OLHOS DE RESSACA
Amanda Sthephanie Silva (FUNDAÇÃO BRADESCO) *
Com os mesmos olhos de ressaca de minha avó, aqui estou, leitor. Encontro
inesperado, mas não duvides! Disponho-me a contar-lhe todo o acaso. Sim, acaso. Sou
eu, a materialização deste caso ou acaso. Sou parte desconhecida da história que deixou
dúvidas, incertezas, contradições, amor, desconfiança. Sou mistério ou o fim dele. Eis
me aqui: neta de Capitolina e Bento Santiago.
Se tiveres boa memória, lembrar-te-ás da história em que meu avô, desde
pequenino luta ao lado de minha avó contra imposição de sua mãe que tinha por desejo
fazê-lo padre. O amor superou todas as barreiras, exceto a barreira da desconfiança.
Quando meu pai – Ezequiel – nasceu, fizeram-se alegres meus avôs. No entanto, a
alegria se ofuscou em meio à morte de Escobar, amigo de ambos, que fragilizou
demasiadamente a vovó. A partir disso, vô Bento nunca mais foi o mesmo, pois a
projeção da imagem de traição, ofuscaria para sempre seu olhar.
Após a morte de vó Capitu, meu pai ainda viajou para Grécia, Egito e
Palestina, devido ao seu imenso amor por arqueologia. No entanto, esse não era seu
maior amor. Ao chegar ao Egito, conheceu minha mãe, Auset (nome recebido em
homenagem à deusa da maternidade e fertilidade, protetora da natureza e da magia)
enquanto almoçava em um restaurante de origem egípcia. Mamãe o atendeu.
Desconhecia a herança dos olhos de ressaca... O resto segue a ordem natural das boas e
velhas histórias de amor: corações palpitando, mãos suando, pernas bambas. O mundo
teria parado. Nada mais importava. Nem mesmo a arqueologia. A magia do momento
denunciava que do céu, estrelas contemplavam um velho sentimento novo.
Casaram-se. Tudo muito rápido. Foram juntos à Palestina, contra a vontade dos
familiares de mamãe. Papai tinha boas condições financeiras. Logo comprou sua
propriedade. Fizeram grandes amizades. Eram admirados por seu amor e união. Mas
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Aluna da Fundação Bradesco. Aprendiz Legal na empresa Hewlett Packard - HP Brasil.
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Educação, Gestão e Sociedade: revista da Faculdade Eça de Queirós, ISSN 2179-9636, Ano 4, número
15, agosto de 2014. www.faceq.edu.br/regs
após três meses, mamãe adoeceu por amar demais. Culpa minha. Quando visitada pelo
médico, descobriu-se uma gravidez de risco e já de cinco meses. Três meses depois,
nasci saudável. Mamãe deu-me a vida, a sua vida.
Após dois anos, papai mandou uma carta comunicando o acontecimento ao meu
avô, que respondeu secamente. Encontrei-a em meio a tantos outros papéis perdidos no
meio de registros arqueológicos nos cadernos de meu pai. Seguem alguns trechos:
“Ezequiel, filho de Escobar,
Rezo para que Deus guarde sua esposa junto a ele e te dê forças
para cuidar de tua filha. Vocês não pertencem à minha família, mas não lhes desejo
mal.
Por todo esse tempo calei-me. Agora direi. Vejo em ti a traição
passada. Em sua letra, vejo a de seu pai. Acerca-me a ideia de que deves viver bem,
mas desejo preservar a boa e velha solidão, a qual há muito tempo guardo estima.
Saiba que o amor entre mim e Capitu não foi suficiente para que ela
fosse fiel.
Abraço de seu velho conhecido,
Bento Santiago.”
Ao ler aquilo, papai viu-se perdido em seu próprio ser. Não teve forças de
colocar a caneta sobre o papel e responder. Sabia ele que Escobar era irmão de Bento.
Ele era o filho de uma aventura de dona Glória que o perdera, não para a morte, mas
para o mundo, ao doá-lo para uma mulher estéril e que, mais tarde, por força do tempo e
ironia do destino, colocaria frente a frente os dois irmãos. Escobar era o tio bastardo de
papai!
Fato desconhecido por vovô Bento, porém revelado a José Dias, desde sempre.
Fato conhecido por vó Capitu por meio de um engano. Certa vez, brincando de esconder
acabou se metendo atrás do oratório e ouviu toda a história. Daí a explicação de tanto
ódio por parte do agregado.
Talvez, por isso, papai tenha se aborrecido tanto! Morreu de febre tifoide,
enterrado em Jerusalém e embora de olhos cerrados no caixão, lembro-me: seus olhos
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de ressaca me atraiam a um mar desconhecido, mar em fúria, em desespero, em tristeza,
em uma história construída em mistérios e desencontros, ofuscados pelos olhos de
ressaca de minha avó, que provavelmente, não eram de ressaca, mas eram olhos que
guardavam segredos... Dos outros.
Referência
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Klick Editora/Zero Hora, 1997.
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