Histórias de uma noite de inverno!
Rui Carvalho/2004
O dia tinha sido de amargar! Chuva fina penetrando até os ossos, neblina turvando a visão, um ar tão
denso que podia ser cortado com uma faca e que levava o gelo para dentro dos pulmões, o termômetro
indeciso entre os 2 e os 4 graus negativos, enfim, uma beleza aquele fim de tarde, cinzento e carrancudo!
Só mesmo uma noite quente para amenizar um pouco a sensação de que morávamos no lado errado do
mundo! Mas é assim mesmo, o norte de Portugal não é para quem quer, é para quem pode, dizia meu avô com
aquele ar de sabe tudo que todos os avôs têm e que nunca levamos a sério até ser tarde demais! O norte de
Portugal é para quem agüenta e para quem não tem alternativa melhor, pensava eu enquanto procurava
esquentar as mãos em forma de concha com meu bafo quente.
A situação era realmente deplorável. Eu ali, vestido que nem esquimó, batendo os pés no chão
ritmadamente, que nem soldado soviético em dia de parada, orelhas escondidas num horrível gorro de pele de
carneiro, cachecol protegendo pescoço e queixo, apertado que nem atadura, nariz em algum lugar
desconhecido pois eu não sentia sua presença há mais de hora...enfim, coisa de macho, diriam os mais
empolgados...coisa de masoquista, diriam os mais espertos!
Oh Rui, vestiste as cinco mangas? Perguntava minha preocupada avó sabendo que meu regresso para
casa seria pouco antes do galo cantar! Pode acreditar, não era excesso de zelo da meiga senhora, não fossem
as cinco mangas (camiseta interna de algodão, camisa de flanela, pulôver, casaco de tweed e sobretudo de lã),
seria realmente uma covardia enfrentar aquele tempo do nordeste português!
Mas eu confesso: o pior era ter que conviver com as felpudas ceroulas por baixo das calças! Sem elas, o
frio nas pernas seria tanto que os pêlos, de tão enrijecidos, perfurariam as calças por mais nobres que fossem
os tecidos usados em sua confecção!
Entre outros desconfortos, como a produção de uma área de atrito nada confortável entre a virilha e as
partes íntimas, o maldito artefato ainda transformava o simples ato de urinar numa operação complicadíssima
que exigia um planejamento logístico com alguma sofisticação e demandava um tempo que nem sempre
tínhamos!!! Era um desastre só. Isso sem falar em necessidades menos nobres, com as quais o par de ceroulas
não tinha a menor afinidade, o que acabava, muitas vezes, por decretar a desistência de toda e qualquer
tentativa de ser romântico...erótico!!!
Você ri? Pois é meu amigo, é porque não foi com você! Mas relaxe que não foi para falar de inverno nem
de minhas dificuldades para namorar no frio transmontano que eu resolvi contar mais um causo da minha
infame coleção! A verdade é que, apesar de tudo, eu estava animado naquela tarde. Tinha acabado de ser
contratado para tocar na melhor banda da cidade (isso aos 17 anos parece a coisa mais importante da vida!).
Estava animadíssimo, iria participar do primeiro ensaio naquela noite, pilotando um teclado duplo, yamaha,
com leslie e amplificação exclusiva! Não era pouca coisa, em meus devaneios (devia ser o frio!) eu estava me
sentindo um astro do rock!
Para comemorar, combinei com o Toquim e o Tozé, meus melhores amigos, que iríamos encontrar umas
garotas em Vidago, um povoado a dezoito quilômetros de Chaves, onde morávamos. É que essa distância nos
garantiria certa privacidade, moeda valiosíssima quando se vive numa cidade com pouco mais de 15.000
habitantes.
Por respeito à arte de tocar teclado, vou poupar o leitor da descrição do que foi aquele meu primeiro
ensaio geral, mas enfim, o líder da banda, o Agostinho Gomes, com a sutileza que era sua marca registrada,
comentou com fina ironia: olha cara, como tecladista tu é um excelente paquerador - ele referia-se à outra
arte à qual dedicava boa parte do meu tempo! - mas acho que podemos dar um jeito nisso! Completou
categórico. Bom, mesmo conhecendo pouco da banda, já sabia que o que o Agostinho Gomes falava, era lei.
Quem era eu para discordar?
No começo eu não entendi muito bem onde ele queria chegar, mas aos poucos percebi que aquele tinha
sido o primeiro de uma longa série de demorados e exaustivos ensaios...tudo em nome da perfeição, da
carreira artística que tanto me fascinava. A música, pensava eu com meus botões, ainda me entenderia um dia
tão bem como eu a entendia!!!!
Mas veio a noite e com ela o meu ambiente favorito. Na hora marcada lá estava o Tozé e o Tóquim a
bordo do desafiador Vauxall Viva. O carrão era todo charme, ardiloso que nem decote de mulher! Com os
pneus mais finos que cintura de modelo, mais lisos que pedra de gelo e alto que nem jipe, o carrão era um
convite ao capotamento!
Mas era um carro chamativo, interior de curvim branco, câmbio no volante, banco dianteiro inteiriço sem
divisória, parecia quarto de motel (e às vezes era mesmo!). Parados ali na entrada da rotatória do Raio X (era o
nome do cruzamento, fazer o quê?), na saída para Vidago, afugentavam o frio e a solidão com sôfregos goles
numa garrafa de aguardente mata ratos ( a melhor que os poucos tostões podiam comprar) compartilhada
boca a boca entre risos e piadas!
Não me lembro bem quem estava no volante, a neblina deixava tudo muito confuso, e os vidros,
embaçados, não ajudavam muito. Cheguei pilotando meu Fiat 1500 Cabriolet 1964 Pininfarina, uma raridade
que eu pegava emprestado do meu pai sem que ele soubesse! Fiz sinal com o farol para que eles andassem,
afinal, Vidago e três garotas (ou eram só duas? Bom, deixa pra lá!) nos esperavam.
A cena que presenciei a seguir, mesmo revista daqui, depois de tantos anos, ainda faz um sorriso aflorar
nos meus lábios: de repente vi as luzes traseiras do Vauxall acenderem, ouvi barulho de motor esgoelado, giro
pedindo arrego, e poeira, muita poeira. Iluminei o espaço à minha frente acendendo o farol alto do meu Fiat, e
o que vi me fez gelar ainda mais e precipitar-me porta fora! O Vauxall, depois de um rodopio esquisito, tombou
sobre o lado direito, dando uma cambalhota completa e parando alguns metros à frente, assim meio de lado,
enviesado, mas novamente sobre as quatro rodas, como se nada tivesse acontecido!
Ignorando o frio, corri até a janela esquerda do Vauxall, cujo vidro estava completamente estilhaçado, e
ao enfiar a cabeça para dentro do veículo, não pude acreditar no diálogo que presenciei:
-- Pô Toquim, eu avisei que esta porcaria estava com o pneu murcho cara!!!
-- Pneu murcho?...e esta m... de areia que tem na pista? Cê num viu não?
-- Tudo bem que tinha areia, mas tu também não precisava ter entrado no retorno com esse gás todo,
precisava? Hein? Precisava?
Eu mal podia acreditar que aqueles dois idiotas estavam discutindo o acidente, enquanto apalpavam as
cabeças doloridas e enxugavam um fio de sangue que escorria dos lábios! Era uma cena surrealista! Tentei
interromper perguntando se eles estavam bem, se precisavam de hospital, mas nem me deram atenção, eu
parecia invisível! O papo surreal prosseguia em tom crescente:
-- Eu precisava entrar correndo no retorno? Mas que droga você está dizendo cara?
-- Como assim que droga estou dizendo? Você acelerou tudo, os pistões quase saíram pelo escapamento
e ainda vai me dizer que estava devagar? Pô, você detonou meu carango mano!
-- Cara, ce ficou maluco com a batida? Se liga na fita me irmão, não era eu que estava dirigindo, era
você imbecil!!!
-- Eu? Ô mano, se era eu que estava dirigindo o possante, o que é que você está fazendo sentado
no volante, hein? Hein?
-- Eu no volante? Mas o carango é teu cara! Eu no volante? Perae, e por acaso eu estou no volante? Que
papo é esse de eu no volante? Perae...eu...eu...caraca...eu estou mesmo no volante...que manero!!!
Nesse momento eu comecei a rir como há muito não fazia, ri tanto que nem minhas ceroulas puderam
conter o fluxo (ops)! Não é que os dois estavam tão bêbados que nem sabiam quem estava dirigindo o carro?
Mas aí eu pensei: realmente o carro era do Tozé e ele raramente deixava alguém pilotar, tinha um ciúme
daquele brinquedo que era difícil acreditar que tinha deixado o Toquim dirigir! Justo o Toquim, o maior
detonador de carros da cidade! Por outro lado, o Tozé tinha uma máxima que gostava de declamar com ar
solene quando alguém ousava lhe pedir o carro emprestado: Oh me irmão, carro e mulher não se emprestam a
ninguém!...principalmente o carro, falou?
Foi então que eu percebi que, com o banco inteiriço do Vauxall, a cambalhota repentina àquela
velocidade, e com a ausência de cinto de segurança, talvez os dois tivessem trocado de lugar durante o
movimento de rotação do veículo, gerando toda aquela confusão!
Nada melhor para terminar um dia de inverno cru e cinzento! Pelo menos aqueles dois não estavam com
ar de quem tem frio, e o que era pior, também não estavam com ar de quem iria encontrar umas garotas em
alguns minutos!
O jeito foi procurar acalmá-los antes que saíssem no tapa, tomar um trago da aguardente mata ratos que
sobrevivera ao acidente contra todas as probabilidades, e procurar a turma para contar mais uma aventura
incrível do trio. As garotas? Ora as garotas...elas que esperassem, afinal, se havíamos vivido quase dezessete
anos sem precisar de garotas para nos divertirmos, porquê não agüentaríamos mais uma noite? Ah como eu
era feliz e não sabia!!!
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