética da
linguagem, centrada na mensagem (JAKOBSON, 1971, p. 129), como a
função determinante deste poema.
Se Frye termina o “Prefácio” afirmando que
Todo bom poeta lírico desenvolve uma certa estrutura de imagens,
unificada por certas metáforas recorrentes, tão tipicamente própria como
sua caligrafia e, mais cedo ou mais tarde, virá a produzir poemas que
parecem estar no centro dessa estrutura. No sentido formal, são poemas
míticos que fornecem ao crítico as chaves imaginativas para a obra de seu
criador. Tais poemas (...) enriquecem não apenas nossa experiência poética
mas também nosso conhecimento cultural e, com o passar do tempo,
tornam-se cada vez mais a única forma de conhecimento que não fica
datada e que continua a manter seu interesse para as gerações futuras.
(FRYE, 1971, p. 179)
podemos especificar mais ainda esta afirmação acrescentando que Page, em
sua resposta a nosso ambiente natural e histórico, não apenas enriqueceu
nossa “experiência poética” como leitores e nosso “conhecimento cultural”
como brasileiros. Ela também os intensificou e aprofundou pois, ao tornar
“Brazilian Fazenda” metafórica da unidade fundamental da vida e portanto
de uma intensa experiência poética, cultural e, principalmente, transcendental,
ela nos tornou muito mais intensamente conscientes e fascinados pelas
possibilidades poéticas de nosso próprio país e de nosso passado cultural.
Notas
*
Tradução de “Poetic experience and cultural knowledge in P. K. Page’s Brazilian
Fazenda” publicado nos Anais do VI Congresso Internacional da ABECAN:
Transculturalismos. CD-ROM. Porto Alegre: UFRGS, 2000.
2
Todas as traduções dos textos originais em inglês são de minha autoria, inclusive
a tradução literal do poema ‘Brazilian Fazenda’ de P. K. Page.
3
Todas as referências simbólicas foram retiradas dos três dicionários mencionados
nas Referências.
4
Pelo fato de este trabalho ter sido apresentado num congresso internacional, foi
necessário acrescentar informações sobre História do Brasil já de conhecimento
notório para brasileiros.
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REFERÊNCIAS
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FERGUSON, George. Signs & Symbols in Christian Art. London: Oxford University
Press, 1972.
FRYE, Northrop. The Bush Garden. Essays on the Canadian imagination. Toronto:
Anansi, 1971.
JAKOBSON, Roman. “Lingüística e poética”. IN: Lingüística e comunicação. São Paulo:
Cultrix, 1970.
LEECH, Geoffrey N. A Linguistic Guide to English Poetry. London: Longman, 1969.
ORANGE, John. P. K. Page and Her Works. Toronto: ECW Press, 1987.
PAGE, Patricia K. Brazilian Journal. Toronto: Key Porter Books, 1997.
________.The Hidden Room. Collected Poems, vol. II. Erin: The Porcupine’s Quill, 1997.
________. Carta à autora em 29/06/2001. Não publicada.
PREMINGER, Alex, ed. Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics. Princeton:
Princeton University Press, 1974.
RICOEUR, Paul. “The metaphorical process as cognition, imagination, and feeling”. In:
On Metaphor, ed. Sheldon Sacks. Chicago: The University of Chicago Press, 1979.
TOYE, William, ed. The Oxford Companion to Canadian Literature. Toronto: Oxford
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VIZIOLI, Paulo. Trad. William Wordsworth: Poesia selecionada. São Paulo: Edições
Mandacaru, 1988.
VRIES, Ad de. Dictionary of Symbols and Imagery. Amsterdam: North-Holland, 1974.
Artigo recebido em 16.02.2008.
Artigo aceito em 23.08.2008.
Sigrid Renaux
Pós-Doutora em Literatura Inglesa e Norte-Americana pela Universidade de
Chicago, EUA.
Doutora em Língua Inglesa, Literatura Inglesa e Literatura Norte-Americana
pela USP.
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana do Curso de Letras
da UNIANDRADE.
Professora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada).
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REGIONALISMO E GLOBALIZAÇÃO
— DA APARENTE OPOSIÇÃO À
COMPLEMENTARIDADE
Verônica Daniel Kobs
[email protected]
RESUMO. O presente artigo tem como
objetivo analisar como Cidade de Deus
(2002), filme de Fernando Meirelles
baseado no livro de Paulo Lins, e O auto
da compadecida (2000), de Guel Arraes,
adaptação da peça de Ariano Suassuna,
seguiram tendências totalmente
diferentes, a partir da fusão metrópole/
interior, em Central do Brasil (1998), de
Walter Salles. Enquanto essa produção
equilibra o ambiente cosmopolita da
metrópole com o tradicionalismo do
sertão, O auto da compadecida opta pela
intensificação do regionalismo, mesmo
debatendo temas universais, como a
desigualdade social, por exemplo. No
lado oposto, Cidade de Deus investe na
urbanidade, denunciando a exclusão
social, a violência, o preconceito e a
corrupção, entre outros temas também
de fundamental importância para a
sociedade contemporânea.
ABSTRACT. This article intends to
analyse how Cidade de Deus (2002), a film
by Fernando Meirelles based on Paulo
Lins’ book, and Guel Arraes’ O auto da
compadecida (2000), an adaptation of
Ariano Suassuna’s play, followed totally
different tendencies, starting from the
fusion metropolis/inland region, in
Central do Brasil (1998), by Walter Salles.
While that production balances the
cosmopolitan atmosphere of the
metropolis with the traditional values
of the inland region, O auto da
compadecida chooses the intensification
of regionalism, even if debating
universal themes, such as social
inequality. On the other hand, Cidade de
Deus chooses the urban, denouncing
social problems such as exclusion,
violence, prejudice and corruption,
among other themes of fundamental
importance for contemporary society.
PALAVRAS-CHAVE: Metrópole. Interior. Globalização. Regionalismo.
KEY WORDS: Metropolis. Interior. Globalization. Regionalism.
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223
Introdução
Central do Brasil, um marco no cinema nacional, promoveu a fusão
entre duas paisagens: a interiorana e a urbana, bem como inverteu o sentido
de busca que aparecia em filmes do Cinema Novo e em outras produções
que tinham o Nordeste como pano de fundo. Não só Deus e o diabo na terra do
sol, mas também Morte e vida severina e, mais recentemente, Abril despedaçado,
trabalharam com a busca pelo mar como metáfora para a vida ambicionada
pelos protagonistas. Alcançando o mar, eles estariam livres e com a certeza
de ter novas e melhores perspectivas de vida. Central do Brasil, porém, mesmo
também fazendo uso da busca como metáfora, inverte o percurso e lança
Dora e Josué em um caminho árduo em direção ao sertão, ao interior, o que
representa uma viagem também ao interior deles mesmos como pessoas.
Sobretudo Dora passa por uma transformação atroz, mostrando seu afeto
por Josué e até se redescobrindo como mulher.
Depois do filme de Walter Salles, de 1998, outras duas produções
optaram por caminhos completamente opostos, separando e aprofundando
os extremos que Central do Brasil uniu. Em 2000, O auto da compadecida surgiu
como representação popular e crítica da realidade, centrada numa cidade
pequena, do interior nordestino, cuja hierarquia era resumida em tipos, os
quais, por sua vez, representavam a influência do coronelismo, ainda forte
nas regiões Norte e Nordeste, da Igreja (ressalte-se o fato de a região
representada no livro e no filme ser uma das mais crentes e religiosas do
Brasil) e a relação entre explorados e exploradores. Dois anos depois, em
2002, Cidade de Deus, que também optou por um microcosmo sistematizado
e organizado hierarquicamente, a favela, centra as atenções sobre a sociedade
urbana, investindo em temas como a violência, as relações entre pessoas dos
morros e de bairros nobres da cidade e, principalmente, o tráfico como
motor dessas relações e, ao mesmo tempo, como instrumento de poder dos
menos favorecidos em relação aos mais abastados.
Dessa forma, os três filmes escolhidos para estudo evidenciam três
tendências distintas. No que se refere a Cidade de Deus, a opção pelo cenário
mais urbano e por assuntos muito debatidos atualmente é um sinal claro da
globalização, que torna urgente a abordagem de polêmicas que afligem a
sociedade como um todo. Na contramão, O auto da compadecida reacende o
224
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
debate regionalista, o qual, segundo Stuart Hall, constitui um dos modos de
continuar valorizando a cultura autóctone, para que ela não se perca em
meio ao predomínio do global. Castells, na mesma linha de Hall, considera
o nacionalismo contemporâneo “mais reativo do que ativo” (CASTELLS,
1999, p. 47), justamente pelo fato de ele tentar demarcar novamente as
fronteiras diluídas, hoje, pelo multiculturalismo.
Essas duas vertentes, antes em equilíbrio, no filme de Walter Salles,
foram, posteriormente, dissociadas e aprofundadas por Guel Arraes e
Fernando Meirelles. Cidade de Deus seguiu a tendência imposta pela
globalização, que enfatiza a urbanidade e seus problemas comuns, assim
como fizeram Cidade baixa, O invasor, O príncipe e Contra todos. Já no caso de
O auto da compadecida, o risco, segundo Antônio Cândido, é cair no extremo
do culto ao regionalismo, mas o filme de Guel Arraes tem dois pontos a seu
favor que diluem ou minimizam esse perigo: o fato de ele provocar reflexões
sobre temas universais, como desmandos dos poderosos e desigualdade social,
por exemplo, e o fato de o filme ter sido feito com base em um texto literário,
o qual, na época, encaixava-se perfeitamente às preocupações de desalienar
o povo, usando a literatura e o cinema como instrumentos, a fim de fazer o
público entrar em contato com pequenos recortes da realidade do país.
Central do Brasil: interdependência entre o rural e o urbano
O filme de Walter Salles reflete o hibridismo em vários de seus
aspectos. Primeiramente, pela estética do diretor, acusado freqüentemente
de dar um “bom acabamento” excessivo às suas produções. Isso provoca,
para boa parte da crítica, uma diluição dos problemas da realidade brasileira
que foram selecionados para figurarem no filme. Ivana Bentes chama esse
procedimento de “cosmética da fome”, por oposição à “estética da fome”
de Glauber Rocha. A relação entre a técnica “importada” de Salles e os
temas inerentes ao país exemplifica, de certa forma, o hibridismo. O traço
mais forte, porém, é a junção do regional com o global. No filme, isso é
representado pelo deslocamento dos personagens da metrópole para o sertão.
Por essa razão, Central do Brasil recebeu rótulos como “nordestern”, “road
movie” e, ainda, “árido movie” (note-se que a composição dos termos
também reflete o hibridismo) e foi relacionado estreitamente ao movimento
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
225
“mangue beat”, surgido em Pernambuco, em 1990, sob o comando de Chico
Science, que juntava ao rock e ao hip-hop aspectos folclóricos do Nordeste.
Canclíni enxerga o hibridismo em todos os movimentos modernistas,
pelo fato de esses romperem com a tradição literária, a partir da instituição
de uma mistura de elementos populares àqueles mais elitizados, promovendo
um tipo de sincretismo cultural: “Os modernismos beberam em fontes duplas
e antagônicas: de um lado, a informação internacional, sobretudo francesa;
de outro, um nativismo que se evidenciaria na inspiração e busca de nossas
raízes [...].” (CANCLINI, 2003, p. 116). O “mangue beat”, com influências
modernistas assumidas, sobretudo do Manifesto Antropofágico, caracteriza-se
pela mesma mistura:
Inspirado no manifesto ‘caranguejos com cérebro’, o interesse central do
movimento mangue beat era a fusão de ritmos [...]; seria uma percepção
da diversidade cultural existente. O movimento aponta para o fato de que
já não se pode mais pensar nas diferentes formas de produção cultural —
eruditas, populares e de massa, de maneira excludente. [...]. Isso tornou o
estilo do movimento como o Antropofágico [...]. (LEAL, 2006, p. 3)
Na parte que se passa na cidade grande, Central do Brasil mostra
exemplos de violência diária e denuncia a venda de crianças, o tráfico de
órgãos, o charlatanismo e a justiça paralela, caso da cena em que o segurança,
personagem de Otávio Augusto, mata um garoto, por ele ter roubado um
produto, na estação. Fora isso, há espaço para a invasão sofrida pelas grandes
cidades, que recebem, diariamente, pessoas, até famílias inteiras, de outras
regiões, porque acreditam poder encontrar, nos grandes centros, melhores
oportunidades e condições de vida, mas que se deparam, na maioria das
vezes, com mais dificuldades do que antes. É importante destacar que, mesmo
em se tratando da vida em uma cidade grande, Central do Brasil opta pela
periferia, pelo subúrbio, na tentativa de dar ênfase aos excluídos.
No entanto, praticamente toda a crítica internacional cobrou de Walter
Salles maior atrelamento ao cinema idealizado por Glauber Rocha. Além
disso, viu como negativas a recorrência de clichês e a tendência ao melodrama.
Uma das poucas críticas positivas foi a norte-americana, que atribuiu 4,81
pontos ao filme, quando esse, no máximo, poderia atingir 5,00 pontos. Os
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
mais implacáveis foram os críticos portugueses, que, inclusive, evidenciaram
forte parentesco entre o filme e as telenovelas brasileiras, dizendo que até os
atores são de televisão.
Tendo em vista que o mote do filme é a religiosidade ligada à
transformação de Dora e Josué, a partir do momento em que os dois partem
para o interior do país, os elementos religiosos tornam-se extremamente
freqüentes. Avultam-se também os planos abertos, para a valorização da
paisagem agreste. À medida que Josué e Dora se aproximam de seus destinos
(a cidade natal do garoto), o aspecto religioso evolui. O ápice acontece quando
eles chegam a um povoado em que está acontecendo um tipo de romaria,
com quermesse, cultos a santos e rituais, como oferendas de velas e ladainhas,
para pedir algo ou agradecer pela graça recebida. Na quermesse, Josué tem
a idéia de fazer Dora valer-se de seu ofício de “escrevedora” de cartas e
anuncia a escrita de mensagens a Padre Cícero. O fato de a praça aglutinar
todas essas manifestações religiosas reforça o aspecto popular do filme, já
que são apresentados os costumes de um povo simples, o comércio, com
destaque ao artesanato, a medicina natural, etc., tudo potencialmente popular.
Simbolicamente, a religiosidade se faz presente na busca de Josué pelo pai,
Jesus, e em determinadas inversões, não apenas da imagem de Pietà, na cena
antológica em que o menino ampara Dora, sobre uma pedra, mas também
na profissão do pai, já que, no texto bíblico, não era Jesus o marceneiro, mas
José.
Na busca pelo pai, está implícito o sujeito descentrado. Também
psicanaliticamente o pai representa o centro. Em Central do Brasil, isso é
intensificado pelo fato de o nome do pai ser Jesus, o que representa o alcance
de um estado de plenitude espiritual, depois da sintonia com o pai.
Relacionado à simbologia do pai como centro ou equilíbrio está o nome da
cidade em que Jesus mora, Bom Jesus do Norte, já que Norte simboliza a
retidão, uma direção a ser seguida, colocando no caminho certo aquele que
está perdido. Em outras palavras, pode-se afirmar que Walter Salles, ao mesmo
tempo que tenta firmar a diversidade como um dos traços da identidade
nacional, destaca também o conflito de identidade de seus personagens.
Dessa forma, a identidade é um conceito explorado duplamente: interna e
externamente; individual e coletivamente. A busca de Josué, sobretudo,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
227
depende de sua volta às origens, para encontrar o pai, pois, como filho, é
parte integrante dele.
No que se refere à identidade nacional, o equilíbrio alcançado entre
metrópole e interior é apontado pela crítica como um dos resquícios
ideológicos de Gilberto Freyre, que, em seu Manifesto Regionalista, de 1926,
atentava para a diversidade da cultura nacional e para o risco do reducionismo,
ao se tentar a unidade. Citando um trecho do manifesto e apontando suas
afinidades com o filme Central do Brasil, Jayme Canashiro Augusto menciona:
“‘[...] o único modo de ser nacional no Brasil é ser, primeiro, regional’ (algo
bem assimilado por Walter Salles em seus filmes [...]).” (AUGUSTO, 2006,
p. 3). Em outra passagem do mesmo artigo, o autor sintetiza: “Este filme é
um encontro de vários Brasis: o do Nordeste que vai ao Sul-Maravilha em
busca de sobrevivência, e o do Sul-Maravilha que vai ao Nordeste em busca
de si mesmo. É o resgate na esperança do país: os personagens perdidos se
tornam cúmplices no caminho para o interior do Brasil.” (AUGUSTO, 2006,
p. 2). Tal afirmação estabelece o Nordeste como berço das tradições mais
populares, a começar pela religiosidade, mais intensa nessa região. Dessa
forma, se Josué busca sua própria origem, é como se também a cidade grande
fosse fruto da cidade interiorana e necessitasse recuperar suas raízes, para
reaver alguns costumes que se perderam, em meio à homogeneização cultural
que afeta e transforma os grandes centros. O Nordeste, ainda mais quando
se trata de uma cidade do interior, permite essa revitalização, porque ainda
não foi maculado ou “corrompido”, tanto quanto outras regiões do Brasil,
pelos costumes que vêm de fora e, dessa forma, é dotado de maior
originalidade e “primitividade”. Isso, então, permite à metrópole resgatar
hábitos esquecidos já há algum tempo, para que possa acentuar a diferença
e assim reagir à globalização.
O Auto da compadecida: comunhão entre o regional e o
popular
O filme de Guel Arraes retoma a tendência regionalista, que
prevaleceu, sobretudo na literatura (atentando para o fato de o filme ter sido
baseado na peça homônima, escrita por Ariano Suassuna), desde a época de
1930 até o início da década de 50, quando ganhavam destaque os trabalhos
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
de João Guimarães Rosa e João Cabral de Melo Neto. O romance de 30,
principalmente, filiava-se à ideologia do Manifesto Regionalista. É justamente
essa filosofia que reaparece, em 2000, na versão cinematográfica do texto de
Suassuna. As afinidades entre o manifesto de Gilberto Freyre e O auto da
compadecida aparecem já na idéia de firmar a unidade através da diversidade,
considerada uma das principais características brasileiras, pois O auto da
compadecida, ao mesmo tempo que situa geográfica e espacialmente as críticas
e os conflitos presentes no texto e no filme, conseqüentemente, obtém um
alcance universal, fazendo com que o recorte que se faz de determinada
sociedade, dentre tantas, represente todas as demais, unificando-as, de certa
forma. Um aspecto, talvez o principal, responsável por particularizar a região
é a fala, pois privilegiam-se a oralidade e o registro dialetal.
Quanto à escolha do Nordeste, Freyre, em seu manifesto, justifica a
importância dessa região, da seguinte forma: “[...] o Brasil é isto: combinação,
fusão, mistura. E o Nordeste, talvez principal bacia em que se vêm
processando essas combinações, essa fusão, essa mistura de sangues e valores
que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis, franceses, africanos,
holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos” (FREYRE, 2006, p. 30).
Essa idéia afasta o preconceito existente em relação ao regionalismo, que
considera tal tendência separatista e bairrista. Aliás, o autor do manifesto
corrige esse equívoco, no início de seu texto, como ação preventiva, e conclui
com trechos como o que foi transcrito acima, justificando a escolha do
Nordeste como espaço que sintetiza o sincretismo cultural do Brasil.
Renato Ortiz, ao comentar o posicionamento de Arthur Cezar
Ferreira Reis sobre a Amazônia, compara-o ao autor do Manifesto Regionalista,
mencionando que Reis “retoma os argumentos de Gilberto Freyre sobre o
Nordeste” (ORTIZ, 1994, p. 93). Adiante, comentando a questão da unidade
e da diversidade, Ortiz cita: “A região é uma das partes desta diversidade
que define a unidade nacional. O elemento da mestiçagem contém justamente
os traços que naturalmente definem a identidade brasileira: unidade na
diversidade. Esta fórmula ideológica condensa duas dimensões: a variedade
das culturas e a unidade do nacional” (ORTIZ, 1994, p. 93). Em outra obra,
intitulada A moderna tradição brasileira, Renato Ortiz opõe as metrópoles,
essencialmente urbanas, ao interior, espaço em que sobrevivem as tradições:
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
229
É sugestivo o contraste que se constrói entre São Paulo e o Nordeste. São
Paulo é “locomotiva”, “cidade”, e o paulista é “burguês”, “industrial”,
tem gosto pelo trabalho e pelas realizações técnicas e econômicas. O
Nordeste é “terra”, “campo”, seus habitantes são telúricos e tradicionais
e por isso representam o tipo brasileiro por excelência. (ORTIZ, 1999,
pp. 36-7)
Esse “tipo brasileiro” é resgatado tanto na segunda parte de Central
do Brasil quanto em O auto da compadecida, já que as cidades grandes, pelo
contato intenso que mantêm com as metrópoles estrangeiras, importando
seus costumes e tradições, não perpetuam mais a brasilidade, sendo necessário,
então, buscar esse traço em comunidades que estão à margem da
industrialização intensa e que, portanto, mantêm hábitos originais, quase
primitivos. Em outras palavras, os adjetivos “impuro” e “puro” servem para
qualificar, respectivamente, a cultura dos grandes centros e a das cidades
interioranas.
O objetivo do regionalismo, tanto na literatura como no cinema, já
é conhecido. Assim como Stuart Hall pontua hoje, Freyre já mencionava,
em seu manifesto, em 1926, que o regionalismo buscava reagir à invasão
estrangeira. Pode-se relacionar o resgate do regionalismo, em pleno ano 2000,
auge da globalização, ao que postula Bauman, em sua obra Modernidade líquida:
“Compartilhar intimidades, como Richard Sennett insiste, tende a ser o
método preferido, e talvez o único que resta de ‘construção da comunidade’”
(BAUMAN, 2001, pp. 46-7). A partir desse trecho, entende-se a razão de
retomar uma obra escrita já há algum tempo e de caráter fortemente regional.
O regional pode ser considerado o ponto de partida para o nacional. É
através da identificação entre pessoas da mesma região que se estabelece a
noção de comunidade e conjunto. Logo, torna-se especialmente significativo
o fato de uma peça como O auto da compadecida ter sido adaptada para o
cinema no ponto alto da globalização, quando, ainda conforme Bauman,
não só as comunidades estão desaparecendo, mas também estão se diluindo
instituições que antes eram sólidas e permanentes, como a família, a classe,
o casamento, entre outras, denominadas por Ulrich Beck “categorias zumbi”.
Em Recortes, Antônio Cândido, em um dos textos críticos que
compõem a coletânea, menciona que o nacionalismo está ultrapassado. Porém,
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deve-se ter em mente que o livro, embora tenha sido lançado em 1993,
reúne textos escritos também nas décadas de 70 e 80, época em que, de fato,
o nacionalismo não era uma preocupação urgente. No entanto, do final da
década de 90 para cá, com o crescimento do fenômeno chamado globalização,
o nacionalismo volta à tona, para tentar evitar a diluição de valores
genuinamente brasileiros. Esse resgate, entretanto, não afetou apenas a cultura
brasileira, mas muitas outras. Por esse prisma, pode-se considerar O auto da
compadecida mais radical ou extremista que Central do Brasil, pelo fato de aquele
optar por um cenário regional por excelência. No entanto, o debate de temas
universais constitui, no texto e no filme, um ponto de equilíbrio, que ameniza
o que, a princípio, parece radical.
Ariano Suassuna, em entrevista concedida a Cláudio Vasconcelos,
analisa o impacto contraditório da cultura de massa americana sobre a cultura
brasileira popular. Ao responder se teme pelo fim da literatura de cordel, o
autor afirma:
Eu temo, não somente pela literatura de cordel e a literatura popular, mas
por toda a cultura brasileira, que se encontra ameaçada pela invasão da
cultura de massa americana. Agora, a cultura popular está mais, porque
quem a produz são pobres e, portanto, o massacre é maior. Mas, por
outro lado, o fato de eles serem pobres e viverem excluídos do ponto de
vista sócio-político é um desastre. Mas, do ponto de vista cultural, às
vezes e até sem querer, são eles que criam uma literatura brasileira, porque
são menos expostos. (VASCONCELOS, 2006, p. 2)
Essa afirmação reforça a concepção de Renato Ortiz, que também
compreende o Nordeste como berço da tradição brasileira. Em O auto da
compadecida, a simplicidade do espaço e da vida organizada na cidade do
interior amplia a discussão de temas fundamentais, como a desigualdade
social, por exemplo, e a necessidade de o povo sobreviver com muito pouco,
passando a enfrentar condições tão adversas, como a seca, a fome e a
exploração dos mais ricos. Mesmo através da comédia, texto e filme dão o
recado, mostrando a corrupção do caráter e do código moral pelas altas
instâncias do poder, representadas, na obra, pelas figuras do coronel, do
bispo e do padre.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
231
Outro elemento que acompanha o nacionalismo, sobretudo quando
esse parte de uma representação regionalista, é o tom popular. Essa
característica se faz presente, na obra de Suassuna, desde as influências (de
Plauto e Molière ao mamulengo e às chanchadas) até a linguagem, na qual se
percebe a ênfase ao coloquial, elemento em que a literatura de cordel investe
bastante. Somem-se a esses traços populares também a própria comédia e a
estrutura de auto, já que esse tipo de peça compreende uma construção
simples, alegoria, tom cômico, linguagem ingênua e um final moralizante.
Não por coincidência, todos esses quesitos são encontrados na obra de Ariano
Suassuna. Da mesma forma que o auto sintetiza várias características
populares, a parte final da obra, do julgamento de João Grilo e seus
conhecidos, também o faz. Por essa razão, ela pode ser considerada antológica,
sempre referenciada. A cena do julgamento investe na oposição do bem
contra o mal, representados, alegoricamente, por Jesus e Maria, de um lado,
e pelo Diabo, do outro. Além disso, condensa, de certo modo, a religiosidade,
que permeia toda a peça. Novamente, como aconteceu em Central do Brasil,
a religiosidade é considerada aspecto essencial ao popular. Em meio à alegoria,
recurso bastante recorrente no folclore, e à religiosidade, aparece a crítica
social, que, no filme, muda o tom, de modo a conferir quase que um teor de
documentário à seqüência de cenas em preto e branco, que mostra a migração
dos nordestinos, quando fogem da seca, e suas precárias condições de vida.
Fazendo jus à opção pelo regionalismo, mesmo debatendo questões
universais, O auto da compadecida retrata, com detalhes, o espaço físico, o
figurino e costumes específicos, salvaguardados do estrangeirismo. Como
exemplos, podem ser citadas: a importância dada pelo coronel ao sobrenome,
à titulação e às posses de Chicó, quando esse se apresenta como pretendente
à mão de Rosinha; a praça, local onde, inclusive, está situada a igreja, espécie
de centro da pequena cidade; as casas pequenas, coloridas e com as janelas
caiadas; a caracterização da venda e do bar, à moda dos populares comércios
de secos e molhados; e a tradição das quermesses.
Cidade de Deus: representação da urbanidade
Cidade de Deus, filme de Fernando Meirelles, com roteiro de Bráulio
Mantovani, inspirado no romance de Paulo Lins, diferentemente de O auto
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
da compadecida, amplia o cenário da metrópole que Walter Salles insere, na
primeira parte de Central do Brasil, dando ênfase à periferia. Curioso, em
Cidade de Deus, é o fato de tanto o livro quanto o filme contrariarem a tendência
que Beatriz Resende identificou na literatura, a partir de 1980. Segundo a
autora, com exceção de Cristovão Tezza, Rubem Fonseca, Valêncio Xavier e
Dalton Trevisan, para citar apenas alguns nomes, os escritores em geral,
atuantes na década de 80, afastaram-se da representação da cidade em suas
histórias, privilegiando, em seu lugar, o intimismo, e colocando, dessa forma,
em primeiro plano, as crises e os conflitos que envolviam a identidade dos
personagens. Para isso, porém, o espaço deixou de ser priorizado e delimitado
e o aspecto psicológico dos personagens recebeu maior atenção. Na maioria
das narrativas, os protagonistas pareciam perdidos, agindo como se fizessem
parte de qualquer lugar, ao modo de um “nowhere man”.
Tal tendência ainda permanece. Na literatura contemporânea,
histórias que priorizam esse tipo de problemática podem ser vinculadas ao
conceito de “modernidade líquida”, em que o tempo é mais importante que
o espaço. Revendo os autores que serviram de base a Zygmunt Bauman, em
“Tudo que é sólido desmancha no ar”, Marshall Berman, citando Marx,
tenta sintetizar a atmosfera moderna, na qual o individual é reforçado pelo
enfraquecimento das instituições estáveis do passado: “Todas as relações
fixas, imobilizadas, com sua aura de idéias e opiniões veneráveis, são
descartadas; todas as novas relações, recém-formadas, se tornam obsoletas
antes que se ossifiquem. Tudo o que é sólido desmancha no ar [...]” (citado
em BERMAN, 1986, p. 93). Com base nessa passagem, é certo que a
individualização e a fluidez das relações sociais dão respaldo às narrativas
que são focadas no sujeito e em seus conflitos com o meio e as demais
pessoas que o cercam, muitas vezes enveredando para o psicologismo.
Porém, na contramão da individualização, que diluiu as fronteiras,
relativizando o que se entendia, até então, por “comunidades”, há a tendência
que muitos consideram xenófoba, mas natural, cujo principal objetivo é reagir
aos efeitos do global. Para tanto, livros e filmes, como é o caso de Cidade de
Deus, tentam resgatar o espaço geográfico, como elemento que permite a
identificação entre a obra e o leitor/espectador, ao mesmo tempo que retratam
questões universais, já que os temas que irão desencadear a história, que se
passa na favela do Rio de Janeiro, soam como representativos não só para o
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233
Brasil, mas para outros países do mundo todo. A mudança significativa que
o intervalo que Beatriz Resende apontou como tendo ocorrido na década de
80 pode ter servido como transição no modo de tratar e representar o espaço.
Antes, eram priorizados os espaços rurais ou interioranos. Hoje, de modo inverso,
a narrativa precisa deter-se sobre o cenário urbano, das grandes cidades, para
entrar no debate sobre as questões contemporâneas, cumprindo sua função social.
Flora Süssekind chama atenção para a mescla que se faz,
contemporaneamente, “entre o etnográfico e o ficcional” (SÜSSEKIND,
2006, p. 1), a partir de outra combinação: jornalismo e literatura. “[...] uma
materialização literária da trama citadina ganha sentido distinto quando se
observa que a operação fundamental [...] é justamente a colocação entre
parênteses dos recursos narrativos, como possibilidade de ampliação,
reforçada pelos cadernos de fotos e por uma escrita parajornalística, do
campo de visibilidade contextual” (SÜSSEKIND, 2006, p. 1). Percebendo,
ainda, o deslocamento do rural para o urbano, o que prefigura a substituição
das cidades pequenas pelos grandes centros, a autora menciona: “[...] é
predominantemente urbana a imaginação literária brasileira nas últimas
décadas” (SÜSSEKIND, 2006, p. 1). O título do artigo em que a autora
insere os trechos aqui transcritos, Desterritorialização e forma literária, embora
pareça paradoxal, porque fala de urbanização e delimitação do espaço, apenas
apresenta o mesmo processo utilizado por Ariano Suassuna, em O auto da
compadecida, obra em que o autor, a partir de uma cidade do interior, debate
questões universais.
Cidade de Deus elege como espaço uma favela carioca e situa as ações
na década de 70. No entanto, a história não reflete só a realidade da sociedade
carioca, mas de todas as sociedades, devido à universalidade dos temas
explorados. Mariza Leão refere-se a isso, em artigo publicado no Jornal do
Brasil: “[...] da experiência inovadora do cinema novo aos dias de hoje, 40
anos se passaram. Saímos da mais valia regional para a ‘mais valia universal’,
como explica Milton Santos em seu livro Por uma globalização” (LEÃO, 2001,
p. 3). Miguel do Rosário, compartilhando a mesma concepção, afirma: “Tratase, antes de tudo, de um filme universal, o que fica acentuado pelo título
bílbico. Logo no começo, a vista do alto da comunidade lhe confere um ar
de lugar divino, atemporal, um microcosmo onde se desenrolará um drama
épico” (ROSÁRIO, 2006, p. 1 e 2).
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Naturalmente, com a escolha de um cenário urbano, a temática teve
de se adaptar a ele. Por isso, em Cidade de Deus, encontram-se discussões
acerca dos excluídos, do preconceito, da violência e da organização das
quadrilhas que comandam o tráfico de drogas. Apesar de boa parte da crítica
reclamar a ausência do conflito entre as classes, no filme, é justamente o
tráfico que serve de mote a isso, já que há uma turma de brancos burgueses,
da cidade, que vai ao morro, em busca da droga. A polarização brancos/
ricos/consumidores versus negros/pobres/fornecedores pode ser encarada,
em lugar de redutora e estereotipada, como maneira de refletir sobre os
vários tipos de preconceitos, pois a sociedade em geral (sobretudo aqueles
que detêm o poder, brancos, na maioria esmagadora, e, por conseqüência,
responsáveis pelo discurso hegemônico) tende a marginalizar os negros, assim
como fazem com os pobres, como se a necessidade e, no caso dos negros,
também a cor da pele, fosse determinante para a marginalidade. Também a
relação entre o branco/rico e Bené, parceiro de Zé Pequeno, embora não
seja muito comentada pela crítica, é responsável por demonstrar a influência
de um elemento sobre o outro, a ponto de, a partir da flutuação da identidade
de Bené, o personagem negro se transformar, aos poucos, até o ponto em
que decide ir embora e mudar de vida. A mudança começa a ocorrer quando
Bené dá dinheiro ao garoto rico e pede que ele lhe compre roupas de marca.
Primeiro as roupas, depois a cor do cabelo, que de preto passa a ser loiro,
sinalizam a tentativa de o personagem se “embranquecer”, buscando um
status diferenciado e que permitisse a ele não ser mais visto pela sociedade
de modo preconceituoso.
Para Bauman, é intenso o vínculo ente o ato de comprar e a questão
identitária:
Em vista da volatilidade e instabilidade intrínsecas de todas ou quase
todas as identidades, é a capacidade de ‘ir às compras’ no supermercado
das identidades, o grau de liberdade genuína ou supostamente genuína de
selecionar a própria identidade e de mantê-la enquanto desejado que se
torna o verdadeiro caminho para a realização das fantasias de identidade.
Com essa capacidade, somos livres para fazer e desfazer identidades à
vontade. (BAUMAN, 2001, p. 98)
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Comparando esse trecho com o episódio citado anteriormente, vêse que Bené, optando por mudar radicalmente, não só exemplifica e comprova
a mobilidade e flexibilidade do conceito de identidade, mas também responde
àqueles que têm a visão unilateral e redutora de que a favela é reduto de
bandidos, apenas. Junto com Buscapé, Bené relativiza o conceito de
determinismo, afinal, mesmo tendo sido criado no mesmo ambiente que Zé
Pequeno e de ter sido seu amigo por anos, desde a infância, consegue seguir
um caminho diferente. Além disso, a mudança de Bené representa forte
crítica ao preconceito social que existe em relação aos negros, já que, para
que o personagem conseguisse a transformação desejada, deixando a vida
de crimes que levava junto a Zé Pequeno, precisou enquadrar-se no modelo
hegemônico do branco, sinônimo de riqueza e bom-caratismo, por oposição
ao perfil reservado ao negro.
Aliás, uma reclamação freqüente dos críticos diz respeito ao perfil
atribuído aos pobres que moram nas favelas. Os mais radicais afirmam que
o filme trata todos os pobres como marginais, o que não é verdade. Basta
pensar em Zé Pequeno e opor seu caráter ao de Bené e ao de Buscapé,
principalmente. O final dos dois personagens confirma a idéia de que não
há generalizações na obra. Enquanto Zé Pequeno acaba morto pelos garotos
da Caixa Baixa, que usurpam o seu poder, Buscapé opta, como anuncia a
música que encerra o filme, pelo “caminho do bem”, escolhendo, para
publicar, uma foto que acabou lhe garantindo um emprego, como fotógrafo,
em um jornal de grande circulação na cidade.
Comparando o filme de Meirelles a Central do Brasil, é fácil observar
que Cidade de Deus supera este nas denúncias que faz, pois essas são mais
plausíveis e amplas que a do tráfico de órgãos, por exemplo, tema explorado
por Walter Salles, mas que parece fazer parte do conjunto de lendas urbanas
mais que da realidade brasileira propriamente dita, tal é o grau de mitificação
que já alcançou. Além disso, o microcosmo da favela impulsiona a
universalidade, na medida em que a organização do tráfico serve de metáfora
para qualquer tipo de organização social, com cargos hierárquicos e funções
bem definidas. Claro que o elemento universal está presente também no
filme de Walter Salles, mas de modo mais simbólico, no tocante à religiosidade,
e de modo mais individual e menos social, no que se refere à transformação
do sujeito, como ocorre com Josué e com Dora, em maior escala.
236
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Pelo fato de Cidade de Deus enfatizar a urbanidade, é visível o reflexo
da globalização, no que diz respeito à inter-relação entre as classes,
conseqüência do atenuamento das fronteiras que delimitavam rigidamente
territórios tão distintos. Os temas têm alcance universal, mas pode-se explicar
a escolha pela representação da cidade através do argumento de os grandes
centros serem as principais vítimas do multiculturalismo, que embaralha as
identidades culturais, margeando a despersonalização do sujeito e da
sociedade em geral. As metrópoles, permitindo a evolução tecnológica,
favorecem a globalização, para, no momento seguinte, reagirem a ela, de
modo paradoxal e quase incompreensível, por perceberem a descaracterização
de sua cultura pelo contato intenso e freqüente com as culturas dos outros
países. Nesse aspecto, Cidade de Deus consegue chegar a um ponto de
equilíbrio, ao misturar o espaço nacional com questões universais, associação
que representa um dos principais conflitos da contemporaneidade.
Considerações finais
Grande parte da crítica aproxima os três filmes discutidos, neste
artigo, a partir do aspecto da diluição da denúncia da realidade, alegando
que o bom acabamento e o melodrama, em Central do Brasil, o tom cômico,
em O auto da compadecida, e o formato estrangeiro de Cidade de Deus, muito
parecido ao das peças publicitárias e dos videoclipes, distraem o público. Tal
distração acarretaria o desvio dos aspectos que são de fato essenciais a uma
análise crítica da realidade que, mesmo que em parcela muito pequena, é
retratada no livro ou na tela.
No entanto, em menor ou maior grau, os três filmes levam à reflexão,
ao elegerem temas de grande importância para a sociedade contemporânea,
e, por isso, tiveram imensa repercussão. Os militantes da ideologia do Cinema
Novo opõem as produções de Salles, Arraes e Meirelles aos filmes de Glauber,
o que representa um grande problema. Apesar de Glauber alcançar maior
densidade nas denúncias, muitos de seus filmes eram herméticos demais e,
por isso mesmo, não tiveram o alcance popular esperado. A idéia era fazer
um cinema sobre o povo e para o povo, mas o objetivo não foi alcançado
totalmente. Apenas a elite intelectual analisou e compreendeu as produções
cinemanovistas, de modo satisfatório.
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De outro lado, observa-se o crescimento de obras que têm as
metrópoles, e não mais as cidades interioranas, como pano de fundo,
atendendo a urgência de polêmicas debatidas na mídia, todos os dias. Isso
faz com que haja uma coerência na mudança imposta pela evolução da
sociedade. Na era global, ao mesmo tempo em que são fortes os resquícios
de estrangeirismo, as cidades grandes não deixam de expressar fragmentos
que integram a brasilidade. Mudando-se os temas e os espaços, ou o tratamento
dado a eles, mudam-se as formas de representação e, conseqüentemente, a
“cara” do país, celebrando o conceito de identidade, como postula Stuart
Hall, como algo móvel e fragmentado. Do regionalismo de 30 passou-se
para a representação das metrópoles, transformação típica da modernidade,
cenário da revolução ininterrupta, segundo Marx, assim como da dissolução,
da fluidez e da mobilidade.
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Salles Jr. Disponível em: http://www.facasper.com.br/jo/download/
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Paulo: Companhia da Letras, 1986.
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CASTELLS, M. O poder da identidade. São Paulo: Paz e Terra, 1999.
FEYRE, G. Manifesto regionalista de 1926. Recife: Região, 1952.
LEAL, R. et al. Chico science. Disponível em: http://ww.focca.com.br/ chicosci/
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ORTIZ, R. Cultura brasileira & identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1994.
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contemporânea e experiência urbana. Disponível em: http://www.infoamerica.org/
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VASCONCELOS, C. Autor de Auto da compadecida fala sobre cultura popular.
Disponível em: http://www.pi.gov.br/entrevista.php?id=8784. Acesso em: 05 mai.
2006.
Artigo recebido em 05.12.2007.
Artigo aceito em 30.04.2008.
Verônica Daniel Kobs
Doutoranda em Estudos Literários pela Universidade Federal do Paaná – UFPR.
Mestre em Literatura Brasileira pela Universidade Federal do Paaná – UFPR.
Professora de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira da UNIANDRADE.
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CINEMA SHAKESQUEER:
A REPRESENTAÇÃO DO AMOR QUE
OUSA DIZER O NOME DO BARDO∗
Anna Stegh Camati
[email protected]
RESUMO: No processo de
transcriação do texto shakespeariano,
o filme homônimo Sonho de uma Noite
de Verão, de 1984, opera mudanças de
enfoque, ambientação, atmosfera,
enredo,
caracterização
das
personagens e políticas sexuais, de
acordo com as exigências das
perspectivas ideológicas selecionadas
por Lindsay Kemp e Celestino
Coronado. Na abertura do filme, o
acréscimo de uma moldura literal e
metafórica nos remete aos conceitos
que Freud desenvolveu em seus
escritos sobre a interpretação dos
sonhos. A trama toda é reconfigurada
como uma fantasia homoerótica de
Puck, e a teia, na qual ele se encontra
preso, representa a intrincada tessitura
dos sonhos que permite múltiplas
leituras.
ABSTRACT: In the process of
transmutation of the Shakespearean
text, the homonymous 1984 film A
Midsummer Night’s Dream operates
transformations of focus, setting,
atmosphere, characterization and
sexual politics, according to the
demands of the ideological
perspectives chosen by Lindsay Kemp
and Celestino Coronado. In the
opening scene, the addition of a literal
and metaphorical frame evokes
Freudian concepts on the
interpretation of dreams. The plot is
reconfigured as Puck’s homoerotic
fantasy, and the web, in which he is
enmeshed, represents the intricate
texture of dreams that allows multiple
readings.
PALAVRAS-CHAVE: Sonho de uma Noite de Verão. Políticas sexuais. Identidade
de gênero. Adaptação fílmica. Intermidialidade.
KEYWORDS: A Midsummer Night’s Dream. Sexual politics. Gender. Film
adaptation. Intermediality.
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I am the love that dare not speak its name.
Lord Alfred Douglas
Introdução
Para descrever as relações dialógicas entre os diferentes meios, o
discurso teórico/crítico da contemporaneidade apropriou-se do conceito de
intermidialidade que substitui e inclui os termos adaptação e tradução
intersemiótica (SISLEY, 2007, p. 37). A incessante busca pelo novo conduziu
a processos de hibridização e contaminação de meios, linguagens e suportes
cada vez mais complexos. A mistura e fusão de diversas artes e mídias
convergem para compor um produto novo, “um todo mesclado e
interconectado de sistemas de signos que se juntam para formar uma sintaxe
integrada” (SANTAELLA, 2003, p.135). Encenadores e cineastas optam, hoje,
por interfaces e entrecruzamentos arrojados com o propósito de revitalizar a
criação artística.
No artigo intitulado “Shakespeare pós-colonial e pós-moderno”,
Jyotsna Singh (1996, p. 39)1 argumenta que as tendências da pós-modernidade,
tais como o pluralismo, a desconstrução e o descentramento, foram
responsáveis por uma significativa alteração de valores: “o texto
shakespeariano deixa de ser sacrossanto: ao invés disso é apropriado e
recontextualizado através de uma multiplicidade de formas e estilos no sentido
bakhtiniano que rompe com a autoridade cultural do Shakespeare de tradição
inglesa e renascentista”. Como argumenta Anne Ubersfeld (2002, p. 12),
uma obra clássica não mais tende a ser vista como “um objeto sagrado,
depositário de um sentido oculto, como o ídolo no interior do templo, mas,
antes de tudo, a mensagem de um processo de comunicação”.
O presente ensaio objetiva investigar alguns aspectos apontados
pelos críticos como elementos-chave do fenômeno da adaptação dos clássicos
na contemporaneidade, e se propõe a analisar as mudanças, decorrentes do
Zeitgeist, que se configuram na versão fílmica de Sonho de uma Noite de Verão
(1984), idealizada por Lindsay Kemp e Celestino Coronado, sendo que este
último também assina a direção. O filme é uma tradução intersemiótica do
espetáculo teatral homônimo da companhia de dança de Lindsay Kemp que,
por sua vez, é inspirado no texto shakespeariano. A tradição romântica da
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representação da peça, que se prologa até a primeira metade do século XX,
é subvertida por uma vasta gama de elementos de carnavalização bakhtiniana
e da estética do grotesco.
A adaptação criativa de uma língua para outra e/ou para outros
meios pode ser designada por uma diversidade de rótulos, como transcriação,
transmutação, transsubstanciação e transluciferação. Privilegio o último, termo
cunhado por Haroldo de Campos, para me referir ao filme, porque ele contém,
em sua composição morfológica, um dos nomes pelo qual o diabo é chamado,
e remete ao episódio bíblico da rebelião dos anjos, liderados por Lúcifer,
que, a partir de então, foram amaldiçoados e transmutados em demônios.
Considerando que as dicotomias (anjo/demônio; amor/ódio; bem/mal,
dentre outras) são polaridades ou opostos em tensão, pode-se ler o vocábulo
“transluciferação” como um paratexto de si mesmo que elucida o processo
tradutório, uma vez que inclui em seu significado a referência da relação de
oposição e complementaridade que caracteriza as polaridades. Segundo
Campos (1981, p. 209), esse tipo de travessia textual, também denominada
por ele de “escritura mefistofélica” e/ou “desmemória parricida”, é uma
transsemiotização no sentido abrangente que permite desvios, omissões,
acréscimos, interpolações e distorções de toda espécie.2
Uso o termo “adaptação” na acepção proposta por Linda Hutcheon
em seu livro A Theory of Adaptation (2006). Nesta obra, a crítica canadense
alarga o âmbito desse conceito, da mesma forma como Roman Jakobson
havia procedido na primeira metade do século XX, quando elaborou uma
distinção terminológica que possibilitou a ampliação do conceito de tradução,
ao propor três maneiras de interpretar o signo verbal: “tradução intralingual”
(paráfrase de um texto na mesma língua); “tradução interlingual”
(transformação de um texto para uma língua diferente); e “tradução
intersemiótica ou transmutação”, que “consiste na interpretação dos signos verbais
por meio de sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON, 2005, p. 64-65).
A adaptação dos clássicos na contemporaneidade
Um texto clássico é um contingente polívoco enriquecido por uma
complexa rede de intertextos acumulados através dos séculos. A apropriação
dos clássicos como matéria-prima para novas criações é uma prática recorrente
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na contemporaneidade, e o debate em torno de como adaptar os clássicos
(UBERSFELD, 2002, p. 8-37; HUTCHEON, 2006, p. 15-21; PAVIS, 2007,
p. 57-78) ganhou corpo e voz nos estudos literários, culturais e intermidiáticos.
A questão da significação de um clássico, como lê-lo e a partir dele
interpretar o cotidiano já foi pensada por Shakespeare que escrevia peças
sobre tempos remotos e reinos distantes para iluminar o seu próprio momento
histórico. Segundo o entendimento de Peter Brook, na história da humanidade
sempre surge um momento em que uma combinação de fatores e
circunstâncias valida a opção por um texto clássico, tornando acertada a
escolha (HUNT & REEVES, 1999, p. 90).
Apesar de que ainda hoje muitas adaptações cênicas e fílmicas
continuam a ser analisadas e julgadas a partir do critério da fidelidade, vale
lembrar que mesmo em relação à obra de Shakespeare é impossível falar de
um texto “autorizado” ou “oficial”. Existem diversas versões de cada uma
das peças, e uma grande variedade de edições híbridas posteriores que
apresentam diferenças substanciais entre si. Stephen Orgel (1991, p. 83-86),
um dos mais respeitados críticos, comenta que nada sabemos sobre os textos
“originais” de Shakespeare, uma vez que nunca foram encontrados
manuscritos ou prompt-books (manuais de palco) de nenhuma de suas peças.
E mesmo que tivéssemos recuperado estes ur-textos, eles provavelmente
seriam diferentes de todos os outros textos que conhecemos até agora.
Acredita-se que muitas das versões que chegaram até nós foram inúmeras
vezes revisadas e modificadas pelo próprio bardo, e que provavelmente
diversas falas ou cenas tenham sido interpoladas por seus colaboradores.3
A abertura e a maleabilidade que os textos de Shakespeare oferecem
proporcionam inúmeras possibilidades criativas ao artista no percurso
intermidiático através do tempo e espaço. Quando o texto é transformado
em roteiro cênico ou cinematográfico, o resultado é sempre uma transescritura
ou novo texto, com diversos graus de aproximação ou distanciamento do
texto-fonte, que pressupõe uma série de transformações, visto que os diversos
suportes são regidos por diferentes signos, códigos e convenções. Vale lembrar
que na travessia da literatura para outros meios, a questão da fidelidade não
se sustenta, porque, hoje, temos consciência que “mesmo o processo
pretendidamente mimético caracteriza-se pelo fato de algo tentar fazer-se
igual a outro, mostrando-se como não igual [...] Representar a coisa ‘tal como
ela é’ é mimese mediada pelo código. Quer dizer, a similaridade já contém
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seu tom diferenciador” (PLAZA, 2003, p. 33). A identidade entre o texto de
origem e o de chegada, seja ele fílmico ou outro, não é apenas impossível,
mas indesejável:
A operação de passagem da linguagem de um meio para outro implica
em consciência tradutora capaz de perscrutar não apenas os meandros da
natureza do novo suporte, seu potencial e limites, mas, a partir disso, dar
o salto qualitativo, isto é, passar da mera reprodução para a produção.
(PLAZA, 2003, p. 109, minha ênfase)
A análise das adaptações dos clássicos não deve limitar-se à
comparação dos aspectos formais e temáticos entre o texto-fonte e o textoalvo. As principais determinantes do redirecionamento de sentido em qualquer
adaptação, intersemiótica ou não, são as alterações efetuadas em função da
mudança do tempo-espaço e do imaginário cultural. Este último é definido
como “o conjunto de fantasias, valores, desejos, hábitos, modos de pensar
que caracterizam um momento cultural específico e o diferenciam de outros
momentos passados ou futuros” (CARTELLI & ROWE, 2007, p. 25). Nesse
sentido, o fenômeno da adaptação pode ser visto como uma manifestação
do processo cultural em constante mutação.
Em face dessas articulações, as adaptações cênicas ou filmicas
realizadas dentro da perspectiva brechtiana, de uma arte dialética que busque
a atualização de textos clássicos como matéria de reflexão para uma leitura
crítica da realidade, tornou-se uma prática comum. Esse procedimento altera
radicalmente o sentido atribuído às obras canônicas pela crítica tradicional,
preocupada com a integridade textual. Brecht defendia a necessidade da
historicização dos clássicos, um processo que põe em jogo duas ou mais
historicidades: o tempo em que o texto foi escrito e o tempo em que ele é
reescrito ou transposto para outro meio, visto que o passado influi no presente,
e o presente modifica o passado.4
Ubersfeld (2002, p. 12-16) também se pronuncia a esse respeito,
quando diz que “a obra clássica, inscrita no processo de comunicação do
teatro, sofre modificações em três níveis diferentes – o do emissor, o da
mensagem e o do receptor”. A realização cênica ou fílmica envolve emissores
múltiplos (encenador, atores e equipe de criação), e os signos da obra em
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245
questão são filtrados de acordo com as mudanças do Zeitgeist e “em função
da escuta atual do receptor”: ouve-se o texto em línguas diferentes
concretizado em linguagens e em condições de enunciação contemporâneas.
Em virtude da dupla mudança do emissor e do receptor, a mensagem também
é modificada, “a partir do momento em que todo o processo de comunicação
é abalado, a mensagem não poderia permanecer intacta”.
A travessia intermidiática, portanto, envolve uma situação de
comunicação complexa e multidirecional que se processa através da
intermediação de práticas discursivas de diversos sistemas de significação.
Um aspecto importante a ser considerado é o diálogo via de mão dupla que
se processa no entrecruzamento de culturas e/ou situações de enunciação: a
do texto/cultura-fonte e a do texto/cultura-alvo, com um olhar retrospectivo
no passado, mas uma maior ênfase no presente (PAVIS, 2008, p. 123-154;
O’SHEA, 2000, p. 43-60).
(Sex)alteridades: políticas sexuais que admitem a diferença
A partir dos anos 1980, os textos de Shakespeare foram apropriados
pela cultura de massa, dando origem a inúmeras leituras alternativas que
provocaram desconforto entre os críticos de posicionamentos conservadores.
É nessa época que surge o “cinema shakesqueer”, uma vertente fílmica
considerada transgressiva (ROTHWELL, 2007, p. 192) por ter ousado
emprestar o nome de Shakespeare para representar políticas sexuais que
admitem a diferença. Os filmes Sonho de uma Noite de Verão (1984) e Sociedade
dos Poetas Mortos (1989) foram apontados por Richard Burt (1998, p. 30)
como manifestações artísticas representativas deste novo gênero da indústria
cinematográfica.
O subtexto que informa o título deste ensaio, “Cinema shakesqueer: a
representação do amor que ousa dizer o nome do bardo”5, inclui duas
referências que remetem a dois momentos históricos diferentes, antes e depois
da revolução das mentalidades na segunda metade do século XX.
A primeira, “ousar ou não ousar dizer o nome do amor”, pode ser
localizada em uma época anterior à produção do filme, quando a homofóbica
sociedade vitoriana encontrou um bode expiatório para exorcisar seus desejos
reprimidos. A frase poética “I am the love that dare not speak its name” (Eu sou
o amor que não ousa dizer o seu nome), em epígrafe, evoca o poema “Two
246
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Loves” (Dois Amores) de Lord Alfred Douglas, dedicado a Oscar Wilde,
que foi uma das muitas referências literárias usadas como arma pelo promotor,
Edward Carson, nos três julgamentos que condenaram o poeta e dramaturgo
irlandês à reclusão do cárcere por sua orientação sexual.
A segunda, “ousar ou não ousar dizer o nome de Shakespeare”, remete
à decada de 1980, época em que o filme foi produzido, e às mudanças
operadas pelos meios de comunicação de massa que se atreveram a desafiar
os cânones da arte ocidental. Esta época representou um marco histórico no
terreno dos movimentos sociais de contestação: as legislações dos direitos
das minorias foram consolidadas, a obra seminal de Michel Foucault, História
da sexualidade (1976/1984), foi divulgada, e o direito da livre opção sexual e
da construção de uma política identitária queer foi conquistado. Em face
desta virada anti-essencialista, já não se receava dizer o nome do amor, mas
toda essa abertura não foi suficiente para mudar a opinião dos críticos
conservadores, que reprovaram a inserção de cenas de homoerotismo no
Sonho shakesqueer, de 1984. Em virtude desses posicionamentos, o filme foi
recebido com reservas e, apesar de seus méritos artísticos, não atingiu
visibilidade no meio acadêmico e na mídia.6
Considerando os processos intertextuais e intermidiais que se
configuram na recepção e produção de textos, vale mencionar que a dupla
de criadores, Lindsay Kemp e Celestino Coronado, exerceram, em primeiro
lugar, a função de leitores, um procedimento que nunca é inocente. A partir
dessa perspectiva, as óticas e políticas sexuais dos adaptadores do Sonho
foram decisivas na releitura e transcriação fílmica do texto-fonte em termos
contemporâneos. Foi privilegiado o lado mais escuro da natureza humana,
teorizado no ensaio “Titânia e a cabeça de asno”, por Jan Kott, em Shakespeare
nosso contemporâneo (1961), obra traduzida para o português em 2003. Apesar
de que as considerações teóricas de Kott foram recebidas com restrições
pela crítica shakespeariana tradicional, sua obra causou uma reviravolta na
história da recepção de Shakespeare e teve enorme influência sobre o teatro
e o cinema, inclusive sobre a montagem antológica de Peter Brook, em 1975.
As mudanças de enfoque do ensaio kotteano reverberam no filme
dirigido por Celestino Coronado. Kott (2003, p. 199) considera o Sonho a
peça mais erótica e brutal de Shakespeare, mas como até então ela foi quase
sempre apresentada no teatro e no cinema sob uma perspectiva romântica e
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247
idealizada, “a violência, a brutalidade das situações e dos diálogos é totalmente
diluída em cena”. O crítico polonês comenta que a inversão mecânica dos
desejos e a permutação dos amantes não é apenas a base da intriga, mas
também da caracterização das personagens:
A redução do personagem a simples parceiro amoroso parece o traço
mais típico desse sonho cruel. E certamente o mais moderno. O parceiro
não tem mais nome nem rosto. É apenas quem está mais próximo. Como
em certas peças de Genet, não há aqui personagens bem definidos, há
somente situações. Tudo torna-se ambivalente. (KOTT, 2003, p. 199-200)
Sob a influência da ótica de Kott que vê os amantes como peças
intercambiáveis de um mecanismo, os criadores do filme plasmam uma
floresta tropical freudiana onde os encantamentos são de outra natureza – o
néctar do amor perfeito é instilado nos olhos de Lisandro e Hérmia, que se
empolgam com as primeiras pessoas que vêem ao despertar – Lisandro com
Demétrio e Hérmia com Helena. O esquema da troca de parceiros, explorado
por Shakespeare, é ampliado com a inclusão das políticas sexuais conquistadas
nos anos 1980, época dos movimentos de afirmação da ideologia queer.
Alteridades textuais, hibridização e intermidialidade
A transcriação fílmica do Sonho é um pastiche pós-moderno que agrega
marcas e traços do texto, sub-texto e ur-textos (textos-fonte) de Shakespeare,
da crítica shakespeariana e da complexa rede de intertextos acumulados em
torno da peça através dos séculos. É um filme auto-reflexivo, que entra “em
diálogo, em paródia, [e] em contestação” (BARTHES, 2004, p. 64), não
apenas com o texto de Shakespeare, mas com a história das adaptações do
Sonho no teatro e no cinema, principalmente com as diversas representações
da tradição operística, dentre elas o filme semi-operístico de Reinhardt/
Dieterle (1935), e a ópera de Benjamin Britten (1960). Como comenta
Ubersfeld (2005, p. 70) não lemos mais um texto “como um texto, mas
como um conjunto de texto +metatexto”.
Quanto à forma, o filme é um produto híbrido que mistura diversas
modalidades de teatro musicado, como a ópera, a opereta e o musical, que se
248
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
configuram como manifestações artísticas intermidiáticas que englobam e
reciclam diversos meios. Como em todas essas formas, no Sonho shakesqueer
diversos gêneros e artes se mesclam, entre elas a música (trilha sonora), o
canto (árias, duetos, coros, ensembles), o teatro (pantomima) e a dança (balé
clássico e danças típicas). Neste amálgama de múltiplos signos, linguagens e
códigos, diversos empréstimos se destacam, dentre eles os efeitos especiais,
dos filmes de ficção científica; as estéticas do grotesco, paródia e
travestimento, da commedia dell’arte; e o cenário suntuoso e a espetacularidade,
da tradição operística do século XIX.
Sendo o cinema um meio predominantemente visual, e as formas de
teatro musicado gêneros que priorizam a música, a sujeição ao novo suporte
e as transformações de ordem formal exigiram a condensação do texto
shakespeariano. No complexo processo de transsemiotização, setenta e cinco
por cento das palavras de Shakespeare foram cortadas e substituídas pelas
linguagens da música, da dança e da pantomima. A narrativa foi desconstruída,
fragmentada e reconfigurada em termos operísticos. O cineasta elegeu o
ambiente onírico da floresta como foco principal, uma opção que aproxima
o fílme da ópera de Benjamin Britten, e construiu o novo texto com recortes
de partes das narrativas entrelaçadas que compõe a trama da peça de
Shakespeare: vários episódios e personagens foram eliminados, outros criados
e interpolados, muitas falas deslocadas e refêrencias complexas oriundas de
múltiplas fontes inseridas.
Na abertura do filme, verifica-se o acréscimo de uma moldura literal
e metafórica que nos remete ao conceito freudiano de que nenhum sonho é
apenas um sonho. A trama toda é redirecionada como um sonho homoerótico
de Puck, e seu estado de sonhador é assinalado pela metáfora da teia, uma
intrincada tessitura que aprisiona seu corpo e mente. O espectador vê tudo
através dos olhos de Puck (protagonizado por Lindsay Kemp) que em seu
sonho assume as funções sugeridas por Kott (2003, p.197): “Puck é um
ilusionista e um prestidigitador, como um Arlequim da commedia dell’arte”.
Ele é um voyeur sinistro, uma combinação de fauno, diabo e Arlequim, com
o acréscimo dos chifres do sátiro, que tem orgasmos quando observa os
desencontros e as agressividades dos dois pares de amantes mortais, e o
encontro sexual entre Titânia e Bottom. Como argumenta Kott (2003, p.
198), é ele quem “puxa os cordões de todos os personagens”, e “libera os
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249
instintos que põe em marcha os mecanismos desse mundo”. Não somente
Puck, mas todas as personagens são rearticuladas, tornando-se aspectos
personificados das fantasias do sonhador. Observam-se modos de agir que
Freud descreve em A interpretação dos sonhos (1900), constituindo evidência
de que a vida psíquica do homem não se passa apenas no plano da consciência.
Subterraneamente, forças inconscientes influem sobre o comportamento
humano, sendo os sonhos manifestações dessas forças obscuras em ação.
No filme, o sonho de Puck se configura como um palco onde ele é, ao
mesmo tempo, ator, encenador, ponto, autor, público e crítico.
O primeiro episódio que Puck visualiza em seu sonho, é o estupro
das Amazonas pelos soldados de Teseu, e a subjugação de Hipólita pelo
chefe guerreiro, que encontra respaldo no texto e subtexto de Shakespeare.
Esta interpolação pode ser considerada uma citação, visto que remete à versão
semi-operística de Reinhardt/ Dieterle (1935). Trata-se de uma das cenas
que foram rodadas, mas rejeitadas na edição final para não comprometer a
visão romântica do filme e atender as exigências de Hollywood.7
No processo criativo da adequação das diversas linguagens ao meio
cinematográfico e ao gênero operístico destaca-se a transformação do enredo
da troca de parceiros em um jogo de cabra-cega. A inconstância e as mudanças
de afeição são representadas por meio de uma mescla de dança e pantomima,
cujos movimentos coreografados traduzem em termos visuais a formação e
inversão dos triângulos amorosos até o desencontro total na noite do solstício
de verão. Esta transsemiotização dialoga com ambas, a crítica shakespeariana
tradicional e revisionista.
Enid Welsford (citado por BARBER, 1972, p. 128) descreve o
movimento da peça como uma dança: “O enredo é uma configuração,
uma figura geométrica, mais do que uma série de eventos ocasionados
pela vontade e paixão humanas, especialmente na ambientação noturna
banhada pelo luar, e a configuração é de uma dança”. Jan Kott, por sua
vez, argumenta que no Sonho, as metáforas do amor, do erotismo e do
sexo são inteiramente tradicionais no início, representando as polaridades
em tensão, mas elas sofrem transformações importantes no decorrer do
monólogo de Helena (I.1.226-251) que contém os elementos-chave para
a compreensão da peça.
250
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Concordo com o crítico polonês de que se trata “do monólogo do
autor, uma espécie de ‘canção’ brechtiana na qual, pela primeira vez, é
anunciado o tema filosófico do Sonho. Esse tema é Eros e Tânatos” (2003, p.
203). Kott defende a idéia de que as imagens deste monólogo se desdobram
em várias camadas ou planos de significação: a reflexão sobre a irracionalidade
do amor, introduzida por meio de uma personificação – Cupido que, às
cegas, dispara as flechas com seu arco – paulatinamente adquire novos
contornos e se transfigura de fantasia gerada pelo desejo em força
instintiva cega. De acordo com Kott, são as diversidades de leitura do
monólogo de Helena que orientam a encenação ou a narrativa fílmica em
uma determinada direção, romântica ou erótica:
No monólogo de Helena, o Amor cego foi metamorfoseado numa força
instintiva cega, numa Niké do instinto: “Asas sem olhos numa corrida
sem memória”. [...] As transformações das imagens não são aqui senão
um abandono brutal da idealização do amor cara a um Petrarca. (KOTT,
2003, p. 203-204)
No filme, a ação do enredo dos amantes é introduzida por uma
seqüência pantomímica dançada, apresentada como uma mascarada da corte.
As personagens iniciam a dança repetidas vezes, com variações, improvisando
coreografias de danças típicas de várias etnias. A seqüência de imagens que
mostra os jovens, de olhos vendados, se divertindo com a dança de cabracega, traduz em ação a referência-chave do monólogo de Helena, privilegiando
a acepção do amor como força instintiva cega.
Por outro lado, o erotismo animal detectado por Kott, em sua leitura
pós-freudiana, também é explorado na versão shakesqueer de Kemp/Coronado.
Bottom é metamorfoseado numa criatura grotesca ao invés de asno, uma
fusão do humano, do animal e do vegetal, composto de casca de árvore,
folhas e pêlos, portando um enorme falo que sugere potência sexual
exacerbada. Os comentários críticos de Kott (2003, p. 207) iluminam o
encontro sexual do artesão com a rainha das fadas: “Titânia é quem mais
profundamente penetra na esfera sombria do sexo onde não há mais beleza
e feiúra, mas somente fascinação e liberação”.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
251
Shakespeare, em seu texto, já relativiza o racionalismo, e nos mostra
que no embate entre a razão (no nível do consciente) e a paixão (no nível do
inconsciente), a razão nem sempre consegue contolar as forças instintivas.
O cineasta, por sua vez, através da técnica do travestimento, eleva tudo ao
exagêro, ao gargantuesco e ao pantagruélico. Despersonaliza as personagens
até as últimas conseqüencias com o propósito de “desalojar o público de
suas posições antropocêntricas”, revelando o lado animal do homem. Bottom
é metamorfoseado numa criatura grotesca, paradigma do não humano: “Um
corpo é exibido, e uma linguagem é convocada; corpo e linguagem que não
estão em sintonia, que se separam e que provocam, através de uma estranheza
mútua, a mais aguda das interrogações sobre a presença do homem no seio
do universo do mundo socializado” (SARRAZAC, 2002, p. 103).
Em Shakespeare, o garoto indiano que é o pomo da discórdia entre
Titânia e Oberon é mencionado diversas vezes, mas não aparece em cena.
Kott acha que esse menino é absolutamente inútil para o desenvolvimento
da ação, e que Shakespeare poderia ter encontrado inúmeras outras razões
para justificar a briga do rei e rainha das fadas. Mas como o dramaturgo
nunca insere elementos sem função dramática, seu texto carregado de subtexto
sugere que se trata do desejo do rei e da rainha das fadas pela posse do
menino. Este subtexto é atualizado, interpolado e expandido ad infinitum no
filme: o menino, em fase pré-adolescente, torna-se o personagem principal,
sendo acirradamente disputado pela drag-queen cega Titânia (protagonizada
por um homem) e Oberon, chefe do reduto camp, um casal de amantes em
discórdia. A situação que se apresenta é exatamente igual àquela que
encontramos na leitura alternativa do Sonho que Charles Marovitz, amigo de
Jan Kott, publica em 1991, em Recycling Shakespeare:
Oberon, um chefe homossexual vingativo que exerce imensa autoridade
em seu séquito na floresta, fez várias tentativas para arrancar o belo menino
indiano de seu ex-amante, agora rival, Titânia – que também é um
homossexual que gosta de vestir roupas de mulher. Titânia se recusa a
entregar o garoto ou dividí-lo com outros (uma convenção sexual
estabelecida), fato que enfureceu Oberon, e causou imensa animosidade
entre os dois redutos camp [...] (MAROVITZ, 1991, p. 12)
252
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Inúmeras citações e alusões que dialogam com a história das
adaptações do Sonho shakespeariano podem ser rastreadas no filme,
articulando vários níveis de significação que conduzem os espectadores a
uma série de reflexões. A caracterização do Tecelão, metamorfoseado em
uma criatura híbrida e grotesca, remete ao Oberon, do filme de Reinhardt/
Dieterle (1935), onde o rei das fadas também é um misto de humano e
vegetal, e o envolvimento erótico entre Oberon e Puck tem parentesco com
a ópera de Benjamin Britten (1960). Estas alusões fazem lembrar que a
visão romântica da peça já havia sido subvertida anteriormente nestas versões
operísticas.
Vale ressaltar, ainda, o episódio da disputa do belo rapaz, objeto
universal de desejo, que adquire contornos míticos com a interpolação de
uma situação narcísica, inspirada em um dos principais ur-textos ou textosfonte utilizados por Shakespeare. O filme transplanta referências do mito
clássico de Eco e Narciso, da versão formulada por Ovídio (43 a.C. - 17
d.C.), no Livro III das Metamorfoses. O belo rapaz é um correlato mítico da
figura de Narciso, jovem de extraordinária beleza:
Narciso
Com dezesseis anos de idade, poderia passar
Tanto por moça quanto por homem; homens e mulheres
Disputavam seu amor; mas naquele delgado rapazinho
O orgulho era tão forte, que nenhuma pessoa conseguia agradá-lo.
(OVÍDIO, 2003, p. 61)
O Narciso contemporâneo também é disputado por todos e parece
deleitar-se com isso até o instante em que vê sua própria imagem no espelho
d’água de uma lagoa. Fica embevecido por alguns instantes, porém, em
seguida, dá um grito que se desdobra em ecos, o que nos remete ao vaticínio
de Tirésias – quando indagado pela mãe de Narciso se o garoto viveria até
uma idade avançada, o vidente respondeu: “Sim. Se ele nunca se descobrir a
si mesmo” (OVÍDIO, 2003, p. 61). Nesta versão fílmica, o grito sugere um
momento de lucidez experimentado pelo belo rapaz: diferentemente do
Narciso mítico, o jovem adolescente parece se dar conta da tragicidade da
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
253
situação, da não existência do objeto de seu desejo, ilustrando a postura
narcisística do homem de hoje.
Conclusão
Como foi evidenciado ao longo deste ensaio, a peça de Shakespeare
tornou-se um pré-texto para (re)negociações críticas e ideológicas em torno
da questão da identidade de gênero. Por meio da apropriação de estratégias
narrativas shakespearianas, dentre elas a inversão de papéis sexuais e de
gênero, e as representações de situações grotescas acrescidas de elementos
de carnavalização bakhtiniana, a versão fílmica rompe com os estereótipos
e, ao mesmo tempo, questiona e contesta idéias convencionais aceitas como
verdades universais. Vale lembrar que no Sonho shakespeariano, já se
configuram várias inversões de papéis sexuais e de gênero: Helena toma a
iniciativa e persegue Demétrio, e, para conseguir a posse do menino indiano,
Oberon se vinga e faz Titânia se relacionar sexualmente com Bottom,
metamorfoseado em asno.
No trânsito intermidiático e intercultural do Sonho, o texto de
Shakespeare passou por inúmeras mutações em virtude das múltiplas
circunstâncias que envolveram a sua (re)criação, como a transposição espaçotemporal da narrativa, a mudança do imaginário cultural, a concretização
em um novo suporte, e a adaptação para um novo gênero. Ressalte-se que a
escolha do contexto cultural dos anos 1980, época da revolução das
mentalidades, justifica a posição crítica adotada por seus realizadores e as
transformações operadas, principalmente a (re}configuração do jogo da troca
dos parceiros, visto que a versão moderna amplia o âmbito da formação dos
pares ao contemplar ambas as possibilidades, hetero e homossexuais.
A sofisticação paródica e desromanticização efetuada distingue o filme
de Kemp/Coronado de diversas transsemiotizações anteriores dos gêneros
operísticos e semi-operísticos. Apesar de constituir uma reinterpretação
radical, uma total desmistificação do texto shakespeariano, e imprimir um
grau suplementar de ambivalência com relação à caracterização das
personagens e às confusões de gênero; apesar de todos os deslizes, mutações
e permutas paradigmáticas, o texto fílmico pode ser considerado uma
adaptação, no sentido amplo, visto que uma grande parte das funções cardeais
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da narrativa permaneceram além ou aquém da passagem de um meio para
outro.
Notas
∗
Este texto é o resultado parcial da pesquisa, realizada na Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC), durante meu estágio pós-doutoral (de 01.08.2007 a
31.07.2008), financiado pelo CNPQ (de fevereiro a julho de 2008).
1
Todas as traduções de citações de obras em língua estrangeira são minhas.
2
Como ensina Claus Clüver (2001, p. 338), com a ascensão da semiótica, todas as
artes e mídias, consideradas sistemas de signos, podem ser pensadas como textos,
qualquer que seja o sistema sígnico envolvido. “Dessa maneira, uma dança, um
soneto, uma catedral, um filme e uma ópera são todos ‘textos’ a serem ‘lidos’”.
Além disso, quando se fala em mídias, deve-se pensar não somente em cinema,
rádio, jornal e TV, mas também em literatura e outras artes. Todos esses meios são
mídias, pois veiculam informação e reúnem todo um aparato social e cultural em
sua volta.
3
Sonho de uma Noite de Verão foi publicado numa edição conhecida como Q1 (Quarto
1) em 1600. Uma reedição do Q1, com algumas corruptelas, denominada Q2
(Quarto 2), surgiu em 1619. Esta última, com algumas rubricas acrescidas, serviu
de base para o 1º Folio em 1623 (BROOKS, 2003, p. xxi-xxxiv).
4
A historicidade da história ou a relação dialética entre o presente e o passado já
foi teorizada, antes de Brecht, por T. S. Eliot (1989, p. 37-48), no ensaio “Tradição
e o talento individual”, uma das mais fecundas proposições estéticas do século
XX.
5
A expressão-título do meu ensaio é uma apropriação e releitura paródica do
título do capítulo “The Love That Dare Not Speak Shakespeare’s Name: New
Shakesqueer Cinema”, de Richard Burt (1998, p. 29-74).
6
A crítica shakespeariana praticamente ignorou a adaptação do Sonho de Kemp/
Coronado. Kenneth S. Rothwell (2007, p. 194-95) tece breves considerações teóricas
sobre o filme no ensaio “Shakespeare in the cinema of transgression, and beyond”.
Ele se apropria das palavras de Teseu (5.1.215) e Hipólita (5.1.210) para expressar
sua opinião: “O amor neste Sonho transcende as distinções de gênero para incluir
todas as criaturas sem exceção e validar a observação de Hipólita: ‘Isso tudo é a
maior tolice que eu já vi’. É conveniente, no entanto, lembrar da delicada advertência
de Teseu que nos aconselha a não fazer julgamentos precipitados: ‘Os melhores
no ofício são apenas sombras; e os piores não são piores, se a imaginação os
emendar’”.
7
Em 1998, Russell Jackson descobriu na Biblioteca Pública de Birmingham, o
roteiro da versão filmica de Reinhardt/ Dieterle, com data de 1934. Ele anotou as
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255
três cenas que foram descartadas na versão editada, dentre elas: a derrota e
subjugação de Hipólita por Teseu, as intrusões narrativas da esposa “megera” de
Bottom, e o emprego da técnica da imagem colorida para mostrar a metamorfose,
de branco para rubro, da flor mágica (GUNERATNE, 2006, p. 42).
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UBERSFELD, Anne. “A representação dos clássicos: reescritura ou museu?”.
Trad. Fátima Saadi. In: Folhetim, nº 13, abr. / jun. 2002, p. 08-37.
________. Para ler o teatro contemporâneo. Trad. José Simões. São Paulo:
Perspectiva, 2005.
Artigo recebido em 20.11.2007.
Artigo aceito em 21.03.2008.
Anna Stegh Camati
Pós-doutoranda da Universidade Fedetal de Santa Catarina (UFSC).
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
Doutora em Língua Inglesa e Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela
Universidade de São Paulo (USP).
Professora Titular de Literaturas Inglesa e Norte-Americana do Curso de Letras
da UNIANDRADE.
Professora do Mestrado em Letras, Área de Concentração: Teoria Literária, da
UNIANDRADE.
Editora-Adjunta e Revisora da Revista Scripta Uniandrade.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
SHAKESPEARE E A LEI
ATENIENSE: ASPECTOS POLÍTICOS
NAS ORIGENS MODERNAS DO SUJEITO
CONTEMPORÂNEO EM
SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO
Erick Ramalho
[email protected]
RESUMO: Neste artigo trato de um
aspecto moderno relevante para a
sociedade contemporânea, apresentando
uma leitura política da peça Sonho de Uma
Noite de Verão de Shakespeare a partir
dos elementos literários e dramáticos da
mesma. Almejo demonstrar que a trama
da peça legitima características do
absolutismo monárquico trazido à cena
no papel de Teseu (representação cênica
da figura régia), conflagrado entre o
sistema político herdado da Idade Média
e a manifestação, no início da modernidade, da volição do sujeito. Para tanto,
centro-me na análise da lei que
Shakespeare denomina ateniense e nos
desdobramentos que ela traz aos
eventos da peça.
ABSTRACT: In this article I deal
with a modern aspect that is relevant
to contemporar y
society by
presenting a political reading of
Shakespeare’s A Midsummer Night’s
Dream from the literary and poetic
elements in the play. I aim to
demonstrate that its plot legitimates
features of monarchic absolutism on
the stage in Theseus’s role (scenic
representation of a kingly figure) that
is conflated between the political
system passed down from the Middle
Ages and the early modern social
manifestation of individual volition.
To do so, I focus on the analysis of
the law which Shakespeare calls
Athenian and in the developments
that it brings to the events in the play.
PALAVRAS-CHAVE: Shakespeare. Política. Lei. Absolutismo Monárquico.
KEY-WORDS: Shakespeare. Politics. Law. Monarchic Absolutism.
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Considerações iniciais
O presente artigo1 tem o duplo intento de: 1) apresentar uma
nova leitura da peça Sonho de Uma Noite de Verão, de William Shakespeare,
sobretudo no que tange sua dimensão política; e 2) ao fazê-lo, demonstrar
como o conhecimento e a análise da shakespeariana é útil para o
entendimento da contemporaneidade, bem como para o estabelecimento
de formas de crítica e teoria literárias que se nutrem de teorias de outras
áreas — nesse caso, da filosofia política e da filosofia do direito —
contrariamente a uma certa tendência vigente de restringir-se os estudos
de literatura às teorias minoritárias e semióticas.
Para tanto, divido minha análise em três partes, cuja disposição é
análoga à metodologia ora adotada, qual seja: primeiramente descrevo a
crítica contemporânea a fim de contextualizar e explicar a utilidade do
presente estudo, assim como a necessidade de se estudar a obra de
Shakespeare para um melhor entendimento do sujeito contemporâneo.
Em seguida, examino alguns dos elementos cênicos e textuais
preponderantes no Sonho..., quando também descrevo a trama da peça,
identifico, em sua apresentação estética, elementos políticos relevantes
para o problema ora proposto e analiso esses elementos tendo como
subsídio teórico aspectos da filosofia política. Uma vez delimitados os
pontos políticos da peça importantes para o presente estudo, faço uma
análise filosófica de seus aspectos legais, os quais, nesse caso específico,
auxiliam o entendimento da dimensão política da trama.
Shakespeare, contemporaneidade e teoria: o contexto e o
escopo do presente estudo.
Parte considerável dos estudos literários relativos à
contemporaneidade tem-se atido às apropriações e traduções — sobretudo
semióticas — do texto literário em relação a outros meios artísticos e de
expressão. Por um lado, é irrefutável a perda da posição privilegiada, ao
menos em termos quantitativos, da literatura, sobretudo com a ascensão
popular do cinema, que cumpre a função de difusão de conteúdo em massa
que já coube à poesia oral nas sociedades antigas e ao romance no século
260
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
XIX. Por outro lado, a teoria literária contemporânea incorre em posições
de risco pelas quais é devidamente criticada. Desses riscos, destaquem-se
aqui dois: a suspensão, ou mesmo a abstenção, crítica em relação ao objeto
de estudo (o texto literário, quer em si, quer em suas apropriações ou
traduções) e a restrição das análises aos modos de apropriação/tradução,
não raro ignorando-se a própria natureza do texto literário e as escolhas dos
seus autores. À guisa de exemplo, basta mencionar pesquisadores das
adaptações fílmicas de Hamlet que comparam os filmes que analisam com
um texto da peça tomado a esmo, sem o cuidado de saber, com base em
estudos de crítica textual, que não há um só Hamlet de Shakespeare, mas,
pelo menos, três versões shakespearianas dessa peça.
Costuma-se mesmo considerar determinado objeto de estudo sem
o julgamento crítico que diferencia uma produção holywoodiana de um filme
de Peter Greenaway. Por conseguinte, mesmo falhas de atuação evidentes
em algumas dessas produções cinematográficas, assim como problemas de
interpretação do texto literário por parte de seus diretores, são examinadas
como escolhas por esses pesquisadores, não como erros. Ressalte-se, a
propósito, que análises do Tito Andrônico de Shakespeare, por exemplo,
demonstram que a genialidade de um autor não deve fazer com que as
falhas de sua obra sejam negligenciadas.
Também se vislumbra a uma crise epistemológica das letras, uma
vez que análises cinematográficas propriamente ditas caberiam a princípio
aos cursos de semiótica, assim como as análises de pintura, a priori, às Belas
Artes. Naturalmente, é desejável que a formação abrangente do teórico das
ciências humanas (área que compete, afinal, aos profissionais das letras) dê
conta de manifestações artísticas diversas, pelo que se fazem, por exemplo,
análises filosóficas de obras de arte (inclusive literárias, donde a importância
dos cursos de Estética) e de filmes de temática literária.2 Exemplos da
contribuição do intelectual de letras a outras áreas do conhecimento também
não são parcos. Citem-se aqui o artigo “Intermidialidade e mito em Sonho de
uma noite de verão, de Michael Hoffman” de Solange Ribeiro de Oliveira (2006,
p. 73-82) — especialmente importante, além de sua abrangência teórica e
profundidade intelectual, por tratar da peça ora analisada — e, também, o
ensaio “Sleeping Beauties: Shakespeare, Sleep and Stage”, de David Roberts
(2006), relevante principalmente por discutir o chamado pós-moderno
contrastando-o à obra de Shakespeare.
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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Assim, a atividade crítica das poéticas contemporâneas não deve
nem subestimar nem desconsiderar a presença relevante de outras formas
de expressão cultural, cuidando mesmo para que se as tomem como leituras
e releituras que fazem incidir novas luzes interpretativas sobre o texto literário.
Contudo, não deveria, em rompante anacrônico, ignorar como a análise atenta
— ao modo do close reading — de textos antigos e modernos, com vistas ao
exame mais aprofundando e abrangente, ainda que específico, da própria
contemporaneidade manifestada nesses textos ou neles contrastada. O
contemporâneo, afinal, funda-se a princípio nos modos artísticos e nos
elementos sociais e políticos do início da modernidade, época também
conhecida como Renascimento.
E é nessa primeira fase da modernidade, conhecida na Inglaterra
também como época elisabetana, que a vastidão de situações representadas
por Shakespeare traz à tona elementos que auxiliam vislumbrar
desdobramentos históricos dos quais resulta, em grande parte, o período
tardio da modernidade. Trata-se este período da nossa contemporaneidade,
que, por sua vez, não deve ser restringida, em um reductio ad absurdum, à
expressão daquilo a que alguns chamam de pós-moderno.3
Assim, a abordagem crítica da shakespeariana faz-se fundamental à
contemporaneidade também quando se examinam, como ora se almeja,
aspectos da fundação do sujeito moderno e contemporâneo no contexto
político, social e cultural refletido de maneira privilegiada no palco. Aí se
insere o escopo do presente estudo. A saber, proponho aqui uma análise de
elementos políticos que, presentes na poética shakespeariana em particular,
e no início da modernidade em geral, moldam determinada expressão literária,
ajustando-a ao contexto político em que foi produzida. Trata-se de analisar
características intrínsecas ao texto literário que são distintas da estética,
embora sem perder de vista nem a condição artística da literatura, nem a
dimensão cênica do drama, sabendo-se que é para o palco que Shakespeare
escreve as suas peças. Desse modo, contrariamente à prática recorrente nos
estudos culturais e de minorias de contrastar uma abordagem estética a outra,
política — quiçá, melhor descrita como ideológica (RAMALHO, 2007) —,
prefiro considerar a natureza estética da obra literária como expressão em si
mesma de elementos políticos. Dessa maneira, pode-se proceder com um
estudo até mesmo de características extra-literárias a partir do argumento
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
comprovado por Terry Eagleton (1986) de que a própria expressão estética
é política em si.
A fim de cumprir os objetivos deste artigo, ora considero dois temas
fundamentais na shakespeariana, quais sejam: a lei (ou o direito) e o
absolutismo monárquico. Para tanto, parto da relação artística que se projeta
entre eles na peça Sonho de Uma Noite de Verão.
A lei é tema que se costuma considerar nas peças de Shakespeare
em que questões de direito são patentes, como O Mercador de Veneza (o
julgamento do judeu) e Medida por Medida (a corrupção do legislador). A
estas, mais Tróilo e Créssida, Eagleton dedica o capítulo intitulado Law de seu
livro William Shakespeare (1986). Em sua relação com o tema do poder
monárquico, questões legais consistem também em usual objeto de estudos
nas peças históricas, como, por exemplo, o problema da sucessão monárquica
em Ricardo II.4 Quanto ao Sonho…, o problema da lei já foi identificado por
Eagleton (1986, p. 21), segundo quem “If marriage is ideally the place where
individual desire finds public sign and body, the play’s actual sexuality is torn between a
death-dealing, patriarchal public law on the one hand (Theseus and Egeus) and a purely
random subjectivity of Eros on the other (the four interchangeable lovers).” Essa
interseção de amor e morte sob os véus sociais do casamento dá-se pela
natureza cômica e fantasiosa da peça, a qual tende a encobrir os elementos
políticos importantes, sobre os quais ora me detenho.
Para fazê-lo, parto de um problema cuja enunciação é bem simples:
um pai (Egeu) reclama ao Duque (Teseu) o direito que teria, de acordo com
a lei que Shakespeare denomina ateniense (Athenian Law), de escolher aquele
(Demétrio) que quer como marido da filha (Hérmia), contrariamente à
vontade dela, desejosa de casar-se com o homem (Lisandro) por quem está
apaixonada. Agindo em posição de juiz, o Duque primeiro atenua a pena
cabível, oferecendo à moça o celibato como alternativa à morte prevista
como punição quando do descumprimento da lei. Depois, desconsiderando
a lei em sua integridade, o Duque contraria o pai reclamante permitindo que
Lisandro, o homem preterido por ele, se case com sua filha Hérmia. Frente
a isso, concentro minha análise nos seguintes pontos: 1) o direito paterno à
lei ateniense versus a alteração de sua pena e a desobrigação do cumprimento
da mesma, ambas com base na prerrogativa e no juízo do monarca; 2) o
modo pelo qual o juízo do monarca se altera frente aos fatos cuja realidade
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é alterada por uma causa sobrenatural, a ação de fadas; e 3) as implicações
de (1) e (2) para configuração do monarca absolutista e do direito divino dos
reis, bem como para as noções de lei em sua configuração shakespeariana.
Elementos literários e cênicos e seus Aspectos Políticos em
Sonho de uma Noite de Verão
O drama elisabetano, como se sabe, estrutura-se sobre um conjunto,
mais ou menos uniforme, de convenções estéticas e dramáticas moduladas
por usos poéticos específicos que são determinados, com maior ou menor
ênfase, por convenções retóricas. Essas convenções são apropriadas
principalmente das releituras de Cícero, Quintiliano e dos escritos normativos
elisabetanos, sobretudo de The Arte of Rhetorique de Thomas Wilson, obra
publicada em 1553 e republicada com revisões e melhorias em 1560.5 É nas
nuances de jogos retóricos transfigurados na dinâmica cênica que se percebem
os primeiros traços do conflito ora analisado. Tome-se, a princípio, o diálogo
entre Teseu e Egeu, pai de Hérmia, ao qual assistem Lisandro e Demétrio:
Triste, trago uma queixa a Vossa Graça
De minha filha, Hérmia. Vem cá, Demétrio.
Meu senhor, dei a este homem a mão dela.
Vem, Lisandro. Mas este, meu bom Duque,
Foi quem o coração enfeitiçou
Da minha menina. Tu, tu, Lisandro,
Fizeste rimas para ela; trocaste
Presentes de amor com ela. Cantaste,
Sob o luar, frente à sua janela,
Versos de falso amor com voz fingida.
Tomaste para ti suas fantasias
Com anéis, flores, doces, ninharias
E pulseiras feitas de teu cabelo –
Tudo para persuadir a inocente.
Roubando o coração de minha filha,
Tu fizeste da obediência dela
Para comigo rude teimosia. (1.1.22-38)
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Com essas palavras, o pai queixa-se da desobediência da filha
motivada por sua paixão por Lisandro, que teria, seduzido Hérmia. Opõemse, assim, as normas sociais (nómos), personificadas na argumentação racional
de Egeu, e desejo natural de Hérmia de casar-se com quem escolher. Pela
racionalidade de Egeu, refiro-me àquilo que os elisabetanos chamavam wit,
isto é, o julgamento racional construído pela elaboração inteligente do
pensamento com base nas informações apreendidas e processadas pelos
sentidos, e, portanto, diferente, nesse contexto, do sentido de “sagacidade”
dado a esse vocábulo atualmente. Também utilizo o termo “desejo” de acordo
com o sentido daquela época, qual seja, o de desejo natural e biológico
transposto em ações e atitudes sociais — como, por exemplo, na frase, ainda
hodierna, will you marry me?, enunciação da vontade que se consolida
culturalmente no casamento.6 Como se vê, o que está em jogo, então, é uma
questão convencional: a aceitação pela filha da vontade de seu pai
especificamente quanto à escolha de seu marido, o que acata uma norma
social ao contrariar o seu desejo natural. Todavia, a recusa de Hérmia em
obedecer a Egeu, leva-o a evocar a lei como forma de imposição de sua
vontade, conforme se vê na continuação da fala supracitada:
Assim, oh, meu bom Duque, se ela, agora,
Não consentir em aceitar Demétrio,
Perante o senhor, eu exijo antigo
Privilégio de Atenas. Sendo minha,
Ela terá de escolher: esposar,
Cá, este homem ou morrer — é a lei. (1.1.39-44)
Descrevem-se a lei — a filha deve casar-se com o homem escolhido
para ela por seu pai — e a pena de morte, caso seja ela descumprida.
Entretanto, a essa fala o Duque Teseu responde em tom conciliador,
buscando convencer Hérmia da necessidade em manter-se a convenção há
tempos estabelecida. Para tanto, Teseu assume uma postura didática, sem
evocar, a princípio, a lei:
O que me dizes, Hérmia, então? Mas, sabe:
Teu pai é pra ti como um deus; aquele
Que te fez, que te adornou, que entalhou
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Tua figura como se fosse cera.
Pois pode ele, também, desfigurar-te.
Depois, Demétrio é um bom cavalheiro... (1.1.45-50)
A justificativa de Teseu para que Hérmia acate a decisão de Egeu
fundamenta-se na tradição e no mito. Com efeito, remete ao poder de ação
do pai/deus que forma a figura da filha à maneira da mitologia greco-romana,
em que o elemento masculino é representado pela ação (causa), e o feminino
por paisagens ou elementos naturais (matéria) que são modificados pelo
primeiro. Hérmia, contudo, questiona as palavras do Duque dizendo que
Lisandro é tão bom quanto Demétrio e apresentando, enfim, sua recusa:
Pois o perdão de Vossa Graça peço.
Não sei que força me dá tal coragem
Nem como minha razão me permite,
Mas cá falarei somente o que penso:
Imploro que Vossa Graça me diga
Qual o pior mal que pode ocorrer-me,
Se eu recusar-me a casar com Demétrio. (1.1.56-62)
Típica do drama shakespeariano, a repetição de determinada
informação com palavras diferentes, às vezes na fala de outra personagem,
facilita a compreensão da trama pela platéia, além de permitir que seus
desdobramentos sejam paulatinamente apresentados. No momento em que
se ouvem essas palavras de Hérmia, na fala supracitada de Egeu a morte já
havia sido anunciada como pena para o descumprimento da lei que lhe outorga
supremacia na decisão acerca do marido da filha, embora Hérmia agora
inquira a mesma informação frente ao Duque, que lhe responde:
Ou morrer ou isolar-te, para sempre,
De toda a sociedade. Portanto, Hérmia,
Duvida de teus desejos. Senão,
Agüentarás um hábito de freira,
Em um claustro mofado, a cantar hinos
Tristes para a lua distante e fria —
Uma freira infértil por toda a vida.
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Muitas bênçãos àquelas que conseguem
Deter seus desejos em celibato.
Mas cá, na terra, são bem mais felizes
As rosas desabrochadas que aquelas
Que, com sua espinhosa virgindade,
Crescem, vivem e morrem sós e sacras. (1.1.63-75)
Esta fala demonstra alguns traços da figura do Duque: absolutista,
posto que ciente de sua prerrogativa de assumir a lei em sua própria pessoa,
e defensor de uma posição anglicana.7 Como se sabe, seu belíssimo libelo
contra a virgindade é arraigado nas noções anglicanas de vontade própria e
pela ausência da obrigatoriedade do celibato por partes de seus representantes
religiosos, o que é, também, um elemento da modernidade, pois o
anglicanismo contrasta-se, na Inglaterra, ao catolicismo da igreja medieval,
por isso mesmo chamado de velha religião.8 Com isso, a morte, que era a pena
única prevista na lei ateniense, passa a ser vista com relativismo, ao passo
que o celibato, meio de isolamento social, surge como pena alternativa. As
penas propostas são imediatamente analisadas pelo Duque que, à sua função
de determinação dos fatores determinantes do que é justo, associa, com
índole paternalista, a função de conselheiro, decidindo pelo celibato como
pena mais apropriada e pedindo que Hérmia questione a própria vontade dela.
Em termos cênicos, Shakespeare facilita a compreensão da trama
pelo público ao atribuir a uma figura régia a função paterna, a despeito de
sua representação configuração específica em termos hierárquicos e de
nomenclatura político-social. Assim, um princípio fundamental da
shakespeariana é que, uma vez no palco, o monarca atrai para si as atenções,
concentrando a ação mesmo quando não é personagem central na trama. É
o que se observa, por exemplo, no Príncipe de Verona em Romeu e Julieta, que
representa a palavra de ordem em relação à guerra civil entre os Montéquio
e os Capuleto. Também o Duque, no Sonho..., assim como Júlio César, na
peça shakespeariana a que dá nome, representa um papel que tem
configuração cênica similar àquela dos reis nas peças históricas de
Shakespeare, ainda que nestas o problema da trama se relacione, na maioria
das vezes, a complicações que afetam a estabilidade política e social, quando,
direta ou indiretamente, o monarca é ameaçado. Isso se vê, por exemplo, em
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Henrique V, em contraste a Romeu e Julieta, em que a guerra, por ser civil em
vez de militar, não traz uma ameaça direta ao governante. Com efeito, a
definição de monarquia utilizada por Antonio Candido no exame de outra
peça de Shakespeare, Ricardo lI, é também útil na presente descrição das
funções públicas de Teseu, qual seja: “(...) a estrutura do mando pressupõe
três elementos: um princípio geral que o justifica; uma função que o encarna;
uma pessoa que o exerce. No caso desta peça [Ricardo II], o princípio é o
direito divino dos reis, inato e de ordem biológica, pois é hereditário e se
transmite pelo sangue; a função é a realeza, que depende de uma unção no
momento da investidura e é de caráter religioso; a pessoa é Ricardo
Plantageneta...” (CANDIDO, 2000, p. 89).
Quanto ao Sonho..., conquanto não-católico/medieval seja o seu teor,
na enunciação acima se percebe a configuração do absolutismo monárquico
medieval por meio de uma característica que lhe é fulcral, qual seja: os plenos
poderes do monarca que, representado no palco pelo Duque, pode inclusive
limitar a liberdade individual daqueles que são por ele governados. Os atos
políticos de Teseu remetem ao princípio romano do quod principi placuit habet
vigorem legis (“o que agrada ao príncipe tem força de lei”), principalmente no
exercício do poder em que o monarca tem plenos poderes, ou seja, a plenitudo
potestatis fundada no direito romano-canônico (RIBEIRO, 2004, p. 56). Por
isso, muitos dos monarcas shakespearianos configuram-se como reis
medievais e diferem do absolutismo monárquico moderno, conforme
concebido por Thomas Hobbes, em que “os poderes do governante não
esgotam os dos súditos” (RIBEIRO, 2004, p. 56). Ademais, o medievalismo
de Teseu também se afirma por seu exercício da iustitia centrada em sua
própria figura independentemente de legisladores, uma vez que “... uma
característica essencial da modernidade”, conforme lembra Renato Janine
Ribeiro, “é exatamente a da substituição da iustitia (...) pela jurisdição” (2000,
p. 103).9
Nesse contexto, conflagrada entre a posição moderna de liberdade
individual que se apresenta à filha de Egeu e o sistema medieval encarnado
por Teseu, a trama sofre uma reviravolta quando Hérmia corajosamente
declara que, nas circunstâncias que se lhe impõem, ela deverá tornar-se
celibatária até a morte:
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Assim hei de viver até a morte.
Prefiro, Vossa Graça, a virgindade
A me curvar à vontade de alguém
Que pretende comandar meus desejos. (1.1.76-79)
Essa atitude é uma resposta à alteração da pena que Teseu faz
relativamente à lei, instaurando o celibato como uma opção alternativa à
morte. Com isso, a individualidade de Hérmia, que parece se realçar em sua
afirmação dos próprios desejos em detrimento da tradição que os outorga a
seu pai, é aparentemente afirmada. Mas não o é de fato, uma vez que o
apagamento da individualidade de Hérmia é proferido em tons retóricos
quando o caráter paternalista do Duque afirma-se frente a ele a pedir-lhe:
Pensa um pouco mais, até a lua nova.
Pensa até o dia em que minha noiva
E eu juraremos nosso amor eterno.
E, neste dia, prepara-te: ou morres
Pela desobediência a teu pai,
Ou aceitas casar-te com Demétrio,
Ou proferes, lá no altar de Diana,
Os teus votos de virgindade austera. (1.1.80-87)
As funções públicas e privadas confundem-se, pois, na figura do
monarca absolutista que, após acrescentar uma pena alternativa à lei,
aconselhar que Hérmia faça a opção por esta pena e argumentar em tom
paternalista para tanto, prolonga, frente à escolha contrária da moça, o tempo
da decisão dela com base em um evento pessoal, seu próprio casamento.
Enfim, no dia das núpcias do Duque, a decisão de Hérmia deveria, portanto,
levá-Ia à morte, conforme a pena original da lei, ou a se transformar em
freira, consoante a pena alternativa introduzida pelo Duque, ou casar-se
com Demétrio, acatando a vontade de seu pai.
O que se segue são diálogos entre Demétrio, Hérmia, Lisandro e
Egeu em que se contrastam argumentos que convençam Hérmia a casar-se
com Demétrio ou que façam com que Egeu e Demétrio aceitem o matrimônio
entre Lisandro e ela. Por fim, Teseu chama Demétrio e Egeu a fim de atribuirIhes tarefas relativamente a seu casamento, e, antes que saiam, diz:
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Fica, então, pronta para te ajustar
À vontade de teu pai. Do contrário
Nossa lei de Atenas conduzir-te-á
— Pois ela não pode ser extenuada —
Ou à morte ou ao celibato... (1.1.114-118)
Note-se que o Duque, embora hábil na criação de uma pena
alternativa ao descumprimento da lei, coloca-se na posição de quem não
pode alterar a própria lei (“ela não pode ser extenuada”), cabendo-lhe,
portanto, decidir apenas quanto à aplicação da pena, quando da falta do
cumprimento da mesma. O pronome “nossa” é, a princípio, estratagema
shakespeariano para lembrar sua platéia, composta em sua maioria de
analfabetos, de que a trama se passa na Grécia, mas é indicativo também do
posicionamento do Duque em relação à tradição. Trata-se de conceber sua
existência como monarca pela regência de convenções culturais (o nómos) às
quais se pretende, no absolutismo, imprimir certo caráter natural. A lei de
Atenas além de apresentar essencialmente a afirmação da figura paterna,
seria arquetípica e, ipso facto, anterior ao próprio Duque. A própria posição
monárquica de Teseu é igualmente determinada por questões que se atribuem
a fatores naturais, visto que se originam de uma escolha divina estabelecida
por correspondências consoante o sistema cosmológico medieval. Em grande
parte devido às textos de Platão, sobretudo ao Timeu, conforme explica
Tillyard (1966), esse sistema foi herdado com simplificações pela sociedade
inglesa do início da modernidade. Nele, o rei ocupa posição capital, análoga
ao sol em relação aos planetas e à cabeça relativamente às demais partes do
corpo humano, representação que é mencionada por Renato Janine Ribeiro
ao analisar a política medieval em aspectos que se mostram relevantes para
o presente exame da aplicação da lei ateniense no Sonho.... Segundo o filósofo,
(....) o poder absoluto do rei não é o que é executado ou convertido para
uso privado, para benefício geral do povo; é salus populi; pois o povo é o
corpo e o rei, a cabeça; e este poder não é guiado pelas regras que governam
apenas a common law, e seu nome apropriado é polícia e governo; e, assim
como a constituição deste corpo varia com o tempo, assim varia esta lei
absoluta, segundo a sabedoria do rei, para o bem comum; e, estas sendo
regras gerais e verdadeiras como aquelas [=as leis do poder ordinário],
270
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todas as coisas feitas de acordo com elas são legais.” (RIBEIRO, 2000, p.
136)
Nesse contexto político, na peça shakespeariana evidencia-se não
somente a legalidade das ações de Teseu, mas também o fato de que é
esperado que ele o faça para, assim, cumprir suas funções monárquicas
adequadamente. Todavia, se o Duque ocupa a posição política que lhe permite
uma aplicação privilegiada da lei ateniense, ele não pode retirar dela uma
limitação geográfica importante, a saber, ela somente tem validade em Atenas,
onde vigora o mando de Teseu. Conforme se apreende das falas de Lisandro,
os jovens estariam imunes ao efeito da lei ateniense na casa da tia dele, que
se encontra a sete milhas de Atenas, aonde ele pretendia ir com Hérmia para
que pudessem casar-se às escondidas. Para que pudessem realizar o seu
plano de fuga, os jovens deveriam atravessar um bosque nos arrabaldes de
Atenas, onde a presença dos seres feéricos interfere em seus desígnios e cria
uma série de outras reviravoltas na trama.
Paralelo a este, humano e regido por leis, abre-se um outro plano de
ação, no qual Oberon e Titânia, o Rei e a Rainha das fadas, estão brigados.
Como se sabe, Oberon ordena que Puck, seu elfo ajudante, goteje nos olhos
de Titânia, adormecida, o sumo de uma flor que faz com que a pessoa, ao
acordar, se apaixone pelo primeiro ser vivo por ela visto. Ao presenciar uma
discussão entre Demétrio e Helena, em que o rapaz demonstra sua aversão
pela moça, Oberon também ordena que Puck goteje o sumo da flor — o
amor-perfeito, ou love-in-idleness — nos olhos de Demétrio, a quem se refere
como “rapaz ateniense”, de modo que ele passe a amar Helena. Puck
confunde Demétrio com Lisandro e, utilizando a flor mágica nos olhos deste
e, depois, ao tentar corrigir seu erro, também nos olhos de Demétrio, faz
com que ambos se apaixonem por Helena. Por sua vez, Lisandro passa a
recusar a presença de Hérmia. Descoberto o erro de Puck, Oberon comanda
sua reversão pelo poder de outra flor, a flor de Diana, deusa da castidade,
que serve de antídoto ao amor-perfeito, atribuído a Cupido. Puck, então,
leva Lisandro a amar Hérmia novamente, mas Demétrio continua sob o
efeito da flor, de modo que se formam dois casais apaixonados: Hérmia e
Lisandro; Helena e Demétrio.
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271
Essa ação de Puck resulta na alteração da vontade dos jovens de
maneira inerente à vontade deles, o que requer que se entenda tanto a noção
elisabetana de desejo quanto à de imaginação, pois é em seus meandros que
se concretiza a índole absolutista de Teseu. Em termos simplificados, mas
suficientes para a presente exposição, o desejo era concebido à época como
um estado d’alma motivado por elementos da realidade que eram percebidos
pelo indivíduo por meio de seus sentidos. Assim, o perfume de uma flor
(um elemento da realidade), quando apreendido pelo olfato, criaria na mente
de um indivíduo a imagem desta flor ao mesmo tempo em que desencadearia
uma seqüência de outras imagens (da primavera, do acasalamento, do amor,
etc.) que engendraria, enfim, o desejo amoroso. A esta seqüência de imagens
denominava-se imaginação, palavra oriunda do latim imaginatio, o processo de
construção mental de imagens ou imagines, plural de imago. A localização de suas
imagens momentâneas e efêmeras apreendidas pelo sujeito se localizaria na região
frontal do cérebro, onde também se processaria o desejo em seu imediatismo.
Assim, ao passo que as imagens duradouras estariam guardadas na parte posterior
do cérebro, onde se acharia a memória, o desejo estaria bem à frente, volúvel e
sempre modificado por novas imagens advindas de aspectos diversos da realidade,
inclusive aqueles ilusórios, advindos das artimanhas de Puck.
Como se vê, a imaginação e o desejo poderiam ser determinados
por outros elementos, de caráter místico mais do que empírico, que afetariam
as atitudes do sujeito. Por isso, é conveniente ressaltar que o protestantismo
religioso, apropriando-se de Aquinas,9 concebia, então, a possibilidade de
que imagens fossem implantadas na mente humana por atos demoníacos
sem que para elas existissem correspondentes na realidade. Dessa maneira,
induzido por um demônio, um indivíduo poderia nutrir em sua mente a
figura de um objeto qualquer que não fora percebido pelos seus sentidos, ou
seja, que não foi realmente visto. Nesse caso, a imagem implantada em sua
mente seria verdadeira (posto que ela existe para ele, único a enxergá-la), mas
não seria real, pois não há objeto algum na realidade que tenha sido capturado
pelos sentidos desse sujeito para produzir-lhe essa imagem mental. Por
conseguinte, tal imagem passava a ser chamada de phantasma (fantasma é
palavra grega para “visão”, “aparição” e, por conseguinte, também para
“sonho” e “fantasma”, “espectro”) por causa da ausência de enlace entre si
mesma e o real.10
272
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Assim, é justamente entre a indução sensorial de imagens mentais e
a geração maligna de outras imagens na mente que Puck opera sua
manipulação do desejo de cada um dos quatro jovens no palco, repleto de
construções pictóricas lingüisticamente criadas e moduladas.11 Para tanto, o
elfo vale-se de um objeto natural (a flor) para extrair dela um efeito mágico
(o poder ilusório de seu sumo) capaz de induzir os indivíduos a verem
aspectos da realidade que não veriam normalmente, uma vez que se cria em
cada um deles uma paixão pré-determinada. A imaginação (imaginatio) passa
a ser conduzida pela ilusão, pelo que seria chamada de fancy, ou seja, a paixão
fruto do encantamento, muito próxima dos phantasmata religiosos em sua
ausência direta de liames que o atem à realidade das coisas.
Recorde-se, a propósito, que o próprio Demétrio muda seu pedido
em relação a Hérmia, por preteri-la, enfim, por Helena, uma vez que termina
a peça, diferentemente das demais personagens, ainda sob o efeito da flor.
Isso tudo também corrobora a asserção de Eagleton (1986, p. 33) de que a
noção de amor na peça é mais propriamente descrita pela idéia de ilusões
que se interpõem. Essas ilusões, contudo, não impedem o Duque de avaliar
as novas circunstâncias que se lhe impõem e que, enfim, não se afaste da
iustitia, inserido que está em um sistema político, conforme representado no
palco elisabetano, ainda a estruturar-se sobre o sistema político e cultural da
Idade Média.
Assim descrito a partir de seus elementos cênico-literários e de sua
contextualização política, o problema legal ora analisado pode ser melhor
entendimento à luz de alguns aspectos da filosofia, que, nesse caso, se
relaciona diretamente aos aspectos políticos da peça.
A lei ateniense à luz da filosofia
Nos termos descritos acima, a lei ateniense, conforme representada
no Sonho..., constitui uma noção legal, termo mais apropriado, nesse caso,
que concepção, dada sua origem popular mais que teórica. Na filosofia do
direito, a ausência de uma formulação específica para uma lei — conforme
comprovei acima ser o caso da lei ateniense — leva à discussão entre forma
e substância, algo que se mostra útil ao entendimento dos aspectos políticos
ora analisados. A saber, as relações entre forma e substância da lei ateniense
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
273
na peça indicam uma substância essencial que dá a conhecer o teor da lei,
embora não possua uma formulação específica e definida, pelo que permite
que o Duque altere, segundo sua vontade e com suas palavras, alguns de
seus aspectos.
O conceito de substância essencial fundamenta-se em Aristóteles,
que utiliza o termo ousi/a para “substância”, termo que remete ao particípio
presente substantivado do verbo ei)mi/, “ser” e similar, portanto, à palavra
latina essentia, de esse, “ser”, ou seja, a qualidade ou propriedade daquele que
é, que existe. A alusão à filosofia aristotélica em relação à lei ateniense é útil
principalmente para que se possa recuperar uma discussão oportuna,
engendrada pelo jurista norte-americano Robert Summers, relevante aqui
pelo que ela pode contribuir para o entendimento da lei em Shakespeare.
Veja-se a descrição do problema proposto por Summers conforme análise
de P. Soper:
The distinction between form and substance traces at least to Aristotle who used the
term to draw attention to the purposive arrangement of human artifacts in explaining
their causal origins. (…) Consider, e.g., a vase made of clay. Aristotle would have
explained that to fully understand the origins of this object, one needs to distinguish,
not only the material cause (the clay), but also the formal cause (the shape, purposely
designed to hold water and/or flowers). This analogy to physical shape as form nicely
fits Summers’ suggestion that form and substance are independent concepts that can be
sharply differentiated. One can change the shape of the vase, while leaving the substance
unaltered. Or, one can hold the shape constant and change the substance—the vase can
be made of glass or wood or metal. And in both cases the overall purpose (constructing
a container that will hold water and/or flowers) becomes the measure of success: Poor
form will yield a poor vase, as will an ill-considered substance (a vase made of porous
material?). Compare, now, this commonsense idea of the distinction between form and
substance with legal phenomena. Consider, in particular, the example that seems to
figure more often than any other in Summers’ analysis: that of the legal precept that
can have varying degrees of definiteness. Shall we set the speed limit (or the retirement
age) at 65, or shall we set it at “a reasonable speed” (or age)? Here the form is one of
definiteness and the substance is the designated speed limit. Now it is clear that we can
keep the form of definiteness constant, while altering the content (changing the speed
limit to 55 or 70, as Summers is quick to point out…) But note that, unlike the vase,
we cannot easily do the opposite: We cannot keep the substantive content (65 mph) the
same, while changing the form of definiteness. In the case of the vase, we can see both
274
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form and substance as independent, keeping the shape the same while changing the
content from clay to glass or vice versa. But in the case of the legal precept, the
substantive policy decision—65 mph should be the maximum speed — automatically
carries with it the correlative form. Substance, it seems, carries form in its wake.
(SOPER, 2007, p. 58-59)
À luz desse raciocínio, pode-se dizer que, por um lado, conforme
configurada na peça shakespeariana, a lei ateniense apresenta os elementos
primordiais tratados por Aristóteles na Metafísica, quais sejam: uma substância
que, como o vaso de argila, faz-se na matéria primeva, amorfa em sua essência
(no sentido de que não se lhe apresenta uma formulação definida) e concebida
pela sociedade em algum momento passado. Uma vez acatada pela tradição
e considerada natural — também em oposição ao antinatural, ou unnatural,
que induz a maus governos, como se vê em Macbeth —, esta lei é feita
presente, pela linguagem, em uma situação prática e definida: o direito de
um pai em impedir o casamento de sua filha com o homem que ele pretere
por outro, com quem deseja que ela se case.
Conforme descrita na peça, essa situação não dista, em termos legais,
do exemplo supracitado que se refere aos limites de velocidade em uma
rodovia contemporânea. Em ambos os casos, não há uma restrição
determinada por números. Nesses termos, a trama da peça aproxima-se dos
limites de velocidade de uma rodovia contemporânea, como em parte do
exemplo supracitado. Primeiro, porque em ambos os casos não há uma
restrição definida numericamente, pois a velocidade pode ser determinada
por aquilo que é “razoável” (reasonable) ao passo que, por exemplo, a Hérmia
não se impõe certa idade que ela deveria atingir para poder casar-se. Ambas
as leis, contudo, tem uma substância essencial (ou)si/a) que, para vigorar, é
transposta em aparência perceptível (o que Aristóteles chama ai)sqhto/j,
correlato a “estética”, ou seja, a apreensão de perceptos pelos sentidos),
inserida no contexto social a que pertence. No primeiro caso, há um limite
de velocidade, qualquer que seja ele, ao passo que um indivíduo a trafegar
na rodovia em questão deve saber que não cabe a ele determinar a velocidade
de seu veículo conforme sua vontade, mas, sim, de acordo com a lei. No
caso da peça, a ausência de uma formulação específica para a lei ateniense
não impede que se conheça a sua substância essencial: a filha não pode
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
275
desobedecer a vontade do pai especificamente no que tange à escolha do
homem com quem deseja se casar.
Por conseguinte, se a substância traz em si a forma da lei, conforme
defende Soper, a ausência de uma formulação definida permite, na peça,
que o Duque modifique a pena e os modos de aplicação da lei. Assim ele
mantém sua substância sem parecer alterar sua forma, que parece continuar
imbuída nessa própria substância. Como se estivesse a modelar algum barro
primevo, alterações na aparência final, que dele se tornam atributos (sumbai/
nw é o termo utilizado por Aristóteles na Metafísica), são feitas na forma, de
modo que, como um vaso abstrato e ideal, a lei ateniense forma-se por
contornos determinados pelo julgamento do monarca acerca dos fatos e é
confundida com o julgamento do Duque. Em suma, a lei que Teseu aplica é
a lei ateniense, conquanto divergente ela seja, sobretudo na descrição da
pena, de sua forma original. Por ser amorfa, visto que isenta de uma
formulação específica, a lei, no contexto específico de sua aplicação pelo
Duque, pode ser pontualmente reformulada, principalmente quanto à
aplicação da pena por ela prevista.
Considerações finais
Às reviravoltas da trama ora descritas subjaz algo bem simples em
termos políticos: a corroboração, em última instância, do absolutismo
monárquico devidamente exercido por Teseu. Como já demonstrei, o Duque
rege sua comunidade política pelo princípio medieval da iustitia, um
desdobramento da assimilação de funções públicas e privadas que se
confundem em sua figura.
Associada a esses fatores e em grande parte deles decorrente, a
evidência mais relevante para a função absolutista de Teseu é que ele,
exercendo politicamente seu juízo, mostra-se hábil no julgamento do
problema trazido por Egeu e, sobretudo, capaz de reinterpretar as alterações
nos fatos com vistas a um novo julgamento. Ainda que a nova realidade das
coisas seja fruto da ação das fadas, estas não afetam o Duque diretamente.
Além de sequer acreditar na existência de seres feéricos, em momento algum
Teseu é vítima dos efeitos mágicos da flor nem de qualquer outra forma de
ilusão. Para ele, a alteração no comportamento dos jovens constitui uma
276
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simples reordenação, conquanto inusitada, inexplicável e misteriosa, da
disposição dos eventos que se lhe apresentam. Dessa maneira, o poder
absolutista de Teseu apresenta também traços divinos — consoante o direito
divino dos reis —, posto que ele se mostra acima da força pagã da magia
feérica, ao menos de maneira direta. Por outro lado, simultâneo a esses traços
medievais, Teseu apresenta posições de cunho anglicano, ipso facto, modernas.
O caráter paternalista do Duque, em cuja pessoa confundem-se as
funções de pai e de rei, é reafirmada no final da trama, quando Hérmia
mostra-se subjugada a ele. Afinal, é Teseu que favoravelmente concede a ela
o casamento com Lisandro e que determina que a celebração dessas núpcias
ocorra na mesma cerimônia na qual ele esposará Hipólita, quando também
se casarão Demétrio e Helena. Assim se evidencia, mais uma vez, a relação
intrínseca, aqui examinada, entre a cronologia dos eventos sociais e a agenda
pessoal do monarca que os determina.
Como se vê, sem ter-nos legado ensaios nem defendido pessoalmente
correntes ou preceitos políticos ou religiosos em suas peças, Shakespeare
embebe suas tramas de elementos culturais e sociais que refletem a transição
do medievo para a modernidade, bem como inúmeros conflitos do indivíduo
moderno. Sob os invólucros estéticos que dão movimento cênico à trama do
Sonho..., os aspectos políticos da shakespeariana vêm à tona quando a teoria,
aqui haurindo aspectos do pensamento filosófico, coaduna-se com a crítica
literária para lançar luz sobre a sua atualidade. E esta, veiculada pela
abrangência cultural do teatro, motiva o questionamento também do sujeito
contemporâneo.
Notas
1
Uma versão embrionária deste texto, bem menor e restrita a questões legais em
sua transfiguração literária, foi apresentada no Seminário Direito e Literatura,
realizado no segundo semestre de 2006, na PUC-Minas, com organização do
programa de pós-graduação em Direito daquela instituição. Aqui, todas as citações
da peça de Shakespeare provêm da edição SHAKESPEARE, William. Sonho de
Uma Noite de Verão. Tradução, introdução e notas de Erick Ramalho. Belo
Horizonte: Tessitura Editora, 2006, sendo indicadas apenas pelos números do
ato, da cena e dos versos.
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277
2
Ademais, não cabe ao literato a justificativa, mais confortável do que sólida, da
impossibilidade exegética da interpretação, asseveração devidamente derrubada,
dentre outros, por Stephen Davies (2006, p. 223-247) em seu ensaio “Authors
Intentions, Literary Interpretation, and Literary Value”.
3
A esse respeito, convém asseverar: “Some recent essays and articles published
both in the Cambridge Quartely and in The British Journal of Aesthetics have reassessed
postmodernism through readings with twofold aims: i) to locate features now
considered postmodern in classic texts, thereby assuming their existence before
the postmodern concept itself; ii) to demonstrate that, while profitable as a landmark
of difference, postmodernism criticism can be lost in its playfulness and cover
misreading caused by lack of erudition of interpretative skills to be accepted and
legitimated by some sort of widespread trend. Of these texts, the most direct in
dealing with the second point seems to be Paul Crowther’s ‘Defining Art, Defending
the Canon, Contesting Culture’, in which he puts himself against ‘a fashionable
cultural relativism that is sceptical about the objectivity of aesthetic and canonical
values’ promulgated by ‘that transdiciplinary mélange sometimes called ‘theory’ (…)
inspired in general terms by Foucault’ (CROWTHER, 2006, p. 362). Crowther
locates the origins of such procedure in a globalisation context through ‘discursive
practices’ that ‘(…) are presented as a general way of understanding all cultural
products. Every activity % including artifice and representation % is cleansed of
its concreteness and/or physicality and repackaged as a mode of meaning or
signification’ (CROWTHER, 2006, p.365), which leads artwork, literature being
an example of it, to be interpreted from this ‘consumerist’ viewpoint within strict
social readings – for which an example of my own might be the overuse of the
terms ‘negotiation’ and ‘negotiating’ in recent literary studies.” (RAMALHO, 2007).
4
Meu presente escopo é o da crítica literária voltada ao texto dramático, pelo que
tomo a lei aqui como prática social e política de maneira mais simplificada do que
aquela que se utiliza nas discussões sobre o assunto realizadas por teóricos do
direito. Não se deve ignorar, entretanto, que o conceito de lei é vasto e diversificado,
como se vislumbra brevemente nesta explicação:
There are at least two ways in which a pre-theoretical concept of law may influence the specification
of a field of enquiry. First, law is a complex and fluid sphere of practices, norms, reasoning and
ideals; it is conceptually broader than any individual theory of law sensibly can accommodate.
For this reason part of the task of legal theory will be to reduce “law” in its broadest possible
sense to certain parameters. This reduction may be enabled by one’s pre-theoretical commitments,
i.e., a field of enquiry may be preferred simply because it represents best what one has always
taken law to be. In this way some may hold a concept of law that is heavily connected to the type
of people they consider central to law, others may focus on institutional relationships others on
278
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legal ideas and some may think about rules and obligations (DONNELY, 2007, p. 3).
Ainda que não alheia a essa diversidade, ora me concentro na dimensão política da
aplicação da lei na representação teatral shakespeariana em detrimento de definições
precisas do conceito de lei.
5
A retórica era, à época, “the major theory and practice of the arts of language including
above all poetry” (SLOANE, 1974, p. 213). Assim, enquanto “The rhetor assumes a
stance to achieve the aims of his oratory (or writing), and stance implies not the frequent modern
blunder that literature is identical to the spontaneous, highly emotive, and directly candid personal
experiences which have given rise to that literary expression, but instead it indicates that the
orator has chosen a point of view, a strategy, a set of techniques or devices, perhaps specific
language to enhance his chances for success” (SHAWCROSS, 1974, p. 5). Trata-se de uma
“… renaissancistische Vereinigung von Dichter und Redner, das Ideal des poeta-orator”
(PLETT, 1993, p. 227). Alhures, Sloane acrescenta que “... disputation was a prominent
educational activity in that year of Shakespeare’s birth [in 1564, when Elizabeth I visited
Cambridge] and remained so, at lest through the age of Milton” (SLOANE, 1993, p. 174).
A relação entre poética e retórica nestes termos é ainda corroborada por W. Müller:
“In der Renaissance beeinfluâten sich Rhetorik und Poetik gegenseitig so intensive und verbanden
sich so eng miteinander, daâ die beind Disziplinen, die sich schon in der Antike einander stark
angenähert hatten, vielfach kaum noch unterscheidbard waren” (MÜLLER, 1993, p. 225).
Para tanto, Müller (1993, p. 225) cita como exemplo o tratado de poética de
Puttenham: “In seiner Verteigigung dr Berechtigung rhetorischer Figuren in poetischer Rede
bezieht sich Puttenham (...) auf ide forensische Rhetorik und idenfiziert den Dichter mit einem
Amwalt (‘pleader’), der eine Rechtssache (‘cause’) vertritt und das höfische Publikum als seine
Richter (‘judges’) durch das Mittel wirksamer Rede (‘efficacy of speach’) zu überzeugen (‘dispose’)
versucht. . .”.
6
A esse respeito, Peter Mercer (1984, p. 194) lembra que, “In a sense, Othello’s first
mistake is to attempt to involve himself in society in the most symbolically central manner — by
marrying”.
7
A identificação de características anglicanas que ora faço não desconsidera a
presença significativa de elementos do catolicismo na shakespeariana. Meu presente
intento é apenas demarcar, em termos sociais que contrastam o início da
modernidade com a Idade Média, sem, naturalmente, perder de vista que não
existe uma “quebra” entre o medievo e o início da modernidade, mas uma
continuação com modificações. Logo, a religião é aqui considerada em sua dimensão
social e histórica. Diferentemente do que ocorre com John Milton, puritano poeta
que bem utiliza sua literatura como veículo de expressão estética de seus conceitos
teológicos, não é possível definir preceitos religiosos ou crença que Shakespeare
possa ter seguido em sua vida ou em sua obra. Conforme E. Quinn, “There are two
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279
major problems which arise in considering the relationship of religion and Shakespeare. The first
is the fairly concrete biographical problem of his religious affiliation, Anglican, Catholic, or
Puritan. The second is the not entirely unrelated, but more remote and conjectural, problem of
the religious values (or lack of them) which inhere in his plays. (…) As with most famous
Shakespearean conundrums, the facts concerning his denominational adherence have been obscured
by the prejudices and a priori theorizing of the commentators” (1966, p. 680). Contudo,
uma visão objetiva das peças de Shakespeare demonstra como se pode identificar,
em sua representação dos conflitos religiosos do início da modernidade, elementos
diversos das religiões então vigentes, sem querer, com isso, que Shakespeare tenha
preferido uma delas.
8
Com efeito, “na politéia medieval”, assevera Janine Ribeiro (2000, p. 177-178)
lendo Mcllwain e Helen Cam, “as leis não se faziam, mas se encontravam (havia
law-finders, não law-makers). Logo, em vez de legisladores, com a vontade servindo
de fundamento à sua ação, dispomos de diversas e vagas instâncias que reconhecem
ou declaram um valor supremo, a iustitia.”
9
Com efeito, “Angels, Aquinas had taught, are pure thought and, assuming a form not
unlike man’s, express that thought in ways not unlike human, verbal eloquence; whereas God’s
eloquence, St. Augustine had most forcefully argued, inheres in images, natural and supernatural
things, which mysteriously penetrate the soul” (SLOANE, 1993, p. 212).
10
Acerca das idéias que pervagavam o início da modernidade, período em que se
insere a vida e a obra de Shakespeare, ressalte-se que: Common sense compared the
individual data — described similitudes or images — gathered by the various external senses,
and perceived qualities such as size, shape, number and motion that fell under more than one
sense. Imagination stored these data before passing them on to fantasy, which acted to combine
and divide them, yielding new images, called phantasmata, with no counterparts in external
reality. Estimation accounted for instinctive reactions of avoidance or trust, while memory, finally,
stored not only the images derived from the external sense, but also the phantasmata and the
reaction of estimation; unlike imagination, however, it acted cum differentia temporis,
recognizing its contents as part of past experience. Because the internal senses were less bound to
the actual experience, they acted to bridge the gap between external sensation, limited to the
knowledge of particulars, and the highest cognitive operation of intellection, which dealt with
universals. (PARK, 1988, p. 470)
11
De fato, “Convém lembrar que a configuração espaço-temporal do palco
elisabetano é cênico-textual, isto é, deve-se a artifícios de efetivo poder de
convencimento pelo fingir (counterfeiting), já que o palco, apesar da peculiar arquitetura
que o torna locus de encenação ímpar (condição que é, em termos retóricos, aludida
ao chamar-se o palco, como em Henrique V, de scaffold), demanda recursos retóricos
frente à simplicidade dos recursos cênicos (...) (RAMALHO, 2002, p. 93). À guisa
280
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de exemplo, recorde-se que “When we come to Macbeth, we realise that most of its scenes
take place either at twilight or at night. To darken a sunny stage Shakespeare depended totally
on his verbal strength.” (ZYNGIER, 1984, p. 163).
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Artigo recebido em 20.05.2008.
Artigo aceito em 21.09.2008.
Erick Ramalho
Vice-Presidente do Centro de Estudos Shakespeareanos (CESh).
Editor-Adjunto do Selo CESh, da Tessitura Editora.
Tradutor da peça Sonho de Uma Noite de Verão de Shakespeare (Tessitura, 2006).
Tradutor de Beowulf (Tessitura, 2007).
Mestre em Literaturas de Expressão Inglesa (UFMG).
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OTELO E O ENGAJAMENTO
POLÍTICO-CULTURAL
DO FOLIAS D’ARTE∗
Célia Arns de Miranda
[email protected]
RESUMO: No espetáculo Otelo,
realizado pelo Grupo Folias D’Arte em
2003, a reflexão sobre o binômio texto/
contexto torna-se um procedimento
imperativo. Marco A. Rodrigues
(encenador), através da inserção das
músicas New York, New York e The End,
que desempenham uma função de
enquadramento épico e de comentário
crítico da ação, identifica o referente
contemporâneo ao estabelecer o diálogo
entre a cultura-fonte e a cultura-alvo.
ABSTRACT: In the stage adaptation of
Othello, realized by the theatrical
company Folias D’Arte in 2003, critical
reflection about text and context
assumes a crucial importance. The
director Marco A. Rodrigues succeeds
in finding a contemporary referent for
his production by inserting the songs
New York, New York and The End which
accumulate the functions of epic
framing and critical comment on the
action, thus establishing a dialogue
between source and target cultures.
PALAVRAS-CHAVE: William Shakespeare. Grupo Folias D’Arte. Políticas culturais.
Apropriação. Historicização.
KEY-WORDS: William Shakespeare. Group Folias D’Arte. Cultural Politics.
Appropriation. Historicization.
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Brecht “descobre em Shakespeare um dramaturgo não
apenas épico, mas também profundamente histórico.
Um teatro cujo objeto é além do destino do protagonista,
toda uma sociedade”.
Bernard Dort.
Ao optar por inserir na introdução do livro The Appropriation of
Shakespeare as palavras de Hans R. Jauss1 (1982, citado por Marsden, 1991,
p.9) de que uma obra literária não é um monumento que monologicamente
revela sua essência atemporal, Jean I. Marsden está enfatizando o fato de
que a permanência de uma obra reside na sua capacidade de influenciar e
ser influenciada (1991, p. 9). Essa é uma clara referência à necessidade humana
de construir mitos e de manipular esses mitos uma vez estabelecidos, o que
explica a motivação de muitos dramaturgos e diretores teatrais de se
apropriarem de uma obra do passado e de tentarem atualizá-la, deslocandoa para o contexto contemporâneo. No mundo dos estudos literários, a
apropriação textual é um processo necessário e inevitável: uma obra literária
estará exercendo influência, se as pessoas não deixarem de manifestar uma
reação diante dela, ou seja, se houver leitores que, novamente, se apropriem
da obra do passado, ou autores que desejem imitá-la, excedê-la ou refutá-la.
Através do ato de apropriação literária, a respectiva obra torna-se propriedade
alheia e essa é uma garantia de sua permanência através de sua re-invenção
(1991, p.1).
Quando Ben Jonson, um dos homens mais eruditos da era
elisabetana, escreveu sobre Shakespeare, dizendo que “he was not of an age
but for all time” (citado por Boyce, 1991, p. 323)2 ele não poderia ter
imaginado a implicação dupla de suas palavras: por um lado, esse verso
enaltece o eterno apelo de Shakespeare, enquanto que, por outro lado, ele
pode ser interpretado como a descrição de um processo literário de
apropriação cultural que já estava em curso naquele dado momento, no qual
cada nova geração tenta redefinir Shakespeare em termos contemporâneos,
projetando a sua própria ideologia nas peças e na elaboração mitológica do
autor (MARSDEN, 1991, p. 1). Realmente, o que impressiona em Shakespeare
são todas as leituras possíveis que seus textos permitem, o que confirma as
palavras de Gerd Bornheim, ao refletir sobre as tendências da arte da
encenação em relação às montagens shakespearianas:
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Chega a ser irônico, pois o que menos se tenta hoje é montar Shakespeare
no estilo elisabetano. Qualquer tentame nesse sentido certamente nem
poderia passar de mera curiosidade histórica a ser sepultada em algum
arquivo. Sem dúvida uma certa margem daquela atualidade de Shakespeare
se perdeu, e é a partir dessa perda que a situação se modifica, ou seja: as
leituras de seus textos se ampliam. O elemento novo está precisamente
neste ponto: há leituras, desamarradas agora de seu espetáculo conciso.
Passa, pois, a haver leituras. Assim é que a lendária e estrepitosa leitura
efetuada na virada do século pelo Duque de Saxe Meiningen de Júlio César
construiu-se justamente na perspectiva do tal arquivo histórico, com
arquitetos e arqueólogos a postos na própria Roma. Donde o problema: o
que é um texto como Júlio César? Uma peça romana do século I, uma
proposta singelamente elisabetana, ou um texto contemporâneo? O teatro,
e com ele o cinema, vem preferindo a primeira hipótese. Aparentemente,
tal abordagem pode até parecer um “progresso”, um modo de “atualizar”
Shakespeare precisamente por empurrá-lo para os idos romanos. Mas,
todas as contas feitas, por mais que se deplore, tais procedimentos trazem
consigo um pouco da maquilagem da máscara da morte. (1997, p. xvi)
Quando Charles Marowitz relata em seu livro Recycling Shakespeare
algumas de suas experiências como encenador, manifesta-se com veemência
contra o conservadorismo que é visto por ele como a força mais implacável
no mundo das artes, por tentar preservar velhas visões em detrimento das
novas. Ele reitera a sua tese, enfatizando o fato de que se os elisabetanos
tivessem sido conservadores em relação a Kyd, Holinshed, Sêneca, Whetstone,
Boccaccio e Belleforest, o mundo não teria conhecido Shakespeare. Se os
tradicionalistas tivessem vigorado, cada produção shakespeariana seria um
transplante inanimado da página para o palco e a originalidade e talento que
a mente contemporânea traz para os conceitos tradicionais seria menor, senão
inexistente (1991, p.26).
Marowitz, ao defender com veemência a possibilidade de apropriação
e transformação das obras shakespearianas, fala o seguinte:
Eu diria que quando um dramaturgo como Shakespeare nos fornece a
carne, é quase uma obrigação nossa acrescentar as batatas, as cebolas e o
tempero. A nossa tarefa é reproduzir, redescobrir, reconsiderar e olhar
sob um novo ângulo os clássicos − não simplesmente regurgitá-los. “Eu
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re-penso logo existo”, disse Descartes − ou, ao menos, ele deveria. (1991,
p. 24)
Interpretar uma obra de arte significa colocar ênfase em certos aspectos e
excluir outros: é por esse motivo que, apesar de haver centenas de produções
teatrais sobre uma determinada obra literária, as potencialidades do texto,
que são infinitas, não se esgotam. Cada produção provê apenas um insight
parcial e nenhuma produção, não importa o quão definitiva possa ser, pode
realizar todas as potencialidades do texto.
Dentro da conjuntura da apropriação textual, Anne Ubersfeld (2002,
p. 12) refere-se, com muita propriedade, ao fato de que “ler hoje é ‘des-ler’ o
que foi lido ontem. [...] [É permitido] compreender que a obra clássica não
é mais um objeto sagrado, depositário de um sentido oculto, [...] mas, antes
de tudo, a mensagem de um processo de comunicação.” A obra clássica,
inserida dentro do processo interativo de comunicação do teatro, portanto,
prevê a participação conjugada do emissor e do receptor na formulação da
mensagem, confirmando-se, por esse prisma, “a relatividade histórica das
leituras que se impõe ao pensamento.” (2002, p. 12) A partir desses
pressupostos, o espectador-leitor é levado ao esforço árduo para integralizar
o sentido que jamais é finito - “É assim que se refaz a teatralização dos
clássicos: pelo investimento do espectador na representação.” (2002, p.33)
Sob essa perspectiva, fazendo-se uma referência específica ao enfoque do
presente estudo, pode-se dizer que Shakespeare produziu a tragédia Otelo e o
encenador Marco Antonio Rodrigues, através do ato da leitura interativa e
recriativa, converteu esse texto clássico numa outra obra de arte, a versão
moderna de Otelo, realizada pelo Grupo Folias D’Arte em 2003 e 20043. O
resultado é uma incessante e recíproca interação do sagrado e do profano,
da arte erudita e popular, da linearidade clássica e da fragmentação do
pensamento, do humanismo renascentista e da modernidade asfixiante.
Entretanto, deve-se reiterar que, por esse viés, o pré-texto não mais fala, ele
é falado; ele não mais revela, ele é revelado; ele não mais significa, ele é
figurado metaforicamente.
Anne Ubersfeld, ao considerar que uma obra clássica é aquela que
não tendo sido escrita para nós, (2002, p. 9) “reclama uma ‘adaptação’ a
nossos ouvidos”, põe em evidência uma das questões cruciais na discussão
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da representação dos clássicos que, necessariamente, antevê a inclusão do
referente contemporâneo em função da escuta atual do receptor4. A partir
da percepção de que a tríade do processo comunicativo - emissor, receptor
e mensagem - sofreu modificações profundas, pergunta-se, se ainda é possível
uma forma tradicional de leitura e interpretação dos clássicos, sem que seja
realizada uma releitura histórica - a releitura do passado tem como propósito
a apresentação de uma leitura do presente. A leitura ideológica espontânea
que os contemporâneos de um certo texto teatral eram capazes de realizar,
vai reencontrar no presente uma outra proposta de leitura, em função do
desenvolvimento da história e da contribuição das ciências humanas, que
mudaram, radicalmente, o repertório do espectador-leitor dos séculos XX e
XXI (2002, p. 14-15).
Sabe-se que, hoje em dia, não é mais possível considerar o autor o
único emissor de uma produção teatral. Ubersfeld chama de ‘práticos’ (2002,
p. 13) todo o conjunto da equipe envolvida, ao lado do autor, na produção
do espetáculo, ou seja, o encenador, os técnicos e os atores. Obviamente,
dentro deste arrazoado, a mudança do receptor também irá repercutir
profundamente em todo o processo comunicativo, uma vez que o ouvinte
da atualidade, por um lado, não irá mais reconhecer “a relação da mensagem
com suas condições primitivas de enunciação” (2002, p. 13) e, por outro
lado, ele se torna indiferente a certos aspectos da obra, enquanto que outros
se intensificam sob os seus olhos. Essas palavras confirmam o que Gerd
Bornheim expressou, tão brilhantemente, ao referir-se às encenações
modernas da obra shakespeariana, ressaltando que é a partir de uma certa
perda daquela atualidade de Shakespeare que o potencial das leituras dos
textos dele se multiplicam - há uma certa perda, entretanto, pode-se
reencontrar uma outra forma de expressão. Cabe ao encenador descobrir os
ecos contemporâneos para suprir as conotações que se tornaram ofuscadas:
“o espectador do século XX [irá impor] a um texto saturado conotações que
são as da sua própria cultura” (Ubersfeld, 2002, p. 15). Por esse prisma,
pode-se inferir que a dupla mudança do emissor e receptor irá acarretar uma
mudança significativa da própria mensagem, ou seja, “a partir do momento
em que todo o processo de comunicação foi abalado, a mensagem não poderia
permanecer intacta” (2002, p.16).
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Dentre as diferentes formas de historicização dos clássicos, Anne
Ubersfeld (2002, p. 20-25) salienta que aquela que remete a um referente
contemporâneo leva a privilegiar, muitas vezes, uma leitura universalista e
humanista do texto clássico. A identificação de uma proximidade entre os
enunciados de um texto clássico e a atualidade vivida pelos espectadores
estabelece uma ligação dialética entre os dois períodos da história. Após
Ubersfeld lançar a pergunta, (2002, p. 26) “como assegurar a permanência
do texto clássico?”, e fazer um breve comentário sobre a diversidade de
enfoques sobre essa questão, ela aponta uma quase unanimidade entre os
envolvidos no debate: “a permanência não pode ser compreendida como a
de um objeto total, em seu fechamento e sua unidade, mas como a
permanência de elementos esparsos, de ‘arquiteturas quebradas’, segundo a
expressão de A. Vitez” (2002, p. 28-29). A sua segunda indagação, “O que
fazer então, hoje, da dramaturgia clássica? É preciso respeitá-la, exaltandolhe o ‘encadeamento’? Ou bem ‘desencadeá-la?’” (2002, p. 30) põe,
definitivamente, o foco sobre a polêmica que, ainda hoje, tem sustentado
debates acalorados não só entre os envolvidos com o fazer teatral, mas
também entre os dramaturgos e críticos em geral. Partindo do pressuposto
de que o desmantelamento dos textos clássicos já é um fato incontestável, a
ênfase, na proposta moderna da encenação dos clássicos, é colocada no
heterogêneo, no trabalho com a descontinuidade e no interesse no receptor.5
Ao considerar o contexto sociocultural da recepção, José Roberto O’Shea
(2007, p. 158) menciona que:
A relevância de uma performance [...] está relacionada e condicionada à
recepção, já que não só o ator, mas também o espectador são objeto de
estudo; por conseguinte, a inserção sociocultural é crucial ao processo de
construção e interpretação dos significados encenados (em contraste com
os significados literários do texto da peça). O objetivo /.../ é entender a
natureza e a extensão dos contextos em que a performance se insere,
propósito que justifica a atenção ao momento histórico nacional ou local
no qual a performance é realizada, à composição sociocultural do público
e à sua expectativa, bem como às circunstâncias concretas da performance.
Ainda dentro desse arrazoado, Patrice Pavis (1999, p. 196-97), ao
mencionar que historicizar “é mostrar um acontecimento ou uma personagem
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à luz social, histórica, relativa e transformável”, lembra-nos que o termo e a
sua respectiva conceituação foram introduzidos por Bertold Brecht. A
historicização, de acordo com o autor e teórico alemão,6 (1976, citado por
Pavis, 1999, p.197) “leva a considerar um determinado sistema social do
ponto de vista de outro sistema social. A evolução da sociedade fornece os
pontos de vista.” Nesse sentido, todo teatro é histórico e político. Brecht
levanta a questão de que é imprescindível que um espetáculo mantenha um
vínculo com o presente – ou, então, ele não interessa. Para atender esse
quesito, pergunta-se: Qual é a perspectiva contemporânea que está sendo
enfocada pelo Otelo do Folias D’Arte? Qual é o cruzamento sócio-ideológicohistórico que existe entre o Otelo shakespeariano e o do Folias? Além de
manter Iago na “condição de narrador e comentarista da evolução dos
episódios”, tal qual Shakespeare já havia concebido, o espetáculo faz uso da
música “como enquadramento épico e como comentário crítico da evolução
da história”. No prólogo do espetáculo, a música New York, New York “situa
acidamente um desfile de mutilados, loucos, viciados na Veneza-a-capitaldo-mundo dos dias de hoje e a música The End (The Doors), lembra que
Chipre já foi o Vietnã e agora pode ser o Iraque” (COSTA, 2OO3, p. 101-102).
De acordo com Dagoberto Feliz (Diretor musical), a função da
música no Otelo do Folias D’Arte é realizar a fusão da arte erudita e popular
que é um dos aspectos que também caracterizava as encenações do período
elisabetano (2003, p. 5). Uma das características que acompanha a estética
do Folias é promover em seus espetáculos o diálogo intermidial entre vários
segmentos artísticos como a música, a dança, o teatro, o cinema, as artes
plásticas, dentro de um todo artístico. No prólogo do Otelo, o público, ao
contemplar o desfile de transeuntes na capital cosmopolita do mundo ao
som de New York, New York (a princípio, entoada e tocada no violão por um
ator para, em seguida, ouvir-se a voz de Frank Sinatra na gravação) tem a
oportunidade de se defrontar com um elenco polivalente que se reveza em
demonstrações caricatas que exacerbam a deformação grotesca dos heróis
de cada dia que se reconhecem irmãos no esvaziamento do momento
contemporâneo. O conjunto de espelhos encostado na parte de trás do espaço
de representação torna-se um recurso cênico bastante funcional: ao refletir
as imagens dos passantes, multiplica a cena exacerbando e alastrando o circo
da vida que nos torna todos palhaços sem picadeiro. É o espelho um indício
de que estamos diante da imagem de uma realidade mordaz?
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Um fato relevante é que dentre os transeuntes no desfile, surge Otelo,
o nosso personagem herói!!! É o Otelo de verdade ou de mentira? É aquele
que se transforma em ator na própria vida? Quais são os limites entre a vida
e o teatro, entre a aparência e a realidade? Shakespeare refere-se, inúmeras
vezes, em suas peças teatrais ao mundo como um palco onde homens e
mulheres são meros atores desempenhando muitos papéis7. O fato do
personagem Otelo ser inserido dentro do desfile de transeuntes no prólogo
do espetáculo, como um mero cidadão, torna-se significativo uma vez que
nesse exato instante, personagem e ator são fundidos: o herói trágico tornase um homem como todos nós8. É claro que dentro do momento atual, não
há mais lugar para o herói trágico clássico, mas apenas para aquele que
retrata o homem contemporâneo na sua solidão entre milhares de pessoas,
na sua pequenez em uma das maiores metrópoles do mundo, na sua pobreza
em pleno desenvolvimento do capitalismo. Como tentar remanejar o que
sobrou do projeto moderno? É o herói moderno o retrato de uma crise das
utopias? Com Shakespeare e seus conterrâneos, há um deslocamento do
sentido do teatro: o teatro que se ocupava dos deuses, dos reis e dos heróis,
dos santos, do Cristo e da Virgem, ocupa-se agora do homem com toda a
sua amplitude e limitações, um ser simplesmente mundano esforçando-se
pela sobrevivência do dia-a-dia. Tudo se verifica no plano de uma
horizontalidade plena (MIRANDA, 2004, p. 146).
Ainda dentro do prólogo, repentinamente, os transeuntes ficam
estáticos. Todos estão ‘congelados’, com exceção de um ator/personagem
que, mais tarde, os espectadores percebem que se trata do Iago. Ele abre um
guarda-chuva e caminha com desembaraço no meio de todos! Eu repito: só
ele se move, os outros estão privados de seus movimentos! Essa cena não
deixa de ser uma ‘pre-figuração’ da trama que será apresentada, logo a seguir,
quando todos os personagens serão enredados pela astúcia e ambição
descomedida de Iago. E, por que um guarda-chuva aberto? Certamente, será
para resguardá-lo, metaforicamente, das intempéries da vida que serão
provocadas por suas incursões envenenadas que terão o poder de paralisar,
até certo ponto, a reação de todos os outros personagens.
O prólogo, apesar de não estar diretamente vinculado ao
desenvolvimento do enredo, trata-se de um recurso épico utilizado pelo diretor
tendo em vista tanto a sua proposta cênica para o espetáculo quanto a
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dinamização do jogo teatral. O prólogo assume uma função metalingüística
de intervenção crítica antes e durante o espetáculo. O diálogo intermidial e
intertextual que é estabelecido a partir da inserção de New York, New York
não pode ser relevado, uma vez que essa música assume na encenação uma
função equivalente aos songs brechtianos. Tal como preconizam Sergei
Eisenstein, Kurt Weill e o próprio Brecht, dentre outros, a música pode
produzir, algumas vezes, um efeito de contraponto em um espetáculo, quando
ela “sublinha ironicamente um momento do texto ou da atuação” (PAVIS,
1999, p. 255). No Otelo do Folias, a música New York, New York, ao invés de
conduzir os espectadores a uma embriaguez romântica, produz um efeito
de ruptura objetivando induzir o espectador a uma atitude crítica. Através
do distanciamento9, a música é vista sob uma nova perspectiva. Os versos
entoados por Frank Sinatra que exaltam o sonho americano, cultivado desde
a implantação de suas colônias enquanto as fronteiras estavam sendo
desbravadas rumo ao oeste, torna-se o ideal que está enraizado na alma de
cada cidadão: “I wanna wake up in a city, that doesnt sleep // And find Im
king of the hill – top of the heap //...// I’ll make a brand new start of it –
in old New York // If I can make it there, I’ll make it anywhere // Its up to
you – New York, New York // I want to wake up in a city, that never sleeps
// And find Im a number one – top of the list, king of the hill // A number
one.”10 Entretanto, o que sobrou do sonho americano? O que sobrou das
visões utópicas de um país que intencionava desenvolver uma sociedade
homogênea na qual as diferenças culturais, raciais e religiosas seriam fundidas
numa nacionalidade multi-étnica, ou seja, num ‘melting pot’11? Nova Iorque,
a cidade-símbolo dos vencedores e daqueles que têm a ilusão de que ‘querer
é vencer’ torna-se o cenário do desfile dos loucos, viciados, excêntricos e de
todos os meio-heróis. Por esse viés, New York, New York assume um caráter
de música Gestus que induz o espectador a um posicionamento político e/
ou filosófico. Os atores, ao representarem no prólogo o desfile de tipos
urbanos que exibem uma situação que evoca uma emoção diametralmente
contrária ao o que está sendo cantado, reiteram para os espectadores que a
nossa sociedade continua desequilibrada entre as forças daqueles que exercem
o poder e daqueles que estão submetidos a esse poder, ou seja, entre o
estado e o individualismo, entre os colonizadores e os colonizados entre os
ricos e os pobres, entre o gênero masculino e o feminino, entre Veneza e
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Chipre, entre os Estados Unidos e o Vietnã // o Iraque, e entre todos os
Iagos e Otelos que habitam o planeta Terra.
De acordo com Iná Camargo Costa, (2003, p. 101) é imperativo
saudar o espetáculo Otelo do Folias D’Arte por ter estabelecido um diálogo
intermidial com a versão fílmica (1952) de Orson Welles12. O cineasta inicia
a sua filmagem com uma pré-figuração mostrando o enterro de Otelo e
Desdêmona e a prisão de Iago, que aparece suspenso em uma gaiola. Quando
a câmera fecha em seu rosto, é uma indicação para os espectadores de que
assistiremos à história em forma de flashback, determinado pelo ponto de
vista de Iago. “Isto define a adoção da forma épica por Orson Welles”(2003,
p. 101) A adaptação de Welles foi construída a partir de uma concepção
estética elaborada, cuja intenção é apresentar as relações visuais em vez da
visualização das conexões narrativas. Nesse caso, uma responsabilidade muito
maior é transferida para a audiência que terá que estabelecer as conexões
que farão parte de um todo coerente. Em Welles a seqüência visual domina
desde o início: o filme prolonga-se por, aproximadamente, oito minutos (a
prefiguração e o prólogo) antes que qualquer acompanhamento falado ocorra.
As primeiras palavras (prólogo) são uma narração sincrônica. O diálogo é
introduzido apenas quando o ‘olho’ e o ‘ouvido’ foram, separadamente,
iniciados (DAVIES, 1994, p. 103-104). Parece-me conveniente ressaltar que
no prólogo do Otelo do Folias, que se estende por quase cinco minutos antes
que o primeiro diálogo ocorra, as percepções visuais e auditivas também
devem ser integralizadas pela audiência. Nesse caso, como já foi mencionado
em relação ao filme de Welles, o espectador assume um posicionamento
crítico na construção do sentido. Por um lado, com esse tipo de concepção,
a compreensão passa a ser um exercício hermenêutico uma vez que o todo
não pode ser compreendido sem a compreensão das partes, nem as partes
sem a compreensão do todo. Por outro lado, no espetáculo do Folias, a
platéia é convidada a sentar em três arquibancadas móveis que mudam de
posição de acordo com a necessidade de haver uma maior ou menor
aproximação e integração com as cenas. A movimentação das arquibancadas
permite não apenas que os espectadores tenham diferentes olhares sobre a
cena como também não deixa de ser um recurso de distanciamento ao ativar
a mudança das perspectivas cênicas. Mário Rojas,13crítico de teatro, escreveu
a respeito do efeito no uso das arquibancadas na apresentação do Otelo do
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Grupo Folias D’Arte em Portugal (Lisboa e Porto) no ano de 2006. Não
restam dúvidas, de que esse recurso cênico transformou-se num elementochave para a plena apreciação do espetáculo:
As arquibancadas dos espectadores com rodas giratórias, mudavam
constantemente de posição, o que ia construindo diferentes perspectivas
de recepção, focos múltiplos que revelam todo o gesto e movimento e
quase anulava a distância entre atores e espectadores. (2006, citado por
Figueira, 2008, p. 171)
A análise das canções e/ou músicas tanto nos espetáculos quanto
nos filmes tem sido, muitas vezes, negligenciada, o que ocasiona um grande
prejuízo para a compreensão mais apurada da concepção estética e/ou
ideológica que o diretor tentou imprimir na sua respectiva produção artística.
No caso do Otelo do Folias, a inserção das duas canções, New York, New York
(no prólogo) e The End (durante a encenação) acrescentam uma complexa
relação intertextual e intermidial para o espetáculo. Entretanto, embora a
música na prefiguração do Otelo de Orson Welles também seja reveladora, a
sua função é diversa: neste caso, a música torna-se uma ilustração e criação
da atmosfera que corresponde à ação dramática. A música de fundo repercute
e reforça as imagens do filme. Para o acompanhamento do som uníssono de
lamentação e o ritmo pesado da percussão, as tomadas da câmera aparecem
na tela com uma desorientação deliberada inicial: o rosto de Otelo aparece
invertido na tela quando ele está deitado na esquife, como se a intenção do
cineasta fosse enfatizar o reverso desnatural da ordem moral da vida de
Veneza. A câmera se aproxima do rosto (close-up) e então se afasta acima da
face para revelar as mãos daqueles que estão carregando a esquife. O som
inicial é interrompido por um estrondo ruidoso, urgente, vibrante do tambor
e Iago, amarrado, é visualizado primeiro de um ângulo inferior e, em seguida,
de um ângulo superior − enquanto ele é arrastado para uma pesada jaula de
ferro. Logo a seguir, o compasso fúnebre continua acompanhando a procissão
que caminha lentamente até desaparecer na escuridão absoluta.
Percebe-se que o poder e os estilos antagônicos que Otelo e Iago
representam são evidenciados desde a pré-figuração da produção fílmica de
Welles: a procissão funerária de Otelo, ordenada, elegíaca, movendo-se da
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direita para a esquerda, é acompanhada dos sons uníssonos enquanto que a
aparição de Iago é marcada pela confusão e barulho provocados tanto pelo
som estridente e abrupto como pelas pessoas furiosas empurrando-o para
dentro da jaula. Otelo é caracterizado pela simplicidade, grandiosidade,
hipérbole enquanto que o estilo de Iago infecta a imagem do filme com
perspectivas perturbadoras, composições atormentadas e distorções grotescas.
As tomadas em close-ups de Iago através da jaula e as tomadas vertiginosas na
medida em que a jaula balança no alto prefiguram, por um lado, o motivo da
prisão que é recorrente em todo o filme e, por outro, enfatizam a elevada
perspectiva da visão de Iago do mundo que ele infectou com a sua
manipulação calculada (KNIGHT, citado por DAVIES, 1994, p. 106).
Entretanto, parece-me que, apesar de Iago tornar-se vítima de seu próprio
estilo e de estar isolado contra as íngremes muralhas do forte, ele ainda
preserva até o final, mesmo enjaulado, a visão superior sobre todos os que
estão abaixo de seus olhos. É como se a direção do filme ainda continuasse
a ser sua, tal como ocorre com o Iago na versão do Folias que, desde o
prólogo, ao manter o seu passo zombeteiro e desprezível enquanto caminha
entre os transeuntes ‘congelados’, anunciasse que essa peça será dele.
Notas
*
Este texto é o resultado parcial da pesquisa que está sendo realizada na
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) durante o estágio Pós-Doutoral
(03/2008-02/2009), sendo que a mesma está sendo financiada pelo CNPQ de
setembro de 2008 a fevereiro de 2009.
1
JAUSS, Hans R. Literary History as a challenge to Literary Theory. In: Towards an
Aesthetic of Reception. (Trad.) Timothy Bahti. Minneapolis: University of Minnesota
University Press, 1982, p. 22.
2
Em 1623, sete anos após a morte de William Shakespeare, ao ser organizada e
publicada a obra completa das peças do dramaturgo inglês, Ben Jonson (15721637) escreveu um poema laudatório em homenagem ao seu amigo, onde está
inserido o verso “He was not of an age, but for all time!”, que pode ser traduzido
da seguinte forma: “Ele não pertence ao nosso século, mas a todos os tempos!”.
(Todas as traduções de citações retiradas de obras em língua inglesa foram realizadas
pela autora do artigo.)
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3
O “espetáculo teve mais de dez mil espectadores entre junho de 2003 e junho de
2004 (em 139 récitas). [...] Otelo, o espetáculo do grupo com maior impacto em
termos de reconhecimento público e mediático, teve uma cobertura de imprensa
entusiástica”. (FIGUEIRA, 2007, p.161)
4
André Antoine (1856-1943), ao refletir sobre a função de uma encenação moderna
da obra clássica, defende “a rejeição da ortodoxia em matéria de encenação, o
direito do encenador de sustentar um discurso diferente daquele da celebração da
obra-prima. A direção não é mais (ou não é mais apenas) a arte de fazer com que
um texto admirável (...) emita coloridos reflexos, como uma pedra preciosa; mas é
arte de colocar esse texto numa determinada perspectiva; dizer a respeito dele algo
que ele não diz, pelo menos explicitamente; de expô-lo não apenas à admiração,
mas também à reflexão do espectador.” (1903, citado por ROUBINE, 1998, p.
41).
5
De acordo com Linda Hutcheon, o pós-modernismo, ao atacar a noção de que a
obra de arte é um objeto fechado, auto-suficiente e autônomo que obtém a sua
unidade a partir das inter-relações formais de suas partes, “devolve o texto ao
‘mundo’, [...] mas não se trata de um retorno ao mundo da ‘realidade ordinária’: [...]
o ‘mundo’ em que esses textos se situam é o ‘mundo’ do discurso, o ‘mundo’ dos
textos e dos intertextos.” (1991, p. 164-65, grifo do autor).
6
BRECHT, B. Journal de Travail. Paris: L’ Arche, 1976, p. 109.
7
Shakespeare, em sua comédia As you like it (Como gostais), escreveu os seguintes
versos que foram comentados acima: “O mundo é um palco // E os homens e
mulheres meros atores // Eles têm suas saídas e entradas // E cada homem em
seu tempo // Desempenha muitos papéis // Seus atos correspondendo às sete
idades.” (Ato II, cena vii)
8
Dr. Samuel Johnson (1996, p. 40) menciona que Shakespeare fala de reis, rainhas,
mas ele pensa nos homens.
9
“Para Brecht, o distanciamento não é apenas um ato estético, mas, sim, político:
o efeito de estranhamento não se prende a uma nova percepção ou a um efeito
cômico, mas a uma desalienação ideológica. O distanciamento faz a obra de arte
passar do plano do seu procedimento estético ao da responsabilidade ideológica
da obra de arte. (PAVIS, 1999, p. 106) “O song é um recurso de distanciamento, um
poema paródico e grotesco, de ritmo sincopado, cujo texto é mais falado ou
salmodiado que cantado.” (1999, p. 367)
10
"Eu quero acordar na cidade, que nunca dorme // E descobrir que eu sou o rei
da montanha – o maioral // ... // Eu farei um novo recomeço nela – na velha
Nova Iorque // Se eu conseguir lá, eu conseguirei em qualquer lugar // Só depende
de você, Nova Iorque, Nova Iorque // Eu quero acordar na cidade que nunca
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
297
dorme // E descobrir que sou o número um, no topo da lista // Rei da montanha,
o número um //”. (Tradução retirada do site www.letras.mus.br, no dia 25/07/
2008.)
11
A expressão ‘melting pot’ teve sua origem no período da colonização americana
pelos ingleses no decorrer dos séculos XVII e XVIII. O termo tornou-se uma
metáfora de um processo idealizado de imigração e colonização através do qual
diferentes nacionalidades, culturas e raças seriam absorvidas dentro de um ‘grande
caldeirão’, objetivando a construção de uma América que se tornaria uma nova
terra prometida.
12
Orson Welles foi o primeiro cineasta a questionar as convenções relacionadas
aos critérios de fidelidade de uma adaptação fílmica. A sua atitude radical em
relação às adaptações do bardo contribuiu para pavimentar o caminho de outras
adaptações mais recentes como Rei Lear (Jean-Luc Godart, 1987), Titus (Julie
Taymor, 1999), e Hamlet (Michael Almereyda, 2000). A produção de Otelo, filmada
por três anos, principalmente, em Marrocos e na Itália, é indicativa de uma concepção
estética que irá caracterizar todo o trabalho de Welles fora do aparato dos estúdios
americanos. Aqui está uma das facetas da genialidade de Welles: por um lado, ele
produziu dois dos maiores filmes americanos, Citizen Kane (1941) e The Magnificent
Ambersons (1942) com todo o estúdio de Hollywood aos seus pés e, por outro lado,
ele produziu muitos dos melhores filmes do mundo, sem nenhum dinheiro.
(ROTHWELL, 1999, p. 73-74)
13
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novembro 2006.
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Artigo recebido em 30.05.2008.
Artigo aceito em 21.09.2008.
Célia Arns de Miranda
Pós-doutoranda na UFSC; bolsista pelo CNPQ de setembro de 2008 a fevereiro
de 2009.
Doutora em Literaturas Inglesa e Norte-Americana pela USP.
Professora Associada da Universidade Federal do Paraná.
Professora do Curso de Pós-graduação de Estudos Literários (UFPR).
Membro do Centro de Estudos Shakespearianos (CESh).
300
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
UM AUTOR EM BUSCA DE SI
MESMO, EM BUSCA DO SEU PAÍS:
RASTO ATRÁS,
DE JORGE ANDRADE
Lílian Fleury Dória
[email protected]
RESUMO: Esse ensaio analisa a peça
Rasto atrás do dramaturgo Jorge Andrade
e reflete sobre a busca da memória
como material da sua escrita. As relações
entre forma e estrutura cênica são
investigadas, discutindo a estética
expressionista, a multiplicidade de
espaços, a simultaneidade dos tempos, a
metalinguagem e, em alguns momentos,
a anulação do tempo. Texto autoreflexivo e profundamente emblemático
da obra de Jorge Andrade se constitui
na investida mais funda do autor em
busca de si mesmo, do seu povo, da sua
sociedade.
ABSTRACT: This essay analyzes Jorge
Andrade’s play Rasto atrás and reflects
upon memorial reconstr uction as
material for his writing. The relationship
between form and scenic structure is
investigated, and the expressionistic
aesthetics, multiple spaces, temporal
simultaneity, metalanguage and,
eventually, time cancellation are
discussed. Self-reflexive and emblematic
of Jorge Andrade’s work, the text
represents the author’s most radical
identity search, looking for himself, his
people and his society.
PALAVRAS-CHAVE: Dramaturgia. Teatro brasileiro. Memória. Identidade.
Subjetividade.
KEY WORDS: Dramaturgy. Brazilian theatre. Memory. Identity. Subjectivity.
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301
No drama moderno brasileiro, encontramos uma vertente que se
desenvolve no período de 1943 a 1980 e que se apóia na tríade: memória,
tempo e linguagem. Nelson Rodrigues, Jorge Andrade, Oduvaldo Vianna
Filho (Vianinha), Naum Alves de Souza e Flávio Márcio são alguns dos
expoentes dessa vertente. São autores que criam uma dramaturgia que tenta
retratar a decadência familiar e, portanto, social, transitando pela memória.
Jorge Andrade, autor de estatura poderosa, elabora uma obra cíclica
que é ímpar na dramaturgia brasileira. A publicação de dez peças − entre as
quais Rasto atrás − no livro Marta, A árvore e O relógio demonstram um vigor
e um trabalho acurado de composição dramatúrgica.
No seu conjunto, esta obra é única na literatura teatral brasileira. Acrescenta
à visão épica da saga nordestina a voz mais dramática do mundo
bandeirante. É única, esta obra, pela grandeza da concepção e pela unidade
e coerência com que as peças se subordinam ao propósito central, mantido
durante longos anos com perseverança apaixonada, de devassar e escavar
as próprias origens e as da sua gente, de procurar a própria verdade
individual através do conhecimento do grupo social de que faz parte. (...)
Todo o ciclo é, de fato, a incessante procura de quem, na medida em que
encontra, mormente na medida em que se encontra a si mesmo, se torna
“filho perdido”, filho pródigo que não volta. Não é mero acaso que as
últimas palavras da última peça do ciclo se refiram a esta busca: “Procurar...
procurar... procurar... que mais poderia ter feito...? (ROSENFELD, in
ANDRADE, 1970, p. 599)
De 1943 − quando foi escrito Vestido de noiva de Nelson Rodrigues
− a 1966 − ano de criação de Rasto atrás de Jorge Andrade − o drama moderno
brasileiro caminhou pelas peças de Nelson Rodrigues − que foram
surpreendendo a platéia a cada estréia, encontrou forças na brasilidade de
Guarnieri, em Eles não usam black-tie e em Dias Gomes com O pagador de
promessas − e encontrou um novo caminho com o sucesso de Jorge Andrade
em A moratória (1955) − sua segunda peça, antes havia escrito O telescópio.
Jorge Andrade inicia assim uma obra que, como afirma Antônio
Cândido, “refaz, no teatro, um caminho percorrido em parte pelo romance
brasileiro de nosso tempo, na medida em que se volta para a decadência dos
302
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
valores patriarcais, que assinala a formação do Brasil atual” (CÂNDIDO, in
ANDRADE, 1970, p. 630).
Rasto atrás é um texto onde a fragmentação do tempo é essencial e
onde o contato com o resgate da memória faz parte intrínseca dos personagens
e da própria trama. Texto auto-reflexivo e profundamente emblemático da
obra de Jorge Andrade se constitui na investida mais funda do autor em
busca de si mesmo, do seu povo, da sua sociedade.
Rasto atrás obteve em 1966 o 1o prêmio no Concurso do Serviço
Nacional de Teatro e foi encenada no Rio de Janeiro por ocasião da premiação.
Se toda a obra de Jorge Andrade tem como eixo a questão da memória
e como cada personagem se relaciona com ela, Rasto atrás é singular nesse
aspecto. Toda a sua estrutura dramatúrgica se dá no embate entre tempo,
memória e linguagem.
Para refletirmos sobre a memória buscamos apoio nos estudos de
Henri Bergson e nas análises desse filósofo feitas por Ecléa BOSI (1987, p.
9). Ao pensarmos nas lembranças como sombras junto ao nosso corpo,
podemos entender porque para Bergson a memória seria o lado subjetivo de
nosso conhecimento das coisas. E será a memória que permitirá a relação
do corpo presente com o passado, misturando-se com as percepções imediatas
e muitas vezes ocupando o espaço todo da consciência. Bergson afirma que
é do presente que parte o chamado ao qual a lembrança responde, pois as
imagens passadas só se conservam para se tornarem úteis. E, como afirma
Ecléa BOSI (1987, p. 14), “Bergson quer mostrar que o passado se conserva
inteiro e independente no espírito; e que o seu modo próprio de existência é
um modo inconsciente”.
Bergson vai nos apontar a força poderosa da memória e do
inconsciente. Desse modo a recordação seria uma organização móvel e o
papel da consciência seria o da escolha. A memória, “faculdade épica por
excelência” (BOSI, 1987, p. 48), é arma do homem para vencer a morte e
perpetuar-se. O teatro, espaço sagrado do recordar, do re-contar, do reapresentar, do re-criar, é também arte desse homem para reflexão de sua
cultura e de sua interioridade, espaço livre para a consciência aflorar suas
sombras e expor as tensões entre memória, tempo e linguagem.
Quanto ao tempo, podemos partir da afirmação de Martin
HEIDEGGER (1973, p. 463):
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
303
O tempo não é. Dá-se o tempo. O dar que dá tempo determina-se a partir
da proximidade que recusa e retém. Ela garante o aberto do espaço − de
− tempo e preserva o que, no passado, permanece recusado e, no futuro,
retido.
Ao aceitarmos o pressuposto de Heidegger de que o tempo não é,
mas dá-se, podemos partir para a percepção de que o tempo no teatro é o
tempo cênico, o tempo coerente com a concepção de cada texto e esse é um
dos alicerces do teatro moderno que quebra com a lei das três unidades,
regras que determinaram a estrutura dramática das peças no Classicismo
Francês e foram respeitadas durante anos até que o teatro romântico as
transformasse. Regras que já haviam sido quebradas pela genialidade de
Shakespeare ao utilizar um tratamento livre de espaço e tempo dentro da
organicidade de sua obra. “O tempo e o espaço cênicos nada têm a ver com
o tempo e o espaço empíricos da platéia” (ROSENFELD, 1965, p. 56).
O tempo agora é o tempo cênico que se permite tratamentos
simultâneos, dependendo da determinação do sujeito da história ou, mais
acentuadamente, o teatro começa a se inclinar para o cinema − arte do século
XX − com a sua revolucionária concepção do olhar como determinador da
seqüência. E da possibilidade de se compor uma história a partir de vários
olhares com diferentes ângulos. O tempo então se dá enquanto tempo cênico,
efetiva-se como tal.
Retornando ao autor que analisamos nesse estudo, percebemos que
o tempo é utilizado de forma não-linear e com um específico tratamento
cênico, além da necessidade de fragmentá-lo. Essa fragmentação parece
atender à intenção de traçar o retrato da sociedade em que vivemos, quase
que um buscar de raízes, uma composição do país e da sociedade brasileira.
Escrita em três planos que se entremeiam, a peça Rasto atrás nos
mostra o cotidiano de um dramaturgo contemporâneo e suas angústias ao
lidar com matéria tão fluida como a literatura e tão distanciada de uma
nação semi-analfabeta como a nossa. No segundo plano, esse escritor vai ao
encontro do passado e traz ao palco retalhos de suas memórias de infância
e adolescência. No terceiro plano encontra-se o pai: personagem inserido
num tempo mítico, auto-exilado na mata e inatingível para o menino Vicente.
304
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
O texto só pode ser visto sob uma perspectiva expressionista, com
traços épicos. O autor faz essa opção claramente, desde a primeira cena no
cinema onde necessita de uma grande tela até os painéis coletivos que vão se
sucedendo ao longo da peça. Numa montagem com recursos limitados (de
cenários e número de atores), todo o início da peça que se baseia num painel
social ficaria terrivelmente comprometido.
O uso de recursos cinematográficos no contexto cênico tem, sem dúvida,
função epicizante, já que acrescenta o amplo pano de fundo documentário
que costuma faltar ao teatro. Ademais, acrescenta o horizonte de um
narrador, o que relativiza a ação cênica. (ROSENFELD, 1973, p. 117)
O autor tem necessidade de situar o personagem Vicente dentro de
grupos de pessoas: no cinema, na estação, no trem, na cidade pequena, na
família; para nos dar exatamente a dimensão do macrocosmo e do
microcosmo e de sua relação dialética. Esse homem, parece nos dizer o
autor, é um homem qualquer numa cidade qualquer desse país. Vicente é
um artista, um dramaturgo, mas é um homem tão comum como qualquer
um de nós. E, por isso mesmo, é tão emblemático dentro da peça e dentro
da obra de Jorge Andrade.
O personagem Vicente aparece também na peça A escada e é citado
em O telescópio. Mas ele volta com toda a sua força dramática em O sumidouro,
peça que trabalha as relações angustiadas entre criador e criatura, autor e
personagem. O Vicente de O sumidouro é o mesmo Vicente de Rasto atrás,
após voltar da viagem a Jaborandi. E é esse Vicente em O sumidouro que nos
diz: “Não sou (...) um homem sem rosto, com o rosto de cada um? Não vivo
dividido em mil pedaços?” (ANDRADE, 1970, p. 586).
Temos um autor que se auto-examina e que reflete sobre a arte
teatral, essa arte que tem um caráter desvelador e libertador. O autor −
assim como o ator − terá mil rostos e nenhum, dividido em mil pedaços,
capaz de sentir e expressar até mesmo aquilo que mais lhe repugna, chegar
próximo do que é mais distante. E não seria essa a função da arte: propor e
desvelar enigmas, trabalhar com o que é distante e com o que é próximo,
expor o que é diverso e o que é complexo?
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
305
É essa procura que nos apaixonará em Rasto atrás. Um texto que
compreende em si outros textos. Um jogo intertextual do autor com seus
outros textos e do autor consigo mesmo. Ficamos tentados a perceber Vicente
como alter-ego de Jorge Andrade, mas esse é apenas o primeiro dos muitos
lances do labirinto que é essa peça. Labirinto que se arma e desarma, expondo
muitos planos de leitura, de reflexão e de cenografia. “Vicente, embora
representando o próprio Jorge Andrade, não deve ser concebido como a sua
transcrição biográfica literal”, nos adverte ROSENFELD (in ANDRADE,
1970, p. 613).
Vicente, dramaturgo, aos 43 anos resolve voltar à sua cidade de
origem e, a partir de uma estrutura cênica que anula o tempo, personagens
psicologicamente complexos vão surgindo ao redor de não mais um só
Vicente, mas de quatro: o autor na maturidade, o menino de cinco anos, o
adolescente de quinze anos e o jovem de vinte e três anos.
Rasto atrás, uma das peças mais complexas e ricas do ciclo (...). A viagem
ao interior, descida ao passado, é para Vicente de fato uma viagem ao
“interior”, à sua própria intimidade profunda. (ROSENFELD, in
ANDRADE, 1970, p. 605)
Então, o que em Vestido de noiva de Nelson Rodrigues apenas se
pressentia como uma investigação psicanalítica expressa no palco, já agora
se faz de fato. Rasto atrás é, explicitamente, a caçada consciente de si mesmo,
uma busca profunda de suas raízes, como o próprio personagem Vicente
explica ao definir o título e a expressão Rasto atrás (RA):
Papai dizia que certas caças correm rasto atrás, confundindo suas pegadas,
mudando de direção diversas vezes, até que o caçador fica completamente
perdido, sem saber o rumo que elas tomaram. E muitas vezes, são tão
espertas que ficam escondidas bem perto da gente em lugares tão evidentes
que não nos lembramos de procurar. (RA, p. 461)
Caça e caçador, autor e palavras, personagem e memória, indivíduo
e sociedade, esses são alguns dos materiais que Jorge Andrade está
trabalhando em Rasto atrás. Caça que se esconde e deixa pegadas, formando
um labirinto de lembranças entremeadas com as palavras soltas no ar.
306
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Assim é o movimento ardiloso das lembranças e também do que significam;
é o movimento das palavras, a esquivança da forma. Nesta obra
extremamente bem organizada, a organização não sufocou a pulsação da
vida e nada é gratuito. Não apenas estão presentes, nela, o escritor, suas
evocações e seus conflitos; o próprio fenômeno da criação literária, caçada
interminável, está em cena, inserido na sua construção. (LINS, in
ANDRADE, 1970, p. 654)
A organização a que se refere Osman Lins na citação acima é na
verdade a organicidade do texto de Jorge Andrade. Organicidade que
compreende uma trama de fios que se entrecruzam simultaneamente. Não é
só o tempo que o autor manipula, mas também os vários níveis de leitura e
reflexão temática. Temos um autor em conflito consigo mesmo e com seu
passado, com seu pai. Temos um homem em conflito com uma sociedade
subdesenvolvida e distante dos progressos culturais. Temos um autor
enfrentando o jogo ardiloso das palavras e da memória. E, por fim, temos a
luta da arte por se fazer. A angústia da criação, pois ao se dispor a criar, o
artista está permitindo que em si mesmo nasça o processo transformador e
gerador de novas vidas, novos rostos, novas perspectivas.
A organicidade desse texto pode nos levar a pensar no desenho de
um labirinto. Como no romance de Jorge Andrade que leva o título de Labirinto
(1978), em Rasto atrás, nos movemos para frente e para trás, “passado e
presente se misturam na busca da saída do labirinto, no esforço de Teseu
para vencer seu minotauro particular e aprender a conviver com seus
fantasmas” (DRUMMOND, in ANDRADE, 1970).
Se, em Vestido de noiva, de Nelson Rodrigues, o processo psicanalítico
de mergulho no inconsciente surgia por um acidente, em Rasto atrás, é Vicente
que quer mergulhar no passado, que busca essa volta:
VICENTE: Preciso encontrar meu pai. Ele está perdido no meio da mata,
no norte de Mato Grosso. Há quase vinte anos. É necessário que eu
compreenda de uma vez por todas o que se passou entre nós. (RA, p. 460)
Esse pai tão distante, perdido na mata há vinte anos, se situa no
plano mítico. Um homem que escolhe a permanência na mata, a fuga ao
progresso, a vida num tempo circular, que não se altera (ELÍADE, Mircea,
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
307
s.d.). Essa distância entre pai e filho quase impossível de ser vencida, nos
lembra o conto de Guimarães ROSA (1988), A terceira margem do rio, onde o
pai faz uma opção pelo auto-isolamento dentro de uma canoa no rio e lá
permanece anos a fio, até que o filho, que não o compreendia, um dia o
substitui. João José, o pai de Vicente não o compreende o filho, e Vicente
não consegue compreender o pai. Essa incomunicabilidade perpassa toda a
peça e é um dos móveis de grande conflito que sustenta a dramaticidade do
texto.
VICENTE (5 anos): Papai! Por que a lua está quebrada?
JOÃO JOSÉ (muda o tom): Não estou vendo lua nenhuma no céu, Vicente.
(...)
VICENTE (um pouco aflito): Por que a lua fica quebrada? Quem sabe?
Ninguém sabe?
JOÃO JOSÉ: Vicente!
VICENTE: Senhor!
JOÃO JOSÉ: Você já sabe laçar?
VICENTE: Não.
JOÃO JOSÉ: Laçar é mais importante do que saber porque a lua fica
quebrada.
VICENTE: Por quê?
JOÃO JOSÉ: Porque é. Quer aprender?
VICENTE (afastando-se, até desaparecer): Se o senhor me explicar porque
a lua fica quebrada, aprendo a laçar também. (Sai). (RA, p. 463-464)
Línguas diferentes em mentes que não querem se comunicar. Este o
retrato dos diálogos de Vicente e João José que retornam ao palco pela
recordação de um ou outro. Mas o que movimenta tamanha incompreensão?
Essa é a pergunta que se faz Vicente e ela não pode ser respondida apenas
pelo conflito de gerações, nos adverte o autor, mas trata-se de procurar,
procurar, procurar. Escavar, escavar, escavar. E o inconsciente que brota
qual água de mina escondida na rocha é a matéria que escorre para o público,
ora cristalina, ora turva.
Os processos do sistema inconscientes (lcs), são intemporais; isto é, não
são ordenados temporalmente, não se alteram com a passagem do tempo;
não têm absolutamente qualquer referência ao tempo. A referência ao
308
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
tempo vincula-se, mais uma vez, ao trabalho do sistema consciente (Cs).
(FREUD, 1974, p. 214)
O que nos assinala Freud e que é sempre bom lembrar, é que a
intemporalidade e a desordenação temporal fazem parte intrínseca do
processo inconsciente. Jorge Andrade sabe disto e faz uma opção clara por
uma emergência do inconsciente em Rasto atrás. O tempo está esfacelado e o
personagem Vicente, qual um indivíduo que se submete à psicanálise e a
partir de então passa a lidar com a emergência e o fluxo desordenado das
imagens inconscientes e do esgarçar da memória − está exposto no palco,
expondo para o público a sua escolha por um resgate da memória consciente
e inconsciente.
Então, o que percebemos em Rasto atrás, é que enquanto forma e
estrutura cênica, o texto pede não só uma estética expressionista, como
também a liberdade de trabalhar com a multiplicidade de espaços, a
simultaneidade dos tempos e, em alguns momentos, a anulação do tempo.
A tendência a fragmentar a realidade e recompô-la em nova disposição
cênica atinge o ponto máximo, dentro do ciclo, em Rasto atrás, que não só
estilhaça o espaço e o tempo como rompe a unidade do protagonista,
fazendo-o ser interpretado por quatro atores, correspondente a quatro
idades e quatro situações cruciais de sua vida. A solidez do realismo
autêntico − o antigo, naturalmente − perde assim a sua consistência, ao
privar-se, além da personagem una e coesa, da estabilidade espacial e da
ordenação cronológica. O espetáculo, por sua vez, recorre agora a cenários
tendentes ao abstrato, muitos deles com acentuado predomínio dos
sentimentos subjetivos. Ao produto resultante dessa fusão de tendências
chamamos de realismo poético − a realidade psicológica e social, ainda
existente, refratada por processos que visavam a lhe dar maior alcance e
originalidade artística. (PRADO, 1988, p. 95-96)
Este realismo poético de que nos fala Décio de Almeida Prado é
entremeado com uma grande carga expressionista e, muitas vezes, traços de
um teatro épico. Expressionista porque nesse texto, a subjetivação atinge
um alto grau, e a própria subjetividade constitui-se em mundo
(ROSENFELD, in ANDRADE, 1970):
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
309
A justaposição simultânea de (...) planos temporais é, evidentemente, um
recurso épico. Só um narrador, no caso encoberto, pode manipular dois
níveis de tempo, fazendo com que as personagens vivam simultaneamente
em ambos. Na dramaturgia tradicional, em que não há essa possibilidade,
as personagens avançam irremediavelmente para o futuro, como na
realidade, inseridas no decurso linear do tempo, podendo apenas evocar o
passado pelo diálogo, nunca cenicamente. (1970, p. 614)
A presença do autor como um narrador onisciente, mas que ao
mesmo tempo tem no palco uma projeção fictícia que é Vicente, dramaturgo,
é algo extraordinário, porque está trabalhando com um recurso épico de
distanciamento e ao mesmo tempo o autor-personagem está no palco se
auto-imolando, gerando perplexidade e angústia, o que reforça a denominação
da peça de realismo poético, dada por Décio de Almeida Prado.
A peça tem uma cena capital, onde o pai se debate com os quatro
Vicentes e o público tem nessa cena um tecido complexo e entremeado de
lembranças conscientes e inconscientes dos Vicentes (em seus diferentes
momentos de vida) e do pai. A cena, que começa na página 516, inicia com
o pai falando das caças que correm rasto atrás e que nem estas puderam
com ele:
VICENTE (43 anos): Nós nos procuramos tanto, papai, e estávamos tão
perto... perdidos no mesmo mundo! (...) Cada um levanta a caça que quer,
mas deve voltar com ela bem firme nas mãos.
A partir daí, assistiremos a um tour de force onde pai e filho se digladiam
em vários momentos da vida. Sempre impenetráveis em suas caçadas
obstinadas. O pai, com suas caçadas de animais. O filho, caçando as palavras,
as imagens e a si próprio.
JOÃO JOSÉ: Vicente! Onde está você, meu filho? Vicente! (...) P’ra que
se esconder meu filho?
VICENTE (5 anos): Não estava escondido, papai.
JOÃO JOSÉ (sorri): Amoitado pior do que catingueiro!
VICENTE: É a minha gruta, papai.
JOÃO JOSÉ: Gruta?
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
VICENTE: Onde guardo minhas coisas. Como se fosse um segredo.
JOÃO JOSÉ: Também podemos chamar de amoitador, filho.
VICENTE: Que é isto?
JOÃO JOSÉ: Lugar onde as caças amoitam. (RA, p. 516)
Neste trecho fica bem clara a distância de zonas de pensamento de
um personagem e outro, expressa na linguagem. Enquanto que para Vicente
gruta é um lugar afetivo onde se guardam segredos, tesouros infantis; para
João José, isto é o estranho, o desconhecido que ele percebe no filho e está
relacionado com o ato malicioso de amoitar. Essa desconfiança do pai pelo
filho vai num crescendo ao longo da peça e transborda numa desconfiança
sexual, um temor pela homossexualidade. Mas o texto oferece uma pista
para o início desse ódio desmedido do pai pelo filho: é esse filho que lhe
roubara a mulher, pois se supõe que ela morrera no momento do parto.
VICENTE: Tem gente que não sabe o que é.
JOÃO JOSÉ: Você não sabe quem é?!
VICENTE (15 anos): Não. Acho que não.
JOÃO JOSÉ: Você é um homem. É o meu filho!
VICENTE: Não se trata disto! (RA, p. 517)
O espanto do pai diante do desconhecimento de Vicente de si próprio
é um traço agudo que conduzirá o conflito por toda a peça. João José, como
dizíamos anteriormente, vive num tempo circular, imutável. E nesse seu
mundo − que se situa no plano da mata − não há lugar para dúvidas e
fragilidades.
JOÃO JOSÉ: Você vive com o pensamento no mundo da lua!
VICENTE: P’ra dar certo, era preciso ter o pensamento no mundo dos
bichos?
JOÃO JOSÉ (Explode): No mundo dos homens, mesmo... seu burro!
VICENTE: Nós vamos devagar, papai! Não temos pressa. Mas, nós
chegamos lá. Usando um palavreado seu: nós vamos desamoitar esta caça.
E então... soltaremos toda a cachorrada... e no entardecer, quando não
nos restar senão a noite, voltaremos com ela, já de olhos vidrados, pendente
da garupa suada do nosso ódio.
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JOÃO JOSÉ (Confuso): De que é que está falando?!
VICENTE: De caças amoitadas, nada mais. Amoitadas dentro de nós,
nas moitas dos olhares, dos gestos e dos silêncios. Caças ferozes que não
atacam, mas cercam e isolam... até que suas presas morram de
incompreensão e solidão!
JOÃO JOSÉ: Com você não adianta conversar. Não entendo você.
(RA, p. 518-519)
Neste clímax da cena, percebemos Vicente fazendo uso da linguagem
imutável do pai e subvertendo-a, redescobrindo-a para si mesmo e para o
pai que, no entanto, não consegue entendê-lo. Percebemos então a linguagem
como incompletude e, como afirmava Lacan, “a situação do sujeito (...) é
essencialmente caracterizada pelo seu lugar no mundo simbólico, ou, em
outros termos, no mundo da palavra” (LACAN, 1979, p. 97).
A cena se estende por mais alguns momentos, com alta tensão entre
os personagens até terminar numa bofetada. Vicente ora com 5 ou 23, 15 ou
43 anos, vem de todos os pontos caçando esse pai que não se entrega no
afeto, carregado de rancor e desconfiança.
O tempo é anulado na cena capital da peça e não há qualquer
linearidade, a não ser o desenrolar de um processo emocional que se enrodilha
em si mesmo, qual novelo de fio. Para Vicente, o fio é o fio da memória.
Escorregadia e invasora, a memória ressurge de forma labiríntica e exige de
quem a quer possuir uma entrega total. E é Vicente, aos 43 anos, que a
deseja e se entrega a esse desvendamento tão doloroso de vasculhar a si mesmo
e a seus fantasmas, caças amoitadas maliciosas, que correm rasto atrás.
A memória é a faculdade épica por excelência. Não se pode perder, no
deserto dos tempos, uma só gota da água irisada que, nômades, passamos
do côncavo de uma para outra mão. A história deve reproduzir-se de
geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem, prolongando
o original, puxados por outros dedos. (BOSI, 1987, p. 48)
E Vicente parece saber disso, pois a sua volta ao passado não se
constitui, em momento algum, num desejo de vingança do ódio do pai, mas
sim uma busca de compreensão da sua gente e da nossa sociedade. Uma
sociedade que viveu agudamente as tensões entre a decadência da oligarquia
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rural e o surgimento de uma sociedade urbana onde muitas histórias se
parecem e guardam semelhanças com a história de Vicente, que também
guarda proximidade com as lembranças do autor Jorge Andrade.
O dramaturgo Vicente busca a si e aos outros, àquilo que lhe dá
forma, pois ao lidar com o teatro, ele sabe que é arte que se constitui de
matérias tão entremeadas como o recordar, o reviver e o reapresentar. Esse
homem, que se sabe com mil rostos, pois se dispôs à árdua tarefa de bordar
tecidos e cores diferentes para diferentes personagens precisa do seu passado.
Por mais que o autor Jorge Andrade se exponha no romance autobiográfico
Labirinto, onde encontramos seguidamente frases e diálogos que estão em
Rasto atrás e que na verdade foram vividos por Jorge Andrade, não nos
interessa o autor empírico (ECO, 1994) real, mas sim o autor Vicente, pois
é com ele que dialogamos.
O reencontro entre pai e filho finaliza a peça quando o pai ao ver o
filho Vicente, acredita que agora pode compreendê-lo, “já na hora do pega”:
JOÃO JOSÉ: − Eu vim p’ra morrer, meu filho. Agora, eu posso! (RA, p.
525)
“Perpassado pela dor, o texto impõe-se por sua dramaticidade e capacidade
de utilização de recursos expressionistas e épicos” (ROSENFELD, in
ANDRADE, 1970, p. 615).
Além do esfacelamento e, por vezes, da anulação do tempo que
propõe um espaço simultâneo não-linear, Jorge Andrade faz um trabalho
cuidadoso de recuperação da linguagem. É na linguagem que desenha as
características sociais de grupamentos diferentes: São Paulo, 1960; cidade
interiorana, 1920; e homens vivendo na mata, num lugar primitivo, sem
tempo.
Jorge Andrade traça um painel do Brasil rural e do surgimento do
progresso. Presente e passado se interpenetram, expondo temas sociais
decorrentes destas mudanças. A questão da sexualidade surge em momentos
diferentes da peça, através da avó Mariana afoita para as filhas casarem, mas
ao mesmo tempo impedindo-as de viverem suas próprias vidas, indicando a
raiz do estigma das solteironas no interior do Brasil. O pai, com sua
desconfiança cerrada sobre Vicente, demonstrando os valores fechados em
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
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si mesmos de uma cultura machista e patriarcal. O espectro do homem
machão, durão, que deveria exercer seu poder de comando e sua sexualidade
a qualquer preço é negado por Vicente. Essa negação anuncia um novo
tempo, urbano, não-alicerçado no coronelismo vigente no interior do Brasil
antes de 1930.
Outros escritores, entre nós, têm posto seu passado em termos de literatura.
Creio, porém, ser a primeira vez, nas letras brasileiras, que um escritor
enfrenta o problema da sua própria situação em uma cultura adversa ao
seu trabalho. Jorge Andrade, com extrema coragem e grande vigor literário,
empreende essa tarefa. Não escreveu, insistamos, o drama de um jovem
que sofre por não alcançar com seu pai um determinado nível de
compreensão; mas o do escritor − no caso um dramaturgo, o que se torna
ainda mais terrível, dada a impiedosa estrutura de nossos meios teatrais −
que não atinge aquele nível nas relações com o povo a que ama e ao qual
desesperadamente se dirige. Neste sentido, Rasto atrás, além de suas
indiscutíveis virtudes cênicas (...) é um dos mais contundentes documentos
de nossa literatura. (LINS, in ANDRADE, 1970, p. 656)
Isso nos leva a uma reflexão sobre as relações entre dramaturgia e
história. Para Anne UBERSFELD (2005, p. 94) “o espaço teatral é o lugar
da história” e essa afirmação reforça o pensamento de que nessa vertente da
dramaturgia brasileira há uma necessidade de entender a sociedade do nosso
país e, ao compreendê-la, construí-la. Cada peça de teatro é um recorte de
um momento sócio-político e revela costumes, comportamentos e
estruturações dessa sociedade.
No teatro, o que sempre se reproduz são as estruturas espaciais, que
definem não tanto um mundo concreto, mas a imagem que os homens
têm das relações espaciais na sociedade em que vivem, e dos conflitos
que sustentam essas relações. (UBERSFELD, 2005, p. 94)
Rasto atrás é uma peça que prima por uma relevância do subjetivismo,
o que a aproxima da estética expressionista. E o palco para expressar este
drama subjetivo, torna-se então espaço interno, espaço onde o psiquismo
aflora e cria outras possibilidades simbólicas para a encenação. Na relação
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entre espaço e psiquismo, a cena assemelha-se a um campo fechado, num
grande embate do eu e suas divisões, pois “o espaço cênico pode também se
apresentar como um vasto campo psíquico em que forças se enfrentam – as
forças psíquicas do Eu” (UBERSFELD, 2005, p. 94).
Em Rasto atrás a casa está ali, fortemente arraigada na memória, mas
ela parece disputar a centralização com o espaço público, coletivo. A relação
entre indivíduo e sociedade é a primeira contradição que nos é apontada por
esse texto. Mas a multiplicidade e a fragmentação do espaço mental do
personagem Vicente é o enfoque principal da peça.
Algumas oposições bem urdidas pelo autor: a casa como tempo
estagnado em contraposição às transformações dinâmicas da sociedade – o
cinema (a imagem e a ficção) e o trem (a velocidade e o real). O espaço
circular e imutável da mata onde está o pai em oposição ao movimento do
filho em busca de si mesmo. Movimento incessante e desordenado, atemporal,
cronológico, tecendo metaforicamente um outro espaço, que é a questão
crucial do texto: a metalinguagem expressa no espaço da escrita. A memória
é a guia mestra dessa história, e vai tornar real que o espaço é um decurso de
tempo.
Em Rasto atrás, há uma ligação intrínseca, quase que metafísica, dos
objetos com o pensamento expresso na peça. Alguns objetos são
fundamentais: o relógio (constante em grande parte da obra de Jorge Andrade)
que denuncia o passar do tempo; a flauta, que fala do fazer e do prazer
artístico e que nesta peça é colocada como objeto repudiado pela avó (“mulher
de pés no chão”) e amado pelo avô (“homem sonhador”); a cama da avó
(símbolo do seu poder, do poder do matriarcado, da casa como território
dominado pelas mulheres); as perneiras do pai (símbolo do autoritarismo do
pai caçador, mandante, dominador da vida animal); e os livros, a paixão de
Vicente pela magia das palavras que o atariam à vida. O autor dá uma
dimensão poética aos objetos, tornando-os sujeitos também da história, como
vemos na fala abaixo:
VICENTE: Em nossa casa, na fazenda, havia um relógio em frente à
janela da sala. (...) Gostava de ver no vidro dele, refletidos, galhos de
árvores do pomar, cachorros e galinhas que passavam, gente. Era como
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se fosse uma bola de cristal onde eu pudesse ver tudo. Um espelho que
era só meu, que refletia o que eu desejasse. (RA, p. 508)
Esse adentramento na intimidade dos personagens se efetiva com a poetização
e a relevância dos objetos da casa. No diálogo entre tias e Vicente, quando
uma louça é quebrada, em meio à festa da chegada de Vicente, evidenciamse as colocações acima:
ETELVINA: Vamos deixar de mentir, Jesuína! Não suporto mais isto.
VICENTE: Não suporta o quê, tia?
ETELVINA: A travessa não era nossa. Já vendemos toda a louça.
VICENTE: Pediram emprestado? Eu pago.
ETELVINA: Não. Serão entregues depois que morrer a última de nós.
JESUÍNA: Ora, Etelvina!
ETELVINA: Nada mais nos pertence: nem casa, nem louças, nem cristais.
Só restou o relógio... porque é seu. Pode levar também.
VICENTE: (horrorizado) Mas... isto é um saque contra a morte!
ETELVINA: E contra o que deveríamos sacar? (RA, p. 490-491)
A poeticidade de Rasto atrás está acentuada na relação íntima dos
personagens com os objetos – signos do tempo, da memória, como nos
afirma a Tia Isolina no trecho abaixo:
ISOLINA: – A morte não apaga essas coisas. (...) Suas marcas ficam em
nós para toda a vida. Penso que nada morre, Pacheco. Tudo permanece
fechado entre as paredes, nas gavetas, agarrado aos objetos. (RA, p. 466467)
Ao resgatar a obra de Jorge Andrade, através da análise da sua peça
Rasto atrás, o impulso analítico foi de contribuir para o pensamento crítico
sobre a dramaturgia brasileira e seus possíveis caminhos. Uma peça de teatro
é um organismo onde todas as partes são determinadas pela idéia do todo, já
nos ensinava Aristóteles. E este todo se constrói na interação dinâmica das
partes. Na busca do que integra a unidade central dessa peça, destaca-se que
a memória individual interage com a memória social.
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Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
Na mitologia grega, a memória, Memosine é mãe de Clio, musa da
história e irmã de Cronos (tempo). Tempo, memória e história são anteriores
ao reinado de Zeus e, portanto, arcaicos. Essa digressão mitológica nos faz
entrever ligações mito-poéticas nas peças que trabalham com a memória
como fio condutor e alicerce emocional de construção dos personagens. E
essas peças constituem um caminho que se inicia com Vestido de noiva de
Nelson Rodrigues, acentua-se na obra de Jorge Andrade e irá encontrar
ressonâncias em Naum Alves de Souza, Flávio Márcio e Oduvaldo Vianna
Filho em Rasga coração no período de criação dramatúrgica que se estende de
1943 a 1980. Após a ditadura militar, a produção dramatúrgica no Brasil
encontrou outros caminhos em múltiplas facetas.
O caráter de modernidade presente nos textos de Jorge Andrade e
dos outros autores que citamos anteriormente se dá pela relação que esses
autores estabelecem com a memória, o tempo e a linguagem. A arte moderna
volta-se sobre si mesma e reconhece como relativos o mundo empírico dos
sentidos, abrindo um espaço de interioridade e de correlações simbólicas. O
teatro moderno percebe espaço e tempo não mais como unidades fixas e
normativas, mas, como pensava Kant, formas subjetivas da nossa consciência
e que projetam a realidade sensível dos fenômenos.
E é pela memória que se tece uma linhagem do drama moderno
brasileiro. Memória que não está atada a um desenvolvimento cronológico,
mas transita por territórios vários, espacializando a linguagem, fragmentando
o tempo e trabalhando intimamente com as características essenciais ao fazer
teatral.
As relações da arte com a história “são duplas, porque por um lado,
dizem respeito à sua emergência da história e, por outro, à sua presença nela;
de uma parte, à sua intemporalidade e, de outra, à sua temporalidade”
(PAREYSON, 1984, p. 104).
Ao analisarmos a gênese de uma obra, percebemos no interior desta
as conexões com a situação histórica, com as condições desta sociedade,
com as características do povo e de sua linguagem. E essa aliança entre
memória, espaço e consciência faz com que possamos perceber um todo
orgânico na relação entre indivíduo e sociedade.
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REFERÊNCIAS
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HEIDEGGER, Martin. Conferências e escritos filosóficos. Trad. Ernildo Stein. Coleção
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Trad. Betty Milan. Rio de Janeiro: Colégio Freudiano do Rio de Janeiro: Zahar
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LINS, Osman. Significação de Rasto atrás. In: ANDRADE, Jorge. Marta, A árvore e o
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PAREYSON, Luigi. Os problemas da estética. Trad. Maria Helena Nery Garcez. São
Paulo: Martins Fontes, 1984.
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ROSA, João Guimarães. Primeiras estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 27. ed.,
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ROSENFELD, Anatol. O teatro épico. São Paulo: São Paulo Editora, 1965. (Coleção
Buriti).
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________. Visão do ciclo. In: ANDRADE, Jorge. Marta, A Árvore e O Relógio. São
Paulo: Perspectiva, 1970.
UBERSFELD, Anne. Para ler o teatro. Trad. José Simões (coord.). São Paulo:
Perspectiva, 2005.
Artigo recebido em 14.04.2008.
Artigo aceito em 06.08.2008.
Lílian Fleuri Dória
Mestre em Literatura Brasileira (UFPR).
Graduada em filosofia.
Professora no Bacharelado em Artes Cênicas da Faculdade de Artes do Paraná.
Diretora teatral, arquiteta e urbanista.
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MACRO E MICRO PODERES EM
DUAS PEÇAS DE PLÍNIO MARCOS
Roberto Ferreira da Rocha
[email protected]
RESUMO: As pesquisas desenvolvidas sob
a inspiração da obra de Michel Foucault
muito têm contribuído para o esclarecimento
do funcionamento dos micro-poderes nas
sociedades contemporâneas. Tais trabalhos
revelam a dinâmica do poder dentro dos
pequenos grupos que atuam como células
do tecido social em instituições tais como a
família, a escola, hospitais e prisões. No
entanto, a relação entre macro e micro
poderes pouco tem sido abordada. Assim, a
for ma como as relações de opressão
desenvolvidas em regimes totalitários se
espraiam pelo tecido social, moldando
interações entre indivíduos, é ainda um
campo vasto para investigação. No entanto,
se nas ciências sociais tais questões ainda não
alcançaram toda atenção que merecem, este
é um tema que tem sido abordado de forma
bastante intensa pelo drama moderno e
contemporâneo. No Brasil, a partir dos anos
60, quando o país viveu sob a tutela de um
regime autoritário que impôs forte censura ao
teatro, os dramaturgos desenvolveram formas
de abordar a opressão a partir da ótica do
indivíduo. Dentre eles, talvez tenha sido
Plínio Marcos que tenha criado a obra mais
radical. Neste artigo pretendo abordar em duas
de suas peças – Quando as máquinas param e A
dança final – o modo como os conflitos de
gênero e identidade, vividos pelos dois casais
protagonistas, refletem a opressão gerada
pelo macro-poder.
ABSTRACT: Research inspired by Michel
Foucault’s work has contributed to enlighten
the way capillar y power functions in
contemporary society. Such research reveals
the dynamics of power inside small groups
that spin and weave the social tissue, such as
the family, schools, hospitals and prisonhouses. However, the relationship between
the micro and macro powers has seldom
been explored. Thus, the way power relations
developed in totalitarian regimes infiltrate
in society, fashioning the relationships
between individuals, is still a large field of
investigation. If, in the social sciences these
relationships have rarely been investigated,
the issue has been much presented in
modern and contemporary drama. In Brazil,
from 1965 to 1984, when the country was
governed by a military dictatorship,
dramatists developed dramatic forms to face
the oppression issue from the point of view
of the individual. Among them, Plinio
Marcos is perhaps the most radical
playwright of the period. In this paper, I
intend to focus on two of his plays – When
the machines stop and The final dance – the way
the gender and identity conflicts experienced
by the two pairs of protagonists reflect the
oppressive situation generated by macropower.
PALAVRAS-CHAVE: Micro-poder. Macro-poder. Teatro brasileiro. Plínio Marcos.
KEY WORDS: Micro-power. Macro-power. Brazilian theatre. Plinio Marcos.
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A vocação eminentemente política do teatro tem sido apontada por
vários teóricos. Bernard Dort, um dos mais importantes críticos teatrais da
segunda metade do século vinte, e um brechtiano de primeira hora, afirmava
que o teatro “apesar de não ser mais que um jogo, não deixa de ser o eco, a
mímica e o modelo de nossa vida comum” (DORT, 1986, p. 21, tradução
minha). E, Denis Guénoun, em texto mais recente, enfatiza ainda mais o
caráter político do teatro.
O teatro é, portanto, uma atividade intrinsecamente política. Não em razão
do que aí é mostrado ou debatido – embora tudo esteja ligado – mas, de
maneira mais originária, antes de qualquer conteúdo, pelo fato, pela
natureza da reunião que o estabelece. O que é político, no princípio do
teatro, não é o representado, mas a representação: sua existência, sua
constituição, “física”, por assim dizer, como assembléia, reunião pública,
ajuntamento. O objeto da assembléia não é indiferente: mas o político
está em obra antes da colocação de qualquer objeto, pelo fato de os
indivíduos se terem reunido, se terem aproximado publicamente,
abertamente, e porque sua confluência é uma questão política – questão
de circulação, fiscalização, propaganda ou manutenção da ordem.
(GUÉNOUN, 2003, p. 15)
A enunciação teatral se dá sempre num contexto público. Um grupo
de técnicos e artistas, responsáveis pelo espetáculo, dirige sua enunciação a
um outro grupo presente no mesmo espaço-tempo, os espectadores, que
participa diretamente da condução do evento enunciativo durante todo o
seu desenrolar, sendo mesmo capaz de interferir nos rumos da própria
enunciação teatral.
Em momentos de intenso controle da sociedade civil pelo aparelho
de estado, pode o teatro se tornar um espaço de congregação de grupos
dissidentes ao regime autoritário. É revelador, nesse sentido, o depoimento
de Heloisa Buarque de Holanda sobre a recepção do espetáculo Opinião por
aqueles que se rebelaram contra o golpe militar, em 1965. Conta a autora,
em seu livro Impressões de Viagem:
Lembro-me de ter assistido várias vezes ao show, de pé, arrepiada de
emoção cívica. Era um rito coletivo, um programa festivo, uma ação entre
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amigos. Um encontro ritual, todos em “casa”, sintonizados secretamente
no fracasso de 64, vivido como um incidente passageiro, um erro
informulado e corrigível, uma falência ocasional cuja consciência o rito
superava. (HOLLANDA, 1981, p. 35)
Para além do conteúdo do show, que, como afirma Heloisa Buarque de
Holanda, ainda estava comprometido com um extremo didatismo político,
o show propiciava a experimentação por parte da platéia de uma forma
ritualística de fazer política, típica dos anos 60 daqueles que eram apontados
pejorativamente pelas facções políticas mais tradicionais, tanto de direita
quanto de esquerda, de “esquerda festiva”.
Já Aristóteles afirmava que a arte trata sempre do universal; o filósofo
ensina, na Poética, que o autor, ao criar sua obra, “atribui a um indivíduo de
determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de necessidade e
verossimilhança, convêm a tal natureza” (ARISTÓTELES, 1987, p. 209).
Dito de outra forma, na arte, o individual alcança sempre a estatura do
arquétipo. E, no teatro, arte do presente, que necessita da co-presença de
artistas e espectadores para que a obra se produza, deve-se acrescentar ainda
a relevância do texto para o momento em que é encenado. Mesmo que se
trate da montagem de um texto clássico, escrito muitos séculos antes, ao ser
enunciado em cena, a obra adquire imediatamente para os participantes do
evento teatral, um significado novo; ou seja, para os enunciadores do texto
teatral, ele se refere direta ou indiretamente ao momento presente, daí que o
texto escrito para cena apresente uma constante instabilidade, que muitas
vezes críticos e estudiosos procuram inutilmente conter. Além disso, as ações
no teatro não possuem sentido apenas em si mesmas. A ação dramática
implica a estrutura que a torna possível. Ou seja, as ações representadas no
palco muitas vezes remetem a uma dimensão superior, seja ela cósmica,
como na tragédia grega, seja ela social, como no drama moderno, que as
engloba, dotando-as de sentido.
A obra de Plínio Marcos (1935-1999) se caracteriza geralmente por
textos em que um pequeno número de personagens, confinados num espaço
exíguo, opressor e asfixiante, se digladia numa luta às vezes mortal pelo
poder num universo de seres excluídos: indivíduos marginalizados, ou à
beira da marginalização, enredados em situações que são incapazes de
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compreender inteiramente. Seus anti-heróis estão fadados ao fracasso, pois
não são capazes de enxergar os mecanismos que dirigem suas vidas.
O diálogo, no entanto, é construído de forma a deixar o espectador
entrever o que muitas vezes escapa à consciência dos personagens. Estes
ocupantes de um território excluído sentem até fisicamente a opressão, mas
são incapazes de achar uma solução para ela. Como procurarei demonstrar
aqui, este beco sem saída tem como origem formações discursivas que, ao
mesmo tempo, estruturam a identidade das personagens, e sujeita-as à
situações de opressão da qual não conseguem escapar.
Tendo sido um dramaturgo que desenvolveu a maior parte de sua
obra durante o período mais negro da ditadura militar implantada no país a
partir do golpe de 1 de abril de 1964, Plínio Marcos foi durante toda sua
carreira uma vítima constante da censura. Sua carreira praticamente estaciona
na década de setenta. Não que ele tivesse parado de criar novos e instigantes
textos (muito menos conhecidos, porém, que as obras primas dos anos
sessenta, Barrela, Dois perdidos numa noite suja, Navalha na carne e Abajur Lilás).
Porém, muitas de suas peças não chegaram a ser encenadas, ficando, portanto,
irrealizadas como obras teatrais.
O teatro de Plínio Marcos, apesar de intrinsecamente político, nunca
foi um teatro de agit-prop, de ataque direto ao Estado ou ao status-quo. Em
suas primeiras peças, a maioria de um ato, Plínio Marcos trabalha dentro do
gênero que Peter Szondi chamou de “peça de conversação” (SZONDI, 2001,
105-108). Diferentemente do drama clássico burguês, no qual o diálogo era
o cerne da ação dramática que se desenvolvia a partir da interação de sujeitos
autônomos e auto-suficientes, cujo conflito se dava apenas ao nível individual,
a peça de conversação em um ato, forma a qual Plínio Marcos se ateve na
primeira fase de sua obra, retornando e ela em algumas de suas últimas
peças, é produto um momento histórico em que o herói dramático não pode
ser mais considerado sujeito autônomo, único responsável por seu destino,
como o era o herói do drama burguês. O herói de Plínio Marcos experimenta
o que Theodor Adorno chamou uma “vida danificada”, ficando à mercê de
forças sociais e simbólicas que o sujeitam, conforme explica Pasta Júnior
em sua apresentação do livro de Szondi (2001, p. 15).
Geralmente tais peças representam o ponto culminante de uma situação
insustentável que antecede à catástrofe final. Embora não possuam um tom
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panfletário inflamado, elas remetem inevitavelmente à uma situação política
macro, que estrutura a interação dos personagens no espaço exíguo que
habitam. Nas duas peças que formam o cerne desta comunicação, estes
espaços são, respectivamente, uma casinha de periferia de um casal de
proletários, em Quando as máquinas param (1967), e o quarto de um casal de
classe média alta, em A dança final (1994).
Em sua crítica à Navalha na carne, Décio de Almeida Prado faz uma
observação ao diálogo de Plínio Marcos, que pode servir de mote para a
minha discussão de Quando as máquinas param e A dança final. Escreve Décio que
Plínio Marcos é mestre nessas sugestões psicológicas que não se aclaram
totalmente – e talvez nem mesmo para o autor. O seu diálogo comporta
sempre dois planos: o das palavras, simples, elementar, de acordo com o
nível mental das personagens; e o dos sentimentos, das reações inexpressas,
que, ao contrário, é bastante sutil e complexo. O interesse teatral está na
correlação entre esses dois planos, naquilo que poderíamos chamar de
transparência dramática: a capacidade de revelar o pensamento que não
chega a ser articulado pelo diálogo. (PRADO, 1987, p. 217-218)
Os dois planos que Décio de Almeida Prado aponta no diálogo de Plínio
Marcos ainda me parece marcado por uma leitura meramente psicológica do
seu teatro. O “plano do que fica subentendido” não parece estar ligado ao
interior do indivíduo como algo que escapa à consciência dos personagens,
mas antes ao móvel da situação que os enreda, móvel esse que é sempre
social.
Estas duas peças desenvolvem uma situação única, reduzida aos seus
elementos essenciais; porém, ela não está, em ambos os textos, enfeixada em
um único ato, mas se desenvolve em uma série de quadros mais ou menos
autônomos, o que as coloca na fronteira entre o dramático e o épico.
Com relação ao seu conteúdo, temos um conflito ao nível micropolítico que está intimamente relacionado a uma situação social do nível
macro-político, pois é a estrutura social e política que dá sentido aos conflitos
entre os indivíduos, embora eles não sejam um mero reflexo dela. Mais
especificamente, pretendo relacionar nestas peças a crise dos papéis
masculinos de provedor e amante, respectivamente, com as modificações
estruturais da organização do trabalho social, em Quando as máquinas param,
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e a obsessão pelo consumo e pela manutenção da imagem de sucesso pessoal
e profissional dentro da ordem ideológica neoliberal, em A dança final.
Quando as máquinas param conta a história de um operário nãoqualificado desempregado, Zé, e sua mulher, Nina, em cinco quadros mais
ou menos independentes que se sucedem cronologicamente. No desenrolar
da ação, o agravamento da situação profissional de Zé causará a ruína de sua
identidade como homem, e culminará com um ato de violência física contra
sua companheira que coloca em risco a continuidade da convivência dos
dois. A peça termina em aberto, sem que o autor apresente uma solução
final para o conflito.
Os quatro primeiros quadros descrevem sempre um mesmo
movimento que vai do desânimo à euforia provisória, que se desfaz novamente
no quadro seguinte, como se os personagens estivessem enredados numa espécie
de círculo vicioso com o qual não conseguem romper.
A peça se inicia com Nina dentro de casa, preparando o almoço,
enquanto ouve Zé jogar futebol com os moleques da rua. Nina obviamente
incomodada com a situação chama o marido para comer, interrompendo a
ação que se desenvolve fora de cena. É partir dessa situação que o conflito
do herói se delineia. Zé, o operário desqualificado desempregado não
consegue assumir um dos principais papéis sociais que a cultura outorga aos
homens, o de provedor. Ele procura aliviar seu desconforto no campo de
futebol improvisado na rua, onde experimenta o prazer gerado pela autosatisfação que seu domínio da bola proporciona, numa atitude obviamente
regressiva. No entanto, esses raros momentos de escapismo são cortados
pela fala de Nina, sempre a ser referir ao dinheiro escasso, às dívidas com o
Português do armazém e ao atraso do aluguel, obrigando Zé a se voltar para
as responsabilidades que ele tem que assumir para forjar sua identidade de
homem adulto.
Nina, por seu lado, encarna em seu discurso, vazado de chavões de
fundo religioso, o princípio da realidade. Ela prega uma atitude de retidão
moral que Zé não consegue seguir inteiramente. Costurando para fora, ela
vai de certa forma assumindo o papel que deveria caber ao marido. É essa
atividade econômica informal que, mesmo precariamente, mantém os dois.
A situação econômica de Zé se torna ainda mais crítica quando o
senhorio pede a casa que eles alugam, radicalizando a seu conflito existencial,
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pois a única solução é ele ir morar com a esposa na casa da sogra, alternativa
que deteriora ainda mais a auto-imagem de Zé.
ZÉ – Você acha que eu vou comer esmola? Morar de esmola? Você acha
que eu vou viver de esmola? Eu não sou aleijado, nem nada. Sou forte.
Quero trabalhar. (109)
Porém, com o mercado de trabalho formal em franco retraimento,
Zé vislumbra a possibilidade de entrar de vez na marginalidade, destino de
muitos dos meninos do grupo de moleques com o qual Zé tanto se identifica.
ZÉ – Se não fosse por você, Nina, eu largava a mão de tudo. Ia ser o cara
mais estrepado. Não queria nem saber. Começava pelo porção. Mandava
o sacana pra glória. Dava tanta porrada nele, que quando largasse o filho
da puta nem a mãe dele ia reconhecer. Amassava o focinho dele. Desse o
que desse. Palavra que hoje eu só queria ser solteiro. Fazia o azar. (94)
A corrosão de sua identidade de provedor leva Zé ao desespero. Ele abdica
até do papel de pai, que tanto desejara, e tenta forçar a mulher a abortar o
primeiro filhos deles.
NINA – Eu estou te estranhando.
ZÉ – Até eu estou me estranhando. De repente, eu abri os olhos e vi que
pra gente não tem saída. Não dá pra ter filho.
NINA – Mas é seu filho.
ZÉ – E daí? Você quer que eu fique de boca aberta, como artista de
cinema americano?
NINA – Não! Só quero que você não diga besteira. Você está pensando
que filho é o quê?
ZÉ – Filho é luxo. É pra quem pode.
NINA – Se Deus manda, a gente tem que receber.
ZÉ – Que Deus manda! Se a gente seguisse a tabela direito, você não
pegava.
NINA – Pois é. Mas peguei.
ZÉ – E vai tirar na marra. (116)
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Quando Nina recusa abortar, pois o ato contraria suas posições religiosas, e
ameaça deixar o marido, Zé, num surto de violência incontida, dá um soco
na barriga da mulher. Com este ato de violência a peça termina.
No livro de Viviane Forrestier, O horror econômico, encontrei uma frase
que me pareceu resumir perfeitamente a catástrofe do herói de Plínio Marcos:
“uma vez reduzido a zero, o excluído se torna expulso” (FORRESTIER,
1997, p. 46). Escrita em 1967, a peça já se refere, em suas entrelinhas, à
situação das relações de trabalho no mundo atual que Forrestier analisa em
seu ensaio. Zé, incapaz, devido a sua posição de classe, de adquirir o capital
social indispensável para ser um indivíduo minimamente preparado para
assumir o papel de provedor, que ele acredita indispensável para forjar
plenamente sua masculinidade, é condenado a ser absorvido na multidão de
párias que o atual estágio do capitalismo produz ao torná-los inassimiláveis
ao mercado de trabalho.
Em A Dança Final, o tema da impotência masculina adquire
ressonâncias metafóricas. Como na peça anterior, o que está em jogo é a
perda da identidade masculina. O cenário deste drama é o quarto de um
casal de classe média alta. No diálogo entre Menezes e sua mulher, Lisa,
reverberam ainda as vozes dos participantes dos dois ambientes freqüentados
pelos protagonistas em seu condomínio de luxo, a piscina, lugar de encontro
das mulheres, e a sauna, lugar de encontro dos homens.
Vendedor de ações de sessenta anos, com uma privilegiada posição
social, um casamento sólido, dois filhos, apartamento próprio em condomínio
de luxo, carro importado do ano, Menezes não consegue ver mais sentido
em tudo que adquiriu na vida, pois lhe falta aquilo dava sentido a tudo: a
potência sexual, símbolo do poder falocrático que imagina deter. Para
Menezes todas as conquistas de sua vida tinham como objetivo forjar a
imagem do macho vencedor.
MENEZES – Você parece que não compreende. Esse carrão é ferramenta
de trabalho. Impõe respeito. Abre portas. Sou vendedor de ações. Tenho
que chegar dando um ar de vitorioso. Carrão, terno sob medida, gravata
estilosa.
LISA – É... Aí, estafa para manter a aparência.
MENEZES – É isso mesmo.
LISA – Que lógica! Cheio de luxo e estafado!
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MENEZES – Meu pau ninguém vê. Mas eu preciso ir à luta pra manter
nosso padrão de vida. (15)
Mas ao se tornar impotente, sua auto-imagem se deteriora, corroendo
sua identidade. Menezes assim descreve sua crise existencial:
MENEZES – Antigamente... eu tinha pau. Comparecia sempre... sem
vacilo. Agora, é só vexame.] Eu perdi a alegria de viver... a coragem... a fé
em mim mesmo. Não tenho ânimo pra trabalhar. Perdi a fome... o sono.
Meu Deus, é uma loucura... Há seis dias eu ... E me parece uma eternidade.
Estou me consumindo... coisa louca... uma loucura desesperada que não
me tira a consciência da impotência. Estou infernizado. A vergonha de
ter sido viril e já não ser. (19)
Na sociedade altamente competitiva que é a sua, Menezes não
consegue mais encontrar seu lugar. E o medo, então, toma conta de sua
vida.
MENEZES – Tenho medo. Tenho medo do ridículo. Medo de pegar
fama de brocha. Logo vira fama de corno. Meu Deus, ando com medo de
tudo... De dar trombada. De ser assaltado. De não fechar negócio... medo
de tudo. (36)
Com a decadência física e moral de Menezes, Lisa vai invertendo as
relações de poder dentro do casamento e no final da peça ela passa de esposa
submissa aos desejos do marido à principal artífice do jogo de aparências
social que tem sido a tônica da vida dos dois. No último quadro, Menezes,
cede à chantagem de Lisa, que ameaça revelar sua impotência a todos,
conseguindo que ele finalmente concorde em celebrar suas bodas de prata.
O drama de Menezes tem como pano de fundo um universo social
dominado pela ética do consumo e obcecado pela manutenção da imagem
narcísica de sucesso pessoal e profissional.
As peças de Plínio Marcos realizam plenamente a vocação política do
teatro. Seu enfoque principal remete aos micro-poderes que permeiam
interações individuais; mas nas fendas do diálogo, nas lacunas e não-ditos
das falas dos personagens, nas formações discursivas que informam sua
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ideologia, ressoa sempre a esfera do macro-poder. A grandeza deste autor
está em explicitar na sua escrita dramática a dupla implicação destes dois
planos, sem o recurso do discurso panfletário.
REFERÊNCIAS
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco; Poética. Trad. Leonel Vallandro e Gerd Bornheim
(Ética a Nicômaco) e Eudoro de Souza (Poética). São Paulo: Nova Cultural, 1987. (Os
pensadores).
DORT, Bernard. Théâtres: Essays. Paris: Seuil, 1986.
FORRESTER, Viviane. O horror econômico. Trad. Álavaro Lorencini. São Paulo:
Unesp, 1997.
GUÉNOUN, Denis. A exibição das palavras. Trad. Fátima Saadi. Rio de Janeiro,
Teatro do Pequeno Gesto, 2003.
HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde:
1960/70. São Paulo: Brasiliense, 1981.
MARCOS, Plínio. Navalha na carne/Quando as máquinas param. São Paulo: Círculo
do Livro, 1981.
________. A dança final. São Paulo: Maltese, 1994.
SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880-1950). Trad. Luiz Sérgio Repa. São
Paulo: Cosac & Naify, 2001.
Artigo recebido em 21.05.2008.
Artigo aceito em 20.08.2008.
Roberto Ferreira da Rocha
Doutor em Inglês pela Universidade de Santa Catarina.
Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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ANEXO
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331
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ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
ESTÉTICA DO EFEITO
Wilfred L. Guerin et alii (autores)1
Brunilda T. Reichmann e Julián Bargueño (tradutores)
A estética do efeito ou a teoria do efeito estético [reader-response
criticism] , um dos desenvolvimentos recentes mais importantes na análise
literária, surgiu principalmente como uma reação contra a Nova Crítica, que
dominou a área de teoria literária durante cerca de meio século. A Nova
Crítica, ou abordagem formalista, contou com alguns dos nomes mais
importantes da Literatura Americana e Inglesa entre seus teóricos, críticos e
disseminadores, tais como I. A. Richard, T. S. Eliot, William Empson, John
Crowe Ransom, Allen Tate, Cleanth Brooks, Robert Penn Warren e R. P.
Blackmur. (Deve ser observado que estes teóricos não tinham uma abordagem
formalista única; na verdade, Richard e Blackmur ambos escreveram ensaios
que questionam características básicas da Nova Crítica e sugerem mais do
que uma simples inclinação à teoria do efeito estético.)
[...] Mesmo correndo o risco de parecer simplista e, portanto,
representar de modo superficial o formalismo, pode-se afirmar que esta
abordagem considera um texto literário como um objeto de arte com
existência própria, independente e não necessariamente relacionado com
seu autor, seus leitores, a época histórica que ilustra ou o período histórico
no qual foi escrito. Seu significado surge quando leitores fazem uma análise
minuciosa do texto, e apenas dele, sem consideração a quaisquer outras
informações exteriores ao mesmo. Tal exegese resulta na percepção da obra
literária como um todo orgânico, no qual todas as partes se encaixam e são
perfeitamente relacionadas, formando assim um significado objetivo. O
formalismo concentra-se no texto, como a única fonte de interpretação. O
texto – poema, peça ou conto – tem significado em si mesmo e revela-se
para o leitor crítico que o examina, segundo as condições do próprio texto. O
objetivo da crítica formalista é mostrar como a obra alcança seu significado.
1
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333
Esta perspectiva crítica formalista é o resultado de uma visão que
essencialmente não considera a literatura como um meio para atingir um
fim (como os gregos a consideravam), ou como uma expressão de
individualismo, emoção e comunhão entre os seres humanos (tendências
românticas marcantes), ou como o produto de impulsos psicológicos
complexos (uma perspectiva psicanalítica moderna). Antes, o formalismo
vê a literatura como um tipo de conhecimento peculiar e especial, que oferece
ao ser humano as mais profundas verdades a ele relacionadas, verdades que
a ciência é incapaz de revelar. A literatura tem sua própria linguagem, diferente
e mais intensa do que a linguagem comum (científica). Essa linguagem não
é, no entanto, subjetiva ou anárquica; é compreendida e diferenciada por
uma metodologia sistemática e rigorosa: a leitura minuciosa [close-reading] e a
aplicação dos conceitos e vocabulário da análise literária. Paradoxalmente,
apesar de denegrir a ciência como único meio de conhecimento, os críticos
formalistas empregam as técnicas da ciência ao interpretarem a arte literária.
O formalismo, então, foca-se no texto, encontrando nele todo significado e
valor e considerando tudo mais como alheio, incluindo leitores, que os críticos
formalistas consideram absolutamente perigosos como fontes de interpretação.
Apoiar-se em leitores como fonte de significado é o mesmo que se tornar
vítima do subjetivismo, relativismo e outros tipos de insanidades críticas.
Críticos da estética do efeito têm uma abordagem radicalmente
diferente. Eles acreditam que os leitores foram ignorados em discussões do
processo de leitura ao invés de ser a preocupação central, como deveriam ter
sido. O argumento é mais ou menos o seguinte: de certo modo, um texto
nem sequer existe até que seja lido por alguém. De fato, o leitor tem sua
parcela na criação ou é, até mesmo, criador do texto. É como a velha questão
colocada nas aulas de filosofia: se uma árvore cai na floresta e ninguém
ouve, ela fez barulho? Críticos da estética do efeito dizem que, de fato, se
um texto não tem um leitor, ele não existe – ou pelo menos não tem
significado. São leitores, com a experiência que trazem ao texto, quem lhes
dão significado. Qualquer significado que ele pode ter, é inerente ao leitor e,
portanto, é este quem deveria dizer o que um texto significa.
Deveríamos, talvez, dizer aqui que a teoria ou estética do efeito não
é de forma alguma uma posição crítica monolítica. Aqueles que dão
importância aos leitores e às suas respostas ao interpretar uma obra vêm de
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uma série de áreas críticas diferentes, sem excluir o formalismo, que é o alvo
dos ataques mais pesados da estética do efeito. Críticos desta escola vêem
críticos formalistas como bitolados, dogmáticos, elitistas e certamente
equivocados ao essencialmente recusar aos leitores até mesmo um lugar no
processo interpretativo da leitura. Por outro lado, os críticos da estética do
efeito vêem a si próprios, como Jane Tompkins colocou, “dispostos a
compartilhar sua autoridade crítica com leitores com menor formação e ao
mesmo tempo fazer uma parceria com psicólogos, lingüistas, filósofos e
outros estudantes de processos mentais” (Reader-Response Criticism: From
Formalism to Post-Structuralism [Baltimore: Johns Hopkins UP, 1980]: 223).
Apesar de idéias da estética do efeito estarem presentes na crítica
desde a década de 1920, principalmente em I. A. Richards, e na década de
1930, nos trabalhos de D. W. Harding e Louise Rosenblatt, só na metade do
século elas começam a ganhar lugar preponderante na teoria literária. Walter
Gibson, ao escrever em College English em fevereiro de 1950, fala sobre
“leitores dirigidos” [mock readers], aqueles que desempenham papéis que
leitores reais sentem-se compelidos a desempenhar, porque o autor claramente
espera que o façam, pela maneira com que o texto é apresentado (“Authors,
Speakers, Readers, and Mock Readers,” College English 11.5 [1950]: 265-69).
Ao chegar aos anos 1960 e continuando até o presente como um movimento
mais ou menos orquestrado, a estética do efeito ganhou um número suficiente
de seguidores para formar um ataque frontal aos baluartes do formalismo.
Devido à complexidade das idéias que subjaz a estética do efeito, e
porque seus proponentes freqüentemente as apresentam em uma linguagem
técnica, seria apropriado enumerar as formas que receberam maior atenção
e tentar chegar a uma definição tão clara quanto possível.
Revisemos mais uma vez as premissas básicas da teoria direcionada
ao leitor, levando em consideração que cada teórico da estética do efeito
diferirá sobre algum ponto, mas que os fundamentos abaixo refletem as
perspectivas principais do posicionamento como um todo. Primeiramente,
na interpretação literária, o componente mais importante não é o texto, mas
sim o leitor. De fato, não há texto a não ser que haja um leitor. E o leitor é o
único que pode dizer o que o texto é; de alguma forma, o leitor cria o texto
tanto quanto o autor. Este sendo o caso, para chegar-se ao significado, críticos
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devem rejeitar a autonomia do texto e concentrar-se no leitor e no processo
da leitura, na interação que se estabelece entre o leitor e o texto.
Esta premissa deixa perplexos os críticos com formação tradicional
em análise literária. Ela afirma que a estética do efeito é subjetiva e relativa,
ao passo que as teorias mais antigas buscavam o máximo de objetividade
possível em uma área de estudo que tem, por definição, um alto grau de
subjetividade. Paradoxalmente, a fonte derradeira dessa subjetividade é a
própria ciência moderna, que se tornou crescentemente cética quanto à
possibilidade de conhecimento objetivo. A teoria da relatividade de Einstein
permanece como a expressão mais conhecida dessa dúvida. Assim também,
a demonstração do filósofo Thomas S. Kuhn de que o fato científico é
dependente do quadro de referências do observador reforça as alegações de
subjetividade (The Structure of Scientific Revolutions [Chicago: U of Chicago P,
1962]).
Outra característica especial da teoria da estética do efeito é que ela
é baseada na retórica, a arte da persuasão, que tem uma longa tradição na
literatura, desde os gregos, que originalmente a empregavam na oratória.
Agora ela se refere a uma miríade de recursos e estratégias usadas para fazer
com que o leitor responda à obra literária de maneiras específicas. Portanto,
ao estabelecer o leitor firmemente na equação literária, os antigos podem ser
considerados os precursores da teoria moderna da estética do efeito. Admitese, no entanto, que quando Aristóteles, Longino, Horácio, Cícero e Quintiliano
aplicavam princípios retóricos ao julgar uma obra, eles concentravam-se na
presença dos elementos formais contidos nela, ao invés de no efeito que
estes produziam no leitor.
Tendo em vista, então, a ênfase no leitor na teoria do efeito estético,
sua relação com a retórica é bastante óbvia. Wayne Booth em seu Rhetoric of
Fiction (Chicago: U of Chicago P, 1961) está entre os primeiros críticos
modernos a considerar o leitor no ato interpretativo. A Nova Crítica, que
influenciou fortemente o estudo da literatura, e ainda o faz, tinha realmente
proscrito leitores, afirmando que era uma falácia crítica – falácia afetiva –
mencionar quaisquer efeitos que um texto literário poderia ter sobre seus
leitores. E enquanto Booth não foi tão longe quanto outros críticos ao atribuir
aos leitores o papel principal na interpretação, ele certamente lhes deu
proeminência e acrescentou que a retórica é “o recurso do autor para controlar
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seus leitores” (Preface to Rhetoric of Fiction). Por exemplo, em uma leitura
minuciosa [close reading] de Emma, de Jane Austen, Booth expõe as estratégias
retóricas usadas por Austen para assegurar que o leitor veja as coisas através
dos olhos da heroína.
Em 1925 I. A. Richards, geralmente associado com a Nova Crítica,
publicou Principles of Literary Criticism (New York: Harcourt), no qual ele
constrói um sistema afetivo de interpretação, ou seja, baseado em respostas
emocionais. Diferentemente dos Novos Críticos que estariam em evidência
nas duas décadas seguintes, Richards reconhece que a concepção científica
da verdade é a correta e que a poesia cria apenas pseudo-afirmações. Estas
pseudo-afirmações, porém, são cruciais para a saúde psíquica dos seres
humanos, porque elas tomam o lugar da religião em seu papel de satisfazer
nosso anseio – “apetência” [appetency] é o termo de Richards – pela verdade,
ou seja, por alguma visão do mundo que possa satisfazer nossas necessidades
mais profundas. Matthew Arnold tinha anunciado, no século XIX, que a
literatura iria preencher esta função. Richards testou sua teoria ao solicitar a
estudantes de Cambridge que registrassem suas respostas e avaliações sobre
alguns poemas breves não identificados e de qualidade variável. Ele então
analisou e classificou as respostas dos estudantes e as publicou juntamente
com suas próprias interpretações, em Practical Criticism (New York: Harcourt,
1929). A metodologia de Richards é certamente baseada na reação do leitor,
mas o uso que ele fez de seus dados está vinculado à Nova Crítica. Ele
classificou as respostas em categorias de acordo com o grau com que elas se
diferenciavam das interpretações “corretas” ou “mais adequadas”, que ele
demonstrou ao se referir ao “próprio poema”.
Louise Rosenblatt, Walker Gibson e Gerald Prince são críticos que,
como Richards, afirmam a importância do leitor, mas não estão dispostos a
relegar o texto a um papel secundário. Rosenblatt acredita que respostas
irrelevantes devem ser excluídas em favor das relevantes e que um texto
pode existir independentemente de seus leitores. No entanto, ela adianta
uma teoria transacional: um poema passa a existir apenas quando recebe
uma leitura apropriada (“estética”), ou seja, quando os leitores
“compenetram” um determinado texto (The Reader, the Text, the Poem
[Carbondale: Southern Illinois UP, 1978]). Gibson, essencialmente um
formalista, propõe um leitor dirigido [mock reader], um papel que o leitor real
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desempenha porque o texto pede que o faça “em favor da experiência”.
Gibson propõe um diálogo entre o falante (o autor?) e o leitor direcionado.
O crítico ao ouvir este diálogo o parafraseia, revelando assim as estratégias
do autor, que manipula os leitores a aceitar ou rejeitar o texto. Gibson de
forma alguma abandona o texto, mas injeta o leitor mais profundamente
dentro da operação interpretativa, de modo a ganhar novos insights críticos.
Usando uma diferente terminologia, Prince adota uma perspectiva similar à
de Gibson. Perguntando-se porque críticos deram tamanha atenção aos
narradores (oniscientes, em primeira pessoa, não-confiável, etc.) e
praticamente ignoraram leitores, Prince também pressupõe um leitor, a quem
chama de narratário – um de vários leitores hipotéticos a quem a narrativa é
dirigida. Estes leitores, na verdade criados pela narrativa, incluem o leitor
real, com o livro na mão; o leitor virtual, para quem o autor pensa que está
escrevendo; e o leitor ideal, dotado de compreensão perfeita e afinidade; no
entanto, nenhum destes é necessariamente o narratário. Prince apresenta as
estratégias pelas quais a narrativa cria os leitores (“Introduction to the Study
of the Narratee,” in Reader-Response Criticism, Ed. Jane Tompkins, 7-25).
Os críticos mencionados até aqui – com exceção de Prince – são os
pioneiros ou talvez mais precisamente a guarda avançada do movimento da
estética do efeito. Ao continuar a insistir na importância do texto no ato
interpretativo, eles igualmente insistem que o leitor seja levado em
consideração; não fazê-lo, afirmam, empobrecerá a interpretação ou a tornará
incompleta. Sendo a guarda avançada, eles abriram caminho para aqueles
que se tornaram os principais nomes da teoria do efeito estético. Apesar de
existir discordância sobre quem pertence a este último grupo, a maioria dos
estudiosos reconhece Wolfgang Iser, Hans Robert Jauss, Norman Holland e
Stanley Fish como de grande importância para o movimento.
Wolfgang Iser é um crítico alemão que aplica a crítica da
fenomenologia para a interpretação da literatura. A fenomenologia enfatiza
o papel do observador (neste caso, do leitor) em qualquer percepção (neste
caso a experiência da leitura) e insiste na dificuldade, senão na impossibilidade,
de separar qualquer coisa conhecida da mente que a conhece. De acordo
com Iser, o crítico não deveria apreender o texto como um objeto, mas
interpretar o seu efeito no leitor. Apesar de aderir a esta posição, isto não
afastou Iser de considerar o texto como parte central da interpretação. Ele
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também postula um leitor implícito, com “raízes firmemente plantadas na
estrutura do texto” (The Act of Reading [Baltimore: Johns Hopkins UP, 1978]:
34). Mesmo assim, suas crenças fenomenológicas o mantém afastado da
noção formalista de que há um significado essencial de um texto com o qual
todas as interpretações devem tentar concordar. As experiências dos leitores
direcionarão os efeitos que o texto produz neles. Além do mais, Iser
acrescenta, um texto não conta tudo para o leitor; existem “lacunas” ou
“espaços”, aos quais ele se refere como sendo a indeterminação do texto.
Leitores devem preenchê-los e através disso agregar significado(s), tornandose assim, de certa forma, co-autores. Tais significados podem ir além do
único “melhor” significado dos formalistas, porque são resultados da variada
bagagem cultural do leitor. De fato, os leitores implícitos de Iser são um
tanto quanto sofisticados: eles trazem à contemplação do texto um diálogo
com as convenções que os habilitam a decodificar o texto. Mas o texto pode
transcender qualquer grupo de convenções literárias ou críticas, e leitores
com bagagens culturais altamente diferentes podem preencher esses espaços
e lacunas com significados novos e não-convencionais. A postura de Iser é,
portanto, fenomenológica: no centro da interpretação reside a experiência
do leitor. Essa criação do texto pelo leitor, no entanto, não significa que o
texto resultante é subjetivo ou deixa de ser uma criação do autor. É mais
propriamente, diz Iser, prova da inesgotabilidade do texto.
Porém, um outro tipo de crítica baseada no leitor, que também se
apóia na retórica, é a estética da recepção2, que documenta a resposta do
leitor aos autores e/ou às suas obras em qualquer época. Tal crítica depende
basicamente de resenhas de jornais, revistas e periódicos, e de cartas pessoais
como evidência da recepção do público. Existe uma variedade de teorias da
recepção, uma das mais recentes e importantes é promulgada por Hans Robert
Jauss, outro estudioso alemão, em sua obra Towards an Aesthetic of Reception
(trans. Timothy Bahti; Minneapolis: U of Minnesota P, 1982). Jauss procura
estabelecer uma acomodação entre a interpretação que ignora a história e a
que ignora o texto em favor de teorias sociais. Para descrever os critérios
empregados por ele, Jauss propôs a expressão “horizontes de expectativas
de um público leitor”. Estes resultam do que o público previamente
compreende sobre um gênero e suas convenções. Por exemplo, a poesia de
Pope foi altamente considerada por seus contemporâneos, que valorizavam
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a clareza, o decoro e a sagacidade. O século seguinte teve diferentes horizontes
de expectativas e, portanto, questionou se Pope teria sido realmente um
poeta. Similarmente, Madame Bovary, de Flaubert, não foi bem recebido pelos
leitores em meados do século XIX, que se opuseram ao estilo impessoal,
clínico e naturalista da obra. Os horizontes de expectativas haviam
condicionado os leitores a apreciar um estilo narrativo apaixonado, lírico,
sentimental e florido. Respostas hostis tardias de leitores aos clássicos
firmemente estabelecidos surgiram na segunda metade do século XX.
Huckleberry Finn tornou-se alvo de críticas duras e mal orientadas, baseadas
no fato de que a obra continha insultos raciais na forma de epítetos como
“nigger” e representações aviltantes dos negros. As escolas foram obrigadas,
em alguns casos, a remover o livro de currículos e de listas de leitura e, em
casos extremos, das prateleiras das bibliotecas. De maneira semelhante,
feministas ressentiram-se do que consideravam filosofia e atitudes machochauvinistas em “To His Coy Mistress”, de Marvell. O horizonte de
expectativas desses leitores incorporaram fervorosa facciosidade em assuntos
contemporâneos em suas análises literárias de obras anteriores.
Horizontes de expectativas não estabelecem o significado final de
uma obra. Portanto, de acordo com Jauss, não podemos dizer que uma obra
é universal, que ela terá o mesmo apelo ou impacto em leitores de todas as
épocas. É possível, então, alguma vez alcançar um veredicto crítico sobre
uma obra literária? Jauss acredita ser possível apenas até o ponto em que
consideramos nossas interpretações originárias de um diálogo entre passado
e presente, representando assim uma fusão de horizontes.
A importância da psicologia na interpretação literária tem sido
reconhecida há tempos. Platão e Aristóteles, por exemplo, atribuíam forte
influência psicológica à literatura. Platão considerava esta influência
essencialmente perniciosa: a literatura incitava as emoções do público, em
especial aquelas que deveriam ser controladas rigorosamente. Aristóteles,
ao contrário, argumentava que a literatura exercia uma boa influência
psicológica; a tragédia, em particular, ao provocar na platéia uma catarse ou
purificação das emoções. Espectadores ficavam então calmos e satisfeitos,
ao invés de incitados e agitados, após o conflito emocional.
[...] Um dos mais proeminentes psicanalistas do mundo, Sigmund
Freud, teve uma incalculável influência na análise literária, com suas teorias
340
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
sobre o inconsciente e sobre a importância do sexo ao explicar grande parte
do comportamento humano. Críticos então se voltavam para Platão e
Aristóteles ao examinar as relações psicológicas entre uma obra literária e
sua audiência e para Freud ao buscar entender as motivações psicológicas
inconscientes das personagens na obra literária e no autor.
Se, no entanto, seguidores de Freud estão mais preocupados com o
inconsciente das personagens literárias e seus criadores, críticos psicológicos
mais recentes têm focado no inconsciente dos leitores. Norman Holland,
um desses críticos, argumenta que todas as pessoas herdam de sua mãe um
“tema de identidade” ou a compreensão fixa sobre o tipo de pessoas que
são. O que quer que leiam é processado para que se encaixe em seu “tema
de identidade” (“The Miller’s Wife and the Professors: Questions about the
Transactive Theory of Reading”, New Literary History 17 [1986]: 423-47).
Em outras palavras, leitores interpretam textos como expressões de suas
próprias personalidades ou psiques e sendo assim usam suas interpretações
de modo a enfrentar a vida. Holland ilustra essa tese em um ensaio intitulado
“Hamlet – My Greatest Creation” (Journal of the American Academy of
Psychoanalysis 3 [1975]: 419-27). Esta resposta altamente pessoal à literatura
aparece em outro artigo de Holland, “Recovering ‘The Purloined Letter’:
Reading as a Personal Transaction” (in Suleiman and Crosman, eds., The
Reader in the Text [Princeton, NJ: Princeton UP, 1980]: 350-70). Aqui Holland
relaciona a história de sua própria tentativa de esconder uma experiência
masturbatória adolescente.
A teoria de Holland, apesar de toda sua ênfase nos leitores e na
psicologia dos mesmos, não nega nem anula a independência do texto. Ele
existe como um objeto e como a expressão de uma consciência diferente da
dos próprios leitores; algo no qual eles podem se projetar. Mas David Bleich,
que chama a variedade de respostas do leitor de Holland de subjetivismo,
nega que o texto exista independentemente dos leitores (Subjective Criticism
[Baltimore: Johns Hopkins UP, 1978]). Bleich aceita os argumentos de
filósofos contemporâneos, tais como Thomas S. Kuhn, que negam que o
fato objetivo existe. Uma posição como esta assegura que mesmo o que é
considerado uma observação científica de alguma coisa – de qualquer coisa
– é ainda meramente uma percepção individual e subjetiva que ocorre em
um determinado contexto. Bleich afirma que indivíduos em todos os lugares
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
341
classificam as coisas em três grupos essenciais: objetos, símbolos e pessoas.
Literatura, uma criação mental (em oposição a uma concreta), seria então
considerada um símbolo. Um texto pode ser um objeto no sentido que é
papel (ou outro material) e impressão, mas seu significado depende da
simbolização na mente dos leitores. O significado não é encontrado; é
desenvolvido. Relações humanas melhores resultarão de leitores com visões
diferentes, compartilhando e comparando suas respostas e, por meio dessas,
descobrindo mais sobre motives e estratégias de leitura. A honestidade e a
tolerância, requerida em operações como essas, auxiliam indubitavelmente
no autoconhecimento, que de acordo com Bleich é o objetivo mais importante
para todos.
O último dos teóricos a ser tratado nesta discussão é Stanley Fish,
que denomina essa técnica de interpretação de estilística afetiva. Assim como
outros críticos centrados no leitor, Fish se rebela contra a rigidez e o
dogmatismo dos Novos Críticos e especialmente contra o princípio de que
o poema é um objeto único, estático, um todo cuja compreensão tem que ser
apreendida em uma primeira leitura. Os pronunciamentos de Fish sobre a
estética do efeito surgiram em estágios. No primeiro estágio, ele argumenta
que o significado em uma obra literária não é alguma coisa a ser extraída
como um dentista extrai um dente; o significado deve ser negociado por
leitores, uma linha de cada vez. Além do mais, eles serão surpreendidos por
estratégias retóricas ao prosseguir a leitura. Significado é o que acontece aos
leitores durante essa negociação. Um texto, na visão de Fish, poderia conduzir os
leitores, ou mesmo auxiliá-los, a fazer algumas interpretações, apenas para
miná-las mais tarde e forçar os leitores a fazer novas e diferentes leituras.
Portanto, o foco é no leitor; o processo de leitura é dinâmico e seqüencial.
Fish insiste, no entanto, no alto grau de sofisticação dos leitores: eles devem
estar familiarizados com as convenções literárias e devem mudá-las quando
percebem que foram ludibriados pelas estratégias de um texto. Seu termo
para esses leitores é “informados” (Surprised by Sin: The Reader in “Paradise
Lost” [Berkeley: U of California P, 1967]).
Fish mais tarde modifica o método descrito acima ao atribuir maior
iniciativa ao leitor e menor controle ao texto no ato interpretativo. A posição
modificada de Fish sustenta que leitores realmente criam uma obra literária
quando a lêem. Fish conclui que cada leitura resulta em uma nova
342
Scripta Uniandrade, n. 06, 2008
interpretação que acontece por causa das estratégias que os leitores usam. O
texto, como um diretor independente de interpretação de fato, desapareceu.
Para Fish, a interpretação é um assunto comunitário. Os leitores mencionados
são informados; possuem competência lingüística, formam comunidades
interpretativas que têm pretensões comuns; e, repetindo, criam textos quando
utilizam técnicas de leituras comuns. Tais manifestações significam que esses
leitores estão empregando as mesmas estratégias interpretativas ou similares
e são, portanto, membros da mesma comunidade interpretativa (Is There a
Text in This Class? [Cambridge, MA: Harvard UP, 1980]).
Parece razoável dizer que haverá mais de uma resposta ou
interpretação de uma obra literária e que isso é verdade porque os leitores e
intérpretes vêem as coisas diferentemente. Parece igualmente correto observar
que a reivindicação de que o significado da literatura reside exclusivamente
no o leitor individual, cujas opiniões são igualmente válidas, é fazer uma
análise literária ulterior e completamente relativa. Em algum lugar entre esses
dois pontos de vista, críticos e intérpretes se encaixam.
Os procedimentos [...] de definir uma abordagem literária e depois
aplicá-la, não funciona de uma forma definitiva na estética do efeito. Aqui,
no entanto, para ilustrar citaremos, arbitrariamente, dois trabalhos críticos
de duas obras conhecidas, baseados na estética do efeito. A leitura de Steven
Milloux de “Rappaccini’s Daughter”, de Hawthorne, é uma atraente e
convincente análise dessa complexa narrativa baseada na tese de que ciladas
e obstáculos preparados por um narrador não-confiável funcionam para
confundir leitores até que estes aprendam a evitar tais armadilhas e cheguem
a um entendimento baseado em suas próprias interpretações das ações do
personagem e não na onisciência do autor (Interpretive Conventions: The Reader
in the Study of American Fiction [Itaca and London: Cornell UP, 1984]: 73-92).
A leitura de Milloux de Huckleberry Finn une uma abordagem retórica,
decididamente centrada no leitor, ao novo historicismo, que enfatiza jornais
contemporâneos, artigos de revistas, opinião pública, ideologias
predominantes e assim por diante (“Reading Huckleberry Finn: The Rhetoric
of Performed Ideology,” New Essays on Huckleberry Finn, ed. Louis Budd
[Cambridge: Cambridge UP, 1985]: 107-33). Uma estética do efeito altamente
personalizada e psicológica sobre Hamlet surge na obra de Norman Holland
“Hamlet – My Greatest Creation”, páginas 171-76. Aqui, o foco está na
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343
conexão entre palavras – prolixidade – e a violência e negligência dos
familiares. Apesar de engenhosa, esta interpretação é menos idiossincrática
do que sua leitura de “The Purloined Letter”, de Poe, mencionada
anteriormente.
Para resumir, dois aspectos distintos caracterizam a estética do efeito.
Um deles é o impacto da obra literária no leitor, por isso a ênfase moralfilosófica-psicológica-retórica na análise da estética do efeito. (De que forma
a obra afeta o leitor e que estratégias ou recursos foram acionados na produção
desses efeitos?). O segundo aspecto é que o texto é relegado a uma posição
secundária. (O leitor passa a ter prioridade.) Deste modo, a estética do efeito
ataca a autoridade do texto. É onde o subjetivismo aparece. Se um texto não
pode existir a não ser na mente do leitor, então o texto perde sua autoridade.
Acontece uma mudança de perspectiva – de objetiva para subjetiva: textos
significam o que leitores individuais afirmam que eles significam ou o que
comunidades interpretativas de leitores afirmam que eles significam. Sendo
esse o caso, a aplicação da abordagem da estética do efeito – em relação a
Huckleberry Finn, por exemplo – poderia resultar, pelo menos teoricamente,
em tantas leituras quanto seu número de leitores. Isso envolveria pressupor
um leitor hipotético, cuja resposta, embora possivelmente interessante, seria
aleatória e arbitrária. Realmente, qual reação do leitor deveríamos aproveitar,
já que há tantas? Se tornamos os fundamentos da estética do efeito claros
aos leitores deste texto, teremos atingido nosso objetivo. Eles então poderiam
aplicá-los como desejarem. Deste modo, a interpretação se torna a chave
para o significado – como sempre o é – porém sem a autoridade última do
texto ou do autor. O elemento importante na estética do efeito é o leitor, e o
efeito (ou influência) do texto no leitor.
Quando os críticos da estética do efeito começam a analisar o efeito
do texto no leitor, a análise freqüentemente assemelha-se à crítica formalista
ou à crítica retórica ou mesmo à crítica psicológica. A principal distinção é a
ênfase na reação do leitor na análise. O significado é inerente ao leitor e não
ao texto. Aqui é onde a teoria da recepção se encaixa. O mesmo texto pode
ser interpretado por diferentes leitores ou comunidades de leitores de maneiras
muito diferentes. A história interpretativa de um texto pode variar
consideravelmente, assim como as interpretações freudianas de Hamlet em
contraste com suas interpretações anteriores. Leitores trazem consigo sua
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própria herança cultural ao responder a textos literários, um fato que leva
em consideração o princípio de que textos falam para outros textos apenas
por meio da intervenção de leitores específicos. Deste modo, a estética do
efeito pode apropriar-se de outras teorias – como todas as outras abordagens
procuram fazer.
É provável que a estética do efeito pareça, para muitas pessoas,
tanto esotérica como excessivamente subjetiva. Indiscutivelmente, os leitores
tinham sido pouco considerados pela Nova Crítica; mas eles podem ter sido
demasiadamente enfatizados pelos teóricos que procuram dar-lhes a palavra
final ao interpretar literatura. A comunicação, como um todo, é baseada na
afirmação demonstrável de que existem significados comuns e concordantes
na linguagem, não importa quão ricos, metafóricos ou simbólicos. Argumentar
que existem, mesmo em teoria, tantos significados quanto leitores para um
poema, indubitavelmente questiona a possibilidade de um discurso
compreensível. O fato de alguns teóricos não se sentirem totalmente
confortáveis com as implicações lógicas de suas posições é evidenciado por
suas colocações sobre leitores dirigidos [mock readers], leitores informados,
leitores reais e leitores implícitos – expressões pelas quais se referem a leitores
dotados de educação, sensibilidade e sofisticação.
Apesar dos perigos potenciais do subjetivismo, a estética do efeito
tem sido um contrapeso ao dogmatismo literário e um registro da riqueza,
complexidade e diversidade de interpretações literárias viáveis, e parece seguro
dizer que leitores jamais serão ignorados novamente na leitura/interpretação
de um texto.
Notas
1
GUERIN, Wilfred L. et alii. A Handbook of Critical Approaches to Literature. New
York: Oxford UP, 1992, p. 331-44.
2
As expressões “estética do efeito” ou “teoria do efeito estético” serão usadas
como tradução da expressão norte-americana “reader-response criticism” e “estética
da recepção” como tradução de “aesthetic reception”, que por sua vez é uma tradução
literal de “Rezeptionsästhetik”, do alemão. Existe uma diferença entre as duas
expressões em termos de abrangência. A estética do efeito diz respeito ao efeito
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do texto no leitor, a estética da recepção diz também respeito ao efeito do texto no
leitor, mas tenta resgatar os efeitos do texto nos leitores, através dos tempos. Hans
Robert Jauss [1975] é quem introduz a expressão “Rezeptionsästhetik”, traduzida
para o inglês como “aesthetic reception”. Atualmente a expressão “estética da recepção”
está sendo comumente usada para designar tanto a estética da recepção como a
estética do efeito ou teoria do efeito estético.
3
Ver Nota 2.
Brunilda T. Reichmann
PhD em Literaturas de Língua Inglesa pela Nebraska University em Lincoln.
Professora Titular de Literatura Inglesa e Norte-Americana do Curso de Letras
daUNIANDRADE.
Editora da revista Scripta Uniandrade.
Coordenadora do Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
Professora Titular de Literaturas de Língua Inglesa da UFPR (aposentada).
Julián Bargueño
Compositor e produtor musical.
Aluno especial do curso de Mestrado em Teoria Literária da UNIANDRADE.
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DOSSIÊS TEMÁTICOS DAS PRÓXIMAS EDIÇÕES
2009: Releituras de Shakespeare
2010: Escritores paranaenses
2011: Intertextos / Intermídias / Interartes
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Centro Universitário Campos de Andrade – UNIANDRADE
Cidade Universitária
Mestrado em Teoria Literária
Scripta Uniandrade
Rua Morumby 283, Santa Quitéria
81220-090 Curitiba, PR
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1
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páginas (cerca de 8000 palavras).
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texto, um em português e outro em língua estrangeira.
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na língua estrangeira.
Ser digitados em folha A4, com espaçamento 1,5, fonte Arial, 11.
Incluir no corpo do trabalho, entre aspas, citações de até quatro linhas.
Citações com mais linhas devem ser destacadas do texto, alinhadas pela
margem de parágrafo, digitadas com espaçamento simples, fonte Arial,
10, e não conter aspas.
Incluir referências às citações no próprio texto, entre parênteses. Exemplo:
(MILLER, 2003, p. 45-47). As notas explicativas devem ser incluídas no
final do texto.
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incluídas depois da conclusão do texto.
· Para livros, a entrada deverá ter o seguinte formato: GOMES, C.
Metodologia científica. 2. ed. São Paulo: Atlântica, 2002.
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o seguinte formato: ALMEIDA, R. Notas sobre redação. A palavra,
2. série, Rio de Janeiro, v. 1, n. 4, p. 101-124, abr. 2003.
· Para citação eletrônica, a entrada deverá ter o seguinte formato:
LIMA, G. Referências de fonte eletrônica. Disponível em: <http://
www.format.com.br > Acesso em: 21 set. 2006.
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identificação deve ser enviada em outro anexo e conter o título do
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8
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10 O envio do artigo para publicação implica a aceitação das condições
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