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11 fev 2015 O Globo ROBERTO DAMATTA Roberto DaMatta é antropólogo
Uma caçada de porcos
Osucesso da minha coluna passada foi tão grande e tão preocupante que eu resolvi continuar falando
das minhas antigas aventuras vividas com os ameríndios no sul do Pará em 1961. Tal como meus pais e
avós, sempre fui citadino. Estes viveram em cidades e nelas morreram sem ter sequer uma casa própria.
Meu pai deixou para mulher e filhos um apartamento.
MARCELO
Quando, aos 14 anos, visitei uma fazenda e, pela primeira vez, montei num cavalo, fiquei
decepcionado ao descobrir que entre o Zorro e eu havia um abismo. Eu custei a subir na sela e não sabia
como comandar o animal. Logo percebi que era o cavalo quem me levava, e não o contrário. Não fosse por
um peão atento, cuja função secreta era vigiar minha incompetência hípica, o cavalo teria imprensando
minha perna contra uma porteira.
Numa Juiz de Fora dos anos 50 ainda encontrei membros de famílias aristocratas que caçavam em
suas vastas fazendas que eu, vinte anos depois, descobriria serem parte das “estruturas” que tinham que
mudar. Mas meu interesse por animais e caçadas se resumia aos livros de Tarzan e aos filmes de
mocinho.
Quando recebi o chamado da Antropologia Social fui transportado com Júlio Cezar Melatti à aldeia do
Cocal, dos índios gaviões, em plena floresta amazônica. Nosso professor, Roberto Cardoso de Oliveira,
achou por bem que na primeira expedição a campo eu tivesse um “assistente de pesquisa" e ele era esse
Melatti, que se entendia com a realidade muito melhor do que eu; e que, posteriormente, realizou uma
obra clássica entre os índios krahó e marubo.
Relendo nossas notas de campo, vejo como suas observações eram mais finas e precisas do que as
minhas. No fundo, o “assistente” era muito melhor do que o suposto curador da pesquisa.
Mas éramos ambos tão ignorantes em caça, pesca, acampamento, lanternas e armas quanto
apaixonados pelo estudo da organização social e pelas ideias de Lévi­Strauss, Evans­Pritchard, Rodney
Needham e David Maybury­Lewis.
Em Antropologia, havia um duro aprendizado chamado de “pesquisa de campo" que implicava
integralmente a pessoa do pesquisador. Numa noite, Roque Laraia, que viajava conosco para pesquisar
um grupo tupi com um outro assistente de pesquisa, o saudoso Marcos Rubinger, estabeleceu comigo o
seguinte diálogo, na pensão da dona Zezé Araújo — única hospedagem de Marabá—, em 9 de agosto de
1961. Um albergue, cuja única latrina a serviço de uns 15 hospedes era significativamente chamada de
“imunda”: — Você foi escoteiro? — Não! — Gosta de caçar, pescar e andar no mato? — Não! — Então o
que é que nós estamos fazendo aqui?
Seguimos para nossos grupos tribais. O entusiasmo juvenil e o ideal de estar contribuindo para a
etnologia brasileira, esses sentimentos irmãos da inocência e da crença segundo a qual ninguém morre
jovem e o mundo é fácil de ser entendido, estavam ao nosso lado nos “motores” que cortavam o
Tocantins.
Cheguei na aldeia do Cocal e depois de ali estar por três dias, no dia 21 de agosto de 1961 fui
convidado por um altivo índio gavião de nome Kanterete, amavelmente chamado de Doidão pelos
regionais, para caçar porcos.
Andamos durante uma hora e o meu anfitrião ouviu os porcos. Eu nada ouvi. Na língua que nos
deixava mais surdos do que ouvintes, ele ordenou a estratégia que deveria ser seguida. Ele andaria na
direção da vara de porcos e eu entraria no mato de modo que os animais ficariam cercados pois iriam
correr em minha direção.
Só que eu não entrei na selva porque fiquei com medo de perder a trilha que me levaria de volta à
aldeia. Vivi uns 30 minutos de plena angústia até ouvir três tiros da espingarda de Kanterete. Em seguida
vi o meu companheiro correndo atrás de um porquinho. Não tive dúvidas: armei nervoso minha
espingarda calibre 12 e atirei no animal quase acertando o índio e a minha própria perna.
Ouvi todos os impropérios que cabiam a um mau caçador. É que Kanterete havia matado dois porcos
adultos e queria o filhote para criar. Já tínhamos porcos suficientes e eu confirmava como os “kupen” —
estrangeiros egoístas e ambiciosos — não prestavam para nada.
Essa caçada de porcos permeou, como comédia, a minha estada entre os gaviões. Naquela noite, tive
um sonho. Sonhei que o Brasil estava sendo comido por uma gigantesca vara de porcos do mato e que
eles, conversando entre si, diziam (confirmando Lima Barreto) que a nossa carne tinha a forma e o gosto
de um presunto.
Meio século e pouco depois, vejo que cometi uma transgressão matando demais e descobri ter tido um
sonho premonitório. Pois o que é essa imensa corrupção governamental senão um incesto? Um
abominável autocanibalismo?
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