ARTIGO
Política social e democracia: reflexões
sobre o legado da seguridade social
* Escola Brasileira de
Administração Pública da
Fundação Getúlio Vargas e Escola
Nacional de Saúde Pública
FIOCRUZ-RJ
Recebido para publicação em
2/10/85
Sonia Maria Fleury Teixeira*
O artigo procura abordar o campo das políticas sociais a
partir do desenvolvimento da cidadania, compreendida
como a pauta de direitos e deveres que se estabelece entre
aqueles aos quais se atribui a condição de cidadão e seu
Estado. Neste sentido, a autora procura demonstrar que as
políticas sociais são intervenções estatais condicionadas pela
demanda existente e pelo contexto histórico no qual
emergem. Desta forma, podem assumir diferentes
modalidades, como a assistência social, o seguro social e o
Estado do Bem-Estar Social. O predomínio de uma ou
outra destas modalidades em cada sociedade, configurou
distintos padrões de intervenção estatal no trato das
questões sociais nos países mais desenvolvidos, que se
diferenciam em função da maior ou menor justiça e
eqüidade dos sistemas prestadores de serviços sociais.
Na América Latina, o desenvolvimento das políticas
sociais enfrentou problemáticas específicas que são
analisadas pela autora.
POLÍTICA SOCIAL E CIDADANIAS
O campo das políticas sociais, embora carecendo de um
maior rigor conceitual, recebe sua melhor definição quando
tratado sob a égide do conceito de cidadania. Assim, as políticas sociais tratariam dos planos, programas e medidas necessários ao reconhecimento, implementação, exercício e
gozo dos direitos sociais reconhecidos em uma dada sociedade como incluídos na condição de cidadania, gerando
uma pauta de direitos e deveres entre aqueles aos quais se
atribui a condição de cidadãos e seu Estado. Esta relação jurídica de reciprocidade inclui, além dos direitos sociais, os
direitos civis e políticos, sendo que, embora cada um destes
elementos tenha tido um curso histórico distinto no seu desenvolvimento, atualmente estão entrelaçados e indissociavelmente vinculados à noção de cidadania 7 .
Com relação às medidas de proteção social que o Estado
implementa através das políticas sociais, há que se reconhecer sua heterogeneidade, já que elas não têm necessariamente o mesmo significado político e jurídico no que diz respeito ao exercício dos direitos sociais. As diferentes formas assumidas pela proteção podem ser separadas a partir do contexto social e político no qual historicamente tiveram origem, desde o surgimento do Estado Moderno. Assim, poderíamos distinguir 21 três modalidades principais: Assistência
Social, Seguro Social e o Estado do Bem-Estar Social. Para
além de sua origem em momentos distintos, trata-se de assinalar que tais modalidades foram marcadas por estes contextos, diferenciando-se também ao nível das relações políticas, jurídicas e institucionais.
As primeiras medidas de proteção social tiveram origem
em um contexto rigidamente liberal, no qual se negava a
necessidade de intervenção estatal nas questões de natureza
social, sob a alegação da eficácia do mercado no trato dos
problemas sociais emergentes. Malgrado a bela construção
teórico-ideológica do liberalismo, o mercado mostrou-se
incapaz de dar conta dos problemas que ele mesmo gerava,
especialmente na esfera da reprodução humana, exigindo assim a crescente intervenção do Estado, tanto na esfera da
produção regulando as relações de trabalho, quanto na esfera da reprodução, através de medidas de proteção social.
As políticas sociais que tiveram origem neste contexto
são conhecidas sob a designação de Assistência Social e
incluíam o reconhecimento de uma necessidade, e alguma
proposta de aliviá-la. Caracterizam-se por assumir que esta
situação de necessidade decorre de um problema de caráter
do necessitado, razão pela qual a assistência é provida em
condições que tentam parcialmente compensar falhas passadas e prevenir contra falhas futuras.
A natureza compensatória e punitiva destas medidas
evidencia-se, por exemplo, na perda de outros direitos inerentes à condição de cidadania (no caso dos menores protegidos pelo Estado), ou em restrições de ordem simbólica
tais como rituais de degradação, atestados de miséria, etc, a
que são submetidas as famílias carentes. Esta condição política de cidadania invertida, em que o indivíduo entra em relação com o Estado no momento em que se reconhece como um não—cidadão, tem como atributos jurídicos e institucionais, respectivamente, a ausência de uma relação formalizada de direito ao benefício, o que se reflete na instabilidade das políticas assistenciais, além de uma base institucional que reproduz um modelo de voluntariado das organizações de caridade, mesmo quando exercidas em instituições estatais.
A segunda forma assumida pela proteção social já é fruto
de um contexto social no qual a classe operária é reconhecida como ator qualificado na ordem política e econômica.
O Seguro Social tem como característica destinar-se à cobertura da população assalariada com a qual se estabelece
uma relação jurídica do tipo contratual: os benefícios são,
em regra, proporcionais à contribuição efetuada, não guardando relação imediata com as necessidades do beneficiário. A participação tende a ser compulsória e, embora restrita a uma parcela da população, é uma relação de direito
social estabelecida com base em um contrato. Trata-se, neste caso, da cidadania regulada19 pela condição de exercício
de uma ocupação oficialmente reconhecida, o que lhe garante a assinatura da carteira de trabalho.
As instituições responsáveis pela prestação dos serviços e
benefícios tendem a ser financiadas com base na contribuição salarial, ademais de aportes específicos do Estado, e
submetem-se a uma lógica de capitalização de suas reservas.
Essa forma de proteção envolve questões de eqüidade,
justiça social e redistribuição de renda entre a população beneficiária. Por outro lado, perpetua a iniqüidade do sistema
produtivo, ao excluir da proteção exatamente os grupos
mais necessitados que são os que estão à margem do mercado formal urbano de trabalho.
Finalmente, o Estado do Bem-Estar Social rompe com
as concepções de proteção social com base na evidência da
necessidade ou no contrato firmado, e propõe uma relação
de cidadania plena, na qual o Estado está obrigado a fornecer a garantia de um mínimo vital a todos os cidadãos, em
relação à saúde, educação, pensão, seguro desemprego, etc.
O Estado do Bem-Estar Social baseia-se em uma relação de
direito social inerente à condição de cidadania e, do ponto
de vista institucional, implica uma organização nacional da
política social, na qual o Estado assume os ônus básicos da
administração e financiamento do sistema. Trata-se de um
projeto de redefinição das relações sociais em direção à redistribuição da renda e, portanto, à eqüidade e justiça social
para toda a sociedade.
Conhecidas as três modalidades de proteção social, restaria esclarecer que o fato de terem tido origem em momentos históricos sucessivos não quer dizer que este processo se
assemelhe a um contínuo em uma espiral ascensional de
evolução da política social rumo à cidadania plena, cada
nova forma destruindo as que lhe precedem. Ao contrário,
quero demonstrar a sobrevivência e concomitância das três
formas descritas de política social, embora a convivência
nem sempre se dê sem conflitos e contradições.
Estudiosos afirmam3 que a assistência aos pobres do século XIX permanece até hoje para o exército industrial de
reserva, enquanto o Seguro Social cobre os trabalhadores
engajados no mercado formal de trabalho, e este anacronismo é uma função de classe.
Outro ponto que parece ser crucial para a compreensão
da relação entre as modalidades de política social é o predomínio do seguro social como estrutura medular de toda a
política de proteção, de tal forma que se possa afirmar que
as outras modalidades a ele se acoplam contraditória ou
complementarmente. A comprovação desta nossa hipótese
pode ser encontrada em distintas evidências em face de contextos sócio-econômicos diferentes: seja pela tendência histórica de manutenção de altos índices de emprego apresentada até recentemente pelos países desenvolvidos, fazendo
com que a estrutura do seguro coincidisse com a do estado
do bem-estar, seja, ainda, no caso inverso, relativo aos países de desenvolvimento dependente e retardatário, onde a
única política social efetiva é a do seguro, colocando todos
os que estão fora do mercado formal na condição de précidadãos.
No caso brasileiro, o que tenho demonstrado21 é a existência das três modalidades apontadas, sob a mesma base
institucional previdenciária, seja pela incorporação das instituições assistenciais no sistema previdenciário, seja pela tendência à progressiva integração dos serviços de assistência
médica, seja ainda pela existência de benefícios que rompem a estrutura contratual do seguro, tais como o Funrural,
renda mensal vitalícia, abono, etc. Esta base institucional
securitária tem-se mostrado inadequada para abranger desde
medidas assistenciais até a extensão da cidadania plena, já
que tais incorporações não corresponderam à redefinição
dos mecanismos de financiamento e gestão do sistema. Tal
inadequação evidencia-se de forma dramática nos momentos de crise financeira do sistema, nos quais volta-se sempre
a defender o caráter contratual exclusivo dos benefícios
previdenciários, ameaçando-se com o corte de outros benefícios que, mal ou bem, são frutos da conquista de toda a
sociedade em direção a uma política social mais equânime.
Assim, já que os demais programas são sempre considerados
como um hóspede indesejável, dependendo do ciclo financeiro de ascenso ou descenso da Previdência Social, fica evidente que a superposição institucional não representou
uma homogeneização da condição de cidadania, preservando o caráter político inerente a cada modalidade assinalada. Se é correto tomarmos a análise das políticas sociais a partir do eixo central da estrutura previdenciária,
esta abordagem coloca duas ordens de questões que merecem ser tratadas integralmente, sem que a urgência de solucionar uma delas implique abandonar a outra a sua própria
sorte.
A primeira delas é a questão de ordem política, de redefinação da política social à luz dos princípios de eqüidade e
justiça social, de sorte que se busque a universalização da
condição de cidadania a todos os brasileiros. Não haveria
melhor momento de redefinirmos a relação de reciprocidade existente entre Estado e cidadãos, reformulando ampla e
uniformemente a pauta de direitos e deveres inerentes a esta
relação, senão aquele em que a sociedade brasileira se debruça em torno da reordenação das relações políticas e sociais, através da elaboração de uma Constituição que consolide o processo de transição democrática.
Está cada vez mais claro, tanto para a população brasileira quanto para seus dirigentes, que a estabilidade da transição política será dada na medida em que o novo sistema democrático incorpore efetivamente as demandas sociais.
A segunda ordem de questões envolvidas diz respeito aos
mecanismos de financiamento, à autonomia institucional,
modelos de gerência e a diversos outros problemas técnicoatuariais e de administração dos serviços e concessão de benefícios. Todas estas questões foram agudizadas face a crise
financeira do sistema e a conjuntura recessiva que atravessa
o país, já que funcionam como limites à capacidade de oferecer soluções alternativas.
Embora estes últimos problemas sejam bastante dramáticos neste momento, não se deve negligenciar a necessidade
de repensar a política social em geral, com vistas a oferecer
proposições à Assembléia Constituinte, limitando-nos a solucionar as falhas do sistema atual sem que este próprio sistema venha a ser objeto de transformações. Por outro lado,
não se pode cair no erro oposto que consistiria em definir
princípios doutrinários compatíveis com a redemocratização da sociedade, sem pesquisar os mecanismos de operacionalização desta política.
DOIS MODELOS CLÁSSICOS DE PREVIDÊNCIA
SOCIAL
O primeiro sistema de seguro social foi criado por Bismarck na Alemanha, compondo-se de três seguros compulsórios: o seguro saúde (1883), o seguro de acidentes (1884)
e o seguro de velhice e invalidez (1889).
Diversos autores 1 , 2 , 1 8 têm procurado explicar o surgimento de um sistema de proteção social tão avançado num
dos países que mais tardiamente deu início ao processo de
industrialização e transição do feudalismo ao capitalismo,
quando outros países europeus que lideravam o desenvolvimento industrial sequer pensavam em um projeto equivalente. Estes estudos tem convergido para encontrar no próprio
atraso da Alemanha o fundamento de sua iniciativa pioneira, e mesmo as características centrais do seguro social ali
implantado. Isto porque a transição retardataria realizada
pela Alemanha não se fez sob a hegemonia de uma burguesia liberal revolucionária, mas sim através de uma coalização
entre as classes dominantes do velho e do novo modo de
produção, construída a partir de uma decisiva intervenção
do Estado na sociedade. Assim, ao invés de uma revolução
burguesa, houve mais bem uma modernização conservadora,
que não rompeu com o padrão de relações de autoridade
tradicional.
Neste sentido, a concepção feudal na qual prepondera o
binômio que troca proteção por dependência foi de certa
forma preservado, só que agora a proteção social passava a
ser fornecida pelo Estado.
Fica assim explicado por que o projeto do seguro social
não se originou no seio da classe operária alemã, altamente
politizada, mas sim na burocracia estatal, recebendo a oposição veemente do movimento operário e o apoio dos partidos conservadores. O seguro social foi assim criado como
um instrumento de cooptação de setores da classe operária,
de forma a diminuir o seu potencial revolucionário.
Este contexto vai imprimir uma marca fundamental no
sistema do seguro social alemão que se revela na sua estrutura interna e na sua doutrina. Com relação à doutrina,
assume-se como filosofia central do sistema a manutenção
do status econômico do indivíduo durante sua vida laboral
ativa, preservando através do seguro esta mesma condição
em um momento de necessidade. A operacionalização deste
princípio doutrinário encontrou no modelo do seguro privado a sua melhor inspiração, já que os benefícios a serem auferidos pelo segurado são proporcionais à sua contribuição
pretérita para o sistema. Além disso, os direitos sociais assim adquiridos são restritos àqueles cidadãos que, por sua
inserção no mercado de trabalho, são compulsoriamente
vinculados ao sistema de seguro.
Resumindo, podemos dizer que as principais características do Seguro Social são:
Quanto ao financiamento: contribuições dos empregados, dos empregadores e uma parcela menor do Estado, destinada a administração.
Quanto à administração: comitês corporativos com representação de empregados e empregadores sob o controle
estatal, refletindo a concepção do Estado como árbitro no
conflito entre as classes.
Quanto aos benefícios: diferenciados de acordo com a
contribuição anterior, isto é, um direito contratual restrito
àqueles que podem vincular-se ao sistema.
Quanto ao regime de reservas: regime de capitalização
que se baseia no conceito individual4 de formação de um
capital mediante poupança para se desfrutar no futuro de
suas rendas. A avaliação deste sistema se faz em termos de
sua viabilidade financeira com base em técnicas atuárias e
não em termos de valores socialmente definidos.
O modelo do Seguro Social apresenta alguns problemas
que devem ser aqui apontados:
- O princípio doutrinário adotado, de preservação do
status econômico do indivíduo, faz com que o sistema de
seguro se torne um poderoso mecanismo de perpetualização
das desigualdades geradas ao nível do mercado de trabalho.
- Os direitos sociais são garantidos apenas para uma parcela da classe trabalhadora que quase sempre não é a mais
necessitada.
- Permite uma incorporação diferenciada das demandas
sociais em função da estratificação ocupacional e da força
política de cada grupo, levando quase sempre à existência de
múltiplas instituições com benefícios desiguais. Os benefícios são recebidos como privilégios diferenciais e não como
direitos sociais.
- Não geram um compromisso do Estado de garantir o
gozo dos direitos sociais, mas sim de administrar o sistema.
- O regime de capitalização só é viável quando restringido a um grupo pequeno, no início do sistema de seguro,
e quando há uma situação de estabilidade de preços. Em
condições altamente inflacionárias, tende a haver uma erosão das reservas.
O segundo modelo clássico da Previdência Social originou-se na Inglaterra depois da Segunda Guerra e inspirouse no Relatório de Lord Beveridge, dando origem ao Welfare State (Estado do Bem-Estar Social). Em sua doutrina,
assume a condição de cidadania como universal, independentemente, portanto, da inserção no processo produtivo ou
de contribuições ao sistema, sendo dever do Estado garantir
um mínimo vital aos seus cidadãos.
A Lei de Educação, a Lei do Seguro Nacional e a Lei do
Serviço Nacional de Saúde, da década de 40, constituíramse nos pilares do Estado do Bem-Estar Social, cujos mecanismos básicos foram a existência de um plano de seguro
contributivo, compulsório e universal; a prestação de contribuições e benefícios de valores fixos ao nível de subsistências, e a suplementação deste mínimo por poupança voluntária8 .
As reservas deste sistema de seguridade social são manipuladas pelo regime de repartição, mais adequado às seguridades sociais avançadas e com ampla cobertura, onde o
Estado assume compromissos para o futuro em relação aos
direitos dos beneficiários. A avaliação do sistema, neste caso, é feita em termos de projeções demográficas e econômicas de longo prazo, além dos compromissos políticos assumidos pelo Estado e que devem corresponder à sua participação decisiva no financiamento da seguridade 4 .
Este modelo adequar-se-ia a uma política econômica de
corte Keynesiano, que supunha o pleno emprego garantido
pela intervenção estatal na economia como condição da eficiência do Estado de Bem-Estar Social, ao mesmo tempo
em que o próprio sistema de serviços sociais constituir-se-ia
em poderoso instrumento para implementação desta política de emprego. Além da pressuposição do pleno emprego,
a adoção deste modelo implicava que o Estado assumisse
em grande parte os custos do sistema, já que as contribuições individuais mínimas não dariam para cobrir encargos
tais como saúde e o cuidado infantil.
O Welfare State é até hoje o modelo mais avançado de
Previdência Social nos países capitalistas ocidentais, e sua
origem encontra explicações no fato de ser, ao contrário do
caso alemão, uma conquista de uma classe operária reformista, em dois séculos de luta contra o pensamento hegemônico da burguesia liberal. Assim, quando o Partido dos
Trabalhadores chegou ao governo, tratou de consolidar a cidadania como uma conquista social. Por outro lado, este
momento coincidiu com uma nova etapa da produção, em
bases monopolizadas, que requeria um trabalhador em condições mais hígidas. Outro fator importante foi a reformulação do estado capitalista em busca de novas estratégias
legitimadoras no pós-guerra, já que tanto a proposta comunista quanto a fascista minaram as bases da solidariedade da
classe trabalhadora à democracia liberal.
Independentemente do modelo adotado, se o Seguro Social ou o Welfare State, a crise econômica mundial, aliada
ao envelhecimento dos sistemas, tem sido responsabilizada
pela crise por que passa atualmente a previdência social européia. Esta crise é o resultado de alterações econômicas e
demográficas que os responsáveis pela planificação social
não poderiam antever nos tempos de prosperidade que se
seguiram ao pós-guerra. Esperanças de vida mais longa fazem subir os custos dos cuidados de saúde e das pensões de
velhice, enquanto que um declínio da taxa de natalidade
está sobrecarregando com impostos cada vez mais elevados
os trabalhadores que têm de suportar um sistema cada vez
mais dispendioso. As competições comercial e industrial do
Japão e Estados Unidos corroeram a prosperidade européia,
sendo cada vez maior o número de desempregados que vão
sobrecarregar os orçamentos do fundo de desemprego e das
pensões de invalidez.
Fica cada dia mais clara a complexa relação entre a Previdência Social e desenvolvimento, entendido não apenas
como crescimento econômico, mas também pela sua orientação por uma melhor distribuição e redistribuição da riqueza social. A crise atual não se alterará enquanto as velhas
indústrias européias continuarem em declínio e o desenvolvimento econômico for regredindo dia-a-dia. No entanto, os
governos europeus buscam através de diversas medidas paliativas enfrentar a crise do estado-providência. Na Alemanha, o governo tem subsidiado a repatriação dos emigrantes
com o objetivo de diminuir o número de dependentes do
sistema previdenciário. Já o governo conservador inglês tem
propalado sua intenção de cortar benefícios para diminuir
os custos do sistema, sendo que, na prática, tem ocorrido
o contrário, ou seja, o aumento anual do gasto público
com o sistema previdenciário, que hoje representa cerca de
30% de todos os gastos públicos. Recentemente, o governo
britânico divulgou um documento intitulado Green Paper,
onde consolida sua proposta de reversão do Welfare State
para o modelo de seguro social, em um prazo previsto de
15 anos, a ser iniciado em 1987, caso conseguisse demover a
ferrenha oposição que se generalizou contra a reforma proposta.
PROBLEMAS DA SEGURIDADE SOCIAL NA AMÉRICA
LATINA
Entre os técnicos de seguridade social, há muito estabeleceu-se um consenso, em grande parte decorrente da influência exercida no meio pela Organização Internacional do Trabalho, em torno da melhor forma de organização do sistema
previdenciário, que estaria dado pela adoção de três conceitos centrais: universalidade, unificação e uniformidade,
A universalidade refere-se ao objetivo de extensão da cobertura previdenciária a toda a população, sem distinções entre
trabalhadores rurais e urbanos, engajados no mercado formal ou no informal, ou mesmo entre alguns poucos grupos
de trabalhadores urbanos considerados estratégicos econômica e politicamente para o desenvolvimento do país. O
princípio da universalidade orientaria a extensão da cobertura em um sentido horizontal, com absorção cada vez
maior de novos grupos ao sistema, e não em um sentido
vertical, com mais e melhores benefícios para os grupos já
cobertos pelo mesmo. O conceito de unificação ou centralização pressupõe tanto uma administração mais eficiente
e de menor custo, quanto visa a aumentar a eqüidade interna ao sistema, já que se supõe que a unificação precede a
uniformização. Neste sentido, a unificação deveria acabar
com a existência de sistemas de seguros distintos por cate-
goria ocupacional de operários ou de seguros específicos
para militares, funcionários públicos etc.
Finalmente, o princípio da uniformidade reforça a noção
de eqüidade, ao pressupor uma única regra a respeito das
contribuições e benefícios. A operacionalização deste princípio pode ser feita de várias formas distintas, seja pelo
estabelecimento de uma contribuição mínima e de um ingresso mínimo por beneficiário (caso inglês), seja pelo cálculo do benefício como uma porcentagem da contribuição
pretérita de cada beneficiário (caso alemão), seja por um
sistema misto, com a definição de um mínimo geral ao qual
se sobreponha um adicional, calculado em proporções decrescentes, quanto maior for o correspondente ingresso
ativo (método adotado na Costa Rica)4.
À simples enumeração dos três princípios centrais de
previdência social moderna podemos imediatamente constatar quão distante está a América Latina do modelo ideal
formulado. Alguns dos problemas centrais da seguridade
social na América Latina são apontados pelos estudiosos do
tema 6 , 1 2 , 1 4 :
- DESIGUALDADE NA COBERTURA
Na maioria dos países do continente, as pessoas mais
necessitadas, que se encontram abaixo da linha de pobreza
crítica, não estão cobertas pela seguridade social, seja por
que se encontrem desempregadas, subempregadas, seja por
serem trabalhadores eventuais, ou que desempenhem ocupações não abrangidas pelo sistema. Segundo cálculos da
CEPAL, em 1976, cerca de 35% da população da América
Latina situavam-se abaixo da linha de pobreza crítica, e estima-se que, neste mesmo ano, mais de 64% da PEA não estavam cobertos pelos sistemas previdenciários.
O esforço feito por alguns países no período mais recente, no sentido de estender a cobertura a grupos de trabalhadores anteriormente excluídos do sistema, não alcançou resultados expressivos, na medida em que os custos da filiação à previdência são tão altos relativamente à renda dos.
trabalhadores inseridos na economia informal que se torna
proibitivo o exercício deste direito.
Por outro lado, a distribuição desigual dos serviços, especialmente no caso da assistência médica, faz com que o segurado das regiões mais carentes custe ao sistema muitas
vezes menos que um outro das regiões mais desenvolvidas.
A crise econômica acirrou drasticamente este problema,
na medida em que a queda do Produto Interno Bruto da
região e as medidas políticas recessivas adotadas pelos governos para enfrentarem o desaquecimento da economia
implicaram a acelerada expansão dos índices de desemprego em praticamente todos os países. As alterações no mercado de trabalho refletiram-se imediatamente sobre os níveis de proteção social, como, por exemplo, no caso do Brasil, onde, em 1976, 61,27% dos empregados possuíam carteira de trabalho assinada — condição para o recebimento
de vários benefícios — enquanto que, em 1983, este percentual caiu drasticamente para 52,78% 11 .
O problema da baixa cobertura previdenciária incide,
ademais, sobre a possibilidade dos cidadãos latino-americanos terem acesso a serviços sociais, cujo gozo é responsabilidade do Estado, como no caso da proteção à saúde, já
que é um fenômeno bastante generalizado a concentração
dos recursos públicos para saúde quase que exclusivamente nos sistemas previdenciários, como demonstra a tabela 2:
- REDISTRIBUIÇÃO DE RENDA
Como grande parte dos sistemas previdenciários latinoamericanos são compostos de múltiplos seguros, diferenciados por categorias ocupacionais, caracteriza-se uma situação de estratificação da seguridade social13, que se cristaliza ao nível da participação estatal em cada um dos seguros: se cada grupo houvesse financiado por si mesmo seu
sistema de proteção, a pirâmide da seguridade social teria
se limitado a reproduzir a pirâmide do ingresso. Mas os grupos mais poderosos conseguiram maiores aportes do Estado, dos empregadores, que os grupos de menor poder. Por
exemplo, os militares conseguiram, em alguns países, que
o Estado financiasse praticamente todo o sistema; os empregados públicos, que o Estado tomasse a seu cargo os
déficits crescentes, e alguns profissionais ou sindicatos poderosos conseguiram que se criassem impostos especiais (sobre a produção ou serviços ligados ou não à sua atividade)
que engrossaram seus fundos12.
Em 1974, os ingressos da seguridade social distribuíamse assim: (ver tabela 3 na pág. 412)
Mesmo em países com sistemas previdenciários unificados, a uniformização não é total, agravando a regressividade apontada, como no caso do Brasil, onde o Estado financia 2/3 das previdências complementares das empresas estatais, com o objetivo de proporcionar um salário indireto aos
seus executivos.
Além disso, a iniqüidade para com os que estão excluídos do sistema é aumentada pelo fato de que, indiretamente, todos os cidadãos contribuem para o financiamento do sistema, já que pagam impostos ao Estado e consomem produtos para cujos preços foi repassado o ônus do
empregador com a previdência16. Internamente ao sistema, a concessão dos benefícios tende a aumentar a iniqüidade, já que, por exemplo, as aposentadorias por tempo
de serviço e por velhice só atingem a parcela mais bem aquinhoada dos trabalhadores. Perversamente, o sistema brasileiro tem como seu benefício mais democrático a aposentadoria por invalidez, que atinge amplamente os trabalhadores mais pobres e suscetíveis aos azares de um proces-
so de desenvolvimento de cunho selvagem Veja-se a tabela
4 a seguir:
- ESTADO, DESENVOLVIMENTO E PREVIDÊNCIA
SOCIAL
Os sistemas previdenciários latino-americanos sempre foram um dos instrumentos importantes na legitimação política dos Estados, sendo, portanto, os benefícios concedidos
com objetivo de alcançar apoio político de algumas frações
da classe trabalhadora. Os estudiosos do tema identificam
dois fatores fundamentais na origem e evolução dos sistemas previdenciários atribuem a este fator as características
mesmas do sistema: os grupos de pressão e a burocracia estatal. Aqueles que enfatizam o papel dos grupos de pressão
como fator predominante na evolução de um sistema de seguridade social estratificado chamam a atenção para o fato
de que quanto mais poderosos os grupos (militares, funcionários públicos, certas frações da classe operária), mais e
melhores benefícios obtiveram e menor foi sua contribuição ao sistema. Neste caso, os partidos políticos e a burocracia estatal participaram da definição do modelo de proteção social, mas sempre de forma secundária à atuação dos
grupos de pressão.
Outros autores enfatizam especialmente o papel do Estado em mãos de elites governamentais que, embora respondendo a pressões de grupos sociais, foram os responsáveis
por oferecer uma resposta seletiva e altamente política a essas demandas. Assim, os programas de seguros sociais constituíram uma forma de acomodação corporativista de grupos sociais emergentes, particularmente dos trabalhadores
nos modernos setores capitalistas da economia10.
Em qualquer das vertentes explicativas, o que se quer enfatizar é a ausência de um corpo doutrinário e de mecanismos institucionais eficientes, que reflitam o reconhecimento dos direitos sociais a partir de uma definição social da cidadania universal.
Os dois períodos mais marcantes na história das políticas
previdenciárias nos países latino-americanos do cone sul estão determinados pela vigência de governos populistas e sua
posterior substituição pelas ditaduras militares20. No caso
dos regimes populistas, houve uma crescente politização das
relações sociais, sendo que o mecanismo institucional previdenciário foi fundamental na cooptação de setores trabalhistas ao projeto estatal, ao mesmo tempo em que funcionaram como canal eficiente de escoamento da demanda política e social de tais grupos.
O resultado deste processo foi a criação e consolidação
de sistemas previdenciários fragmentados, iníquos e pouco
abrangentes, embora tenha de se reconhecer que, mesmo assim, representaram um avanço significativo nas condições
de vida da população trabalhadora coberta pelo sistema.
Os governos militares autoritários também utilizaram a
Previdência com vistas à sua legitimação política e maior
adequação às demandas capitalistas, o que se observa na extensão da cobertura ocorrida neste período. No entanto, o
uso político neste momento implicou uma desmontagem em maior ou menor grau, de acordo com a resistência encontrada — do sistema previdenciário enquanto mecanismo
de realização da política populista.
Assim, os processos de centralização - com ou sem unificação - e exclusão dos beneficiários do processo decisório foram decisivos para se obter esta ruptura. A principal
característica do sistema no período autoritário radica-se,
no entanto, nas diversas formas de privatização do sistema
previdenciário, de forma a se tornar um elemento importante no processo de acumulação de Capitais.
O problema da relação do Estado com as reservas previdenciárias sempre foi crucial, determinando em grande parte a falência atual dos sistemas, já que, por diversas vezes,
o Estado lançou mão dos fundos da Previdência (em toda
América Latina) para subsidiar projetos do seu interesse e
de setores do capital. Além disso, a baixa ou quase ausente
contribuição estatal ao sistema sempre entrou em contradição com as necessidades políticas de legitimação de governos, através da progressiva incorporação de novos setores ao
sistema ou mesmo da melhoria dos benefícios. Assim como
o desenvolvimento político latino-americano, ao afastar-se
do modelo social-democrata, imprimiu características próprias aos nossos sistemas previdenciários, também a modalidade de desenvolvimento econômico dependente, associado
e retardatário, incide diretamente sobre a problemática,
agravando-a, por um lado, e limitando sua possibilidade de
expansão, por outro lado. O crescimento econômico na
América Latina tem-se caracterizado pelo fenômeno da urbanização rápida e concentrada, acompanhada da transformação dos padrões de consumo citadinos, sob a influência
dos setores de mais alta renda, e pela incapacidade dos setores dinâmicos da economia oferecerem empregos que absorvam a população urbana, levando à formação e crescimento
de camadas da população situadas de forma dita marginal,
seja em relação à inserção no mercado de trabalho, seja em
relação à moradia, consumo e participação política9.
Esta problemática não decorre de uma etapa do desenvolvimento, mas sim da estrutura mesma do processo de desenvolvimento dependente, cuja industrialização fez-se desde o início de forma monopolizada e com tecnologia altamente concentradora de mão-de-obra. Desta maneira, a industrialização periférica não generaliza as relações capitalistas, como ocorreu nos países centrais, mas, perversamen-
te, recria a cada momento relações atrasadas como o artesanato, indústria caseira, o trabalho por conta própria, em
estreita dependência e associação ao próprio fenômeno da
industrialização.
Neste sentido, também a nossa política social terá necessariamente que diferir dos modelos desenvolvidos nos países
centrais, cujo pressuposto inicial é o desenvolvimento econômico com tendência ao pleno emprego, baixo nível inflacionário, etc,
Por outro lado, o processo de industrialização levado a
cabo entre nós caracterizou-se por seu caráter excludente
em relação às necessidades dos trabalhadores, de tal forma
que se fala do capitalismo selvagem, para indicar o desrespeito às condições mínimas de segurança do trabalho e garantia de manutenção e reprodução da força de trabalho.
Este problema incide diretamente no sistema previdenciário, ao provocar um envelhecimento precoce do sistema. Os
elevados índices de aposentadoria por invalidez no Brasil
têm sido responsabilizados 16,17 pelo alto índice de dependência entre contribuintes e beneficiários, da ordem de
1/2,74 em 1981, o que é comparável ao envelhecimento natural dos sistemas europeus. Finalmente, outro problema
freqüentemente apontado é o relativo ao financiamento da
Previdência incidir basicamente sobre o fator trabalho, onerando-o de tal forma, que acabaria contribuindo, em alguma medida, para o aumento do nível de desemprego nas sociedades latino-americanas.
The article tends to approach the social political field
from the citizenship development. As it is understood the
roll of the rights and duties is established among the
citizens whose condition is confered. In this way, the
author tries to show that the social politics are state's
interventions conditioned by the existent necessity and
from the historical context in which they arise. Thus, they
can assume different forms such as the social assistance,
social security and the state social welfare. The
predominancy of either one of these forms in each society
has shaped different models of state's intervention refering
to the social questions, in more developed countries which
differ according to the major or minor justice and
impartiality of the social services advantageous systems. In
Latin America, the development of social policies faced
specific problems that are analysed by the author.
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Política social e democracia: reflexões sobre o legado da