UNIVERCIDADE
Escola de Ciências Jurídicas
O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Rodrigo Rodrigues de Aguiar
Orientador: Prof. Gilberto Jorge Ferreira de Freitas
RIO DE JANEIRO
2011
i
RODRIGO RODRIGUES DE AGUIAR
O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado à disciplina Direito da
Escola de Ciências Jurídicas do Centro
Universitário da Cidade - Univercidade,
como requisito parcial à obtenção do
título de Bacharel em Direito.
Orientador: Prof. Gilberto Jorge Ferreira de Freitas
RIO DE JANEIRO
2011
Catalogação na Fonte – Sistema de Bibliotecas
Aguiar, Rodrigo Rodrigues de
A282
O poder normativo das agências reguladoras / Rodrigo Rodrigues de
Aguiar – 2011.
68f.
Trabalho de conclusão de curso apresentado à Escola de Ciências
Jurídicas do Centro Universitário da Cidade – UNIVERCIDADE,
como requisito parcial à obtenção do Grau de Bacharel em Direito.
1. Direito administrativo I. Centro Universitário da Cidade do Rio de
Janeiro – UniverCidade, Instituição. II. UniverCidade – Centro,
Instituição.
MDir. 11.1
ii
RODRIGO RODRIGUES DE AGUIAR
O PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Esta monografia foi julgada adequada para a obtenção do título de Bacharel em
Direito
Escola de Ciências Jurídicas do Centro Universitário da Cidade
UNIVERCIDADE
____________________________________________________________________
Professor José Eduardo Ribeiro de Assis
____________________________________________________________________
Professor Gilberto Jorge Ferreira de Freitas
iii
AGRADECIMENTOS
À LUIZ RICARDO TRINDADE BACELLAR co-orientador e amigo pela presença
segura, competente e estimulante.
iv
RESUMO
AGUIAR, Rodrigo Rodrigues de. O Poder Normativo das Agências Reguladoras. 2011. 68 f.
Monografia (Graduação em Direito) – Univercidade Centro, Rio de Janeiro, 2011.
Analisa-se, no presente projeto, o poder normativo das agências reguladoras, notadamente
quanto a sua compatibilidade com o ordenamento constitucional pátrio, em especial com os
princípios da legalidade e da separação dos poderes. Todavia, de modo a ensejar cumprimento
satisfatório do o objetivo supra, antes de adentrar especificamente no tema principal,
apresentam-se, no primeiro capítulo, os pormenores do instituto das agências reguladoras,
explicitando seu conceito, sua natureza jurídica, suas características e prerrogativas, assim
como seus privilégios peculiares, onde se encontra o poder normativo. Ultrapassada esta
essencial etapa, passa-se, então, no segundo capítulo, a estudar, de maneira mais aprofundada,
o poder normativo das agências reguladoras, discorrendo sobre suas questões controversas,
sua natureza jurídica, a qual se discute se regulamentar ou legiferante, sua compatibilidade
com a ordem constitucional, representadas por seus princípios da separação dos poderes e da
legalidade, seus fundamentos, limites e controles.
Palavras chave: Agências reguladoras; Poder normativo; Princípio da legalidade; Princípio da
separação dos poderes; Fundamentos; Limites; Controles.
v
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 6
1 DAS AGÊNCIAS REGULAGORAS................................................................................... 9
1.1 Do surgimento das Agências Reguladoras no Brasil ........................................................ 9
1.2 Do conceito de Agência Reguladora............................................................................... 12
1.3 Da natureza jurídica das Agências Reguladoras ............................................................. 13
1.3.1 Da administração pública indireta ........................................................................ 14
1.3.2 Da descentralização .............................................................................................. 15
1.3.3 Das autarquias ...................................................................................................... 15
2 DAS PRERROGATIVAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS.................................... 18
2.1 Da autonomia decisória (vinculação administrativa – não cabimento de recurso
hierárquico): .......................................................................................................................... 19
2.2 Da autonomia administrativa (mandato fixo de seus dirigentes): ................................... 20
2.3 Da autonomia econômico-financeira: ............................................................................. 21
3 DO PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS ................................ 23
3.1 Do enquadramento no ordenamento jurídico brasileiro.................................................. 24
3.2 Do conceito e da natureza jurídica .................................................................................. 27
3.3 Dos fundamentos............................................................................................................. 32
3.4 Da compatibilidade com o Princípio da Separação dos Poderes .................................... 33
3.5 Da compatibilidade com o Princípio da Legalidade ....................................................... 40
3.5.1 O caráter não absoluto do princípio da legalidade.................................................... 41
3.5.2 Da deslegalização da competência normativa .......................................................... 48
3.5.3 Da delegação da competência normativa.................................................................. 51
3.6 Dos limites baseados na definição de parâmetros (Standards) ....................................... 55
3.7 Do controle...................................................................................................................... 57
3.7.1 Controle Judiciário.................................................................................................... 59
3.7.2 Controle Legislativo ................................................................................................. 60
3.7.3 Controle Social ......................................................................................................... 61
4 CONCLUSÃO...................................................................................................................... 63
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................................. 68
6
INTRODUÇÃO
O presente projeto tem por objeto analisar o Poder Normativo das Agências
Reguladoras diante do ordenamento jurídico estabelecido pela Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988 – CRFB/88, no que tange à compatibilidade do daquele com
este.
O tema em apreço possui extrema relevância dentro dos direitos administrativo e
constitucional, uma vez que, para que se realize a contento sua análise, necessário se faz
permear alguns dos mais importantes institutos destes, como, verbia gratia, o princípio
republicano, o Estado democrático de direito, o princípio da separação dos poderes e o
princípio da legalidade.
Outrossim, a relevância de sua análise se dá, ainda, porque, em razão da complexidade
de que se reveste, evidencia-se como um tema muito controvertido, tanto em sede doutrinária,
quanto jurisprudencial, gerando inflamados debates entre os juristas que a ele se dedicam, seja
nos simpósios e congressos realizados com o objetivo de desvendá-lo, seja nos tribunais que
são instados a julgá-lo, cujas obras publicadas serviram de sustentação ao presente estudo.
Assim, perquire-se, no presente trabalho, identificar com a maior clareza possível cada
um dos elementos que compõem o tema apresentado, na tentativa de esclarecê-lo cabalmente,
pontuando seus principais tópicos, a fim de se chegar a uma conclusão plausível.
Neste intento, busca-se, primeiramente, no primeiro capítulo, definir e conceituar as
Agências Reguladoras - instituições que, por sua recente aparição na estrutura da
Administração Pública, ainda geram consideráveis interrogações aos não militantes do direito
administrativo, principalmente o econômico - perpassando por seu surgimento na estrutura
jurídica brasileira, pela tentativa de apreensão de seu conceito e sua natureza jurídica, e ainda
pontuando suas principais características ou prerrogativas, a fim de identificar os motivos de
sua instituição, sua forma de atuação, bem como, e principalmente, as finalidades que por elas
devem ser atingidas.
Em seguida, já no segundo capítulo, discorre-se detalhadamente acerca das
mencionadas prerrogativas conferidas às Agências Reguladoras por suas respectivas leis
criadoras, que as distinguem das demais entidades da Administração Pública detentoras da
atribuição de regular determinado setor, quais sejam a autonomia decisória, administrativa e
econômico-financeira. Ressalta-se que a autonomia normativa, por representar o tema
principal do presente estudo, é tratada em um capítulo a parte.
7
Ademais, presta-se tal capítulo a demonstrar a relevância de tais prerrogativas,
ressaltando sua função garantidora da autonomia de que necessitam as Agências Reguladoras
para bem desempenhar suas funções de entidade reguladora de determinado segmento da
economia, pondo-as a salvo das ingerências políticas advindas dos poderes centrais.
Outrossim, objetiva, ainda, este capítulo a demonstrar que as prerrogativas
mencionadas servem, também, de requisitos caracterizados de tais entidades, uma vez que
somente as entidades que os possuam devem ser classificadas como Agência Reguladora.
Nesta senda, chega-se, portanto, ao capítulo que tratar do Poder Normativo das
Agências Reguladoras, o qual, em que pese ser uma das prerrogativas destas entidades,
merece especial destaque, ante os inúmeros ataques que recebe de parte da doutrina
administrativista e constitucional, que contestam sua constitucionalidade, baseada na sua
suposta incompatibilidade com alguns dos princípios regentes da CRFB/88, como o da
separação dos poderes e o da legalidade.
Dessa forma, visando dirimir tais questionamentos, procura-se analisá-los separada e
detalhadamente, iniciando-se pelo enquadramento do poder normativo das agências
reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro, no sentido de posicioná-lo na estrutura da
ordem legal, considerando a hierarquia das normas jurídicas.
Em seguida, aprofunda-se a análise para identificar seus fundamentos, bem como
definir seu conceito e sua natureza jurídica, institutos que se mostram extremamente
relevantes para o tratamento das questões seguintes, quais sejam a compatibilidade do poder
normativo das agências reguladoras com os princípios da separação dos poderes e da
legalidade.
Assim, quanto à separação dos poderes, analisam-se as idéias de reserva de
competência de determinada função estatal e o sistema de freios e contrapesos, inspirado nas
teorias liberais erigidas a partir da revolução liberal-burguesa, cujos expoentes se deram na
França e nos Estados Unidos.
Nesta esteira que surgem questionamentos, como, por exemplo, se poderiam as
Agências Reguladoras possuírem competências típicas das três poderes em que classicamente
se divide o Estado Republicano-Democrático, quais sejam o Poder Executivo, o Poder
Legislativo e O Poder Judiciário?
Não obstante a amplitude da questão acima proposta, ressalva-se que, no presente
projeto, como já afirmado, ater-se-á à análise da compatibilidade do poder normativo exercido
pelas Agências Reguladoras com o poder legiferante, exclusivamente exercido pelo Poder
Legislativo e o poder regulamentar, privativamente exercido pelo Chefe do Poder Executivo,
8
aferindo-se a regularidade da competência concedida às Agências Reguladoras para editar e
publicar normas de caráter geral, abstrato e impessoal, que inovem no ordenamento jurídico,
impondo observância obrigatória, face a conferência de direitos e obrigações aos indivíduos.
Outrossim, a análise mencionada se dará, também, quanto às questões acima postas,
acerca do confronto do poder normativo das Agências Reguladoras com o princípio da
legalidade insculpido no art. 5°, II, da CRFB/88, o qual impõe afirma que “ninguém será
obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. (Grifo nosso)
O ponto principal de tal questão é o de verificar se a lei a que se refere o dispositivo
constitucional seria ou não tão somente a lei formal, entendida como aquela promulgada com
estrita observância dos procedimentos previstos a própria Constituição, após prévia discussão
e edição por ambas as casas do Congresso Nacional, culminando com a sanção do Presidente
da República.
Assim, vinculadas à questão central acima, derivam-se outras, como amplitude das
normas editadas pelas agências reguladoras. Tal análise se dará no sentido de verificar se tais
normas podem, tão somente, regulamentar os dispositivos de suas respectivas leis
instituidoras, ou se podem ir além, disciplinando matérias e temas não especificamente
mencionados nos textos daquelas leis, quando se estaria inovando no ordenamento jurídico.
Outrossim, ainda no âmbito do poder normativo, dirigir-se-á o estudo, também, à
identificação de quais seriam os limites de tal poder, ou seja, os parâmetros (conhecidos como
Standards) a serem obrigatoriamente observados pelas agências reguladoras ao editar normas
acerca das matérias afetas aos setores que estão sob sua respectiva regulação que instituam
direitos e obrigações aos agentes regulados.
No mesmo sentido, discorrer-se-ão, ainda, quanto aos controles que sofreriam tais
normas, considerando que o já mencionado sistema de freios e contrapesos sobre o qual
repousa a Constituição de 1988, impondo a realização de controle recíproco entre as funções
estatais.
É neste contexto que se pretende, no presente projeto científico, apresentar os
argumentos, baseados na melhor doutrina, que apresentem juridicamente o Poder Normativo
das Agências Reguladoras, confirmando sua adequação e plena aplicabilidade ao ornamento
jurídico pátrio previsto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
9
1 DAS AGÊNCIAS REGULAGORAS
1.1 Do surgimento das Agências Reguladoras no Brasil
As Agências Reguladoras, conforme são conhecidas hodiernamente as entidades com
função regulatória, dotadas de ampla autonomia financeira, administrativa e regulamentar,
foram criadas em decorrência do Plano Nacional de Desestatização – PND, implantado na
Administração Pública pátria a partir da promulgação da Lei n° 8.031/90, posteriormente
revogada pela Lei n° 9.491/97, a qual alterou os procedimentos relativos ao PND,
aproveitando, entretanto, algumas das normas anteriormente traçadas por aquela, dando-as,
contudo, melhor redação, a fim de conferir maior completude ao sistema.
Foi neste ínterim que se deu a instituição das Agências Reguladoras no Brasil, o que
ocorreu, segundo José dos Santos Carvalho Filho1:
em virtude do afastamento do Estado da realização de determinadas
atividades, o que exigiu a instituição de órgãos reguladores investidos na
típica função de controle, aos quais foi atribuída a função principal de
controlar, em toda a sua extensão, a prestação dos serviços públicos e o
exercício de atividades econômicas, bem como a própria atuação das pessoas
privadas que passaram a executá-los, inclusive impondo sua adequação aos
fins colimados pelo Governos e às estratégias econômicas e administrativas
que inspiraram o processo de desestatização.
Dessa forma, em razão do processo de implementação do ideário de modernização do
serviço público trazido pelo PND, foram realizadas uma série de alterações no arcabouço
jurídico brasileiro a fim de adequá-lo à nova estrutura policêntrica que se buscava estabelecer
na administração pública, menos burocrática e mais eficiente.
Como parte deste processo, a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
– CRFB/88 foi sendo paulatinamente alterada, a fim de viabilizar o implemento do projeto de
descentralização administrativa, que se alicerçou na autonomia e profissionalização, vinculada
também à eficiência e à economicidade administrativa.
Neste comenos, promulgou-se a Emenda Constitucional n° 08, de 04 de junho de
1995, a qual extinguiu o monopólio estatal para a exploração dos serviços de
1
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 23ª Ed. rev., ampl. e atualizada até
31.12.2009. – Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010, p. 531.
10
telecomunicações, dando azo à criação da Agência Nacional de Telecomunicações –
ANATEL, ao dispor, no inciso XI do Art. 21 da CRFB/882 que “Compete à União explorar,
diretamente
ou
mediante
autorização,
concessão
ou
permissão,
os
serviços
de
telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a
criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais”. (grifo nosso)
A promulgação da EC n° 08/95 é tida como o marco regulatório brasileiro, essencial
para a criação das entidades a quem caberiam a regulação dos serviços públicos
desestatizados, no decorrer do processo de revolução estrutural que vinha experimentando a
Administração Pública, que passou cada vez mais a buscar a eficiência de sua atuação, a fim
de atender aos anseios sociais, dignificando a pessoa humana. Tais entidades são conhecidas
hoje como Agências Reguladoras.
Neste sentido são as palavras de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO3:
A Emenda Constitucional n° 8 foi o primeiro ato legislativo formal no
Brasil, conquanto de nível constitucional, que expressamente aludiu à ideia
de órgão regulador, o que gerou a instituição da ANATEL, na qualidade de
entidade autárquica criada pela Lei Geral de Telecomunicações, isto é, a lei
n° 9.472 de 1997.
Diante das palavras apresentadas, que, em dado momento, referiram-se à órgão
regulador, faz-se premente interpor aqui um adendo, para explicitar que, não obstante as mais
completas definições que serão abaixo esposadas, não é recomendável aludir às Agências
Reguladoras como “órgãos”, uma vez que estes são criados dentro da estrutura de um
determinado ente ou entidade da administração pública, através do fenômeno conhecido como
“desconcentração”. Já aquelas são entidades, detentoras de personalidade jurídica própria,
criadas na esteira do movimento denominado “descentralização”. (ver itens 1.3.1 e 1.3.2)
Retomando-se, cumpre ressaltar, contudo, que a ANATEL não foi a primeira agência
reguladora autônoma a ser criada no Brasil, uma vez que a Agência Nacional de Energia
Elétrica – ANEEL foi instituída pela Lei n° 9.247, de 26 de dezembro de 1996 (alterada pelas
leis n° 9.648 e 9.649, ambas de 27 de maio de 1998, Lei n° 9.986, de 18 de julho de 2000 e
Lei n° 10.438, de 26 de abril de 2002; Tais leis foram regulamentadas, adquirindo densidade
normativa, pelo Decreto n° 2.335/97, alterado pelo Decreto n° 4.111/2002), com a finalidade
2
Art. 21, XI da Constituição da República Federativa do Brasil.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O regime jurídico e os princípios orientadores das agências reguladoras
(ano 2002). In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres. –
Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 429.
3
11
de regular e fiscalizar a produção, a transmissão, a distribuição e a comercialização de energia
elétrica em conformidade com as políticas e diretrizes do governo federal.
E assim, sucessivamente, foram sendo criadas outras agências reguladoras autônomas
na Administração Pública Federal, as quais são elencadas a seguir:
ANP — Agência Nacional do Petróleo, criada pela Lei nº 9.478, de 6 de agosto de 1997.
Vinculada ao Ministério de Minas e Energia e responsável pela regulação do setor da
Indústria do petróleo;
ANVISA — Agência Nacional de Vigilância Sanitária, criada pela Lei nº 9.782, de 26 de
janeiro de 1999. Vinculada ao Ministério da Saúde e responsável pela regulação no setor de
Produção e comercialização de produtos e serviços submetidos à vigilância sanitária;
ANS — Agência Nacional de Saúde Suplementar, criada pela Lei nº 9.961, de 28 de
janeiro de 2000. Vinculada ao Ministério da Saúde e responsável pela regulação no setor de
assistência suplementar à saúde;
ANA - Agência Nacional de Águas, criada pela Lei nº 9.984, de 17 de julho de 2000.
Vinculada ao Ministério do Meio Ambiente e responsável pela regulação no setor de recursos
hídricos;
ANTT — Agência Nacional de Transportes Terrestres, criada pela Lei nº 10.233, de 5 de
junho de 2001. Vinculada ao Ministério dos Transportes e responsável pela regulação no setor
de infra-estrutura de transportes terrestres;
ANTAQ - Agência Nacional de Transportes Aquaviários, criada pela Lei nº 10.233, de 5
de junho de 2001. Vinculada ao Ministério dos Transportes e responsável pela regulação no
setor de infra-estrutura de transportes aquaviários;
ANCINE — Agência Nacional do Cinema, criada pela Medida Provisória no 2.228-1, de
6 de setembro de 2001. Vinculada ao Ministério da Cultura e responsável pela regulação no
setor da indústria cinematográfica e videofonográfica;
ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil, criada pela Lei Federal nº 11.182 de 27 de
setembro de 2005 e instalada através do Decreto Federal 5.731 de 20 de março de 2006.
Vinculada ao Ministério da Defesa e responsável pela regulação no setor aéreo.
12
É mister ressaltar que, mesmo antes da criação das Agências Reguladoras no bojo do
processo Programa Nacional de Desestatização – PND, já havia atividade regulatória no
Brasil, exercida por diversos órgãos e entidades da Administração Pública, os quais, contudo,
não possuíam ou possuem a autonomia e demais prerrogativas características agências
reguladoras, conforme ressalta ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO4:
Todavia, antes das agências reguladoras independentes que começaram a ser
criadas no bojo do Programa Nacional de Desestatização – PND, já havia
sido criada uma série de órgãos e entidades reguladores, tais como o
Conselho Monetário Nacional – CMN, Banco Central do Brasil, o Instituto
do Álcool e da Cana de Açúcar – IAA, o Instituto Brasileiro do Café – IBC e
a Comissão de Valores Mobiliários – CVM. Nenhum deles, contudo, tinha
ou tem o perfil de independência frente ao Poder Executivo afirmado pelas
recentes leis criadoras das agências reguladoras e pela jurisprudência do
Supremo Tribunal Federal – STF.
1.2 Do conceito de Agência Reguladora
Para fins didáticos, em que pese a dificuldade de se estabelecer conceitos inteiramente
completos para os institutos jurídicos, é válido afirmar que, “Agência Reguladora é qualquer
órgão da Administração Direta ou entidade da Administração Indireta com função de regular
a matéria específica que lhe está afeta” 5.
Entretanto, considerando o que será abaixo afirmado (Ver itens 1.3.1 e 1.3.2.), no
conceito de Agência Reguladora não se deve aludir a “todo e qualquer órgão da administração
pública”, uma vez que somente sob a forma de entidades autarquias podem ser criadas as
Agências Reguladoras, em razão da autonomia que lhe são inerentes, essencial para que estas
possam desempenhar as funções para a qual foram criadas.
É certo que “todo conceito é sempre a tentativa de apreensão de uma realidade –
sempre fluida e imprecisa. Por isto, apesar da elaboração de conceitos ser de enorme
importância para a sistematização da ciência do Direito, não podemos deixar de considerar os
resquícios da imprecisão que lhes é natural”6.
Dessa forma, entende-se como Agência Reguladora a entidade da Administração
Pública Indireta, criada sob a forma de autarquia em regime especial, que tenha competência
4
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. –
Rio de Janeiro: Forense, 2002, pag. 265.
5
DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 402.
13
reguladora sobre serviços públicos delegados por concessão ou permissão à iniciativa privada,
ou sobre atividades econômicas relevantes, quais sejam “as atividades que em geral possuem
uma especial sensibilidade para a coletividade; atividades a respeito das quais os interesses
são fortes, múltiplos e conflitantes, notadamente as que possuem elevado potencial de
comoção da opinião pública, entre as quais incluem-se, obviamente, os serviços públicos”7.
Como exemplo de atividades relevantes de interesse coletivo, temos a regulação sobre
a comercialização de medicamentos exercida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária ANVISA, bem como a regulação sobre os planos de saúde, exercida pela Agência Nacional
de Saúde Suplementar – ANS, ambas vinculadas ao Ministério da Saúde, ou seja, voltados a
um segmento vital para a sociedade, dotado de projeção constitucional, qual seja a saúde.
Outrossim, considerando a demasiada síntese do conceito acima apresentado, faz-se
premente a exposição de um conceito mais completo, capaz de melhor esclarecer o que são as
agências reguladoras autônomas brasileiras. Para tanto, empregam-se as palavras de
ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO8:
podemos conceituar as agências reguladoras independentes brasileiras como
sendo autarquias de regime especial, dotadas de considerável autonomia
frente à Administração centralizada, incumbidas do exercício de funções
regulatórias e dirigidas por colegiado, cujos membros são nomeados por
prazo determinado pelo Presidente da República, após prévia aprovação pelo
Senado Federal, vedada a exoneração ad nutum.
Ante todo o exposto, conforme se esmiuçará adiante, as Agências Reguladoras,
possuem características próprias e peculiares que as distinguem dos demais entes e entidades
da Administração Pública, tornando-as dignas de destaque em meio ao arcabouço jurídico
brasileiro.
1.3 Da natureza jurídica das Agências Reguladoras
Não obstante os elementos do conceito esposado já trazer uma idéia da natureza
jurídica das Agências Reguladoras, cumpre reforçá-la, complementando-a, a fim de extinguir
as controvérsias que recaem sobre este tema, principalmente quanto à sustentação de que tais
6
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 274.
Ibid. p. 268.
8
Ibid. p. 275.
7
14
entidades reguladoras teriam “status jurídico próprio, transformando-se em nova categoria
integrante da administração pública indireta”9.
As agências reguladoras, conforme afirmado alhures, foram instituídas por leis
específicas, as quais as qualificaram como autarquias especiais.
Dessa forma, infere-se que, sendo autarquias, elas necessariamente são entidades da
administração pública indireta, detentoras de personalidade jurídica de direito público.
O mencionado regime especial se dá em razão das prerrogativas concedidas às
agências reguladoras, inexistentes nas demais autarquias, como, por exemplo, mandato fixo
de seus dirigentes, visando aumentar sua autonomia frente ao poder centralizado.
Corroboram tal entendimento as palavras de ALEXANDRE SANTOS DE
ARAGÃO10:
as agências reguladoras são autarquias de regime especial tanto formal (as
respectivas leis instituidoras as denominam como tal) como material (são
asseguradas diversas prerrogativas que aumentam consideravelmente a sua
autonomia em comparação com a das demais autarquias, em especial a
vedação de exoneração ad nutum dos membros do seu colegiado dirigente,
nomeados por prazo determinado).
Com vistas a favorecer a o entendimento do conceito supra, é forçoso conceituar
alguns dos institutos mencionados.
1.3.1
Da administração pública indireta
Entendem-se por administração pública indireta as entidades criadas criada por lei
específica, no caso das autarquias e das fundações públicas de direito público, ou por lei que
autorize sua criação, como ocorre com as fundações públicas de direito privado, empresas
públicas e sociedade de economia mista, para desempenhar de forma descentralizada
determinada atividade ou serviço público. Tais entidades são dotadas de personalidade
jurídica própria, ou seja, não estão contidas na estrutura Administração Pública Direta, mas a
esta está vinculada.
9
JUSTEN FILHO, Marçal. Prefácio da obra CUELAR, Leila. Agências reguladoras e seu poder normativo. São
Paulo, Dialética, 2001, p. 53, apud BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Solução de controvérsias pelas
agências reguladoras. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2009, p. 37.
10
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 275.
15
Acerca do instituto da “Administração Indireta”, tem-se ainda o seguinte conceito,
externado por JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO11:
Administração Indireta do Estado é o conjunto de pessoas administrativas
que, vinculadas à respectiva Administração Direta, têm o objetivo de
desempenhar as atividades administrativas de forma descentralizada.
O conceito, que procuramos caracterizar com simplicidade para melhor
entendimento, dá destaque a alguns aspectos que entendemos relevantes.
Primeiramente, a indicação de que a administração indireta é formada por
pessoas jurídicas, também denominadas por alguns e até pelo Decreto-lei n°
200/67, de entidades (art. 4°, II).
Depois, é preciso não perder de vista que tais pessoas não estão soltas no
universo administrativo. Ao contrário, ligam-se elas, por elo de vinculação,
às pessoas políticas da federação, nas quais está a respectiva administração
direta.
1.3.2
Da descentralização
Em decorrência do conceito de administração pública indireta, esclarecido acima,
ocorre, como visto, o fenômeno da descentralização, que é a delegação do exercício de
determinada atividade ou serviço público da Administração Pública Direta para uma entidade
da Administração Pública Indireta, que passará a ser sua detentora.
Acerca do instituto da descentralização especificamente quanto às Agências
Reguladoras, traz-se à luz o entendimento de ALEXANDRE DOS SANTOS ARAGÃO12, ex
vi:
Entende-se, no entanto, que a descentralização deva ser considerada no
sentido material, estando nela embutida uma administração independente,
dispondo de poderes decisórios regulamentares e individuais. Isso quer dizer
que tem de haver autonomia e independência, conferindo um certo grau de
liberdade de agir, independente de ser pessoa jurídica ou “pessoa jurídica
fictícia”
1.3.3
Das autarquias
Igualmente, as autarquias, que, conforme já se viu, corresponde a uma das espécies de
entidades da Administração Pública Indireta, conceituam-se da seguinte forma, conforme
11
12
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 496.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. pp. 211:218.
16
dispõe o art. 5° do Decreto-Lei n° 200, de 1967, alterado pelo Decreto-Lei n° 900, de 1969,
ainda em vigor:
Trata-se de um serviço autônomo criado por lei, com personalidade jurídica,
patrimônio e receita próprias, para executar atividades típicas da
administração pública que requeiram, para seu melhor funcionamento,
gestão administrativa e financeira descentralizadas.
Acerca da autonomia mencionada, cumpre ressaltar que, nas as autarquias tradicionais,
ela é restrita, já que estas estão diretamente vinculadas à Administração Pública Central, a
qual determina a direção dos trabalhos a serem executados, que devem ser observados pelas
autarquias.
Quanto à execução de atividades típicas da administração pública, isso significa que
autarquias só podem criadas para executar atividades que o Estado deva necessariamente
desempenhar, como é o caso, por exemplo, da previdência social. Ao revés, a estas entidades
é vedado o desempenho de atividades econômicas ou apenas socialmente relevantes, que
devem ser conferidas às outras entidades da administração pública.
Cumpre ainda ressaltar que sua natureza obrigatoriamente deve ser de pessoa jurídica
de direito pública, uma vez, assim não sendo, ficaria impossibilitada de executar atividades
típicas de Estado.
Postas tais considerações é válido apresentar os apontamentos de JOSÉ DOS
SANTOS CARVALHO FILHO13 acerca da etimologia do termo “autarquia”, que demonstra
o desvirtuamento de sua idéia:
O termo autarquia significa autogoverno ou governo próprio, mas no direito
positivo perdeu essa noção semântica para ter o sentido de pessoa jurídica
administrativa com relativa capacidade de gestão dos interesses a seu cargo,
embora sob o controle do Estado, de onde se originou.
Outrossim, quanto ao conceito de autarquia acima exposto, sustenta ainda o
supracitado jurista, in verbis:
Como todas as categorias de pessoas jurídicas integrantes da Administração
Indireta, as autarquias têm sua própria fisionomia, apresentando algumas
particularidades que as distinguem das demais. Basicamente, são elementos
13
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. pp. 506 e 508.
17
necessários à conceituação das autarquias os relativos à personalidade
jurídica, à forma de instituição e ao objeto, os quais, pelo fato mesmo de
integrarem o conceito, serão analisados adiante em separado.
Dessarte, diante das informações esposadas, cumpre salientar que, de acordo com as
palavras de DINORÁ GROTTI, “O Legislador optou por enquadrar as agências reguladoras
no gênero autarquia, pessoa jurídica de direito público, tendo em conta as funções coercitivas
que exercem e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – STF, in verbis”:
O STF, em decisão recente, considerou que a natureza da personalidade
jurídica é fundamental para que um ente possa exercer poderes de autoridade
pública. Assim é que, no julgamento liminar sobre a transformação dos
Conselhos Profissionais em pessoas jurídicas de direito privado, operada
pelo art. 58 da lei Federal n° 9.649/98, na ADIN n° 1717-6, foi considerada
inconstitucional, “mediante a interpretação conjugada dos artigos 5°, XIII,
22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da CF, a delegação, a
uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder
de polícia, de tributar e de punir, no que tange ao exercício de atividades
14
profissionais.
Diante do exposto, infere-se que as Agências Reguladoras detêm todas as
características fundamentais do regime autárquico tradicional, “como, em síntese, a instituição
mediante ato legislativo próprio, a autonomia administrativa e financeira, além da supervisão
ministerial”15. Distinguem-se, contudo, pelos privilégios e obrigações específicos e peculiares
que lhe foram conferidos pelas respectivas leis especiais criaram cada uma delas.
14
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As Agências Reguladoras. Revista Eletrônica de Direito Administrativo
Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n° 6, mai/jun/ jul de 2006. Disponível na internet:
http://www.direitodoestado.com.br. Acessado em 14 de abril de 2011.
15
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. cit. p. 431.
18
2 DAS PRERROGATIVAS DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Consoante o esposado acima, as agências reguladoras são autarquias em regime
especial porque suas próprias leis instituidoras atribuíram-lhes determinadas prerrogativas, ou,
como prefere ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, características16, as quais lhes
conferem maior autonomia frente ao ente centralizado do que detêm as demais autarquias
comuns.
Acerca da referida autonomia, com o propósito explicitar melhor o significado desta
prerrogativa central, da qual decorrerem todas as demais, cumpre colacionar as palavras de
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO17:
A autonomia das Agências Reguladoras existe, em maior ou menor escala,
frente a todos os Poderes do Estado, revelando-se mais sensível face ao
Poder Executivo, tendo em vista o maior número de pontos de contato que
ele possui, e a tradicional, mas ultrapassada, idéia de subordinação
hierárquica ao Chefe do Governo de todos os agentes e entidades do aparato
administrativo.
O pleno entendimento de todos os seus elementos caracterizadores é essencial para a
compreensão, bem como a o estudo as Agências Reguladoras, visto que há outros órgãos e
entidades da Administração Pública que guardam algumas semelhanças com estas, seja por
possuírem em sua nomenclatura o termo “Agência”, como é o caso, por exemplo, da Agência
Brasileira de Inteligência _ ABIN, seja por exercerem função regulatória, como é o caso do
INMETRO.
Contudo, as citadas instituições não se configuram como Agência Reguladora, pois
não possuem todas as prerrogativas, que aqui se evidenciam como requisitos, inerentes e
indissociáveis desta, essenciais para sua classificação como tal.
Dito isto, passa-se, então, a discorrer, esmiuçando-as, acerca da mencionadas
prerrogativas (ou características), as quais, “numa visão geral, sem embargo de os autores não
traçarem linhas rigorosamente idênticas a respeito de tais elementos, podemos dizer que
corresponderiam às seguintes prerrogativas: 1°) poder normativo técnico; 2°) autonomia
decisória; 3°) independência administrativa; 4°) autonomia econômico-financeira”18.
16
ARAGÃO, Alexandre Santos de.Op. cit. p. 313.
Idem. Agências Reguladoras e Agências Executivas. Revista de Direito Administrativo n° 228, 2002, p. 118.
18
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 518.
17
19
Entretanto, ALEXANDRE SANTOS ARAGÃO emprega outra denominação ao
definir as características essenciais para a configuração de determinada entidade como
Agências Reguladoras, in verbis:
“as principais notas são a atribuição de competências regulatórias, a
impossibilidade de exoneração ad nutum dos seus dirigentes, a
organização colegiada, a formação técnica, e a impossibilidade de
recursos hierárquicos impróprios, sendo que apenas a conjunção destes
elementos resultará na conceituação de uma entidade como agência
reguladora independente.19
Afirma-se, entretanto, que, não obstante as distintas nomenclaturas adotadas por cada
doutrinador, tratam-se, quanto ao conteúdo, das mesmas prerrogativas/características,
consoante será demonstrado abaixo.
Cumpre ressaltar que, apesar de constar do elenco das prerrogativas conferidas às
Agências Reguladoras, o poder normativo não será tratado neste capítulo, porquanto merecerá
ampla atenção mais adiante, em um capítulo próprio (3), por ser o tema central do presente
estudo.
2.1 Da autonomia decisória (vinculação administrativa – não cabimento de recurso
hierárquico):
Esta prerrogativa tem por escopo manter no âmbito interno das Agências Reguladoras
as instâncias capazes de rever seus atos decisórios, ou seja, em outras palavras, significa que o
atos decisórios emanados pelas Agências Reguladoras não são passíveis de recurso
hierárquico endereçado ao Ministério a que está vinculada (recurso hierárquico impróprio),
tampouco a qualquer outra autoridade, entidade ou ente da Administração Pública Direta ou
Indireta, devendo eventuais reanálises sobre a matéria objeto do ato decisório proferido serem
revistas pela própria Agência Reguladora, através de seus órgão internos.
Neste sentido é o entendimento de JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO20, ex
vi:
19
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. –
Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 299.
20
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Op. cit. p. 520.
20
A autonomia decisória significa que os conflitos administrativos, inclusive
os que envolvem as entidades sob seu controle, se desencadeiam e se
dirimem através de seus próprios órgãos da autarquia. Em outras palavras, o
poder revisional exaure-se no âmbito interno, sendo inviável juridicamente
eventual recurso dirigido a órgãos ou autoridades da pessoa federativa à qual
está vinculada a autarquia.
Assente com este entendimento está ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO21, ao
observar que não há lei que preveja a possibilidade de interposição de recurso hierárquico
impróprio, o que, por si só, já bastaria para a consolidação de entendimento contrário à sua
permissão, ex vi:
Examinando o Direito positivo de pronto podemos afirmar que nenhuma lei
prevê a existência de recurso administrativo hierárquico impróprio contra as
decisões das agências reguladoras, o que por si só bastaria para eliminar tal
possibilidade em razão da vetusta doutrina do pás de tutelle sans texte, pás
de tutelle au-dellá du texte, decorrente da personificação jurídica das
entidades da Administração Indireta, que não são meros órgãos
despersonalizados – partes integrantes do corpo do Ente estatal.
Outrossim, reforçando a autonomia decisória alegada, com vedação ao recurso
hierárquico impróprio, sustenta o mesmo jurista que, inobstante o fato de eventualmente não
constar expressamente da lei de determinada agência reguladora a impossibilidade de
interposição deste tipo recurso, que refoge ao âmbito da entidade, detentora de personalidade
jurídica própria, ainda assim deve-se entender pela sua vedação, em consagração à autonomia
inerente a tais entidades:
O que se deve notar é que pouco importa se nesta ou naquela agência está ou
não expressamente excluída a interposição de recurso hierárquico impróprio.
Como já visto, não é a sua vedação que deve ser expressa, mas sim a sua
admissão (pás de tutelle sans texte). O próprio decreto-lei n° 200/67,
aplicável às agências reguladoras no que não contrariar as suas leis
específicas, não inclui os recursos hierárquicos impróprios entre os
mecanismos de supervisão ministerial disciplinados por seus arts. 19 a 29.
2.2 Da autonomia administrativa (mandato fixo de seus dirigentes):
21
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. pp. 346/347
21
A presente prerrogativa detém demasiada importância na definição de Agências
Reguladoras, uma vez que muitos doutrinadores afirmam que este é o caráter que define o
“regime especial” que distinguem estas das demais autarquias.
Trata-se, em suma, da estabilidade contida nos mandatos22 dos dirigentes das Agências
Reguladoras, os quais são nomeados pelo Presidente da República, após aprovação pelo
Senado Federal, nos termos do procedimento previsto nos artigos 4° a 10 da Lei n° 9.986/00,
os quais estabelecem sua disciplina geral.
Diz-se estabilidade porque o artigo 9° do citado diploma legal veda a exoneração ad
nutum dos dirigentes das agências reguladoras devidamente nomeados, ou seja, uma vez
invertidos no cargo, os dirigentes de tais autarquias em regime especial não podem ser
exonerados pela simples conveniência e oportunidade do ministério supervisor, tampouco
pelo chefe do Poder executivo. Cumpre ressaltar que a investidura se dá a termo, ou seja, com
prazo determinado, sendo possível a recondução uma única vez.
Complementando a explanação alhures, apresentam-se as palavras de ALEXANDRE
SANTOS DE ARAGÃO23:
Quanto aos dirigentes das Agências Reguladoras sua disciplina, previstas
nos arts. 4° a 10 da Lei n° 9.986/00, que estabelecem sua disciplina geral
pela qual serão escolhidos entre brasileiros, de reputação ilibada, formação
universitária e elevado conceito no campo de especialidade dos cargos,
nomeados pelo Presidente da República para mandato de período certo, após
aprovação pelo Senado Federal, nos termos da alínea f do inciso III do art.
52 da Constituição Federal (arts. 5° e 6°). A eles também é assegurada a
vedação de exoneração ad nutum (art. 9°) e imposta uma série de limitações
profissionais durante o período de quarentena (art. 8°).
2.3 Da autonomia econômico-financeira:
A autonomia econômico-financeira é, segundo ALEXANDRE ARAGÃO, “requisito
essencial para que qualquer autonomia se efetive na prática” 24.
Ademais, acrescenta ainda ALEXANDRE ARAGÃO, que:
22
Segundo José dos Santos Carvalho Filho, “a legislação frequentemente emprega o termo mandato, o que não é
tecnicamente correto, já que o mandato tem caráter político e resulta de processo eletivo, como é caso do
mandato dos parlamentares e Chefes do Executivo. O caso é de investidura a termo, instituto que, embora tenha
em comum o prazo determinado para o exercício das funções, tem caráter nitidamente administrativo”. In:
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 520.
23
Ibid. pp. 325 e 326.
24
Ibid. p. 332.
22
podemos constatar que de fato as leis instituidoras das agências lhes
asseguram autonomia financeira, através da titularidade das chamadas “taxas
regulatórias” (ex.: arts. 11 a 14 da Lei nº 9.427/96); e orçamentária, através
do envio de proposta de orçamento ao Ministério ao qual é vinculado (ex.:
art. 49 da Lei n° 9.427/96)25.
Em razão disso, extrai-se que, considerando o recolhimento de recursos próprios,
auferidos através das taxas de regulação, que são devidas em virtude da fiscalização e controle
dos serviços públicos delegados, bem como do poder de polícia exercido sobre os executores
de atividades econômicas socialmente relevantes; denominados agentes regulados, bem como
a existência de dotação orçamentária própria, auferida para emprego na gestão de seus
próprios órgãos, e decorrente da elaboração por si de seu orçamentário, as Agências
Reguladoras, diferentemente das demais autarquias tradicionais, efetivamente possuem
autonomia econômico-financeira frente à administração pública direta, não obstante estar
vinculada ao plano orçamentário, que é uno.
25
Ibid. p. 332.
23
3 DO PODER NORMATIVO DAS AGÊNCIAS REGULADORAS
Como se anotou alhures, dentre as prerrogativas atribuídas às agências reguladoras,
está o poder normativo, que abrange tanto o poder de regulamentar as leis que regem seu
mercado de atuação, como o de editar normas independentes, sobre matérias não
especificamente disciplinadas em lei, mas que, contudo, têm seus limites, seus parâmetros
definidos, com maior ou menor exatidão e detalhamento, em suas respectivas leis
instituidoras.
É imperioso salientar que os termos “poder normativo”, “poder regulamentar”, “poder
legiferante”, etc. são postos com vistas a facilitar o entendimento e a identificação com os
termos comumente utilizados pela doutrina, porquanto se tenha por certo que o Poder Estatal,
qual seja a “soma de poderes concentrados oriundos da sociedade geratriz e instituidora”26, é
uno e indivisível, de modo que as divisões se dão quanto às funções estatais típicas, que se
promovem para fins de distribuição das atribuições do Estado.
Assim, o termo “poder” é comumente utilizado onde se deveria empregar a palavra
“função”, no sentido de que “compõem-se o Estado de poderes, segmentos estruturais em
que se divide o poder geral e abstrato decorrente de sua soberania”27. (grifo nosso)
Neste sentido são as considerações de KARL LOEWENSTEIN, quando afirma que:
O que, comumente, ainda que erroneamente, se costuma denominar como
separação dos poderes estatais, é na verdade a distribuição de determinadas
funções estatais a diferentes órgãos do Estado. O conceito de “poderes”,
apesar de estar profundamente enraizado, deve ser entendido neste contexto
de uma maneira meramente figurativa.28
Abrangendo ambos os sentidos do vocábulo “Poder”, vale trazer à colação as palavras
de DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, ex vi:
O poder, na organização do Estado, tem, contudo, duas acepções: um sentido
orgânico – entendido como centro de imputação do Poder Estatal, e um
sentido funcional – que vem a ser um modo de exercê-lo.
(...)
26
MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, 15ª ed., revista, refundida e
atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009, p. 19.
27
CARVALHO FILHO, José dos Santos. op. cit., p.02.
28
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución, Ariel, 1986, trad. Alfredo Gallego Anabiante, pp. 55/56 apud
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 372.
24
Desse modo, convencionalmente, são poderes orgânicos: O Poder
Legislativo, o Poder Executivo e o Poder Judiciário, e, poderes funcionais: o
poder legiferante ou normativo, o poder executante ou administrativo e o
poder judicante ou jurisdicional.29
Desse modo, feitas as devidas ressalvas, inicia-se o estudo do tema principal do
presente projeto, o qual é, certamente, o mais controverso, obscuro e instigante de todo o
arcabouço atinente às Agências Reguladoras, tanto que assim o apresentou ALEXANDRE
SANTOS DE ARAGÃO30 em sua obra:
Não há, contudo, tema do Direito Regulatório brasileiro que suscite tamanha
discussão, tanto na doutrina como na prática contenciosa, administrativa e
judicial, que o da amplitude, limites e controles do poder normativo das
agências reguladoras, ou seja, da sua competência para emitir normas gerais
e abstratas disciplinando o exercício de atividades econômicas por
particulares.
3.1 Do enquadramento no ordenamento jurídico brasileiro
Na esteira do que vem sendo desenvolvido no presente projeto, às Agências
Reguladoras foi conferido amplo poder normativo, através do qual as mesmas editam normas
para regulamentar atos normativos hierarquicamente superiores, sejam leis em sentido formal
ou outros regulamentos emanados por autoridades hierarquicamente superiores, exercendo,
assim, poder regulamentar propriamente dito, mas, por outro lado, editam também normas
que inovam, mesmo que não completamente, pois previamente definidos legalmente seus
parâmetros, no mundo jurídico, com abstração, impessoalidade e generalidade capazes de
impor a seus administrados obrigações não disciplinadas em lei.
Justamente neste último aspecto de que se revestem as normas editadas pelas Agências
Reguladoras é que recaem as discussões e os questionamentos quanto à sua
constitucionalidade, uma vez que, numa primeira e superficial análise, parecem violar dois
dos princípios basilares de nossa Constituição Federal de 1988, quais sejam os princípios da
separação dos poderes e da legalidade.
29
MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Op. cit. p. 19.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. (coord.) O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro:
Forense, 2006. p. VII (Apresentação).
30
25
Sendo assim, com o intento de dirimir tais questões, deve-se, primariamente, detalhar
o poder normativo das agências reguladoras no ordenamento jurídico brasileiro, a fim de que,
identificando sua localização, possa-se, então, analisar sua constitucionalidade.
Para tanto, lança-se mão dos ensinamentos de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA
CASTRO ao conceituar as espécies de poder normativo existentes:
O poder normativo das agências reguladoras é, na espécie, poder
regulamentar econômico secundário. Por que secundário? Porque não é
primário; porque o poder normativo econômico primário pertence ao
Congresso Nacional. Enquanto o poder regulamentar econômico primário
pertence ao Presidente da República, com base no art. 84 da Constituição,
inciso IV, que lhe confere o poder para sancionar, promulgar as leis e
expedir regulamentos para sua fiel execução31.
Diante do conceito apresentado, é possível se inferir, portanto, que o poder normativo
primário é o exercido pelo Poder Legislativo, através do Congresso Nacional, na esfera
federal, e por seus correlatos nos Estados e Municípios, Assembléias Legislativas e Câmaras
de Vereadores, respectivamente, em virtude da competência que lhe atribui a CRFB/88, a
qual, inclusive, dispôs exatamente acerca do procedimento que deve ser observado para a
elaboração, discussão, votação, aprovação, revisão, sanção, promulgação e publicação das
espécies normativas elencadas em seu art. 59.
Na mesma esteira, deve-se afirmar que, também atuando com poder normativo,
cumpre ao Presidente da República a competência para o exercício do poder regulamentar
primário, nos termos do disposto no art. 84, IV da CRFB/88, in verbis:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
IV - sancionar, promulgar e fazer publicar as leis, bem como expedir
decretos e regulamentos para sua fiel execução; (grifo nosso)
Logo, diante da redação do preceito supra, induz-se que o poder regulamentar é
privativo do Presidente da República, por assim dispor expressamente o texto constitucional.
Entretanto, como se verá abaixo, este poder regulamentar, atribuído ao Presidente da
República pela CRFB/88, não é absoluto, uma vez que a própria CRFB/88 o concede a outras
31
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, op. cit., p. 433.
26
autoridades públicas, como aos Ministros de Estado, bem como por nada obstar que a lei
atribua tal competência a outras autoridades.
Outrossim, faz-se necessário,neste ponto, um adendo para firmar algumas
considerações quanto à possibilidade da expedição de regulamentos autônomos pelo
Presidente da República.
Tal tema merece relevo em razão da redação dada ao art. 84, VI e alíneas, da
CRFB/88, pela Emenda Constitucional – EC n° 32, de 2001, que dispõe o seguinte:
Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República:
(...)
VI - dispor, mediante decreto, sobre: (Redação dada pela Emenda
Constitucional nº 32, de 2001)
a) organização e funcionamento da administração federal, quando não
implicar aumento de despesa nem criação ou extinção de órgãos públicos;
(Incluída pela Emenda Constitucional nº 32, de 2001)
b) extinção de funções ou cargos públicos, quando vagos;(Incluída pela
Emenda Constitucional nº 32, de 2001) (grifo nosso)
Dessa forma, conforme visto, foi dada ao presidente a prerrogativa de dispor mediante
decreto autônomo, ou seja, independente de lei, acerca de determinados temas afetos à
administração da máquina pública.
Entretanto, convém destacar que somente nestes casos, restritos à organização da
Administração Pública, da qual o Presidente é o chefe maior, são permitidos tais decretos,
devendo, nos demais casos, haver precedência de lei.
Sobre tal tema, são oportunas as palavras de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA
CASTRO, quando tem em vista o seguinte:
Afirmo que o Direito Constitucional brasileiro acomoda perfeitamente a
idéia de regulamentos autônomos e independentes, conquanto com
limites e respeito das reservas de legalidade formal previstas na
Constituição. É claro que a matéria é controversa e que há festejadas
opiniões em sentido contrário, como a do saudoso ministro Victor Nunes
Leal, que sustenta a impossibilidade constitucional dos chamados
regulamentos autônomos e independentes. Mas eles estão aí todo dia no
Diário Oficial e precisam ser teorizados pela doutrina constitucional
brasileira. É importante que haja essa teorização e que se imponham
27
limites ao poder regulamentar autônomo do Presidente da República32.
(grifo nosso)
E, por seu turno, em razão da teoria da hierarquia das normas, cabe às entidades
reguladores, donde se encontram as Agências Reguladoras, o exercício do - igualmente
enquadrado como espécie de poder normativo - poder regulamentar secundário, que assim o é
por dever observância às normas hierarquicamente superiores supracitadas, quais sejam as
emanadas pelo Poder Legislativo, bem como pelo Presidente da República em sua função
regulamentar.
Vale frisar que a classificação apresentada se ampara na melhor doutrina
administrativista, a qual reconhece a existência de diversas espécies, hierarquizadas em graus,
de atos normativos:
Os que visam diretamente a regulamentar, complementando e
minudenciando as normas da lei, será de natureza de ato regulamentar de
primeiro grau; outros que a ele se subordinem e que, por sua vez, os
regulamentem, são qualificados como atos de regulamentação de segundo
grau, e assim por diante.33
3.2 Do conceito e da natureza jurídica
Posicionado no ordenamento jurídico o poder normativo das agências reguladoras,
passa-se, então, da maneira mais aproximada possível com a realidade, dadas as dificuldades
inerentes à tentativa de apreensão desta, pois dotada de fluidez e imprecisão, à elaboração de
um conceito que abarque, sinteticamente, suas variadas características, bem como à
identificação de sua natureza jurídica.
Primeiramente, atenta-se para a ressalva feita alhures (item 3) acerca do termo
“poder” que integra o objeto deste estudo, haja vista sua equivocada aplicação neste sentido,
uma vez que melhor empregado estaria o termo “função” nesta acepção.
Postas tais considerações, pode-se conceituar o poder normativo das agências
reguladoras como sendo a competência a elas atribuída por suas próprias leis instituidoras
para expedir normas de caráter geral, abstrato e impessoal, regulamentando os preceitos nelas
contidos, ou em outras inerentes a seu mercado regulado, impondo direitos e obrigações aos
32
33
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira, op. cit., p. 434.
CARVALHO FILHO, José dos Santos.Op. cit. p. 60.
28
administrados, sem, contudo, “inovarem totalmente na ordem jurídica, haja vista que foram as
próprias leis disciplinadoras da regulação que transferiram alguns vetores de ordem técnica
para a normatização das entidades especiais34”.
Diante do conceito exposto, pode-se inferir, em razão das características a ele
imputadas, que se trata, conforme o já afirmado acima (item 3.1), de poder regulamentar, pois
tem o condão de dar concretude, densidade à outra norma jurídica hierarquicamente superior,
sem deixar, entretanto, de possuir a força normativa necessária para limitar a liberdade dos
particulares, impondo-lhes direitos e obrigações.
Ou seja, “ao desempenhar o poder regulamentar, a Administração exerce
inegavelmente função normativa, porquanto expede normas de caráter geral e com grau de
abstração e impessoalidade, malgrado tenham elas fundamento de validade na lei”35.
Com efeito, conceitua-se poder regulamentar como sendo a “prerrogativa
conferida à Administração Pública de editar atos gerais para complementar as leis e permitir
sua efetiva aplicação”36.
Postos tais conceitos, convém ressaltar que, “como assinala autorizada doutrina37,
a função normativa é gênero no qual se situa a função legislativa, o que significa que o Estado
pode exercer aquela sem que tenham necessariamente que executar esta última. É na função
normativa geral que se insere o poder regulamentar”38.
Ampliando o conhecimento sobre poder regulamentar, vale trazer à baila as
palavras exaradas por AUGUSTO HENRIQUE WERNECK MARTINS ao posicioná-lo
historicamente, o qual afirma que “a idéia de poder regulamentar está intrinsecamente ligada à
aparição histórica do Estado Liberal, de modo que a separação dos poderes acabou por
reconhecer ao Executivo a capacidade de editar normas jurídicas”39.
Outrossim, conforme os fundamentos elencados no item 3.1 acima, afirma-se que
o poder regulamentar exercido pelas agências reguladoras possui natureza derivada, conforme
assevera CARVALHO FILHO:
34
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências reguladoras e poder normativo. Revista eletrônica de direito
administrativo econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, fev/mar/abr., 2007,
p. 8. Disponível na internet: HTTP://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em: 11 de abril de 2011.
35
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 23 ed. ver., ampl. E atualizada até
31/12/2009, op. cit., p. 60
36
Loc. cit.
37
MOTTA, Fabrício. Função normativa da administração pública. Del Rey, 2007, pp. 133-135 apud Loc. cit.
38
Loc. cit.
39
MARTINS, Augusto Henrique Werneck. Reflexões acerca do poder regulamentar – propostas à constituinte
IN RDPGERJ 40/45 apud Loc. cit.
29
em primeiro lugar, o poder regulamentar representa uma prerrogativa de
direito público, pois que conferido aos órgãos que têm incumbência de
gestão dos interesses públicos.
Sob o enfoque de que os atos podem ser originários ou derivados, o poder
regulamentar é de natureza derivada (ou secundária): somente é exercido à
luz de lei preexistente.40
Contudo, em que pese o destacamento de relevantes manifestações doutrinárias no
sentido de reconhecer o podre normativo das agências reguladoras como poder regulamentar,
há na doutrina administrativista os que entendam diversamente, conforme demonstra
ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, ex vi:
Há, contudo, a opinião (verbia gratia, a posição de Marcos Juruena Villela
Souto, manifestada no I Congresso Estadual de Advocacia Pública do Rio de
Janeiro, Universidade Cândido Mendes, Rio de Janeiro, 2001), pela qual
apenas o Chefe do Executivo tem poder regulamentar; que determinadas
autarquias podem até ter um poder normativo lato sensu, mas que poder
regulamentar só o Chefe do Executivo. Afirmam que o poder regulamentar
propriamente dito teria conteúdo político, ao passo que as normas editadas
por outras autoridades administrativas só podem ter conteúdo técnico. 41
Com respeito à posição doutrinária apresentada, aparenta melhor cabimento a posição
contrária, que sustenta ser, quanto à espécie, poder regulamentar, e, quanto ao grau,
secundário, o poder normativo das agências reguladoras que, uma vez que, conforme afirma
JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO “é a própria lei quem confere a outros titulares de
órgão ou a entidade da Administração Pública distinta da Chefia do Poder Executivo” 42.
Pacificando tal questão, vale colacionar as palavras do mesmo jurista quando sustenta
contra ser de exclusividade do Presidente da República a prerrogativa de exercício do poder
regulamentar:
O processo de formalização do poder regulamentar se processa nos termos
do art. 84, IV da CRFB/88, que dispõe que compete ao Presidente da
República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução das leis.
Há também atos normativos que, editados por outras autoridades
administrativas, podem caracterizar-se como inseridos no poder
regulamentar, pois, veiculando normas gerais e abstratas para a
explicação das leis, não deixam de ser, a seu modo, meios de
formalização do poder regulamentar.
40
Loc. cit..
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. –
Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 382, citação 35.
42
Ibid. p. 381.
41
30
Considerando o nosso sistema de hierarquia normativa, podemos dizer
que existem graus diversos de regulamentação conforme o patamar em
que se aloje o ato regulamentador.43 (grifo nosso)
Outrossim, acerca da alegação de que o poder regulamentar propriamente dito
teria conteúdo político, ao passo que as normas editadas por outras autoridades
administrativas só podem ter conteúdo técnico, aplicam-se as considerações de
GIANDOMENICO MAJONE44, para quem “não é verdade que as políticas determinem tudo
até certo ponto, enquanto a administração se encarrega de todo o resto a partir deste ponto:
ambas interagem ao longo de todo o processo de elaboração das políticas”.
Nesta linha de raciocínio, desqualificando a dicotomia entre conteúdo político e
conteúdo técnico, ALEXANDRE DE SANTOS ARAGÃO observa que:
(...) já demonstramos a artificialidade de uma separação rígida entre técnica
e política, o que necessariamente leva à improcedência da distinção entre os
atos normativos políticos e meramente técnicos. O Conselho Monetário
Nacional – CMN, por exemplo, tem uma competência normativa de elevado
teor técnico, o que não ilide, obviamente, a enorme importância política das
decisões normativas por ele tomadas: a fixação de juros é uma questão
técnica, mas não é também altamente política? A decisão normativa da
ANATEL quanto à adoção do modelo norte-americano ou europeu de
telefonia celular é técnica, mas também não é política, até mesmo de política
internacional?45
Ante os argumentos expostos, acredita-se ter afastado a premissa de exclusividade de
competência do Presidente da República no exercício do poder regulamentar, o qual, logo,
não se distingue entre o praticado pelo Chefe do Poder Executivo e pelas demais autoridades
administrativas integrantes das entidades e dos órgãos autônomos dotados de poder
normativo, pois, se aquele é originário, concedido diretamente pela Constituição Federal, este
é derivado, pois atribuído por leis formais, a quem a própria Constituição Federal de 1988
conferiu competência para disciplinar, normativamente, através da observância dos
procedimentos nela estabelecidos, a liberdade dos indivíduos.
Outrossim, infere-se que, tendo por objetivo regulamentar outras espécies
normativas preexistentes e hierarquicamente superiores, não poderia o poder normativo das
Agências Reguladoras possuir outra natureza jurídica, principalmente a de poder legiferante,
43
Loc. cit..
MAJONE, Giandomenico. Evidencia, argumentación y persuasión em la formulación de políticas, Ed. Fonde
de Cultura Económica, México, 1997, trad. Eduardo L. Suárez, p. 61 apud Ibid. p. 364.
45
Ibid. p. 382, citação 35.
44
31
uma vez que este somente pode ser exercido pelo Poder Legislativo, que é o legitimado
constitucional para seu exercício, tampouco de poder regulamentar primário, privativo do
presidente da república, nos termos do art. 84, IV da CRFB/88.
Dessa forma, é imperioso, para que se atinjam os colimados fins do presente
estudo, identificar a natureza jurídico do poder regulamentar.
Dessa forma, entende-se que o poder regulamentar, sendo o poder normativo
exercido pelas agências reguladoras, é praticado mediante ato administrativo, uma vez que,
sendo entidade integrante da Administração Pública, seus atos devem observar todos os
aspectos legais que lhe são concernentes, principalmente os de natureza constitucional, onde
se incluem os princípios regentes da administração pública.
Neste sentido são as consideração de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA
CASTRO, in verbis:
(...) podemos afirmar o seguinte: agência reguladora pratica ato
administrativo. Não é concebível qualquer outra forma de atuação da
agência reguladora que não seja pela via administrativa e com observância
dos princípios e normas constitucionais regentes da administração pública e
tutelares dos direitos fundamentais de todos os matizes: individuais e
coletivos, sociais, culturais, políticos e econômicos. (grifo nosso)
E continua:
Uma decisão ou uma deliberação é um ato administrativo normativo,
poderá ser um ato administrativo de efeito concreto ou até dotado de
generalidade se visar disciplinar a adequação dos serviços dos marcos
reguladores legislativos já existentes. Com efeito, a agência reguladora
pratica ato administrativo quando fiscaliza a adequação dos serviços; pratica
ato administrativo quando aplica sanções ou penalidades ao concessionário
dos serviços; pratica ato administrativo, é claro, de amplitude e repercussão
coletiva, quando preside e encaminha uma audiência pública ou quando
realiza uma sessão reguladora; pratica ato administrativo quanto publica os
seus atos nos órgãos oficiais ou deles dá intimação aos interessados no seu
conhecimento, o que é obrigatório46. (grifo nosso)
Acerca deste entendimento, de que o poder normativo das agências reguladoras é
praticado mediante ato administrativo, a doutrina de GEORG JELLINEK assevera que,
lembrando o autor germânico, ex vi:
46
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Op. cit. pp. 431 e 432.
32
O Estado sobrevive sem leis e sem juízes, mas um Estado sem administração
seria a anarquia. A administração, portanto, é a função mais compreensiva
das demais. (...) Por isto se pode designar como administrativa toda a
atividade do Estado que não seja legislativa ou jurisdicional. Esta
possibilidade de conceituação negativa da administração é reafirmada pela
importância que tem para o Estado. Só ela é capaz de ser explicada pela
simples oposição às demais atividades do Estado47. (grifo nosso)
Congrega com este pensamento ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, quando
afirma que “quanto à natureza das funções exercidas pelas agências reguladoras, entendemos,
seguindo a doutrina de GEORG JELLINEK, que, isolada ou conjuntamente consideradas, são
lato sensu administrativas48”.
Sendo assim, diante de todo o exposto, defini-se o poder normativo das agências
reguladoras como sendo poder regulamentar secundário, praticado mediante ato
administrativo, o qual deve observância aos princípios regentes da Administração Pública.
3.3 Dos fundamentos
Consoante o já afirmado nos itens precedentes, foram as próprias leis instituidoras que
conferiram às Agências Reguladoras competência para expedir normas regulamentares acerca
de seu mercado de atuação.
Assim se deu, por exemplo, segundo JOSÉ DOS SANTOS CARVALHO FILHO,
pioneiramente, com a promulgação da Lei n° 9.427, de 26 de dezembro de 1996, quando da
criação da ANEEL – Agência Nacional de Energia Elétrica, a qual concedeu a essa agência o
poder de “implementar as políticas e diretrizes do governo federal para a exploração de
energia elétrica e o aproveitamento dos potenciais hidráulicos, expedindo os atos
regulamentares necessários ao cumprimento das normas estabelecidas pela Lei 9.074, de 07
de julho de 1995” (art. 3°, I), bem como o de “regular o serviço concedido, permitido e
autorizado e fiscalizar permanentemente sua prestação”49.
Assim como ocorreu com a ANEEL, foi conferida competência normativa às demais
Agências Reguladoras posteriormente criadas.
47
JELLINEK, Georg. Teoria general del Estado, Ed. Comares, Granada, 200, tradução de Fernando de los Rios
Urruti, pp. 602 a 604 apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. pp. 97 e 98.
48
Ibid. p. 378.
49
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências reguladoras e poder normativo. Revista eletrônica de direito
administrativo econômico (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, nº 9, fev/mar/abr., 2007,
p. 6. Disponível na internet: HTTP://www.direitodoestado.com.br/redae.asp. Acesso em: 11 de abril de 2011.
33
Dessa forma, infere-se que o fundamento do poder normativo das agências reguladoras
está em suas próprias leis instituidoras, as quais, por sua vez, embasam-se na competência
originária delegada pela Constituição (CRFB/88) ao Poder Legislativo.
Portanto, na expressão de SANTHIAGO DANTAS, ocorreu o fenômeno denominado
“descentralização do poder normativo do Executivo”, para órgãos ou entidades “tecnicamente
mais aparelhados”. Afirma ainda o jurista brasileiro, que “o poder de baixar regulamentos,
isto é, de estatuir normas jurídicas inferiores e subordinadas à lei, mas que nem por isso
deixam de reger coercitivamente as relações sociais, é uma atribuição constitucional do
Presidente da República, mas a própria lei pode conferi-la, em assuntos determinados, a um
órgão da Administração Pública ou a uma dessas entidades autônomas que são as
autarquias”50.
Igualmente, entende CAIO TÁCITO ao observar que:
se o poder regulamentar é em princípio e dominantemente exercido pelo
Presidente da República, em razão de sua competência constitucional, nada
impede – antes em determinadas circunstâncias aconselha – possa a lei
habilitar outras autoridades à prática do poder normativo. (...) A norma de
competência do Presidente da República é enumerativa, não sendo válido o
raciocínio a contrário sensu, excludente de outra fórmula de ação normativa
que a discricionariedade do Legislativo entenda necessária ou conveniente51.
Destarte, superadas as questões inerentes à exclusividade, ou melhor, a falta dela, de
competência do Chefe de Poder Executivo para emitir regulamentos, deve-se afirmar que,
suficientemente demonstrados os fundamentos do poder normativo das agências reguladoras,
este é legítimo, na medida em que a própria lei promoveu a descentralização do poder
normativo do Executivo para órgãos ou entidades tecnicamente mais aparelhados,
especializados e técnicos, na forma como se deu com as Agências Reguladoras.
3.4 Da compatibilidade com o Princípio da Separação dos Poderes
Com o intuito de pormenorizar tema até então somente mencionado no presente
projeto, adentra-se, neste item, no estudo da compatibilidade do poder normativo das agências
50
DANTAS, Santhiago. Poder regulamentar das autarquias, constante da obra Problemas de direito positivo, Ed.
Forense, 1953, pp. 203/205 apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 381.
51
TÁCITO, Caio. Comissão de valores mobiliários. Poder regulamentar, constante do Temas de direito público,
Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1997, Tomo 2, pp. 1079 e 1088 apud Ibid. p. 381.
34
reguladoras com o princípio constitucional da separação dos poderes, notadamente no que
tange ao poder legiferante, que, conforme mandamento constitucional, é exercido
exclusivamente pelo Congresso Nacional na esfera federal, pelas Assembléias Legislativas,
nos Estados, e pelas Câmaras de Vereadores nos Municípios.
Dessa forma, haja vista a perfeita aplicabilidade ao tema ora estudado, complementase aqui as considerações de KARL, LOEWENSTEIN52, em parte já apresentadas neste
estudo:
O que na realidade significa a assim chamada “separação dos poderes”, não
é, nada mais nada menos, que o reconhecimento de que, por um lado, o
Estado tem que cumprir determinadas funções – o problema técnico da
divisão do trabalho – e que, por outro, os destinatários do poder sejam
beneficiados se estas funções forem realizadas por diferentes órgãos: a
liberdade é o telos ideológico da teoria da separação dos poderes. (...)
Outrossim, não obstante o supracitado embate acerca de sua legalidade formal, há
também aquele vertente acerca de sua legalidade material, no sentido de confirmar se a
matéria contida em determinado regulamento expedido pela Agências Reguladoras não seria,
na verdade, objeto exclusivo de lei em sentido estrito, quando se configuraria, neste caso,
usurpação de poderes, uma vez que tais matérias somente devem ser expedidas pelo Poder
Legislativo, afrontando-se, assim, o disposto no art. 2° de nossa Carta Magna, onde está
expresso o Princípio da Separação dos Poderes , que dispõe:
Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o
Legislativo, o Executivo e o Judiciário.
Cumpre ressaltar, ainda, que o princípio inserido pelo dispositivo constitucional
destacado foi elevado, pela própria Constituição Nacional de 1988, à posição de cláusula
pétrea, como se observa com a leitura do art. 60, §4°, II da CRFB/88, in verbis:
Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta:
(...)
§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
(...)
III - a separação dos Poderes;
52
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de la constitución, Ariel, 1986, trad. Alfredo Gallego Anabiante, pp. 55/56
apud Ibid. p. 372.
35
A questão da compatibilidade suscitada perpassa, necessariamente, pelos conceitos de
poder regulamentar e poder legiferante, ambos espécies de poder normativo, como já
devidamente exauridos no presente projeto. Entretanto, dada a sua importância, nada obsta
que sejam novamente trazidos à luz para efeitos de comparação e, logo, de distinção.
Para definir tais conceitos, lança-se mão das palavras de JOSÉ DOS SANTOS
CARVALHO FILHOS:
Nos limites da conceituação teórica, não há grande dificuldade em distinguir
dois dos poderes fundamentais do Estado – o legiferante e o regulamentar. O
primeiro é primário, porque se origina diretamente da Constituição na escala
hierárquica dos atos normativos; o segundo é secundário, porque tem como
fonte os atos derivados do poder legiferante. Portanto, como regra, afirma-se
que o primeiro gera a lei (ou ato análogo com outra denominação) e o
segundo o regulamento – caracterizado como ato administrativo e,
frequentemente, revestido de denominações diversas (decretos, resoluções,
portarias, etc.)53.
Outrossim, cumpre, a título de complemento do sentido contido nas palavras acima,
apresentar o entendimento de HELY LOPES DE MEIRELLES54 acerca dos limites que
devem conhecer as normas regulamentares, para quem “como ato inferior à lei, o regulamento
não poder contrariá-la ou ir além do que ela permite. No que o regulamento infringir ou
extravasar da lei, é írrito e nulo, por caracterizar situação de ilegalidade”.
Diante de tão simples, conquanto esclarecedores conceitos, que explicitam a distinção
dos poderes analisados, não deveria haver controvérsias acerca do tema, haja vista as distintas
origens (constitucional e legal, respectivamente) da legitimação de cada um dos
entes/entidades para o exercício de suas respectivas competências normativas.
Contudo, não obstante as considerações plantadas, ressalva CARVALHO FILHO que
“conquanto lógicas as linhas teóricas concernentes aos atos de legislação e os de
regulamentação, nem sempre - insistimos – tem sido fácil sua aplicação concreta55”.
Assim sendo, ante as insistentes e respeitáveis sustentações no sentido de que, o que as
agências reguladoras têm impropriamente exercido, é, na verdade, poder legiferante, privativo
do Poder Legislativo por determinação constitucional, vale colacionar os colóquios da
doutrina especializada a fim de dirimir tais dúvidas.
53
54
55
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências reguladoras e poder normativo. Op. cit. p. 2.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Ed. Malheiros, 18ª ed., 1993.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências reguladoras e poder normativo. Op. cit. p. 2.
36
Assim, no esteio do que sustenta FELICE GIUFRÈ:
Mesmo quando as entidades reguladoras independentes não tiverem sede
constitucional, se deve admitir que a atribuição de funções de regulação e
decisão, a serem exercidas através do exercício conjunto de competências
normativas, executivas e contenciosas, a órgãos postos em uma posição,
mais ou menos intensa de distância ou separação do poder políticopartidário, e caracterizados por uma elevada especialização no respectivo
setor, demonstra o “mandato em branco” conferido pelo parlamento a outros
centros de competência normativa representa a afirmação de incapacidade do
legislador em dominar, por si próprio, o complexo cada vez menos
decifrável dos interesses sociais56.
Amparando-se na cabal definição exposta, já logo se permite inferir que às agências
reguladoras foram conferidas funções semelhantes as que classicamente só eram outorgados
aos Poderes Estatais instituídos na forma da doutrina igualmente clássica de Montesquieu, da
divisão tripartite do Estado, quais sejam o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em razão
do caráter autônomo que estas entidades possuem frente a tais poderes clássicos, evitando-se
ingerências políticas, de modo a privilegiar o caráter técnico de suas ações.
Afirma ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO que “essa autonomia no exercício das
competências setoriais é necessária para que a entidade reguladora possa caracterizar-se como
independente, fazendo com que devam possuir certa liberdade de atuação, notadamente de
natureza normativa”57.(grifo nosso)
Dito isto, é mister salientar que o exercício de função normativa pelas Agências
Reguladoras advém de seu próprio conceito, uma vez que sua característica mais latente, que
a distingue dos demais órgãos e entidades que porventura também exerçam algum tipo de
função regulatória, é justamente a autonomia, de modo que, com a possibilidade de
regulamentar as matérias atinentes ao mercado por elas regulados, tais entidades se mantém
autônomas frente aos poderes centrais, podendo conferir maior técnica aos seus atos, sem
sofrerem ingerências políticas típicas daqueles.
Neste ponto, é imperioso destacar as reflexões de MIGUEL REALE quando denota
que “a função legislativa vai cada vez mais assumindo uma feição eminentemente técnica”
O eminente doutrinador continua afirmando que:
56
GIUFRÈ, Felice. Declínio Del parlamento-legislatore, constante da obra coletiva Le autorità indipendenti: Da
fattori evolutivi ad elementi della transizione nel diritto pubblico italiano, Guifrè, Milano, 1999, p. 197 apud
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 370.
57
Loc. cit.
37
hoje em dia poucos se mantêm apegados ao dogma da divisão dos
poderes, e a nossa história constitucional nos dá um exemplo
característico das modificações sofridas pela doutrina, desde a sua
primeira formulação clássica até a Constituição Federal vigente, na
qual a divisão dos poderes soberanos não tem mais o valor de um
princípio essencialmente destinado à garantia das liberdades
individuais, mas antes um valor pragmático de uma distribuição de
funções, de uma simples aplicação da lei da divisão do trabalho no
setor das atividades políticas.58 (grifo do autor)
Ademais, deve-se analisar sobre que prisma histórico é estabelecido tal princípio,
oriundo de determinada doutrina. Diz-se isso porque, é preciso ressaltar, a citada doutrina de
Montesquieu foi elaborada para aplicação em um momento de intenso conflito entre os ideais
liberais burgueses e o absolutismo monárquico, onde a definição rígida de Poderes estanques
se fazia imprescindível, a fim de evitar que um ou poucos voltassem a determinar os
caminhos a serem seguidos, bem como as obrigações a serem suportadas por toda a
sociedade.
As considerações de KARL LOEWENSTEIN a esse respeito são muito
esclarecedoras:
É necessário ter bem claro que o princípio da necessária separação das
funções estatais segundo diversos elementos substanciais e sua
distribuição entre diferentes detentores, não é nem essencial para o
exercício do poder político, nem se apresenta como uma verdade
evidente e válida para todo o tempo. O descobrimento ou invenção da
teoria da separação de funções foi determinado pelo tempo e pelas
circunstâncias como um protesto ideológico do liberalismo político
contra o absolutismo monopolítico da monarquia nos séculos XVII e
XVIII59.
Este é o entendimento de REINHOLD ZIPPELIUS, quando afirma que “não existe
uma separação de poderes, mas muitas, variáveis segundo cada direito positivo e momento
histórico diante do qual nos colocamos”60.
58
REALE, Miguel. Teoria geral do direito e do estado, Ed. Saraiva, 5ª ed., 2000, p. 352.
LOEWENSTEIN, Karl. Teoria de La constitución, Ariel, 1986, trad. Alfredo Gallego Anabitarte, pp. 55/56
apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 372.
60
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. Fundação Calouste Gulbenkin, 3ª ed., 1997, trad. Karin
Praefke-Aires Coutinho, Coodenação de J.J. Gomes Canotilho, p. 416 apud ARAGÃO, Alexandre Santos de.
Op. cit., p. 371.
59
38
Sendo assim, urge afirmar que se retirarmos o caráter dogmático e sacramental
impingido ao princípio da separação dos poderes, ele poderá, sem perder a vitalidade, ser
colocado em seus devidos termos, que o configuram como mera divisão de trabalho e um
empecilho à, geralmente perigosa, concentração das funções estatais61.
Outrossim, não se pode crer que, em razão do princípio da separação dos poderes,
“cada um dos respectivos órgãos exercerá necessariamente apenas uma das três funções
tradicionalmente consideradas – legislativa, executiva e judicial. E mais, dele também não se
pode inferir que todas as funções do Estado devam sempre se subsumir a uma destas espécies
classificatórias”62.
Diante de inteligíveis considerações, não há que se conclamar argumentos contrários,
uma vez que os acima elencados demonstram a admissibilidade no arcabouço jurídico
nacional do exercício de poder normativo por Agências Reguladoras sem que, com isso,
configure-se usurpação de função legiferante, privativa do Poder Legislativo.
Neste sentido entende KLAUS STERN:
Na atualidade o sistema de divisão e limitação dos poderes se
desenvolveu a partir de vários pontos de vista, não apenas na
conhecida e tradicional trindade da divisão horizontal de acordo com
as funções mais importantes: legislativo, executivo e judicial. Mas
também entram em jogo a configuração de unidades de decisão e
órgãos coletivos, a autonomização de instituições específicas não
submetidas a instruções, e a constituição ainda de instâncias de
controle tampouco submetidas a instruções, à margem da divisão
tripartite “clássica”63. (grifo do autor)
Sendo assim, deduz-se racionalmente que o princípio da separação dos poderes vem
sendo gradualmente relativizado diante da ordem social modernamente estabelecida, onde a
sociedade exige atuação mais eficientes da administração pública sobre seus anseios, o que
torna necessária a disseminação das funções estatais, nelas incluída a normativa, a vários
órgãos e entidades especiais e técnicos, dotados de independência funcional no exercício de
suas funções, haja vista que, do contrário, estarão fadadas à falência por asfixia, dada a
crescente e complexa demanda que é ao Estado submetida.
61
Loc. cit.
Ibid. p. 372.
63
STERN, Klaus. Derecho del estado de la república federal alemana, Centro de Estudios Constitucionales,
1987, trad. Javier Pérez Royo e Pedro Cruz Villalón, p. 236 apud Loc. cit., p. 374.
62
39
Ratificando o entendimento supra, tem-se, na doutrina brasileira, a obra pioneira de
BILAC PINTO64, o qual assevera que “o fato da outorga, pelo Estado moderno, de funções
normativas e jurisdicionais a outros órgãos além dos que as monopolizaram até o fim do
século passado (Poder Legislativo e Poder Judiciário), constitui fenômeno universal, cujas
proporções se avolumam cada vez mais”.
Assim, segundo ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO65, acredita-se ter demonstrado
que, se retirado o caráter mítico e absoluto da idéia “clássica” da separação dos poderes, a
complexidade e a autonomia das competências conferidas às agências reguladoras em nada contraria a
divisão de funções estabelecidas pelas constituições contemporâneas e os valores do Estado de Direito,
que, afinal, constituem o principal parâmetro da admissibilidade ou não do exercício de distintas
funções pelo mesmo órgão ou entidade pública.
Complementando o sentido do conceito exposto, apossa-se novamente das palavras,
agora de outra obra, deste jurista:
Em outras palavras, não serão as acumulações de poderes sempre
constitucionais, mas, certamente o serão, se privilegiarem os valores do
Estado de Direito. Diogo de Figueiredo Moreira Neto chega a afirmar que as
agências reguladoras “representam um instrumento de proteção dos direitos
fundamentais, constituindo-se em avanços concretos no sentido da realização
da democracia substantiva, como aquela que preserva a condição pluralista
da sociedade e também do Estado66.
Ademais, ainda segundo ALEXANDRE DE SANTOS ARAGÃO, colaciona-se os
seguintes colóquios:
Podemos afirmar que as competências complexas das quais as
agências reguladoras independentes são dotadas fortalecem o
Estado de Direito, vez que, ao retirar do emaranhado das lutas
políticas a regulação de importantes atividades sociais e
econômicas, atenuando a concentração de poderes na
Administração Pública central, alcançam, com melhor
aproveitamento, o escopo maior – não meramente formal – da
separação de poderes, qual seja, o de garantir eficazmente a
segurança jurídica, a proteção a coletividade e dos indivíduos
empreendedores de tais atividades ou por elas atingidos, mantendo-se
64
PINTO, Bilac. Regulamentação efetiva dos serviços de utilidade pública.. Ed. Revista Forense, 1941, p. 107
apud Ibid., p. 375.
65
Loc. cit.
66
ARAGÃO, Alexandre Santos de. “Algumas notas sobre órgãos constitucionalmente autônomos – Um estudo
de caso sobre os tribunais de contas no Brasil”, RDA, pp. 223/05-06 apud Ibid. p. 375.
40
sempre a possibilidade de interferência do Legislador, seja para alterar
o regime jurídico da agência reguladora, ou mesmo para extingui-la67.
Destarte, envidados todos os exitosos esforços para apresentar suficientes argumentos
a fim de confirmar a compatibilidade do poder normativo das agências reguladoras com o
princípio da separação dos poderes, é imperioso aproveitar o ensejo para apresentar o
entendimento de AUGUSTÍN GORDILLO, que, entre outras palavras, destaca que a
necessidade de entidade reguladora ser apartada do poder concedente do serviço regulado,
considera-a mesmo uma imposição “do mesmo princípio atualizado, da divisão dos poderes e
do sistema de freios e contra-pesos acolhidos pela Constituição68.
Neste sentido é o entendimento do jurista americano PETER STRAUSS69, quando
afirma que “o princípio da separação dos poderes deve ser hoje integrado por considerações
ligadas às garantias individuais, mediante a imposição de requisitos de objetividade e
imparcialidade, e por preocupações inerentes ao “sistema de freios e contrapesos”.
E complementa asseverando que “antes de contrariar a Separação dos Poderes, a
vitalidade e legitimidade das agências reguladoras advém exatamente do equilíbrio entre os
influxos – checks and balances – sobre elas exercido pelos três tradicionais poderes do
Estado”.
Por fim, encerramento o item, cumpre trazer à luz as considerações, espancando
quaisquer perplexidades, do clássico JEAN DABIN70, que sustenta que “para o bem ou para o
mal, nos parece que o argumento da especialização, que constitui uma das razões do
princípio dito da separação dos poderes, milita, na espécie, contra a separação.
3.5 Da compatibilidade com o Princípio da Legalidade
Confirmada quanto princípio da separação dos poderes, chega-se, enfim, ao tema de
maior relevância do presente estudo, qual seja a análise da compatibilidade do poder
normativo das agências reguladoras com o princípio da legalidade.
67
Ibid. pp. 375/376.
GORDILHO, Augustín. Tratado de derecho administrativo, Tomo I, 3ª Ed., Ed. Macchi, p. xv apud Ibid. p.
376.
69
STRAUSS, Peter. In: Conferência proferida no seminário internacional de direito, realizado na Fundação
Armando Álvares Penteado, São Paulo, outubro/2000 – em mimeo gentilmente cedido pelo autor. apud Ibid. p.
377.
70
DABIN, Jean. Doctrine Génerale de l’État, Bruylant e Sirey, Bruxelas e Paris, 1939, pp. 284/5 apud
ARAGÃO, Ibid. p. 378.
68
41
O estudo deste tema possui relevo para se aferir se o poder normativo das agências
reguladoras pode ser considerado como parte legítima e integrante das fontes legais do direito
brasileiro, sem que, com isso, afronte-se o princípio da legalidade.
Tal questão se apresenta em razão da sustentação parte da doutrina administrativa, no
sentido de que os atos normativos expedidos pelas Agências Reguladoras ofendem o cultuado
princípio da legalidade, que, insculpido no art. 5°, II da Constituição da República Federativa
do Brasil, informa que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão
em virtude de lei”.
Trata-se de questão inflamavelmente discutida nos simpósios de Direito do Estado,
notadamente no que tange à regulação da economia, haja vista o interesse dos detentores do
poder econômico, como outrora já observou CAIO TÁCITO71:
É sobretudo no Direito Econômico, área crescente de intervencionismo
estatal, que se multiplica a atividade regulamentar exercida pelas agências
administrativa incumbidas do controle do Estado sobre a economia. Impõese assegurar aos organismos administrativos uma agilidade de adaptação às
exigências mutáveis dos fenômenos financeiros e econômicos que leva
necessariamente à ampliação do poder de editar normas.
Assim, espancando as dúvidas e controvérsias advindas desta questão, discorrer-se-ão
abaixo os devidos argumentos, com o fim de dirimi-las, de modo a verificar se há ou não
compatibilidade entre o poder normativo conferido às agências reguladoras e o tão
conclamado princípio da legalidade.
3.5.1 O caráter não absoluto do princípio da legalidade
Sustenta considerável parte da doutrina, filiada à visão demasiadamente legalista do
direito, que a lei formal é o único instrumento pelo qual o Estado pode limitar a liberdade do
particular, em razão do princípio da legalidade insculpido na Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Ou seja, entendem tais juristas que a Constituição, com fulcro em art. 5°, II,
condiciona a privação do particular para o desempenho de determinada ação ou atividade à
existência de lei emanada pelo Poder Legislativo, com observância dos procedimentos
estabelecidos pela própria CRFB/88 em seus arts. 59 e seguintes.
42
Baseiam-se tais doutrinadores na retrógada teoria mítica de que a lei é a expressão
maior da “vontade popular”, de modo que somente pode emanar das casas legislativas, as
quais, segundo os mesmos, representam o povo na condução do interesse público.
Todavia, permissa maxima venia, e com o devido respeito a esta posição, deve-se dela
discordar, em razão da feição que o princípio da legalidade vem tomando nos tempos atuais,
onde o Estado é Regulador, evoluído do Estado Social, e não mais Estado Liberal, como o era
no século XVIII quando se pensou e inseriu nas cartas políticas o princípio em xeque.
Neste comenos, acompanhando a evolução social, o princípio da legalidade se imbui
de renovado objetivo, não tão direcionado à proteção da sociedade frente ao Poder do Estado,
e mais voltada à efetivação do direito subjetivo que possui o particular de ter determinada
situação ou relação jurídica devidamente normatizada pelo Estado para que seja possível o
gozo de seus direitos, em especial os fundamentais, com vistas à consagração do princípio da
dignidade da pessoa humana.
Com este fim, visando fundamentar, minudenciando, este novo aspecto do clássico
princípio, elencam-se posições doutrinárias diversas, porém convergentes, a fim de
demonstrar a efetiva realidade do alegado.
É sabido que o princípio da legalidade decorre da visão liberal do século XVIII,
conforme abordado acima, do princípio da separação dos poderes, na qual o objetivo
perseguido era a proteção do particular, mais precisamente, à época, da burguesia, ante o
absolutismo do Estado, de modo que se estabeleceu “um mecanismo pelo qual toda medida
jurídica deveria ser mera decorrência, simples subsunção ou execução, de normas jurídicas
adredemente estabelecidas por seus representantes de maneira genérica, abstrata e
exaustiva”72.
Dessa forma, reforçando a imprescindibilidade quanto à necessária observância deste
princípio, buscou-se legitimar a lei, invocando-se, para tanto, a “vontade popular”.
Entretanto, ALEXANDRE ARAGÃO afirma que “a vontade popular, até hoje
invocada para fundamentar a defesa da subordinação absoluta do administrador e do
juiz à lei deve, no entanto, ser relativizada”73. (grifo nosso)
Esta afirmativa se deve ao fato de que detém alvo conteúdo retórico o discurso
sustentado na tentativa de erigir a “vontade popular”, pelo caráter mítico e dogmático que
71
TÁCITO, Caio. “Comissão de Valores Imobiliários. Poder Regulamentar. Constante do Temas de Direito
Público, Ed. Renovar, Rio de Janeiro, 1997, Tomo 2, p. 1.084 apud Ibid. pp. 396/397.
72
Ibid. p. 397.
73
Loc. cit..
43
possui, como verdadeira legitimadora da norma jurídica, asseverando que esta somente pode
ser produzida sob o formato de lei.
A incorreção deste preceito repousa no fato de que, historicamente, já se pretendeu
fundar tal legitimação, primeiro, na “vontade de Deus”, depois, com a reforma protestante, na
“vontade do Rei”, e, em seguida, a partir da revolução liberal, na “vontade popular”, sempre
com o objetivo de imputar à sociedade determinados mandamentos capazes de, legalmente,
privilegiar seus destinatários economicamente poderosos (seja, de acordo com o momento
histórico, o clero, a nobreza ou a burguesia) e diretamente interessados na condução da
máquina pública, os quais pressionavam, assim como ainda pressionam, os agentes políticos
para obterem vantagem com a promulgação de determinadas leis.
Cumpre salientar que, desde a revolução liberal até poucos anos atrás, as eleições eram
censitárias, quando os eleitores legitimados para proferir seu voto e, assim, eleger os
“representantes do povo” se resumiam àqueles que possuem vultosa renda74.
Neste sentido discorre sobre o tema ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO, ao
marcar a evolução histórica dos fundamentos de legitimação das leis:
O que havia de comum entre todos estes grupamentos humanos era a fé
cristã. Desta forma, o ordenamento jurídico global impôs-se fundado na
vontade de Deus, manifestada através dos clérigos ou do Rei. Mais tarde, em
virtude da Reforma Protestante, que quebrou o consenso religioso até então
existente, a vontade do Rei passou a legitimar-se por si própria.
Com a Revolução Francesa, apenas houve uma mudança no ícone
legitimador da lei, que passou a fundamentar-se na, não menos crítica,
“vontade popular”.
Também o voto dos representantes não era (e não é) necessariamente
motivado apenas pelo interesse público, deixando-se influenciar muitas
vezes por grupos sociais específicos, na maioria das vezes dotados de grande
poder econômico.75
Dessa forma, verifica-se que a lei não possui como seu único e salutar propósito
expressar a “vontade do povo”, ou mesmo de qualquer outro fundamento filosófico que se
possa invocar, mas sim repousa num objetivo prático, de conferir segurança jurídica às
relações, de modo que o particular possa ter antecipado conhecimento acerca da permissão ou
vedação da conduta que pretende praticar.
74
75
Ibid. cap. 2.4.
Ibid. p. 398.
44
Nesta senda, a fim de corroborar tal entendimento, recorre-se uma vez mais às
reminiscências de ALEXANDRE ARAGÃO76, in verbis:
A verdadeira essência da lei não reside nos variados fundamentos oriundos
de especulações filosóficas ou teleológicas que encontraram eco na psique
humana ao longo da história. Decorre, ao revés, da necessidade prática de
segurança jurídica, de sabermos, com algum grau de pré-determinação, o que
podemos e o que não podemos fazer e, em caso de inobservância, que
conseqüências poderemos sofrer.
(...)
Pode-se concluir claramente que a estrutura-lei constitui uma tentativa
de localização, de fixação, de imobilização das forças esparsas e fugidias,
captadas pelos textos destinadas, por consolidação, a tornar-se um
programa, uma disciplina da atividade social, independentemente de ter
como fundamento Deus, a consciência ou os fatos. (grifo do autor)
Outrossim, retirado o elemento mítico e dogmático do princípio da legalidade, como
se fez, acima, com o princípio da separação dos poderes, parte-se, então, para discussão
acerca da imprescindibilidade da lei em sentido formal para atendimento ao disposto no art.
5°, II, da CRFB/88, e, por conseguinte, ao princípio da legalidade.
Para tanto, busca-se nas palavras de ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO77, os
pontos cruciais a serem abordadas para o esclarecimento do assunto:
A determinação do âmbito do poder normativo das agências
reguladoras pressupõe definição do que se entende por Estado de
Direito, separação de poderes, princípio da legalidade e
discricionariedade. À complexidade destas matérias agrega-se a insistência
com que parte da doutrina brasileira mantém a respeito delas uma concepção
ainda apegada às suas origens mais remotas, totalmente diversas da realidade
do Estado contemporâneo. (grifou-se)
No mesmo sentido são as considerações de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA
CASTRO, quando sustenta que:
Uma das questões de maior atualidade no campo das normas constitucionais
protetoras dos direitos humanos tem a ver com a denominada eficácia
externa, ou seja, a operância erga omnes de seus efeitos ou de sua
extensividade às relações que se multiplicam a toda hora na órbita privada
entre os membros da sociedade civil.
76
77
Ibid. pp. 399 e 400.
Ibid. p. 397.
45
É tema revestido de gigantismo teórico, cuja compreensão pressupõe
uma clara visão acerca da evolução e da atual configuração do princípio
constitucional da legalidade.
Pressupõe, também, um seguro entendimento a propósito da superação das
metas e premissas originais do liberalismo organicista e da insurgência do
constitucionalismo social e econômico. Essa compreensão exige, além disso,
a percepção da contemporânea simbiose entre categorias dicotomizadas pela
ótica liberal burguesa, a exemplo de Estado-sociedade civil, norma jurídicarealidade social, interesse individual-interesse coletivo, direito público e
direito privado, e outras do gênero que estreitam os horizontes da ciência
social do Direito e subestimam sua inserção virtuosa no processo dialético da
democracia78. (grifou-se)
Extrai-se, portanto, que os conceitos invocados para impugnar o poder normativo das
Agências Reguladoras são ultrapassados, pois ainda apegados ao ideal liberal burguês,
idealizado e implantado no século XVIII, em um momento político-social completamente
diverso do que se tem hoje.
Dessa forma, se antes a lei era tida como a principal proteção do particular ante o
absolutismo do Estado, na sociedade contemporânea essa premissa deixa de ser absoluta, na
medida em que os direitos fundamentais do cidadão já estão cristalizados no texto
constitucional, servindo, portanto, de base para a proteção do particular, de modo que a lei,
em que pese ser imprescindível para a manutenção do Estado Democrático de Direito, passa a
ter função mais pragmática, de ordenação social, disciplinamento e estabilização das relações.
Com efeito, diante dessa nova perspectiva, não há que se olvidar da legitimidade de
outro ente ou entidade que não seja o Poder Legislativo emanar regras e normas jurídicas, que
visem à regulação da sociedade, desde que a Constituição ou o próprio Poder Legislativo
atribuam tal competência.
Neste sentido assevera a doutrina constitucional brasileira acerca do princípio da
legalidade, conforme se demonstra no entendimento de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA
CASTRO:
Convém ressaltar que, com a menção ao vocábulo lei, há de entender-se,
já agora, não mais necessariamente a lei formal, dita ordinária,
elaborada pelas Casas Legislativas dotadas de representação popular,
por isso que, como sói acontecer hodiernamente, a outras modalidades
de atos normativos, sejam equiparados à lei formal, sejam a ela
inferiores, mas editados com base nela, já se confere aptidão para regrar
o exercício das autonomias individuais, desde que respeitado, como
78
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Função normativa regulatória e o novo princípio da legalidade (ano 2006).
In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres. – Rio de
Janeiro: Renovar, 2011, p. 803.
46
antes se anotou, o núcleo fundamental das liberdade primárias tuteladas
na Constituição.
Essa afirmação simplificada é feita em obséquio à fidelidade dos temas
diretamente objetivados na exposição, sem, contudo, prescindir de ressalvar
a tormentosa controvérsia doutrinária sobre se o princípio constitucional da
legalidade (ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa,
senão em virtude de lei.), como constante de numerosos diplomas
constitucionais, faz importar num direito público subjetivo à lei formal, seja
de maneira genérica ou específica (isto é, para determinados assunto
incluídos e insubtraíveis da reserva da lei ordinária pelo estatuto
constituinte), como única fonte idônea de constrição da liberdade, ou se, ao
revés, tal princípio resulta suficientemente satisfeito mediante o
disciplinamento da liberdade por ato normativo de espécie hierárquica
diversa da lei produzida com a participação dos colegiados propriamente
legislativos79. (grifo nosso)
Ante o exposto, faz-se premente esclarecer a posição adotada, para tornar claro que
não se pretende com as explanações supra equiparar os atos normativos expedidos pelas
Agências Reguladoras às leis formais, até porque, consoante o minudenciado alhures, tais
institutos têm naturezas e conceitos distintos, possuindo, principalmente, posições
inconfundíveis na escala hierárquica das normas, já que aqueles possuem natureza
regulamentar, de modo que somente têm o condão de explicar, dar maior completude, traçar
melhores parâmetros, dando densidade ao que se estabelece mediante leis formalmente
elaboradas, não lhe sendo, em regra, sob pena de ser declarado inconstitucional, admissível
contrariá-las ou, principalmente, substituí-las, quando o assunto a ser normatizado estiver
contido em sua reversa legal absoluta, como é o caso dos crimes e dos tributos, por exemplo.
Reforçando tal entendimento, traz-se as bem postas palavras de SIQUEIRA
CASTRO80, o qual compreende que, in verbis:
O princípio da legalidade, para mim, é um princípio fundamental do estado
de direito. Trata-se de um princípio reforçado na matriz constitucional, uma
vez que a Constituição enuncia no art. 5°, inciso II, portanto no capítulo dos
direitos fundamentais, que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer
alguma coisa senão em virtude de lei”. Assim sendo, uma decisão ou
deliberação de uma agência reguladora necessariamente deve ter uma
reportação a um ato legislativo formal. Não é possível uma criatividade
normativa absoluta. Não pode uma agência reguladora normatizar ab ovo,
sob pena de ter contrastada a sua ação até mesmo perante os órgãos do Poder
Judiciário.
79
Ibid. p. 825.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O regime jurídico e os princípios orientadores das agências reguladoras
(ano 2002). In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres. –
Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 432.
80
47
Todavia, há de se ressaltar que, não obstante a distinção dos institutos lei e ato
normativo hierarquicamente inferior, face às intensas e variadas demandas instadas
hodiernamente à Administração Pública, não é possível ao Poder Legislativo, muito em razão
da rigidez do procedimento legiferante, atender a todas elas, de modo que foi-se mitigando o
princípio da legalidade, dando-se interpretação mais favorável ao atendimento dos anseios
sociais, em consagração à dignidade da pessoa humana, pela concessão a outros órgãos e
entidades de competência para editar normas técnicas específicas sobre determinados setores
da sociedade, notadamente os afetos à economia.
Neste ínterim as leis passaram a ser mais genéricas e abstratas, prevendo tão somente
o essencial para que não se configure a abdicação normativa ou a delegação do poder
legiferante a outro órgão ou entidade, deixando para o Poder Executivo, sempre no exercício
do poder regulamentar, a tarefa de completar-lhe o sentido, dando densidade à norma, o que
se convencionou chamar de discricionariedade do Administrador Público.
Destarte, convém ressaltar que a República Federativa do Brasil constitui-se em
Estado Democrático de Direito, nos termos do art. 1°, CAPUT, da Constituição da República
Federativa do Brasil de 1988.
Ou seja, um Estado DE Direito não é sinônimo de Estado Legal ou de Estado DO
Direito, uma vez que, os dois últimos, estes sim sinônimos, “consistem apenas numa regra
atributiva de sobrepujança do Poder Legislativo sobre os demais”, enquanto que “Estado DE
DIREITO, ao revés, consubstancia-se numa ordem axiológica da sociedade”81. “Se o Estado
DO Direito se caracteriza essencialmente por suas formas e suas estruturas jurídicas, é, no
Estado DE Direito, a participação ideológica que prevalece sobre a arquitetônica jurídica e
liga a esperança da liberdade à sua realização”82.
Alinhada a esta concepção está a obra de SIQUEIRA CASTRO, quando introduz que:
Para o contexto temático ora focalizado, é bastante registrar que, na origem,
a idéia do Estado de Direito (Reichsstaat) coincidia com a idéia de Estado de
Direito legislado, isto é, Estado de lei, ou de legalitariedade. Contudo, em
que pesem as louváveis inspirações de cunho democrático em mantê-lo
assim, em virtude do declínio parlamentar ocorrido neste século (sic),
sobretudo após a 1ª grande guerra, é de reconhecer que, se não a letra
expressa das constituições, mas certamente a mentalidade constitucionalista
passou a autorizar, ou pelo menos a tolerar, a delegação e o exercício do
81
REDOR, Marie-Joëlle. Na obra, eloqüente pelo seu próprio título, De l’État legal à l’État de Droit, Ed.
Econômica, 1992, p. 389 apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 404.
82
GOYARD-FABRE, Simone. Os princípios do direito político moderno, trad. Irene A. Paternot, Ed. Martins
Fontes, 1999, p. 322 apud Loc. cit.
48
poder legiferante por órgãos e agentes, tanto públicos quanto privados, mas
estranhos aos quadros das assembléias representativas da soberania
popular83.
Contudo, em que pese a plausibilidade dos argumentos postos por SIQUEIRA
CASTRO, pede-se venia para parcialmente discordar do doutrinador, quando este afirma ser
possível delegar a função legiferante a outros órgãos e agentes, públicos ou privados, que não
as casas legislativas.
A interpretação conforme a Constituição que se pretende dar ao princípio da
legalidade é no sentido de não haver qualquer inconstitucionalidade na atribuição de
competência normativa às agências reguladoras, que a exercerá com a estrita observância dos
limites inerentes ao poder regulamentar, nunca legiferante, uma vez que este, como se verá, é
indelegável, mas aquele não, pois conferido pelo por seu detentor regular, qual seja o próprio
legislador, no exercício de sua competência constitucionalmente estabelecida.
Destarte, considerando todas as considerações postas, pode-se concluir pela
compatibilidade do poder normativo das agências reguladoras com o princípio da legalidade,
o qual, não obstante ser um importantíssimo instrumento de proteção, controle e limite de
atuação da Administração Pública frente ao particular, deve ser avaliado sob o aspecto da
realidade social hodiernamente vivenciada pela sociedade contemporânea, envolvida em
incontáveis e diversas relações jurídico-humanas complexas, que, para efeito de segurança
jurídica, requerem a normatização de suas condutas pelo Estado.
Entretanto, ocorre que a rigidez e complexidade do procedimento legislativo
estabelecido pela Constituição impede que o Poder Legislativo acompanhe a evolução e o
surgimento de tantas relações e condutas humanas, de modo que se torna imprescindível
atribuir determinadas matérias à competência de órgãos e entidade técnicos e autônomos,
capazes de produzir normas jurídicas com a dinâmica necessária para regular as relações
econômico-sociais.
3.5.2 Da deslegalização da competência normativa
83
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Função normativa regulatória e o novo princípio da legalidade (ano 2006).
In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres. – Rio de
Janeiro: Renovar, 2011, pp. 825/826.
49
Superadas as alegações quanto à compatibilidade do Poder Normativo das Agências
Reguladoras com o Princípio da Legalidade, prestar-se-á este item a demonstrar de que
maneira se dá tal compatibilização.
Assim, os embasamentos deste tema se prestam mais diretamente à atenuar as
discussões acerca da reserva de lei material, ou seja, aquela em que se entende que a
substância, o conteúdo de determinado tema somente pode ser objetivo de normatização
através de leis formais, emanadas das Casas Legislativas.
Conforme o exaustivamente afirmado alhures, é sabido que as respectivas leis
criadoras das Agências Reguladoras lhes conferiram, com maior ou menor amplitude,
competência para expedir normas e regulamentos destinados a disciplinar seus respectivos
mercados regulados, definidos nas próprias leis instituidoras.
Esta atribuição normativa conferida às Agências Reguladoras se deu através do
fenômeno conhecido como deslegalização ou deligificação, que consiste, nas palavras de
DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO84, “na retirada, pelo próprio legislador, de
certas matérias, do domínio da lei (domaine de la loi) passando-as ao domínio do regulamento
(domaine de l ordonnance”)”.
Em outras palavras, há, no fenômeno da deslegalização, a degradação, o rebaixamento
do grau hierárquico da competência para normatizar determinada matéria, uma vez que o
próprio legislador transfere a uma outra sede normativa inferior a regulação de determinada
matéria.
Outrossim, oriunda desta questão, decorre outra, quanto à possibilidade de ato
normativo editado por Agências Reguladoras revogar lei anterior que disponha sobre matérias
postas sob sua competência.
Sobre o tema dispõe EDUARDO GARCIA DE ENTERRÍA, quando conceitua a
deslegalização ou delegificação como:
a operação efetuada por uma lei que, sem entrar na regulação material do
tema, até então regulado por um lei anterior , abre tal tema à disponibilidade
do poder regulamentar da Administração. Mediante o princípio do
contrarius actus, quando uma matéria está regulada por determinada lei se
produz o que chamamos de congelamento de grau hierárquico normativo que
regula a matéria, de modo que apenas por outra lei contrária poderá ser
inovada dita regulação. Uma lei de deslegalização opera como contrarius
actus da anterior lei de regulação material, porém, não para inovar
diretamente esta regulação, mas para degradar formalmente o grau
84 MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações de Direito Administrativo, Ed. Renovar, 2000, pág. 166
apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. pp. 419/420.
50
hierárquico da mesma de modo que, a partir de então, possa vir a ser
regulada por simples regulamentos. Deste modo, simples regulamentos
poderão inovar e, portanto, revogar leis formais anteriores, operação que,
obviamente, não seria possível se não existisse previamente a lei
degradadora.
O mesmo autor complementa o sentido do conceito supra que afirma que a lei de
deslegalização “não é uma lei de regulação material, não é uma norma diretamente aplicável,
como norma agendi, não é uma lei cujo conteúdo deva simplesmente ser completado; é uma
lei que limita seus efeitos a abrir aos regulamentos a possibilidade de entrar em uma matéria
até então regulada por lei”85. Continua, ainda, para ressalvar “as matérias resguardadas por
reserva absoluta de lei formal, como são, no Direito Brasileiro, os tributos (art. 150, I, CF), os
crimes (art. 5°, XXXIX, CF), a criação de entidades da Administração Indireta (art. 37, XIX,
CF), os casos de contratações temporárias (art. 37, IX, CF)”86.
Ou seja, segundo estes posicionamentos, considerando que o legislador possui poder
para revogar uma lei anteriormente editada para tratar de determinado assunto, pode, também,
através de lei degradadora, rebaixar o grau hierárquico deste mesmo assunto, atribuindo-o à
competência de entidade da Administração Pública, a partir de quando, no desempenho de seu
poder regulamentar, poderá esta revogar a lei anterior que contrastar com suas disposições.
Contudo, há respeitáveis posições contrárias a este entendimento, como, verbia gratia,
a explanada por DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO, quanto afirma que:
Assim, autorizado a dispor sobre as matérias elencadas no art. 48 da
Constituição, o Congresso Nacional, por óbvio, tanto pode optar por legislar
sobre elas, como por manter a legislação existente, por deslegalizá-la, ou
até, nos casos extremos, por não legislar. Por essa razão, norma reguladora
deslegalizada, embora venha a ser produzida pelo órgão que se tornou
legalmente competente, não adquire a natureza jurídica de norma legal,
senão que dela se deriva, nos limites e com a validade que lhe for
reconhecida pela norma legal deslegalizadora.
Isso explica o fato de a norma reguladora não revogar a norma legal que
incida sobre a mesma hipótese, pois, na verdade, como ela só se aplica sobre
a matéria que venha a ser deslegalizada, será apenas a lei deslegalizadora (e
não a norma deslegalizada) que poderá operar a revogação.87
85 ENTERRÍA, Eduardo Garcia de. Legislacion Delegada, Potestad Reglamentareia y Control Judicial, Civitas,
Madrid, 3ª ed., 1998, pp. 220/1 apud Loc. cit.
86
Loc. cit.
87
MOREIRA NETO, Diogo Moreira de. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 171.
51
Por fim, consolidando o entendimento favorável à possibilidade da deslegalização ou
degradação do grau hierárquico de determinada matéria, de modo a afastar qualquer
argumento em contrário, traz-se à colação o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal
Federal acerca da matéria, quando “o MINISTRO RELATOR ILMAR GALVÃO,
encampando as lições de J.J. Gomes Canotilho (“ajustam-se perfeitamente ao caso sob
exame”), asseverou que”88:
Os princípios da legalidade, do congelamento do grau hierárquico e da
precedência da lei não impedem, salvo matérias reservadas à lei
(tributos e crimes), que se adote uma “maior flexibilidade através da
deslegalização ou degradação do grau hierárquico. Neste caso, uma lei,
sem entrar na regulamentação da matéria, rebaixa formalmente o seu
grau normativo, permitindo que essa matéria possa vir a ser modificada
por regulamentos.89
3.5.3 Da delegação da competência normativa
Não obstante os esclarecedores argumentos apresentados quanto à deslegalização, é
imperioso discursar, em decorrência, acerca do fenômeno da delegação normativa, o qual,
diretamente vinculado àquela, tem servido de argumento para os juristas que pretendem
desqualificá-la, como o faz, verbia gratia, VEZIO CRISAFULLI, quando sustenta com o
intento de demonstrar que a deslegalização por via legislativa implicaria na “derrogação
infraconstitucional de competências fixadas pelo Poder Constituinte”, “por considerarem que
o fenômeno constitui delegação de poderes legislativos, o que somente poderia ser operado
pela própria Constituição”90:
o fenômeno consistiria, então, na desqualificação, disposta expressamente
pela lei, de determinada norma, originariamente legislativa, a qual viria a ser
atribuída estatura regulamentar: de maneira que, não seria o regulamento
sucessivo que adquiriria (inadmissivelmente) força de lei, mas as normas
delegificadas que viriam a ter força passiva de fontes regulamentares. A
reconstrução gera, todavia, perplexidade, porque, desqualificando algumas
de suas próprias disposições ou de outra lei, a lei estaria em substância,
demitindo-se da força que por natureza lhe é própria, contrastando com as
normas constitucionais que a disciplinam enquanto lei.91
88
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 425
Fonte: www.stf.gov.br apud Loc. cit. (grifos do autor).
90
Ibid. p. 420.
91
CRISAFULLI, Vezio. Lezione di diritto costituzionale, II, 1, CEDAM, 1993, PP. 154/5 apud Ibid. 421.
89
52
Em sentido contrário, são as palavras de ALEXANDRE SANTOS DE ARAGÃO
quando sustenta que “não há qualquer inconstitucionalidade na deslegalização, que não
consistiria propriamente em uma transferência de poderes legislativos, mas apenas na adoção,
pelo próprio legislador, de uma política legislativa pela qual transfere a uma outra sede
normativa a regulação de determinada matéria”92.
Com efeito, não há delegação legislativa quando o Poder Legislativo deslegaliza
determinada matéria, degradando-a ao grau de regulaemento, uma vez que a competência a
ser exercida pelo órgão ou entidade do Poder Executivo será regulamentar, como
normalmente o é nos demais casos, de modo que simplesmente se prestará a dar densidade,
maior completude ao que for estabelecido na lei deslegalizadora, a qual definirá os parâmetros
dentro dos quais tal poder regulamentar se realizará.
Neste sentido, GLAUCO MARTINS GUERRA93, ao indagar “se o regulamento tiver
suficiente autonomia que o denote como uma regra jurídica no sentido de lei, o Executivo está
exercitando delegação legislativa e, por conseqüência, correndo o risco de afrontar o princípio da
legalidade?”, afirma que “não necessariamente, na visão daqueles que, como Eros Grau, assumem uma
postura de vanguarda na interpretação do poder normativo em sentido amplo. A checagem da
capacidade normativa exercida pelo Executivo não fere o princípio da separação dos poderes políticos,
se aceita a premissa de que não há transmissão da função legislativa e, muito menos, de delegação
legislativa”.
Outrossim, entende-se que o conflito de posicionamentos se dá em virtude da confusão
que muito se faz quanto ao real significado do Princípio da Legalidade, em contraposição ao
Princípio da Reserva Legal. Tal confusão é dirimida por JOSÉ AFONSO DA SILVA94 nas
palavras a seguir:
A doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio
da legalidade e o da reserva de lei. O primeiro significa a submissão e o
respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera estabelecida pelo legislador. O
segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas matérias
há de fazer-se necessariamente por lei formal. (...) Em verdade, o problema
das relações entre os princípios da legalidade e da reserva de lei resolve-se
com base no Direito Constitucional positivo, à vista do poder que a
Constituição outorga ao Poder Legislativo. Quando essa outorga consiste no
92
Ibid. p. 423.
GUERRA, Glauco Martins. Princípio da legalidade e poder normativo: dilemas da autonomia regulamentar, p.
113. In: ARAGÃO, Alexandre Santos de. (Coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
94 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 19ª ed, Malheiros editores, São Paulo, 2000,
p. 425.
93
53
poder amplo e geral sobre qualquer espécie de relações, como vimos antes,
tem-se o princípio da legalidade. Quando a Constituição reserva conteúdo
específico, caso a caso, à lei, encontramo-nos diante do princípio da reserva
legal.
Esmiuçando ainda mais esta questão, LUÍS ROBERTO BARROSO prestou-se a
detalhar a reserva legal, admitindo-se a distinção entre reserva absoluta e reserva relativa de
lei, de um lado, e, de outro, entre reserva de lei formal ou material, in verbis:
Fala-se de reserva legal absoluta quando se exige do legislador que esgote o
tratamento da matéria no relato da norma, sem deixar espaço remanescente
para a atuação discricionária dos agentes públicos que vão aplicá-la. Será
relativa a reserva legal quando se admitir a atuação subjetiva do aplicador da
norma ao dar-lhe concreção. De parte isso, também é possível distinguir a
(a) reserva de lei formal da (b) reserva de lei material. Haverá reserva de lei
formal quando determinada matéria só possa ser tratada por ato emanado do
Poder Legislativo, mediante adoção do procedimento analítico ditado pela
própria Constituição, que normalmente incluirá iniciativa, discussão e
votação, sanção-veto, promulgação e publicação. A Constituição contempla,
de outra parte, atos normativos que, embora não emanados diretamente do
Legislativo, têm força de lei. Dizem-se, assim, atos materialmente
legislativos, gênero onde se situam espécies normativas como as medidas
provisórias e as leis delegadas.95
Diante de tão esclarecedoras lições, constata-se que ao Poder Legislativo compete
legislar sobre distintos tipos de matéria, sendo uma ampla e geral e outra específica. Dessa
forma, entende-se que, quando estiver agindo no exercício do poder amplo e geral sobre
qualquer espécie de relações, nada obsta que se promova a degradação hierárquica da norma,
ou seja, a deslegalização, pois não se estará promovendo qualquer delegação legiferante ou
legislativa, conforme os argumentos já expostos acima.
Em contrapartida, quando se tratar de matéria reservada exclusivamente à lei, como é
o caso dos tributos e dos crimes, não se poderá cogitar de deslegalização ou rebaixamento de
grau hierárquico.
Assim, no intento de conferir legitimidade doutrinária à posição firmada acima,
cumpre trazer à luz passagem da obra de CARLOS ROBERTO SIQUEIRA CASTRO,
contextualizada em sua explanação acerca do modelo norte-americano de Agências
Reguladoras, denominadas, naquele país, de comissões reguladoras independentes
95
BARROSO, Luís Roberto. Constitucionalidade, ordem econômica e agências reguladoras. Introdução do livro
Direito regulatório, MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, Rio de Janeiro, Renovar, 2003, p. 57/58.
54
(independent regulatory commissions), a fim de demarcar as necessárias distinções entre
delegação normativa e abdicação normativa:
Permito-me citar aqui uma passagem de um livro que escrevi alguns anos
atrás, no qual procurei demonstrar que a Suprema Corte daquele país
estabeleceu, nos anos 1930 uma distinção que é fundamental e que preserva
grande atualidade para a análise dos problemas hoje vividos pelas agências
reguladoras no Brasil. Trata-se da distinção entre delegação normativa e
abdicação normativa. Isso significa dizer que se o Congresso Nacional, ao
criar uma agência governamental com poderes reguladores, conferir uma
espécie de cheque em branco à nova entidade para disciplinar como bem
entender o setor ou as atividades sujeitas à competência reguladora da
agência, tal importará em abdicação legislativa inconsentânea com o
princípio da separação dos poderes e da supremacia do Congresso em
matéria legislativa. Tudo porque a agência, nessa perspectiva, deixará de ser
um instrumento executor de políticas públicas, transformando-se
indevidamente num legislador ordinário e sem limitações que devem ser
ditadas pelo Congresso Nacional. Eis o referido trecho: Já se viu, de acordo
com a universalização do sistema de governo contemporâneo, em prol das
delegações de competências orgânicas, que as formas constitucionais que as
vedam, em linguagem ortodoxa, prestando anacrônica reverência ao
princípio da indelegabilidade normativa, acabam condenadas ao desuso e
ao descrédito. O que é vedado ou deve ser vedado enfim, no sistema de
separação funcional de soberania, qualquer que seja seu grau de
flexibilidade, é a abdicação legislativa, ou seja, a delegação do poder de
legislar que importe em renúncia do âmago intransferível da competência
política. Há que se distinguir, pois, entre abdicação legislativa e delegação
legislativa. Se o congresso efetuou a delegação como meio de implementar
determinada política legislativa ou se a faz a pretexto de evadir-se da
responsabilidade pela decisão que lhe incumbia tomar, eis a questão96.
Diante dos argumentos supracitados, espera-se ter consolidado entendimento favorável
à constitucionalidade da deslegalização ou degradação do grau hierárquico da norma, a qual
não se confunde, conforme o demonstrado, com delegação legislativa, porque esta sim, por
certo, revelar-se-ia inconstitucional, visto que não poderia o Poder Legislativo delegar este
função típica do Estado, do qual não é possuidor (já que tal poder é do povo), mas tão
somente executor.
Conclui-se, portanto, que o instituto da deslegalização se presta a atribuir competência
normativa, com natureza regulamentar, hierarquicamente inferior às leis e regulamentos de
primeiro grau, às entidades da administração pública direta dotadas de prerrogativas especiais
de autonomia normativa denominadas Agências Reguladoras.
96
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. O regime jurídico e os princípios orientadores das agências reguladoras
(ano 2002). In: CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres. –
Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 426.
55
3.6 Dos limites baseados na definição de parâmetros (Standards)
Definidas as características e apresentados os conceitos que legitimam a atribuição de
competência normativa às Agências Reguladoras, convém, contudo, ressaltar que o exercício
de tal prerrogativa deve ser realizado com a devida observância a certos limites,
imprescindivelmente constantes de suas respectivas leis deslegalizadoras, a fim de que, como
se viu acima, não se configure o fenômeno da abdicação normativa, inconsentâneo com o
Estado Democrático de Direito.
Melhor explicando este instituto, socorre-se das palavras de GLAUCO MARTINS
GUERRA, ex vi:
A precedência da lei, como princípio tratado por Canotilho, traduz a
exigência de uma “lei habilitante” que justifique uma atividade
administrativa regulamentar. Esse é um item específico do princípio maior
da reserva de lei, que vem a ser a regulamentação primária e essencial de
determinadas matérias desde logo protegidas à competência originária de
produção normativa, isto é, à atividade parlamentar. Para Canotilho, não se
emite regulamento sem lei prévia que o autorize e lhe confira limites. Do
contrário, ainda que a posteriori haja lei legitimando um regulamento já
existente, estará ele cravado de inconstitucionalidade97.
Isso se dá porque, nas palavras de EGON BOCKMAN MOREIRA, competência
normativa “é uma realidade normativa atribuída pela lei – a qual, ao mesmo tempo em que
outorga a capacidade da prática de determinados atos à Administração, estabelece lindes
estreitos à sua própria compreensão e exercício”98.
O mencionado jurista traz ainda, em sua obra, a escorreita definição empregada por
Afonso Rodrigues Queiró, para quem competência é o “complexo de poderes-deveres
jurídicos públicos que uma norma de direito administrativo confere ao Estado ou a um ente
público menor e a distribui pelos seus vários órgãos”99.
Logo, em que pese toda a atenção dispensada ao debate teórico acerca de sua
constitucionalidade, consoante o esposado nos capítulos acima, este é o ponto que detém
97
GUERRA, Glauco Martins. Op. cit. p. 103.
MOREIRA, Egon Bochman. Os limites à competência normativa das agências reguladoras. p. 186. In:
ARAGÃO, Alexandre Santos de. (Coord.). O poder normativo das agências reguladoras. Rio de Janeiro:
Forense, 2006.
99
Loc. cit.
98
56
maior aplicabilidade prática na seara do poder normativo das agências reguladoras, uma vez
que nem sempre são respeitados os limites a ele impostos.
Sendo assim, compreende-se que, tendo natureza jurídica de ato administrativo, deve o
poder normativo das Agências Reguladoras, exercido através do poder regulamentar, observar
os limites impostos a todos os atos da administração, como, verbia gratia, a proibição de
contrariar a lei; a vedação de tratar de matéria reservada privativamente à lei em sentido
formal, aplicando-se-lhe o princípio da tipicidade penal (nullum crimen, nulla poena, sine
praevia lege), tributária e da seguridade ao Direito Administrativo; a vedação à retroação
prejudicial, ou seja, não pode ter efeito retroativo, a não ser quando vise beneficiar pessoas
privadas; deve ser devidamente fundamentado, em observância ao princípio da motivação dos
atos públicos prevista na Constituição; etc.100
Outrossim, há, ainda, um limite especial a ser observado pelas Agências Reguladoras
quando de sua atuação normativa, qual seja a vedação à edição de normas que inovem
absolutamente no mundo jurídico, criando deveres e obrigações inéditos aos particulares, sem
que esteja devidamente amparada por ato legislativo prévio, que, ao menos, tenha-lhe
estabelecido os parâmetros (Standards) a serem observados para a disciplina de determinada
questão.
Estes Standards (denominação emprestada do direito norte-americano), em que pese
não existirem somente nas leis criadoras das Agências Reguladoras, perfazem-se como sua
principal característica, visto que tais leis, ao atribuírem poder normativo às entidades
especiais reguladoras, o fizeram com baixa densidade normativa, na medida em que se
limitaram a estabelecer finalidades e parâmetros genéricos (Standards), de modo a propiciar
ampla autonomia normativa quanto às matérias ali elencadas, conferindo agilidade e dinâmica
à disciplina regulatória dos setores econômicos neste contexto inseridos.
Assim, “as leis instituidoras das agências reguladoras integram, destarte, a categoria
das leis-quadros (lois-cadre) ou standartizadas, próprias das matérias de particular
complexidade técnica e dos setores suscetíveis a constantes mudanças econômicas e
tecnológicas”101.
100
Ibid. pp. 188/190.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo econômico. –
Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 408.
101
57
Com o intuito de melhor esclarecer o conceito de standards, traz-se à colação as
palavras de ALEXANDRE DE MORAES102, ex vi:
O legislador deverá, nos moles norte-americanos, estabelecer os parâmetros
básicos, na forma de conceitos genéricos – Standards -, cabendo às agências
reguladoras a atribuição de regulamentação específica, pois passarão a
exercer, de maneira exclusiva, uma atividade gerencial e fiscalizatória que,
tradicionalmente, no Brasil sempre correspondeu à administração direta,
enquanto cedente dos serviços públicos por meio de permissão ou concessão.
(...)
Será, portanto, absolutamente vedado às agências atuarem em desrespeito às
normas legais definidoras de suas funções, pois não receberam do Executivo
e do Congresso um “cheque em branco”. As agências reguladoras não
poderão, ainda, no exercício de seu poder normativo inovar primariamente a
ordem jurídica – ou seja, regulamentar matéria para a qual inexistia um
prévio conceito genérico em sua lei instituidora (Standards); nem tampouco
poderão criar ou aplicar sanções não previstas em lei.
Sendo assim, fica ínsito afirmar que, embora o largo e amplo campo de atuação com o
qual se deparam as Agências Reguladoras quando pretendem editar normas técnicas afetas a
seu mercado de atuação, devem se pautar pelos parâmetros, pelo standards definidos em suas
respectivas leis criadoras, sob pena de sofrerem com o controle do Poder Judiciário a estão
submetidas.
3.7 Do controle
Na esteira do que sustenta GÉRARD TIMSIT103, em colóquio realizado na
Universidade de Paris I – Panthéon-Sorbonne, “o problema, em um Estado que desejamos que
se mantenha como um Estado de Direito, não é o de absorver ou excluir, de alinhar ou de
refutar estas novas instâncias ou instituições. O problema é antes inventar novas formas e
técnicas de controle sobre os novos tipos de autoridades.”
Logo, em que pese se tratarem de entidades dotadas de autonomia reforçada, a fim de
que fiquem imunes às ingerências políticas advindas dos três poderes centrais estatais, as
Agências Reguladoras, por integrarem um Estado de Direito, balizado no Princípio
Republicado, devem ser submetidas a controles diversos.
102
MORAES, Alexandre de. Agências Reguladoras. Jornal da Tarde, edição de 5 de abril de 2003, p. A2 apud
BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Solução de Controvérsias pelas Agências Reguladoras. – Rio de Janeiro:
Lúmen Juiris, 2009, pp. 59 e 60.
58
Neste sentido assevera CARLOS ARI SUNDFELD, ex vi:
Mas por acaso a independência da agência significa sua imunidade a
qualquer controle, o que por certo traria o perigo de quebra do Estado de
Direito e da Democracia? É claro que não. A agência reguladora é
necessariamente submetida aos controles parlamentares e judicial. Como
sabem todos os que estudam o Direito Administrativo, o aspecto mais
importante da relação do Poder Judiciário com a Administração Pública é do
controle judicial sobre todos os fatos administrativos. A Administração
Pública, aí incluídas as agências, tem de produzir e aplicar Direito na forma
do Direito; e o Poder Judiciário vai confrontá-lo104.
Com efeito, assim como foi informado quanto aos limites a serem observados pelo
poder normativo das Agências Reguladoras, estão os controles aos que se submetem, quais
sejam todos os que incidem sobre os demais atos administrativos normativos da
Administração Pública, guardadas as peculiaridades que lhes são próprios.
Por isso afirma LUIZ RICARDO TRINDADE BACELLAR que “a autonomia do
regulador se refere apenas à ausência de controle na linha de comando vertical (hierárquico)
interno à Administração Pública. De há muito a doutrina diferenciou controle de tutela, não se
justificando a ausência de controle sob tal fundamentação”105.
O mesmo autor, em sua obra, reforçando tal entendimento, colaciona as palavras de
ALEXANDRE DE MORAES da seguinte forma:
Apesar de sua independência, as agências reguladoras devem, em um Estado
Democrático de Direito, sofre controle dos poderes constituídos, em face da
necessária manutenção do sistema de freios e contrapesos caracterizador da
idéia da separação dos Poderes e da manutenção da centralização
governamental. Eventuais abusos praticados pelas agências poderão ser
controlados pelos poderes constituídos do Estado conforme a necessidade de
manutenção do binômio centralização governamental e descentralização
administrativa, tal qual ocorre com o modelo americano, onde ampliou-se o
controle judicial sobre os atos da agência, permitindo-se o controle judicial
sobre os atos das agências quando da análises formal dos procedimentos das
agências quanto à análise da razoabilidade das decisões diante dos fatos da
lei.106
103
TIMSIT, Gérard. Les autorités administratives indépendantes, coord. Claude-Albert Colliard e Gérard Timsit,
PUF, 1998, pp. 311 e segs. apud ARAGÃO, Alexandre Santos de. Op. cit. p. 378.
104
SUNDFELD, Carlos Ari. Serviços píblicos e regulação estatal: introdução às agências reguladoras. In, Direito
administrativo econômico, São Paulo, Malheiros, 2000, p. 25-26 apud BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Op.
cit. pp. 164-165.
105
BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Op. cit. p. 165.
106
MORAES, Alexandre de. Agências reguladoras. Jornal da tarde, edição de 05 de abril de 2003, p. A2 apud
apud Loc. cit.
59
Acerca desta questão é importante ressaltar que, não obstante estarem expostos a
controles diversos, em razão da discricionariedade que lhes são inerentes, não podem os
demais poderes controlarem o mérito administrativo, exercido adequadamente, em
observância aos princípios e regras do direito administrativo, com exclusividade pelo
administrador público.
3.7.1 Controle Judiciário
Todavia, conforme o afirmado nas citações acima, o mais latente e aceito desses
controles é o judicial, em função do princípio da inafastabilidade de apreciação do Poder
Judiciário, inserto no art. 5°, XXXV da CRFB/88, cuja previsão denota que “a lei não excluirá
da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Quanto ao controle judicial, cabe expor as palavras de LÚCIA VALLE
FIGUEIREDO, quando afirma:
O controle jurisdicional é um princípio estruturante do Estado de Direito. A
possibilidade de controle jurisdicional, como hoje se conhece, como
influência da Constituição Americana, sobretudo de Marshall, do judicial
review, aparece na Constituição de República de 1891, e sobreviveu até
agora. A possibilidade de controle judicial é a mola propulsora do Estado de
Direito.107
Outro fundamento embasador desta premissa repousa na vedação, pelo regime
constitucional vigente, do contencioso administrativo, de modo que a jurisdição brasileira é
una, exercida exclusivamente pelo Poder Judiciário, encarregado finalisticamente da
resolução de todas as controvérsias oriundas na sociedade, inclusive no que toca aos
interesses do Estado.
Acerca deste controle, cumpre enfatizar que, conforme a jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal – STF (ADI 2792 AdR/MG, Min. Carlos Veloso, DJ 12.03.2004), os
regulamentos emitidos pelas entidades autônomas reguladoras não ficam, em regra, sujeitos
ao controle concentrado de constitucionalidade, na medida em que:
107
FIGUEIREDO, Lúcia Valle. O controle jurisdicional da administração pública. Revista Diálogo Jurídico,
Salvador, CAJ – Cento de Atualização Jurídica, v. I, nº 2, maio de 2001. Disponível em
HTTP://www.direitopublico.com.br. Acesso em: 11 de maio de 2003 apud BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade.
Op. cit. p. 166.
60
“Ato regulamentar não está sujeito ao controle de constitucionalidade, dado
que se vai ele além do conteúdo da lei, pratica ilegalidade e não
inconstitucionalidade. Somente na hipótese de não existir lei que preceda o
ato regulamentar, é que poderia este ser acoimado de inconstitucional, assim
sujeito ao controle de constitucionalidade”108.
Diz “em regra” porque, os regulamentos cujo conteúdo exceda de à simples execução
de preceitos legais, prevendo regra capaz de restringir a liberdade do particular, impondo-lhe
direitos e obrigações e não estando previamente subsumido em lei formal, será objeto de
controle de constitucionalidade concentrado, a ser julgado pelo próprio STF, conforme o
ressalvado na mencionada decisão.
3.7.2 Controle Legislativo
Outrossim, em franca consagração ao sistema de pesos e contrapesos inerente ao
princípio republicano, já mencionado e dissecado noutro lugar, há, além do referido controle
exercido pelo Poder Judiciário, possibilidade de controle realizado pelo Poder Legislativo.
Este se dá na medida em que, ao deslegalizar determinada matéria, degradando-a ao
grau regulamentar, o Legislativo não delega, como efetivamente não poderia, sua
competência constitucional legiferante acerca da mesma, de modo que, verificando
exorbitância no exercício do poder regulamentar pelas Agências Reguladoras, ou seja,
violação aos Standards contidas na lei que exarou, este ente tem o poder-dever de sustar os
atos eivados de vícios, sejam formais ou materiais, com fulcro no que dispõe o art. 49, V da
CRFB/88.
Reforçando a presente afirmação, emprestam-se as palavras de CARLOS ROBERTO
SIQUEIRA CARSTRO, in verbis:
Aqui há um ponto que me parece de fundamental importância. O art. 49,
inciso V, da Constituição estabelece que o Congresso Nacional tem
competência privativa para “sustar atos normativos que exorbitem do poder
regulamentar ou dos limites da delegação legislativa”. Como tem o poder
normativo primário por força de delegação haurida diretamente do Poder
Constituinte originário, o Congresso, como também as assembléias
legislativas dos Estados, com base em normas de semelhante teor de nível
constitucional estadual, pode sustar esses atos maculados de exorbitância
normativa. Essa norma, a um primeiro exame, é dirigida aos regulamentos
do Presidente da República, ou seja, decretos regulamentares. Mas, eu
108
MOREIRA, Egon Bochman. Op. cit.. p. 191.
61
pergunto, pode o Congresso Nacional ou uma assembléia legislativa estadual
sustar atos normativos, deliberações e resoluções das agências reguladoras?
É evidente que sim. Não fica no meu espírito a mais mínima dúvida quanto a
isso. Se pode sustar atos normativos e decretos regulamentares do Presidente
da República, por que não fazê-lo com maiores razões em relação a atos
infra-regulamentares, como é o caso das deliberações e resoluções das
agências reguladoras? E note-se que a Constituição não se refere à sustação
de atos do Presidente da República, mas a atos normativos que exorbitem do
poder regulamentar, entre os quais obviamente se incluem os atos editados
no âmbito do poder regulamentar secundário das agências reguladoras, nos
limites das respectivas delegações legislativas. Eis, portanto, o princípio da
legalidade, de forma muito sintética, a delimitar a atuação normativa das
agências reguladoras.
Acerca do controle exercido pelo Poder Legislativo, ainda há posições favoráveis à
possibilidade de controle finalístico, ou seja, quanto à eficiência da norma de regulação do
mercado, realizado pelo Tribunal de Contas.
Sob este aspecto, em que pese as veneráveis sustentações, cumpre discordar, uma vez
que cabe ao Tribunal de Contas a verificação das contas, mediante procedimentos contábeis,
de todos os entes e entidades da Administração Pública, incluindo as Agências Reguladoras.
Consolidando tal entendimento estão as palavras de LUIZ RICARDO TRINDADE
BACELLA, in verbis:
Entendemos como correta a segunda correntes, eis que: (1) escapa às
atribuições dos Tribunais de Contas o exame das atividades autárquicas que
não impliquem dispêndio de recursos públicos, como se pretende. Isso
porque as investidas do Tribunal de Contas que venham a se imiscuir em
atividades que, a par de não envolverem dispêndio de dinheiro público,
desnaturariam a razão da criação da própria agência reguladora, sendo o
limite da atribuição do Tribunal de Contas o controle financeiro; (2) não há
previsão constitucional ou legal que autorize a investigação do mérito das
decisões de uma agência reguladora faltando-lhe, assim, competência para
tanto. Logo, o limite de investigação do Tribunal de Contas cinge-se aos
encargos administrativos e aos honorários dos árbitros e/ou mediadores.109
3.7.3 Controle Social
Sem a pretensão de esgotar as possibilidades, mas tão somente a de mencionar os mais
salutares controles influentes sobre os atos normativos emanados pelas Agências Reguladoras,
encerra-se o elenco dos controles a que estão sujeitos o poder normativo das agências
62
reguladoras, com um bem próprio e peculiar, qual seja o Controle Social, entendido como
aquele exercido pela sociedade através das formas de participação direta na elaboração das
normas regulatórias, como ocorre com a Consulta Pública, a Audiência Pública e a Câmara
Técnica.
109
BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Op. cit. p. 171.
63
4 CONCLUSÃO
Enfim, trilhado todo o caminho, chega-se ao final do presente estudo, esperando-se ter
exaurido, quanto aos conceitos, definições e controvérsias principais, de maior relevância, o
poder normativo das agências reguladoras.
Assim, como medida preparatória, apresenta-se sinteticamente os aspectos mais
relevantes de seu conteúdo, de modo que possa concluir o presente trabalho a partir de uma
visão geral, porém concisa, dos argumentos empregados, que solidificaram as proposições
postas.
Dessa forma, considerando-se que, ao longo de todo o projeto, objetivou-se
demonstrar a compatibilidade do Poder Normativo das Agências Reguladoras com o
ordenamento jurídico brasileiro, mormente quanto aos princípios basilares da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988, cumpre permear suas questões introdutórias.
Neste sentido, é imperioso ressaltar que se destinou todo o primeiro capítulo a versar
sobre as Agências Reguladoras, pontuando seu histórico, a maneira pela qual surgiram; seu
conceito; sua natureza jurídica; seus fundamentos e finalidades, estabelecendo, ainda, as
definições e conceitos necessários ao entendimento desta entidade autônoma, como, verbia
gratia, o de descentralização, administração pública indireta e autarquia.
Com efeito, concluiu-se, portanto que as Agências Reguladoras, criadas no bojo do
processo de desestatização da administração pública promovido em meados dos anos 90,
foram constituídas, quanto ao gênero, sob a forma de entidades da administração pública
indireta, e, quanto à espécie, autarquias em regime especial, a quem foram conferidas, pelas
próprias leis que as instituíram, prerrogativas peculiares, capitaneadas pelo mandato fixo de
seus dirigentes, vedada a possibilidade de exoneração ad nutum,bem como pela ampla
autonomia financeira, orçamentária e até principalmente normativa.
Outrossim, o segundo capítulo foi destinado a esmiuçar cada uma de suas
prerrogativas ou características.
Assim, asseverou-se que a autonomia decisória obsta que as decisões proferidas pelas
Agências Reguladoras sejam, quanto ao mérito, revistas por qualquer ente, órgão, entidade ou
autoridade externa à sua estrutura, não sendo possível a interposição de recurso hierárquico
impróprio, qual seja aquele em que se pretende reformar a decisão proferida na esfera das
Agências Reguladoras através de endereçamento ao Ministro a qual ela está vinculada.
64
Outrossim, discorreu-se acerca da autonomia administrativa, a qual se caracteriza,
principalmente, pela garantia de mandato fixo, por prazo determinado, sendo possível a
recondução uma só vez, aos dirigentes das Agências Reguladoras, sendo vedada exoneração
ad nutum, ou seja, baseada apenas na conveniência e oportunidade da Administração central.
Ademais, encerrando o capítulo, dissertou-se acerca da autonomia econômicofinanceira conferida às Agências Reguladoras, através da qual estas possuem recursos
próprios, oriundos de sua atividade fiscalizatória e do poder de polícia que exercem sobre os
agentes regulados, bem como pela elaboração de sua própria proposta orçamentária, que lhe
confere dotação de orçamento próprio quando da elaboração do orçamento único da
Administração Pública.
Postas as questões introdutórias, chegou-se ao terceiro, último e mais importante
capítulo do presente estudo, o poder normativo das agências reguladoras, o qual, ressaltou-se,
perfaz-se como uma prerrogativa essencial atribuída às Agências Reguladoras para o
atendimento de seus fins regulatórios, pois lhes garantem autonomia para disciplinar as ações
de seu mercado regulado de maneira ágil e eficiente, sem a necessidade de aguardar a
normatização legislativa, comumente morosa e eivada de influências políticas.
Já no mérito, após breve ressalva quanto à impropriedade da utilização do termo
“Poder”, uma vez que melhor seria, neste caso, o emprego da palavra “função”, adentrou-se,
então, na questão do enquadramento do Poder Normativo das Agências Reguladoras no
ordenamento jurídico brasileiro.
Neste comenos, concluiu-se que o poder normativo das agências reguladoras é
regulamentar secundário, pois o poder normativo primário é exercido pelo Congresso
Nacional e o poder regulamentar primário é exercido pelo Presidente da República, em razão
da competência delegada pela CRFB/88.
Logo, em razão da definição acima, mister se mostrou estabelecer um conceito, bem
como à identificação de uma natureza jurídica, para o poder normativo das agências
reguladoras.
Concluiu-se, assim que o mais conceito, diante dos variados posicionamentos
doutrinários apresentados, informa que o poder normativo das agências reguladoras é
competência a elas atribuída para expedir normas de caráter geral, abstrato e impessoal, a fim
de regulamentar as matérias inerentes a seu mercado regulado, impondo direitos e obrigações
aos administrados, com observância aos vetores de ordem técnica, definidos como parâmetros
ou standards, definidos em suas leis instituidoras.
65
Quanto à natureza jurídica, concluiu-se ser poder regulamentar, pois tem o condão de
dar concretude, densidade à outra norma jurídica hierarquicamente superior, sem deixar,
entretanto, de possuir a força normativa necessária para limitar a liberdade dos particulares,
impondo-lhes direitos e obrigações, instando ressaltar que tal poder regulamentar é
secundário, exercido exclusivamente mediante ato administrativo, de modo que deve
observância a todos os preceitos impostos a estes pelo direito administrativo.
Quanto aos seus fundamentos jurídicos, concluiu-se que o poder normativo das
agências reguladoras fundamenta-se em suas leis instituidoras, as quais, além de as
instituírem, também lhes conferiram tal prerrogativa, no estrito cumprimento de sua regular
competência originária delegada pela CRFB/88 ao Poder Legislativo.
Outrossim, quanto à aferição da compatibilidade entre o poder normativo das agências
reguladoras e o princípio da separação dos poderes, foi possível concluir, primeiramente, que
o princípio da separação do poderes possui, hoje, em virtude da evolução da sociedade e dos
sistemas jurídicos, diante da feição reguladora, evoluída da social, de que se reveste o Estado,
valor meramente pragmático de divisão das funções estatais, para fins de distribuição do
trabalho, e não mais protetor dos direitos e interesses individuais do cidadão, como na época
de sua concepção.
Ademais, concluiu-se, ainda, que o poder normativo é gênero, do qual são espécies o
poder legiferante e o poder regulamentar, e que as agências reguladoras exercem somente este
último, de modo que não que se cogitar de usurpação de poderes.
Concluiu-se, também, que o poder normativo foi conferido às agências reguladoras
por ato do próprio Poder Legislativo, o qual reconheceu sua incapacidade técnica para dirimir
questões advindas de determinados setores da sociedade, mormente da economia, transferindo
a entidades reguladoras autônomas tal atribuição.
Além disso, verificou-se, também, a compatibilidade do poder normativo das agências
reguladoras com o princípio da legalidade, analisando-se, devido à complexidade do tema,
vários de seus aspectos, como o caráter não absoluto do princípio da legalidade, e os
fenômenos da deslegalização e da delegação normativa.
Quanto ao primeiro, constatou-se que o princípio da legalidade, não obstante se tratar
de um importantíssimo instrumento de controle e limite da atuação da Administração Pública,
foi relativizado com o passar do tempo, não tendo mais o sentido que lhe foi atribuído quando
de sua elaboração, quando da luta por liberdade empreendida pelo liberalismo-burguês diante
do absolutismo do Estado da época.
66
Assim, concluiu-se que o princípio da legalidade não possui caráter absoluto no que
tange à exigência de lei formal disciplinar a liberdade do indivíduo, uma vez que os
argumentos empregados neste sentido são ultrapassados, ainda apegados à visão liberal
oitocentista, de proteção do particular contra as ações do Estado. Entende-se que,
hodiernamente, este princípio absorveu nova feição, no sentido de exigir do Estado a
providência normativa necessária para tornar possível o gozo de determinados direitos, em
consagração ao princípio da dignidade humana.
Dessa forma, concluiu-se que, salvo quando o texto constitucional expressamente
imputar à lei a disciplina de determinada matéria, é possível que a própria lei transfira tal
poder-dever ao regulamento, pois estará, de qualquer modo, atendendo aos anseios sociais
para o gozo dos direitos subjetivos dos particulares.
Da mesma maneira, no segundo aspecto estudado, demonstrou-se que para que fosse
possível o disciplinamento dos setores econômicos pelas agências reguladoras foi necessário
que o legislador retirasse determinadas matérias do domínio da lei (domaine de la loi)
passando-as ao domínio do regulamento (domaine de l ordonnance”), dando-se ao fenômeno
denominado deslegalização.
Por conseguinte, tratou-se do instituto da delegação normativa, a qual, segundo parte
da doutrina, confunde-se com o fenômeno da deslegalização, o que a taxaria de
inconstitucional, pois a delegação consiste na transferência, pelo Poder Legislativo, do poder
legiferante a outro ente, entidade, órgão ou autoridade da estrutura da Administração Pública.
Esta transferência sim seria inconstitucional, haja vista que o Poder Legislativo não pode
dispor da função legiferante, pois dela não é possuidor, embora a este tenha sido atribuída
pela CRFB/88 sua execução, uma vez que seu detentor é o povo.
Logo, concluiu-se que não há delegação legislativa do Poder Legislativo às agências
reguladoras, mas tão somente a transferência a outra sede normativa a regulação de
determinada matéria, através de sua deslagalização ou degradação de seu grau hierárquico, de
modo a investir o poder regulamentar na competência para tratar de tal matéria, o que
somente estaria vedado para os casos de reserva absoluta de lei, imposta diretamente pela
CRFB/88.
Bem assim, ultrapassada a questão da compatibilidade do poder normativo das
agências reguladoras com os princípios constitucionais, concluiu-se, em que pese a validade
do fenômeno da deslegalização, esta não pode se operar através de um chefe em branco
conferido pelo legislador às entidades reguladoras, devendo estabelecer os parâmetros ou
standards que deverão estas observarem quando exercerem tal atribuição
67
Assim, concluiu-se que os standards são as finalidades e os parâmetros genéricos que
as leis criadoras das agências reguladoras, elaboradas com baixa densidade normativa, a fim
de propiciar a tais entidades larga autonomia na disciplina das matérias a ela incumbidas, com
agilidade e dinâmica, estabeleceram como limites.
Por fim, fechou-se o presente do estudo, concluindo-se que as agências reguladoras,
porquanto tenham autonomia frente aos poderes centrais da república, estão sujeitas, por
estarem contidas na estrutura de um Estado Democrático de Direito, informado pelo sistema
de freios e contrapesos, a controles externos, realizados pelo Poder Judiciário, pelo Poder
Legislativo e pela sociedade, através do denominado controle social.
Portanto, diante dos argumentos empregados e das conclusões pontuais supra
elencadas, conclui-se que o poder normativo das agências reguladoras é plenamente
compatível com a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, tendo em vista
que, dada a agilidade e dinâmica que confere à Administração Pública, consagra princípios
constitucionais programáticos, como o da dignidade da pessoa humana e da eficiência, sem
esbarrar em outros, como o da separação dos poderes e da legalidade, os quais, inclusive,
interpretados conforme a nova ordem constitucional, militam a seu favor, na medida em que
sugerem a distribuição técnica das funções estatais e a produção normativa constante para
assegurar o gozo de direitos pelos indivíduos.
68
5 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências reguladoras e a evolução do direito administrativo
econômico. – Rio de Janeiro: Forense, 2002.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Agências Reguladoras e Agências Executivas. Revista de
Direito Administrativo n° 228, 2002.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. As agências reguladoras independentes e a separação dos
poderes: uma contribuição da teoria dos ordenamentos setoriais. Revista Eletrônica de Direito
Administrativo (REDAE), Salvador, Instituto Brasileiro de Direito Público, n° 10,
maio/junho/julho, 2007. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br. Acessado
em 18 de maio de 2011.
ARAGÃO, Alexandre Santos de. Coordenador... [et al.]. O poder normativo das agências
reguladoras. Rio de Janeiro: Forense, 2006.
BACELLAR, Luiz Ricardo Trindade. Solução de Controvérsias pelas Agências Reguladoras.
– Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2009.
BRASIL. Constituição 1988. Constituição da República Federativa do Brasil. São Paulo:
Atlas, 1988.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Agências Reguladoras e o Poder Normativo. Revista
Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador, Instituto de Direito
Público da Bahia, n° 9, fevereiro/março e abril de 2007. Disponível na internet:
http://www.direitodoestado.com.br. Acessado em 11 de abril de 2011.
CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo – 23ª Ed. rev.,
ampl. E atualizada até 31.12.2009. – Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2010.
CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Direito constitucional e regulatório: ensaios e pareceres.
– Rio de Janeiro: Renovar, 2011.
CRUZ, Paulo Márcio e SCHMITZ, Sérgio Antonio. Sobre o princípio republicano. Revista do
Instituto de Pesquisas e Estudos, Bauru, v. 43, n. 50, p. 153-172, jul./dez. 2008. Disponível na
internet em: http://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/view/1226. Acessado em 06 de
junho de 2011.
DI PIETRO, Maria Sylvia. Direito Administrativo. 15. ed. São Paulo: Atlas, 2003.
GROTTI, Dinorá Adelaide Musetti. As Agências Reguladoras. Revista Eletrônica de Direito
Administrativo Econômico, Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n° 6, mai/jun/ jul
de 2006. Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br. Acessado em 14 de abril
de 2011.
69
LEMOS, Mário Luiz. Reparação de danos no âmbito administrativo da comissão de valores
mobiliários – CVM. Disponível em: www.cvm.gov.br/port/public/publ/publ.asp. Acessado
em: 06 de maio de 2011.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 15ª ed., São Paulo, Revista dos
Tribunais, 1990.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. Ed. Malheiros, 18ª ed., 1993.
MOREIRA NETO. Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo, 15ª ed., revista,
refundida e atualizada. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2009.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Direito regulatório. Rio de Janeiro: Renovar, 2003.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Mutações de Direito Administrativo, Ed. Renovar,
2000.
ANDRADE, Letícia Queiroz de. Poder normativo das agências reguladoras (legitimação,
extensão e controle). Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE),
Salvador, Instituto de Direito Público da Bahia, n° 15, agosto/setembro/outubro, 2008.
Disponível na internet: http://www.direitodoestado.com.br. Acessado em 16 de junho de
2011.
REALE, Miguel. Teoria geral do direito e do estado, Ed. Saraiva, 5ª ed., 2000.
SILVA, Francescláudio Tavares. Agências Reguladoras: Análise do modelo adotado pelo
Brasil. Disponível na internet: hppt://www.buscalegis.ufsc.br/revistas/index. Acessado em: 18
de maio de 2011.
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo, 19ª ed, Malheiros editores,
São Paulo, 2000.
Download

O Poder Normativo das Agências Reguladoras ()