eografia das amizades
Antes que a vida
nos separe
Quantas cidadezinhas americanas já atravessei nesta vida
errante? Tentei fazer as contas mas desisti. Não é habitual
desistir porque costumo recordar todos os lugares onde estive,
a memória não falha ainda. E de qualquer das formas há
uma técnica, que é um pouco como a do jogo do Kim, o jogo
que os escuteiros fazem para treinar a memória e o espírito de
observação. Colocam-se cerca de 30 objectos, o mais diferentes
possíveis entre si, numa mesa numa sala: o escuteiro tem um
minuto para os observar, depois sai da sala e tem três minutos
para escrever a lista dos objectos que viu. O segredo está em
encontrar ligações, lógicas, pontos comuns de um objecto para
outro, até conseguir um efeito na memória semelhante a uma
cascata de dominós: um objecto puxa outro,
que puxa outro, que puxa outro e assim
sucessivamente.
Esta é a técnica que uso para recordar cada
cidadezinha que visitei, hotel onde dormi, fronteira que atravessei, comboio que me levou. Tudo
está ligado, tudo ganha a sua individualidade no
novelo da memória. Começo o fio das recordações pela viagem total, pelo projecto espinha dorsal, pela razão que me fez partir. Depois desço aos
pormenores: o itinerário, as etapas, os percalços,
os encontros. Até chegar por fim às emoções, aos
estados de alma, às ideias que ocorrem, ao lugar
onde ocorrem. Como uma cascata de dominós.
Mas as cidadezinhas americanas confundem-se e confundem-me. Sei bem as vezes que estive
nos Estados Unidos, as razões, as regiões, os
itinerários. Uma vez no Grand Canyon, duas vezes na New England,
três vezes de costa à costa, quatro na Califórnia. A vista da Sears
Tower, a Sears Tower. Os subúrbios: Williamsburg, Oakland, New
Oaks, Carpinteria. As livrarias, os museus. Yosemite, Vermont. Isso eu
recordo. É as cidadezinhas que não saltam fora do novelo da memória.
Ou melhor, saltam mas é uma só. São todas iguais.
A MESMA AVENIDA CENTRAL, A «MAIN STREET», atravessada
pelas mesmas ruas em esquadria, o mesmo espaço generoso para estacionar o carro, as mesmas fachadas, repetidas segundo um protótipo
único, de cadeias de alimentação, ferramentas, artigos de desporto,
casa e decoração. E saindo deste centro, as mesmas periferias arrumadas por rendimento e raça, as mesmas casas prefabricadas segundo
um modelo preestabelecido, os subúrbios da classe média, média-alta,
média-baixa, os bairros afro-americanos, indianos, coreanos, wasp.
As estatísticas dizem que o cidadão americano muda de
casa, em média, 13 vezes na vida. De cidade, cinco vezes.
De estado, duas e meia. Basta pouco para mudar: um nível
salarial mais alto, uma oferta de emprego, um casamento, uma lei mais favorável mais além para um divórcio. Os
americanos têm o mito nacional dos espaços abertos, da
estrada, do movimento, da mobilidade. Mas têm a nação
que lhes proporciona esse mito. É fácil mudar-se quando se
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v&V
visão vida & viagens abril 2010
gonçalo
cadilhe
reencontra o mesmo que se deixou para trás: a mesma «main street»,
o mesmo subúrbio, a mesma casa prefabricada, o mesmo jantar
precongelado pronto no microondas, o mesmo serão à frente dos
mesmos programas de televisão.
CONHECI A FAMÍLIA DO STEVE EM BANGUECOQUE, companheiros de «pensãozeca». Havia um pátio fresco e arejado que convidava ao encontro, à conversa. Ao conhecimento. Dávamos ambos
uma volta ao mundo, mas viajávamos em direcção contrária: eu seguia
para oeste; o Steve, a Shan e as duas filhas, a Elena e a Maria, seguiam
para leste. «Desde Portland, no Oregon, fomos para Lisboa, Praga,
Budapeste, Istambul, muita Índia e agora seguimos para a Indonésia
e para a China.» As filhas do casal estavam na idade pré-universitária. Elena, a mais velha, tinha acabado de ser aceite e a Maria só teria
mais um ano de liceu. «É o último ano da nossa vida em que vivemos
todos no mesmo tecto», explicava-me Shan, a mãe. Depois, cada uma
na sua universidade em diferentes estados do país; e depois, ainda,
os noivos, os empregos, as portas abertas, enfim, sabe-se lá o que a
vida tem para elas. E Shan concluía. «Decidimos celebrar desta forma
o nosso último ano juntos: com uma volta ao mundo que nunca mais
sairá da nossa memória.»
Steve acrescentou: «Estes tempos são tempos de medo, de intransigência, de inquietação. O nosso país está a fechar-se ao resto do mundo, com a desculpa de que estamos sob ameaça do resto do mundo.
Querem convencer-nos que estamos em perigo. E esta viagem foi uma
forma de contrariar a lavagem cerebral que os noticiários nos fazem
diariamente. Queríamos mostrar às nossas filhas que a diversidade
não significa intolerância nem esconde monstros.»
Steve sabia que daqui para a frente a sua influência paterna diluir-se-ia na voragem das novas companhias, das ambições de carreira,
das diferentes mentalidades, que esperavam as suas filhas. A viagem
pelo mundo como um testamento multicolorido, multirracial, multifonético de uma visão sobre o mundo mais sensata e antiga do que a
que está em vigor no seu país.
Um longo adeus, um até uma próxima oportunidade,
uma mensagem serena e silenciosa que a Elena e a Maria
levarão dentro de si nas suas novas vidas pelas «main
streets», pelas cadeias de restaurantes e lojas de desporto,
pelos serões em frente à televisão num país uniforme e
monocromático em que todos se mudam mas a realidade se
mantém a mesma.
ILUSTRAÇÃO: JOÃO LEMOS
G
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