André Singer: uma democracia “quente” após os anos de
chumbo
Deigma Turazi/ABr
Brasília - Formado em Ciências Sociais (1980) e em Jornalismo (1986) pela
Universidade de São Paulo (USP), o porta-voz do presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, André Singer, diz não ter dúvida de que a campanha Diretas Já foi um marco
para a redemocratização do Brasil após o golpe militar de 1964 e o endurecimento
do regime, a partir de 1968.
No depoimento de aproximadamente uma hora, dado em sua sala no terceiro andar
do Palácio do Planalto, a poucos metros do gabinete do presidente Lula, André
Singer, 46, fez uma análise mais sociológica do que jornalística ou política do
processo que levou às eleições diretas. Descontraído, sem o gel que usa nos
cabelos e sem a expressão circunspecta que o caracteriza nos momentos de
“briefing” (comunicados/entrevistas com os jornalistas), o porta-voz avalia a
campanha pelas diretas como uma forma de resistência democrática que empolgou
a população e passou à história como a maior festa cívica já vista no Brasil.
Na época do movimento, seu trabalho se restringiu à cobertura dos acontecimentos
em São Paulo, em especial a atuação do então sindicalista e presidente do Partido
dos Trabalhadores Luiz Inácio Lula da Silva. André Singer trabalhava, na época, na
Folha de S. Paulo, onde criou a seção Tendências e Debates, foi repórter político e
secretário da redação. Depois acompanhou a campanha presidencial de Lula,
cuidando especialmente da estratégia de comunicação. E escreveu o livro
“Esquerda e Direita no Eleitorado Brasileiro”. A seguir, os principais trechos do
depoimento de André Singer:
Autoritarismo
“Normalmente, o autoritarismo é uma forma de governo que tem prazo de validade
curto. É muito difícil sustentar a sua legitimidade.
Eu creio que passado aquele período de expansão da economia conhecido como
milagre econômico, no final dos anos 60 e começo dos anos 70, em que a
população foi talvez um pouco ‘agradada’, o movimento pela democracia começou
logo na seqüência do golpe militar de 1964, tem tradição no Brasil desde este ano e
ganhou muita força a partir de 1974, quando o modelo econômico começou a
mostrar fragilidade e, ao mesmo tempo, o MDB saiu vitorioso nas eleições
parlamentares.
Nesse momento, estamos diante do resultado de um acúmulo de forças para a
democracia que empolgou a grande maioria da população brasileira.
Evidentemente, a decisão estratégica tomada pelo governo militar de iniciar uma
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abertura favorece o movimento: a abertura traz liberdade de expressão
gradativamente, em 1978 acaba a censura à imprensa e finalmente, em 1982, os
governos estaduais são eleitos diretamente pela população, a maioria deles com
vitória do PMDB. Essas lideranças apoiarão as Diretas Já dois anos depois.”
Unanimidade
“Eu vivi aquele momento com a convicção, que eu tenho até hoje, de que nós
estávamos diante de uma cena histórica em que a população brasileira, pela
primeira vez desde 1964, foi às ruas em massa para exigir democracia plena. Claro
que nós já tínhamos visto uma série de manifestações a favor da democracia, com
o próprio movimento estudantil iniciado em 1977 e depois com as greves do ABC
que se estenderam para movimentos grevistas no país inteiro. Mas a campanha
que começa no final de 1983 e ganha força no ano seguinte é o primeiro momento
de unanimidade nacional expressa nas ruas. Nós vivemos aquele momento como
um sinal de que a democracia havia conquistado os corações e as mentes da
população brasileira. Essa intensa movimentação popular permitiu que a
democracia renascesse com um sentido participativo, o que se reflete na própria
Constituição de 1988. E também renascesse 'quente', no sentido de se tratar de
uma democracia pela qual as pessoas se mobilizaram. Quando esta democracia
vem com forte adesão popular, ela tem muito mais condição de se consolidar e de
se aperfeiçoar. Essa foi a imagem que me ficou do movimento.”
Sem
retrocesso
“Apesar de a campanha ter começado sob o regime militar e de alguns episódios de
violência terem marcado a trajetória, como em Salvador, onde o deputado Ulysses
Guimarães foi recebido pelos cachorros da Polícia Militar, creio que estava claro não
haver a possibilidade de retrocesso. A democracia viria, até porque os militares
haviam decidido iniciar uma transição a partir de 1974, quando o presidente Geisel
prestes a assumir anunciou o processo de abertura gradual. Mas na história
brasileira foi paradoxal a duração dessa transição, muito longa. Nós vivemos
praticamente uma década de transição, enquanto na Argentina, poucos meses após
a Guerra das Malvinas, o regime militar acabou em eleições e vitória de um
presidente civil. A longa duração é a singularidade do caso brasileiro. Quando nós
chegamos a 1984 e a campanha das Diretas Já ganhou força, eu acho que já
estava presente na cabeça das lideranças políticas que nós não teríamos um
retrocesso, não havia mais esta ameaça. Por isso creio que a principal marca da
campanha é a qualidade da democracia que iria nascer, fruto da participação e da
adesão popu-lar. E foi com muito impacto que eu vivi tudo aquilo, experimentei
essa característica tão boa do povo brasileiro que é a alegria, outra marca de um
momento de muita esperança. Creio que tudo isso continua presente nestes últimos
20 anos: retrocesso político no Brasil, nunca mais.”
Imponderável
“O episódio que envolveu a doença do presidente eleito Tancredo Neves, a morte
dele antes da posse, todo esse período da história do Brasil que ainda carece de
muita análise e de compreensão, evidentemente nós estamos aí diante do
imponderável: são as forças da natureza que se fizeram presentes de maneira
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trágica. A campanha das Diretas Já e a decisão do Colégio Eleitoral têm um vínculo,
elas se influenciaram mutuamente. Mas a força da campanha seria, digamos, um
pano de fundo mais geral que vai se expressar na Constituição de 1988 e neste
sentido eu diria que ela não foi perdida, porque eu definitivamente creio que a
Carta reflete esse momento de intensa participação popular.”
Jornalismo
“Na época da votação da Emenda Dante de Oliveira, eu era jornalista profissional
da Folha de S. Paulo e por isso me afastei da militância política no Partido dos
Trabalhadores. O que observei de mais interessante foram dois aspectos. O
primeiro, o engajamento da Folha nesse processo, decisão da direção que eu creio
ter sido uma contribuição importante para o consolidação de um projeto do jornal
naquele momento. Outro aspecto que observei, logo em seguida, quando eu passei
a trabalhar na Agência Folha como repórter – e não mais vinculado à direção do
jornal – foi a cobertura do comício em São Paulo no dia 25 de janeiro, que marcou
uma nova fase da campanha. Não foi o primeiro comício – o da Praça Charles
Miller, em novembro de 1983, abrira a série das grandes manifesta-ções. Mas entre
o de janeiro e o de abril de 1984, eu cobri os bastidores políticos no Palácio dos
Bandeirantes, as forças políticas de São Paulo. E o que observei de mais
interessante naquele momento foi como a mobilização popular tomava conta da
cidade, como aquele momento era especial. O que achei interessante, também, foi
observar como um jornal decide. Não é só apoiar uma idéia, mas entrar em
campanha por uma idéia. Estas são duas coisas muito diferentes: uma coisa é um
jornal apoiar um projeto de lei; outra, é aderir à campanha. Com isso pude
observar como o jornal tem capacidade de formar a opinião pública. E como o
próprio jornal foi se moldando a partir dessa decisão de expressar a força do
movimento que estava em curso.”
Transição
“É preciso reconhecer que houve, por parte dos militares brasileiros, muita
habilidade na condução do período de transição, para que ela se concluísse em
1985, com uma eleição direta. Este foi um plano muito especial e que teria muitas
chances de fracassar no meio do caminho, foi um pacto, uma transição negociada,
não houve propriamente uma ruptura. Diria que provavelmente as lideranças
políticas foram orientadas pela preocupação de que a transição se completasse sem
ruptura. Creio que o papel do Doutor Ulysses nesse processo foi de fato
fundamental. Ele foi um político que, embora moderado, soube se aproximar das
forças mais à esquerda. O Teotônio Vilela, para ser muito franco, eu acompanhei
muito pouco, nunca o conheci pessoalmente. Lembro de ele ter ficado como um
símbolo de alguém que vindo de uma posição mais à direita, tinha aderido a uma
aspiração democrática clara, definida, de que o Brasil precisava realmente
completar aquela construção.”
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1 André Singer: uma democracia “quente” após os anos de chumbo