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PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO- MESTRADO
ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM EDUCAÇÃO
Juliana HollerbachBehr
DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS
POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Santa Cruz do Sul
2014
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Juliana HollerbachBehr
DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS
POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós- graduação em educação - mestrado,
área de concentração em educação, linha de
pesquisa em identidade e diferença na
educação, universidade de Santa Cruz do sul
- UNISC, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em educação.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª BetinaHillesheim
Santa Cruz do Sul
2014
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Juliana HollerbachBehr
DISCURSOS SOBRE INFÂNCIA NOS PROJETOS
POLÍTICOS PEDAGÓGICOS DE EDUCAÇÃO INFANTIL
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós- graduação em educação - mestrado,
área de concentração em educação, linha de
pesquisa em identidade e diferença na
educação, universidade de Santa Cruz do sul
- UNISC, como requisito parcial para a
obtenção do título de mestre em educação.
Dr.ª BetinaHillesheim
Professora Orientadora – UNISC
Dr Cláudio José de Oliveira
Professor Examinador – UNISC
Dr.ª Sandra Regina Simonis Richter
Professora Examinadora – UNISC
Dr.ª Maria Carmen Silveira Barbosa
Professora Examinadora – UFRGS
Dr.ª Sandra DjambolakdjianTorossian.
Professora Examinadora – UFRGS
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AGRADECIMENTOS
Sonho almejado, sonho conquistado!
Da idealização do meu sonho até hoje, na concretização, levou algum tempo.
Mas, graças a minha persistência e a motivação de alguns amigos, cheguei até aqui.
Foi em Santa Cruz do Sul, na figura do Professor Dr. Felipe Gustsack, que
esse sonho começou a se tornar realidade. A ele gostaria de estender meu respeito e
eterno agradecimento, pois com sua acolhida pude vislumbrar o inicio de uma nova
caminhada.
Ao ser recebida como aluna especial pelo Professor Dr. Claudio José de
Oliveira, que em nenhum momento deixou de exigir mais ou menos de nós, alunos
especiais, fui presenteada com as primeiras escritas que me auxiliaram a constituir
meu projeto de pesquisa para o processo seletivo de 2012. Sua contribuição foi de
extrema relevância para que eu pudesse colher os frutos que agora estou colhendo.
Muito obrigada é pouco para expressar meu carinho e admiração pelo seu trabalho.
Ingressada como aluna regular do Curso de Pós-Graduação – Mestrado em
Educação da UNISC – mais uma surpresa me foi concebida quando recebi o convite
da minha atual orientadora, Professora Dra. Betina Hileishein, para trabalhar com a
temática na qual essa dissertação discute como proposta de investigação: a infância.
Durante as suas aulas e nos momentos de orientação, seus ensinamentos foram
muito
gratificantes,
principalmente,
no
que
tange
aos
“conceitos”
estudados/analisados por Michel Foucault. Sua imensa experiência/conhecimento em
relação a esse filósofo, fomentou ainda mais o meu desejo para compreender a
sistemática de pensamento do autor frente aos movimentos que foram e estão sendo
constituídos pela/na educação na atual conjuntura histórico-social.
À Paula Scremim Xavier (Paulinha), Fernanda Zanette e Juliana Campos,
meu muito obrigada pelo companheirismo e apoio dedicados para me estabelecer em
Santa Cruz do Sul/RS.
À minha colega e parceira de orientação, Maria da Glória Munhoz, sou grata
pela sua amizade e coleguismo em todos os momentos que estivemos juntas.
Aos meus colegas de linha de pesquisa e das outras linhas que compõem o
curso de Mestrado da UNISC, obrigada pelo tempo em que convivemos e, mesmo
depois de separados, grata pelo apoio de cada um.
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Não poderia deixar de fazer um agradecimento especial à Secretaria de Pósgraduação – Mestrado em Educação na pessoa de Daiane Maria Isotton, pelo seu
carinho e atenção a cada momento em que íamos buscar informações, solicitar algum
documento ou material e refazer a matrícula. Sou grata pelos calorosos abraços que
recebi de ti!
A Deus, por me dar forças para continuar lutando por um ideal de vida. Pelas
inspirações e aspirações para me tornar uma pessoa cada vez melhor, comigo mesma
e com os outros.
À minha família e minha filha Julia. Por último? Sim! Nesse caso, deixei minha
família por último porque são muitas as emoções para serem expressas, sobretudo
pelo que eles fizeram para me auxiliar nessa empreitada, por vezes deixando de lado
seus próprios afazeres em prol dos meus estudos. Aos meus pais, minha gratidão
pelo incentivo de buscar essa condição de Mestre em Educação e pelo apoio em todos
os momentos em que cuidaram da Julia para eu poder me dedicar à minha escrita.
Muito obrigada são duas palavras pequenas para transmitir todo o meu amor por
vocês e aqui incluo os meus irmãos, Cris e Paulo. A vocês, meus irmãos, obrigada
por me apoiarem em todos os momentos da minha vida.
E a ti, Julia, agradeço pela compreensão e paciência que teve comigo, pelas
noites mal dormidas e pelas vezes em que ficava sozinha, assistindo TV, para que eu
pudesse estar concentrada no meu trabalho. Eu tenho tanto pra ti falar, mas com
palavras, não sei dizer, como é grande o meu amor, por você! (Roberto Carlos) E vou
parar por aqui, porque já estou emocionada demais!!!
Muito obrigada, minha família querida!!!
Amo demais todos vocês!!!!
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“Todo conhecimento começa com o sonho. O sonho nada
mais é que a aventura pelo mar desconhecido, em busca
da terra sonhada. Mas sonhar é coisa que não se ensina,
brota das profundezas do corpo, como a alegria brota das
profundezas da terra. Como mestre só posso então lhe
dizer uma coisa. Contem-me os seus sonhos para que
sonhemos juntos.”
(Rubem Alves)
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RESUMO
Essa dissertação de Mestrado tem como proposta de pesquisa analisar as principais
ideias produzidas pelos documentos oficiais de três escolas de educação infantil
pertencentes ao município de Santa Maria/RS sobre a questão da infância.
Constituída ao longo do tempo como uma verdade cristalizada, naturalizada pelas
políticas públicas vigentes, esse trabalho propõe discutir outras perspectivas de
infância articuladas aos movimentos históricos, sociais e culturais. Partindo da análise
dos Projetos Políticos Pedagógicos das Escolas de Educação Infantil para produção
dos dados, pontua-se que, a maioria dos enunciados que configuram os projetos
políticos pedagógicos das instituições analisadas, são sustentados por uma vertente
discursiva na qual a infância é constituída como uma fase, período ou etapa do
desenvolvimento humano. Observa-se um investimento na criança como material dos
sonhos políticos, apresentando-as cada vez mais cedo à escola para tornar-se um
cidadão promissor na/para a sociedade, entrelaçando-se as figuras de aluno e
criança. Nesse sentido, entende-se que as ideias sobre infância, principalmente, no
âmbito da educação escolar, buscam instituir o fortalecimento de um ideal político,
econômico e social a respeito das crianças.
Palavras–chaves: Infância, Criança, Projetos Políticos Pedagógicos.
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ABSTRACT
This Master degree dissertation has as research proposal to analyze the main ideas
produced by official documents of three schools of childhood education, belonging to
the city of Santa Maria / RS, concerning the issue of childhood. Constituted over time
as a crystallized fact, naturalized by existing public policies, this study proposes to
discuss other perspectives of childhood articulated to the historical, social and cultural
movements. Parting from the analysis of the Pedagogical Political Projects of the
Childhood Education Schools to produce data, it was pointed out that most of the
statements that set the pedagogical political projects of the institutions analyzed were
sustained by discursive strand in which childhood was constituted as a phase, period
or stage of the human development. An investment in children as material of the
political dream was observed, introducing them earlier and earlier to school to become
promising citizens in / for society, interlacing the figures of student and child. In this
way, it was understood that the ideas about childhood, especially in the field of school
education, seek to establish a strengthening of a political, economical and social ideal
regarding children.
Key Words: Childhood, Child, Political Pedagogical Projects.
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SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ......................................................................................................... 9
2 CARA OU COROA? VARIAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA..................................... 17
2.1 Criança, infância e modernidade ..................................................................... 22
2.2 Educação Infantil – em busca de um tesouro escondido?! .......................... 26
2.3 O coração da Infância – Santa Maria/RS Coração do Rio Grande ................ 33
3 PROCURANDO NEMO.......................................................................................... 37
3.1 Correntes marítimas – infância entre poder, saber, governamentalidade e
produção de verdade ........................................................................................ 43
4 NATURALIZAÇÃO DA INFÂNCIA ........................................................................ 46
5 INFÂNCIA CIDADÃ ............................................................................................... 55
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................... 62
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................... 66
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1 INTRODUÇÃO
Embarque nesse carrossel
Entre duendes e fadas
A Terra encantada, espera por nós
Abra o seu coração
Na mesma canção em uma só voz.
(...)
Venha não perca o seu tempo que até a idade
Se pode escolher
Venha ser uma criança, girar nessa dança ser o que
quiser. (Letras.mus.br, Carrossel, Arco Iris)
Embarque nesse carrossel é uma expressão que me inspirou para iniciar
uma discussão sobre a temática que considero relevante no campo da educação: a
infância. Na medida em que tanto a escola quanto a infância são invenções da
Modernidade, muitas vezes tais concepções são entendidas como dadas e
indissociáveis entre si.
De acordo com os RCNEI (1998, p. 17),
O atendimento institucional à criança pequena, no Brasil e no mundo,
apresenta ao longo de sua história concepções bastante divergentes sobre a
finalidade social. Grande parte dessas instituições nasceram com o objetivo
de atender exclusivamente às crianças de baixa renda.(...) A concepção
educacional era marcada por características assistencialistas, sem
considerar as questões de cidadania ligadas aos ideais de liberdade e
igualdade.
Entretanto, ao problematizar o que é ser criança e a noção moderna de
infância, esse embalo de lá para cá e de cá para lá me fez perceber o quão importante
é obtermos uma compreensão sobre os movimentos que vêm sendo produzidos nas
escolas de educação infantil do nosso país em torno das ideias criança e infância.
Desde a instituição das Leis de Diretrizes e Bases da Educação Nacional
9394/96 que integra a educação infantil à educação básica de ensino, repercussões
significativas geraram grandes embates e incertezas no contexto educacional
brasileiro. Fato esse também que marcou mudanças de paradigmas frente às funções
da escola de educação infantil como um nível de ensino que antecede os primeiros
anos do ensino fundamental. Como resposta imediata a essas medidas foram
constituídos documentos legais que amparassem as escolas elucidando algumas
ferramentas pedagógicas que deveriam ser usadas nessa nova proposta de educação
vigente. Refiro-me aqui aos Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação
10
Infantil que foram instituídos em 1998, a partir dos Parâmetros Curriculares Nacionais
elaborados pelo
Ministério da Educação e do desporto. Assinalo que uma das
intenções principais desse documento é implantar ou implementar práticas educativas
de qualidade que possam promover e ampliar as condições necessárias para o
exercício da cidadania das crianças brasileiras.(p.13) O que causa estranheza nesse
enunciado são as concepções que foram ou estão sendo constituídos para formalizar
uma educação de qualidade e os discursos pedagógicos que circulam nas escolas de
educação infantil sobre os critérios de ensino a serem contemplados para garantir tal
qualidade na educação das crianças pequenas.
Em conformidade com a LDB9394/96, o Plano Nacional de Educação
promulgado em 2001 determina que cabe à creche atender crianças na faixa etária
de 0 (zero) a 3(três) anos de idade e, à pré-escola, a faixa etária de 4 (quatro) a 6
(seis) anos de idade. Contempla ainda algumas obrigações educacionais que
permeiam os recursos da pedagogia para desenvolver estímulos educativos que
auxiliem a criança no seu desenvolvimento e na formação da sua personalidade.
Nessa perspectiva, penso ser relevante marcar as condições que deverão ser
adotadas pelas instituições educativas de educação infantil para contemplar crianças
na faixa etária entre 4 a 6 anos de idade. Isso sugere um (re)pensar numa outra lógica
de ensino e aprendizagem, com outro espaço físico e, principalmente, numa “nova”
percepção do sujeito infantil.
Operando com essas ideias, a partir das reformas educacionais que foram e
estão sendo implantadas desde 2011, com a referida estruturação do ensino
fundamental de oito para nove anos, outros questionamentos foram levantados em
relação às implicações dessa proposta para a educação infantil. Nessa perspectiva,
volto-me para os efeitos que estão sendo produzidos no contexto das escolas de
educação infantil, mais especificamente, nos seus projetos políticos pedagógicos,
levando em conta a constituição de outras perspectivas sobre a infância. Embora a
partir do clássico estudo de Àries (1981), já existam vários trabalhos sobre a questão
da infância (dentre os quais destaco Corazza (2002), Hillesheim (2008), Richter
(2012), Rodrigues (2010), Souza (2011) entre outros), entendo que, tendo em vista o
contexto das mudanças na educação escolar brasileira, ainda são poucas as
discussões sobre esse tema. Nessa conjuntura de especificidades da educação
infantil como nível de ensino, a necessidade de estabelecer outras propostas de ação,
11
além do cuidado à criança pequena, foi o que possibilitou a institucionalização da
escola direcionada a esse público nas últimas décadas.
De acordo com o diagnóstico divulgado pelo PNE (2001, p. 9),
“A educação das crianças de zero a seis anos em estabelecimentos
específicos de educação infantil vem crescendo no mundo inteiro e de forma
bastante acelerada, seja em decorrência da necessidade da família de contar
com uma instituição que se encarregue do cuidado e da educação de seus
filhos pequenos, principalmente quando os pais trabalham fora de casa, seja
pelos argumentos advindos das ciências que investigaram o processo de
desenvolvimento da criança. Se a inteligência se forma a partir do nascimento
e se há "janelas de oportunidade" na infância quando um determinado
estímulo ou experiência exerce maior influência sobre a inteligência do que
em qualquer outra época da vida, descuidar desse período significa
desperdiçar um imenso potencial humano. Ao contrário, atendê-la com
profissionais especializados capazes de fazer a mediação entre o que a
criança já conhece e o que pode conhecer significa investir no
desenvolvimento humano de forma inusitada. Hoje se sabe que há períodos
cruciais no desenvolvimento, durante os quais o ambiente pode influenciar a
maneira como o cérebro é ativado para exercer funções em áreas como a
matemática, a linguagem, a música. Se essas oportunidades forem perdidas,
será muito mais difícil obter os mesmos resultados mais tarde.”
Essa tensão gerada pelas “novas” formas de pensar a educação para crianças
na faixa etária de 0 a 6 anos de idade é que me possibilitaram, através desse trabalho
de dissertação de Mestrado em Educação – UNISC – Santa Cruz do Sul, abordar
algumas questões referentes às principais ideias/concepções de infância instituídas
pelas escolas de educação infantil de Santa Maria/RS, por meio dos seus projetos
políticos pedagógicos. Minha intenção é propiciar um momento de reflexão sobre as
verdades que giram em torno dessa temática. E, para compreender os efeitos desses
discursos atrelados a essas produções de verdades, faço alusão ao pensamento de
Ternes (2004, p.157), o qual afirma que “a verdade é a nossa invenção”.
Numa visão foucaultiana, entende-se por produção de verdade “um conjunto
regular de fatos discursivos que transcendem o aspecto linguístico em determinado
nível, mas que de certa forma relaciona-se com jogos estratégicos de ação e reação,
de pergunta e reposta, de dominação e esquiva, como também de luta.” (Foucault,
2002, p.9) Assim, existem duas histórias da verdade. “A primeira é uma espécie de
história interna da verdade, a história da verdade que se corrige a partir de seus
próprios princípios de regulação. Por outro lado, a verdade que se forma em diferentes
lugares, onde um certo número de regras de jogo são definidas, as quais se
caracterizam por uma história externa, exterior, da verdade.” ( p.11)
Para Benjamin (apud Pereira, 2012, p. 35),
12
“a verdade é mais uma busca do que uma posse, ou seja, é aquilo que, como
busca, mobiliza e confere sentido ao próprio processo de produção do
conhecimento. Desse modo, a verdade não figura como produto a ser
enclausurado em forma de resposta definitiva, mas ao contrário, tem por
compromisso, a fertilização das questões que a fomentam.”
Dessa maneira, considerando que os Projetos Políticos Pedagógicos integram
o jogo de produção de verdades sobre a infância, essa dissertação propõe investigar
quais são as verdades produzidas por esses documentos. Para tanto, o estudo se
apoia em algumas ferramentas conceituais, a partir de Michel Foucault, para discutir
os diferentes discursos sobre a infância implicados nos projetos políticos pedagógicos
das
escolas
de
educação
infantil
de
Santa
Maria/RS:
saber,
poder,
governamentalidade e produção de verdade.
Além disso, é importante, nesse momento, tecer algumas considerações a
respeito dos Projetos Políticos Pedagógicos, os quais estabeleci como material de
análise e que operam como instrumento de base para explicitar as linhas de ação
metodológica escolhidas pelas escolas.
Segundo o Inciso I do artigo 12 da LDB 9394/96 prevê que os
estabelecimentos de ensino, respeitada as normas comuns e as do seu sistema de
ensino, terão a incumbência de elaborar e executar sua proposta pedagógica. (s.p.)
Para Ferreira (2009, s.p), o PPP.
Constitui-se em um documento produzido como resultado do diálogo entre os
diversos segmentos da comunidade escolar a fim de organizar e planejar o
trabalho administrativo-pedagógico, buscando soluções para os problemas
diagnosticados. O PPP além de ser uma obrigação legal, deve traduzir a
visão, a missão, os objetivos, as metas e as ações que determinam o caminho
do sucesso e da autonomia a ser trilhado pela instituição escolar.
Ressalto que, de acordo com Veiga (1998, p 1-2), todo projeto pedagógico
infere um projeto político. Ambos articulam compromissos sociopolíticos inerentes aos
interesses reais e coletivos da população majoritária. Ainda na ideia do autor, o sentido
político está vinculado à formação do cidadão em relação a um tipo de sociedade. Na
dimensão pedagógica, articulam-se vários princípios de intencionalidades e
compromissos da escola na formação do cidadão participativo, responsável,
compromissado, critico e criativo.
Por outro lado, reporto-me a um período de experiência como coordenadora
pedagógica de uma escola particular de educação infantil de Santa Maria/RS, onde
pude constatar, no decorrer de algumas reuniões pedagógicas, a falta de
13
esclarecimento por parte dos profissionais da área, sobre a existência de um Projeto
Político Pedagógico e suas interfaces. Consequentemente, essa “inexistência” de
conhecimento das ideias que fundamentam teoricamente o perfil pedagógico da
instituição na qual esses profissionais atuam, foi outro aspecto que me levou a pensar
sobre a relevância dos projetos políticos pedagógicos, pois percebi a pouca
participação dos grupos de pessoas que constituem a escola como sujeitos
coparticipantes na (re)estruturação de tal documento. No entanto, apesar desse
desconhecimento, os Projetos Políticos Pedagógicos fazem circular discursos a
respeito de como deve ser uma escola de educação infantil e sobre as crianças
atendidas. Dessa forma, ao ser impulsionada pela temática da infância, voltei minha
investigação para os discursos que são produzidos a respeito da infância e os efeitos
desses enunciados na prática pedagógica dos docentes na medida em que
compreendo que tais discursos constituem determinadas verdades sobre a criança e
a infância.
Apesar da maioria de minhas experiências profissionais terem acontecido nas
escolas de educação infantil, não sabia o quê e como problematizar essa questão da
infância no contexto da escola infantil. Isso porque, durante muitos anos, partilhava
deum pensamento que aliava a criança a perspectivas pedagógicas que
compreendiam a infância como algo da ordem de uma essência do ser criança. Para
minha surpresa, ao me apropriar de algumas leituras voltadas à infância, comecei a
trilhar um percurso muito interessante e complexo. Refiro-me aqui à desnaturalização
de alguns conceitos de infância que, até então, trazia comigo, através da minha
formação acadêmica, como sendo uma fase, período ou etapa de desenvolvimento
do ser humano. Além disso, a partir das leituras realizadas, compreendi que essa
tendência acadêmica de vislumbrar uma “educação de qualidade”que garantisse um
ensino e uma aprendizagem significativos para a criança se tornou um discurso
habitual no cenário educacional, pois como explica Sommer (2007, p.59) “o que se diz
na escola somente repercute porque é referendado por uma ordem mais ampla,
porque está na ordem do discurso”.
Ao tratar sobre as práticas discursivas pedagógicas, Sommer ainda afirma
que,
14
(...) podemos definir como práticas discursivas pedagógicas, por exemplo, a
ampla produção acadêmica no campo da educação que focaliza a escola,
nas mais diferentes perspectivas teóricas e metodológicas, os enunciados do
discurso didático, das metodologias, etc..(2007, p.58)
É interessante ressaltar nessa definição as diferentes tendências que a escola
incorpora pelos discursos que são produzidos no meio acadêmico e como essas
teorias produzem formas de ser criança e viver a infância. Por outro lado, as práticas
educativas escolares necessitam de determinadas verdades sobre a criança e a
infância para poder sustentar suas ações.
Entretanto, Bujes (2005, p.181) alerta que “a infância não é em si, um objeto
de pesquisa; por outro lado, ela também não corresponde a um período de vida que
seria universal, coisa que as teorizações modernas se esmeram em afirmar”. Nessa
perspectiva, no presente trabalho a infância não é tomada como um objeto natural de
pesquisa, nem se pressupõe uma essência infantil, como se as crianças fossem
naturalmente portadoras de uma infância. Compreendo que, a partir dos movimentos
históricos, culturais e sociais que vêm sendo produzidos pelos discursos ideológicos
e pedagógicos das escolas de educação infantil a infância é uma invenção da
modernidade. Com a ruptura de alguns paradigmas que efetivam a infância como um
período/etapa/fase do desenvolvimento humano, estabeleço uma perspectiva de
infância que possibilita pensar nessa temática a partir de enunciados que foram e
estão sendo instituídos pelas/nas políticas públicas educacionais e são contemplados
nos projetos políticos pedagógicos das escolas de educação infantil.
Ainda no intuito de apresentar este trabalho, embarcando no carrossel, faço
menção à minha trajetória como pesquisadora. Em função de minhas atividades
profissionais, como participante de um projeto denominado Programa União faz a
Vida!, pertencente à Cooperativa Sicredi, onde profissionais de diversas áreas, em
especial da pedagogia, prestam assessoria pedagógica às escolas credenciadas, foi
possível perceber muitas das angústias e dificuldades dos professores em relação à
educação. Mais adiante, através de uma parceria com a Secretaria de Educação do
Município de Santa Maria, com o objetivo de acompanhar as reuniões que aconteciam
naquele momento para a reformulação dos projetos políticos pedagógicos de cada
escola, foi possível me inteirar, gradativamente, do modo como as escolas se
organizam, discutem e embasam seus trabalhos pedagógicos.
15
Uma constatação que favoreceu a consolidação da minha intenção inicial em
analisar os PPPs das escolas de educação infantil refere-se aos referenciais didáticopedagógicos que sustentam as ações educativas das escolas de educação infantil,
conhecido como Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Não irei me
aprofundar nessa discussão sobre tal documento para não desviar do foco dessa
pesquisa, mesmo porque outros autores tais como Maria Isabel Bujes (2000), já a
fizeram, com muito precisão, suas análises sobre esse documento. O trabalho dessa
autora constatou que a instituição desse documento propõe uma “arte de governar”
as crianças na faixa etária de 0 a 6 anos de idade como “uma prática disciplinar
normalizadora e de controle social.” Entretanto, embora os Referenciais Curriculares
Nacionais já tenham sido substituídos pelo Conselho Nacional de educação e pelo
Plano Nacional de Educação (2010), vale ressaltar que ainda servem de respaldo para
as principais ideias que circundam os PPPs das escolas de educação infantil
investigados nessa dissertação. Destaco que essa constatação foi realizada a partir
da citação dos mesmos referenciais pelas escolas de educação infantil nos
documentos analisados, o que denota a possibilidade de que esses conceitos ainda
fundamentam suas linhas pedagógicas.
Partindo dessas considerações, eis que se efetiva a necessidade de
aprofundar um estudo voltado para os discursos produzidos pelos Projetos Políticos
Pedagógicos das escolas de educação infantil sobre as principais concepções de
infância implicadas nos referidos documentos. Para tanto, realizei a análise desses
documentos junto às escolas de educação infantil de Santa Maria, cidade de porte
médio, do interior do Rio Grande do Sul. Tendo em vista as questões éticas, em
nenhum momento serão citados os dados de identificação das escolas que
disponibilizaram seus Projetos Políticos Pedagógicos. Apenas serão usadas as
informações que estão expostas nesses documentos sobre as concepções de infância
que estabelecem seus perfis metodológicos e pedagógicos de cada instituição
analisada.
Inicialmente, foram selecionadas para fins de análise, quatro escolas, sendo
uma da rede municipal de ensino e as demais da rede privada de educação.
Entretanto, após fazer uma prévia produção dos dados que seriam úteis para essa
pesquisa, percebi que duas escolas, pertencentes à rede privada de ensino haviam
disponibilizados seus PPPs na forma resumida. Mesmo contemplando alguns
aspectos relevantes sobre as principais ideias/concepções de criança, não foi possível
16
mantê-las como materialidade de análise. Então, parti para uma quinta escola,
também da rede privada de ensino, que disponibilizou o seu PPP na íntegra. De fato,
foram analisados três Projetos Político Pedagógicos das escolas de educação infantil,
entre elas duas da rede privada e uma da rede municipal de ensino.
A dissertação organiza-se da seguinte forma:
No primeiro capítulo – Cara ou Coroa, discuto os diferentes sentidos dados às
palavras criança e infância, buscando uma melhor compreensão de como se
constroem esses conceitos que sustentam os Projetos Políticos Pedagógicos das
escolas de educação infantil de Santa Maria/RS.
No capítulo seguinte – Procurando Nemo –, abordo as questões
metodológicas que articulam os primeiros movimentos como pesquisadora para
“definir” os critérios de seleção das escolas de educação infantil investigadas. Paralelo
a esse movimento, procuro elucidar as ferramentas conceituais utilizadas, a partir de
Michel Foucault, especialmente discurso, poder, governamentalidade e produção de
verdade.
Na sequência, no capítulo intitulado Infância Cidadã, proponho discutir as
concepções que fomentam uma ideia acerca da constituição das crianças como
sujeitos livres e autônomos para exercer sua cidadania. Considerando a capacidade
do ser infantil para estabelecer uma participação ativa na sociedade, busco
compreender a forma como as escolas de educação infantil de Santa Maria/RS
produzem esses ‘conceitos’ nos enunciados presentes nos seus PPPs.
Por fim, no capítulo intitulado Naturalização da Infância – Para sempre
Cinderela?! –, aponto alguns discursos pedagógicos que circulam nos PPPs das
escolas de educação infantil sobre as concepções que constituem a ideia de infância
nos respectivos documentos institucionais. Paralelo a essa análise, destaco alguns
movimentos histórico-sociais que foram e estão sendo instituídos acerca da infância
enquanto práticas discursivas da pedagogia
contemporânea.
Para essa
especificidade da análise, trago como suporte teórico outros documentos citados nos
PPPs e que ainda sevem de respaldo para fundamentar as linhas de ação pedagógica
de cada instituição, entre eles, cito o Referencial Curricular Nacional para a Educação
Infantil. Em contrapartida procuro entrecruzar esses dados produzidos pelos PPPs
com outras perspectivas de infância sugeridas por autores que compartilham da ideia
de uma ‘invenção ou descoberta’ da infância pela/na modernidade.
17
2 CARA OU COROA? VARIAÇÕES SOBRE A INFÂNCIA
“O real não é representável, e é porque os homens querem representá-lo por
palavras que há uma história da literatura.” (Em “Aula”, de Roland Barthes,
apud Veppo, 2002, p. 341).
Inicio essa discussão fazendo uma breve análise sobre o trecho que abre esse
capítulo acerca da necessidade do homem em representar o “real” ou como nos evoca
Michel Foucault, uma verdade que queremos estabelecer sobre o mundo que
habitamos, por meio das palavras. Segundo o autor, “as palavras agrupam sílabas e
as sílabas letras, porque há depositadas nestas, virtudes que as aproximam e as
desassociam, exatamente como no mundo as marcas se opõem ou se atraem umas
às outras.” (1999, p.52)
O universo das palavras é muito curioso, principalmente quando nos damos
conta de que elas – as palavras – podem possuir vários significados e/ou sentidos, os
quais não são fixos e produzem formas de compreender e ver o mundo, pois as
palavras expressam uma das formas mais significativas de linguagem. Desse modo,
neste capítulo, discutem-se os sentidos dados às palavras criança e infância, em
diferentes contextos pedagógicos que foram e estão sendo constituídos pelas escolas
de educação infantil. Vale ressaltar que a análise em torno dessas palavras, criança
e infância, foram priorizadas em razão dos discursos pedagógicos que circulam
nesses documentos para referirem-se as especificidades do sujeito infantil.
Entretanto, aponto que, nos PPPs das escolas de educação infantil, os conceitos de
criança e infância vinculam-se, de forma estreita, à figura do aluno. Percebe-se que,
com frequência, nos documentos analisados, há uma difusão de conceitos que
entendem a criança ora como sujeito responsável pela/na construção do seu próprio
conhecimento, ora como sujeito aluno-educando, implicado num sistema politico
pedagógico voltado para os ensinamentos básicos na/para a construção de
conhecimentos específicos a sua faixa etária. Tal vinculação entre as concepções de
criança e aluno constituem o que Corazza (2002) denomina como infância escolar, a
qual opera a partir de uma discursividade presente na própria pedagogia, visto que,
desde a Didática Magna, a ligação entre infância e escolarização é naturalizada.
Na sequência, tratarei de percorrer uma trajetória que marca os movimentos
históricos, sociais e culturais que atravessam os conceitos de criança e infância
estabelecidos como verdades na contemporaneidade. Operando com as formas pelas
18
quais esses conceitos circulam nos discursos pedagógicos das instituições de
educação infantil e, entre cruzando-os comas atuais políticas públicas de educação
de nosso país, é que, na última seção desse capitulo, pretendo mostrar como esses
se constituem nos
espaços educativos conhecidos como escolas de educação
infantil.
Antes de começar propriamente a tratar dessa questão, considero importante
falar das motivações que me levaram a escolher esse titulo – Cara ou Coroa?
Variações sobre a infância – para o primeiro capítulo dessa dissertação. Ao começar
o processo de produção de dados, pesquisando nos documentos oficiais das escolas
de educação infantil de Santa Maria/RS – Projetos Políticos Pedagógicos – depareime com uma dualidade linguística que, ora mensura a criança, outra a infância, como
“sujeitos-objetos” de suas propostas pedagógicas. Por essa razão, julguei pertinente
refletir sobre essas palavras e o que as mesmas podem representar num determinado
contexto.
Cara ou Coroa? é uma expressão de linguagem utilizada para representar um
jogo de azar ou sorte, dependendo da perspectiva das pessoas que estão envolvidas
no jogo. Nesse sentido, o mesmo pode valer para as palavras criança e infância que,
quando analisadas em diferentes contextos linguísticos, podem produzir vários
conceitos que ora aproximam ora afastam uma palavra da outra. Do mesmo modo,
penso que ainda há um deslocamento teórico-prático que viabiliza uma compreensão
mais apurada desses conceitos que atravessam as palavras criança e infância, muitas
vezes utilizadas como sinônimos.
No contexto dos PPPs, material de análise utilizado para a produção de dados
dessa pesquisa, constata-se que os modelos discursivos pedagógicos que foram e
estão sendo constituídos pelas escolas de educação infantil acerca das palavras
criança, infância e aluno-educando produzem uma perspectiva de linguagem que
contempla a infância como uma das etapas da vida. Nesse sentido, pretendo apontar,
a partir de alguns autores contemporâneos, de que forma esse conceito de infância é
uma construção histórica e social.
Silva (2012), em seu texto “A produção social da identidade e da diferença”,
infere uma proposição de que a linguagem é resultado de “atos de criação linguística”,
que por sua vez, integram-se aos movimentos culturais e sociais de cada época. Em
outras palavras, a linguagem é uma produção instituída por nós mesmos, por meio
das relações que se estabelecem com o contexto cultural e social no qual estamos
19
inseridos. Ainda na ideia do autor, “a linguagem entendida como sistema de
significação é, ela própria, uma estrutura instável.” (p.78) Essa instabilidade que
permeia a linguagem provém de uma característica associada ao signo. Entende-se
por signo “um sinal, uma marca, um traço que está no lugar de outra coisa” que não o
liga diretamente com essa coisa ou ao seu próprio conceito. Dito de outra forma, é a
partir das nossas “ilusões” e necessidades de representação linguística que o signo
passa a substituir a presença da “coisa” ou do “conceito”.
Por sua vez, Fischer, baseada numa perspectiva foucaultiana, problematiza a
ideia de representatividade das palavras, pois “a palavra, o discurso, enfim, as coisas
ditas não se confundem com meras designações: palavras e coisas para ele têm uma
relação extremamente complexa, justamente porque são históricas, são construções,
interpretações; jamais fogem à relação de poder; palavras e coisas produzem sujeitos,
subjetividades, modos de subjetivação” (2003, p. 373).
Efetivamente, ao referirmo-nos à linguagem, estamos estabelecendo uma
relação direta com os discursos de verdade produzidos na história para instituir uma
“vontade de verdade.” Foucault (1996), em sua obra A ordem do discurso, marca a
ideia de que cada vez mais somos atraídos por esses discursos de verdade para
suprimir um desejo ou exercer uma relação de poder intrínseca ao ato discursivo.
Ainda na visão do autor, o discurso reflete uma reaverbação do que queremos
possuir como verdade num determinado tempo e espaço social. Além disso, ao
estabelecer uma relação de coerção entre linguagem e discurso, estamos sendo
engendrados por uma espécie de poder que se instala nas formas de linguagem que
nos apropriamos ao longo da história. Nessa perspectiva, pontuo a ideia que
estabelece a criança-aluno como sendo uma verdade instituída pelas escolas para
constituir uma espécie de “escola” que prepara o sujeito para os anos posteriores. Em
outras palavras, refiro-me aqui a problemática da criança-infância enquadrada como
principio constituinte das relações de poder que se estabelecem a partir das atividades
propostas na educação infantil. Dessa forma, questiona-se mais uma vez, os
discursos que vem sendo instituídos pelas escolas de educação infantil, através dos
seus PPPs para constituir seus princípios pedagógicos e, ao mesmo tempo,
contemplar as ideias que entrecruzam as questões do ser criança-infância-aluno
nessa faixa etária.
A partir desse enfoque analítico, aponto que as questões discutidas por esses
autores nos fazem pensar sobre as formas de linguagem que usamos para
20
representar as palavras criança, infância e aluno (ou educando) em momentos
distintos. Frente à produção de dados constituídos para a elaboração do capítulo que
tratará de discutir as concepções de infância que circulam nos PPPs das escolas,
assinalo que, em nenhum momento, no corpo dos documentos analisados, foi
explicitada uma ideia de criança, infância ou aluno, especificamente; porém, tais
noções aparecem de forma implícita, como se fossem naturais, universais. Por outro
lado, é notável a frequência com que as escolas utilizam uma linguagem previamente
elaborada – e aqui me refiro às teorias pedagógicas que atendem as expectativas da
escola para explicar as denominadas etapas da infância - para sustentar suas ações
pedagógicas. Ou ainda, quando tentamos buscar uma significação ou um sentido para
as palavras criança, infância ou aluno-educando, logo damo-nos conta de que, no
âmbito dos PPPs, há uma interdependência do entendimento de uma em relação à
outra, como se fossem indissociáveis.
Assinalo que, para além dos signos, um novo paradigma sobre a linguagem
foi estabelecido para romper com algumas verdades ligadas a essa estrutura,
conhecida, mais especificamente, desde o século XX como “virada linguística.”
Na obra Virada linguística – Um verbete, Ghiraldelli Jr. (2008, p.1), diz que a
expressão “virada linguística”, destina-se tipicamente ao campo filosófico. A mesma
indica o “predomínio da linguagem sobre o pensamento como um dos objetos da
investigação filosófica.”
Para Bujes (2005, p. 186), a “virada linguística” “pôs em relevo este modo de
conceber a linguagem, mostrando o papel fundamental que esta desempenha na
instituição de sentidos que damos às coisas do mundo.” A autora (2005) propõe uma
perspectiva de linguagem que transcende a “fiel descrição da realidade”. Nessa
perspectiva, a linguagem também é uma “invenção humana, instituída nas trocas e
negociações de sentido que estabelecemos intersubjetivamente”(p.186). Assim,
podemos evocar que as palavras também sofrem modificações discursivas
correspondentes a uma “trama cotidiana da história”(p.186). Recorrente a essa
mudança na forma de conceber a linguagem como uma leitura do mundo é que se
constitui a chamada “virada linguística.” Por compor um conjunto de significados e
significações constituídas pelo próprio pensamento que produz uma realidade, a
“virada linguística” atribui o uso das linguagens na “instituição de práticas e na
constituição de identidades sociais” (p.186). O mesmo se aplica para a tentativa de
exprimir uma ideia acerca da compreensão das palavras criança e infância. Na visão
21
da autora, “essas palavras que usamos para descrevê-las, para atribuir-lhes um
sentido, não passam de modos contingentes arbitrários e históricos de nos referirmos
a elas” (p. 189).
Do mesmo modo, Veiga-Neto e Lopes (2004), também pontuam uma versão
sobre a questão da “virada linguística” como sendo a problematização da relação
estabelecida entre o que cada um pensa e a coisa ou fato a ser pensada, conhecida
e dita. Ainda de acordo com os autores, não existe na virada linguística a hipótese de
deslocamento entre o pensado e o dito para com quem pensa e diz, ou seja, mesmo
que não tenhamos clareza da espécie de linguagem que usamos para expressar algo
ou alguma coisa –dizer, falar ou escrever, essa linguagem, por sua vez, será
representada por uma realidade cultural e social da qual fazemos parte. Essas
interpretações podem variar infinitamente, porém nem sempre o significado que se
estabelece para determinada palavra manterá seu mesmo padrão de significado
valorativo. Por outro lado, Veiga-Neto e Lopes (2204) assumem que “as palavras
possuem significados (Bedeutung), mas por si só não fazem sentido (Sinn)”(p. 9).
Entretanto, implicadas como proposições ou enunciados, as palavras não possuem
significado e, sim, sentidos que representam “um estado de coisas ou uma situação
possível” (p.9).
Para os autores, a “virada linguística”, como uma característica moderna,
marca a constituição de um modo de pensar e dizer algo sobre o que se está
pensando de acordo com alguns movimentos culturais e sociais da época, dizendo
respeito ao significado das palavras. Para eles, ao buscarmos um conceito que
articule o próprio conceito que envolve tal palavra, estamos nos apropriando não do
significado em si, mas da interpretação que temos de tal palavra.
Até aqui, tratei de abordar as ideias de alguns autores que, de uma maneira
ou de outra, possibilitaram visualizar outras perspectivas sobre as palavras, seus
significados e seus sentidos num contexto linguístico. Além disso, foi possível
perceber, por meio das reflexões realizadas a partir da “virada linguística”, as
mudanças que ocorreram no cenário social e cultural da(s) época(s) em que essa(s)
ideia(s) se constituiu (íram) como tal.
Entendo que essa discussão sobre a questão da linguagem como instrumento
para ver e compreender o mundo não se esgota aqui, porém, considero que, a partir
dessas ferramentas conceituais de linguagem e suas implicações de leitura de mundo,
foi possível chegar a uma compreensão mais elaborada do que vem sendo
22
estabelecido como “regra” para compor uma linguagem pedagógica em torno das
concepções que contemplam as significações atribuídas à criança e à infância.
Tendo em vista tais considerações, na próxima seção, pretendo discutir
algumas ideias sobre a invenção da criança e infância como produção histórica e
moderna. Nesse sentido, discuto alguns movimentos históricos que constituem as
ideias referentes à criança e à infância. Mais adiante, busco compreender de que
forma as escolas de educação infantil, por intermédio de seus Projetos Políticos
Pedagógicos, constituem a ideia de criança e infância para estruturar suas ações
filosóficas e pedagógicas.
2.1 Criança, infância e modernidade
“Uma investigação sobre a infância e os fenômenos que a ela se associam
deve se centrar não no que ela e eles são mas como se constituíram de tal
maneira.” (Bujes, 2005, p187)
Provocada pelas reflexões acima sobre as formas como a linguagem não
representa, mas constitui o mundo, trago, a seguir, como foram constituídas as noções
de criança e infância pela/na modernidade.
No dicionário de Língua Portuguesa – Aurélio – (2008, p.170), criança “é um
ser humano de pouca idade, menino ou menina. Pessoa ingênua, infantil, imatura.”
Por outro lado, tem-se como definição para a palavra infância “etapa da vida humana
que vai do nascimento à puberdade; puerícia, meninice. As crianças. O primeiro
período de existência de uma instituição, sociedade, etc..” (p.290).Considerando a
ideia de aluno também como referência para exprimir uma perspectiva de criança e
infância, destaco, segundo Aurélio (2008, p.24) como sendo “aquele que recebe
instrução e/ou educação de mestre(s), em estabelecimentos de ensino ou
particularmente; estudante.
No Estatuto da Criança e do Adolescente (2010, p.11), considera-se criança,
“para os efeitos desta lei, a pessoa de até doze anos de idade incompletos e
adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.”
De acordo com os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil (1998, p.22), a ideia de criança é “uma noção historicamente construída e
consequentemente vem mudando ao longo dos tempos, não se apresentando de
forma homogênea nem mesmo no interior de uma sociedade e época.”
23
A partir dessas vinhetas é que pretendo, nessa seção, situar na história outras
perspectivas que atravessam os conceitos de criança, infância e modernidade. E, para
articular com as principais ideias que circundam essa temática, recorro a autores
como: Àries (1981), Bujes (2205), Corazza (2002), Gagnebin (1987), Narodowski
(2001), Kohan (2003), Bruckner( 1988), Sommer (2007) e Kramer (2007).
Historicamente, a palavra infância não era remetida social e culturamente tal
como a conhecemos e a compreendemos na atualidade. Por outro lado, ao buscarmos
um entendimento etimológico da palavra em si, eis que surge um fato curioso, mas
que, ao mesmo tempo, justifica a “anulação” da criança enquanto um ser pequeno ou
de pouca idade em épocas anteriores à modernidade. Refiro-me a palavra in-fans,
cujo prefixo in significa negação (não) e fans refere-se ao falar. De acordo com
Gagnebin (1997, p. 87) “a palavra infância não remete primeiro a certa idade, mas sim
àquilo que caracteriza o início da vida humana: a incapacidade, mais a ausência de
fala.”
Nessa perspectiva, ao designar a palavra infância para representar uma
pessoa pequena, de pouca idade, outras possibilidades de linguagem começam a
aparecer e se naturalizar como verdades absolutas para reconhecer essa “criatura”
como um sujeito que se constitui num tempo e espaço social e cultural na qual está
inserido.
Dessa forma, aponto que até o século XVII a criança não era considerada,
pela família, um membro responsável, assim, sua presença era insignificante no
contexto familiar, confundindo-se com um adulto em miniatura. Todas as formas de
exposição ou expressão das crianças, sejam elas pelas artes ou pelas suas
vestimentas, levavam-nos a crer na inexistência de outro ser menor integrando aquele
espaço social. De acordo com Àries (1981, p. 51) “no mundo das fórmulas romanas e
até o fim do século XIII, não existem crianças caracterizadas por uma expressão
particular, e sim homens de tamanho reduzido.” Todas as intenções desejadas pelas
famílias eram fortemente projetadas ou depositadas nas crianças jovens. O
sentimento de infância não existia. Entretanto, na obra de Kohan - Infância entre
Educação e Filosofia (2003), o autor informa que, desde a Antiguidade Grega,
algumas marcas discursivas foram construídas a respeito da infância, as quais, mais
tarde, foram incorporadas na modernidade sob a forma de uma determinada
concepção de infância.
24
Ao discutir a ideia sobre uma concepção de infância apreendida e enraizada
até o presente momento, destaco como proposição uma naturalização da infância
como um período, fase ou processo do desenvolvimento humano. Considerando os
estudos realizados, principalmente na área da Psicologia, para compreender e
determinar algumas características que implicam a infância e seus níveis de
desenvolvimento, tem-se como vertente analítica uma intencionalidade de perceber a
criança em suas diferentes fases da vida. É importante ressaltar que essa discussão
sobre as concepções de infância, produzidas nas escolas de educação infantil por
meio de seus Projetos Políticos Pedagógicos serão abordadas no capítulo
Naturalização da Infância.
Ao me apropriar dos estudos de Àries (1981), historiador e pioneiro para tratar
as questões da infância como sendo uma invenção ou descoberta da modernidade,
outras possibilidades foram sendo compreendidas sobre essa temática. Segundo o
autor, “a descoberta da infância começou, sem dúvida, no século XIII e sua evolução
pode ser acompanhada na história da arte e na iconografia dos séculos XV e XVI. Mas
os sinais de seu desenvolvimento tornaram-se particularmente numerosos e
significativos a partir do fim do século XVI e durante o século XVII” (p. 65 ).
Analisando a infância enquanto invenção da modernidade, Bruckner (1988,
p.57) propõe que “a vida humana começava realmente entre os 7-10 anos. O
sentimento de infância nasce, na Europa, com o sentimento da família e com a
constituição, pelas grandes ordens religiosas, da educação separada, que preparava
a criança para a vida adulta”.
Na medida em que o sentimento de infância começa a ser “reconhecido” pelas
famílias e pelas grandes ordens religiosas, outras perspectivas sobre a mesma
passam a ser concebidas e, principalmente, favorecendo uma proximidade afetiva
entre crianças e adultos, denominada “paparicação”. Atenta-se para essa paparicação
como sendo uma relação infantilizada dos adultos para com as crianças.
Diferentemente de tempos anteriores, a partir de agora a criança passa a ser
percebida pelos olhos dos adultos como parte integrante na constituição da família,
potencializando sua inserção social e adquirindo suas primeiras evocações para se
tornar um cidadão de direito. (Àries, 1981)
Por sua vez, Bujes (2005) aponta que essa “infância de que tanto falamos é
um efeito dos discursos que se constituíram/constituem sobre ela (...).” Nesse sentido,
a aparição da infância surge como uma “construção discursiva” (p. 190), mas, a partir
25
do “aparecimento” de determinadas características que estabelecem o ser criança e
a infância tal como se apresenta hoje, que outras perspectivas históricas foram
constituídas para produzir essa “construção discursiva”? Para a autora, (2005, p.189)
“os significados de criança e de infância que guiam nossos atos cotidianos são
constituídos nos jogos da linguagem e os vocabulários que utilizamos para expressálos não têm a capacidade de descrevê-las fiel e transparentemente.” Nessa
passagem, considero pertinente destacar uma ideia na qual a autora nos propõe
pensar sobre os conceitos ou percepções que foram e estão sendo constituídos
acerca das palavras criança e infância no contexto das escolas de educação infantil.
Do mesmo modo, poderíamos pensar a partir de que perspectiva teórica as escolas
vislumbram a ideia de aluno associada, de forma estreita, às ideias de criança e
infância, e, assim, atribuir o mesmo valor as palavras criança e infância utilizadas com
mais frequência nos discursos pedagógicos de seus PPPs. É evidente que para cada
linha de ação pedagógica uma concepção de criança, infância ou aluno é constituída.
Nessa perspectiva, analisando os significados atribuídos a essas palavras que
circulam nos discursos pedagógicos das escolas de educação infantil, destaco como
propósito uma redundância de paradigmas que instituem a ideia de criança e infância
como uma fase da vida humana, sem levar em consideração outros aspectos que
poderiam(ão) constituir novas perspectivas a respeito dessa temática. Nesse sentido,
penso que, a partir dessas “construções discursivas” que sustentam a infância e suas
peculiaridades, é que a pedagogia escolar busca lapidar suas ações pedagógicas e
“fixar certas certezas, produzir determinados saberes a respeito da infância e do
saber....(Narodowski, p. 187)
Narodowski (2004), ao discutir as ideias do pai da pedagogia moderna,
Comenius, pontua que este “se vale de nomear a infância por motivos relacionados à
ordem natural inerente às coisas” (p. 47). Assim, “a infância não pode ser outra coisa
senão onde se assenta, portanto, a base a partir da qual se atingem as metas
superiores” (p.44). Nessa lógica de pensamento, o discurso de Comenius reforça que
é pela infância que se inicia o processo formal de aprendizagem sequencial e
gradativo – ponto de partida –, “um lugar que existe porque deve ser completado”
(p.45).
Em contraposição ao pensamento de Comenius, Rousseau diz que a criança
era considerada um fenômeno natural, que se constitui de modelos desde o momento
da concepção até a sua inserção na sociedade, sendo corrompida pela mesma –
26
perdendo sua pureza de estado para um ser conveniente para tal sociedade (Streck,
2004).
Impulsionada por essas diferentes concepções sobre a criança e a infância,
compartilho da ideia de Sommer (2007) quando o mesmo propõe que crianças são
sujeitos oriundos de um movimento histórico e social, expressas pelas contradições
da sociedade em que estão inseridas. O autor também afirma que crianças são
detentoras de direitos, que produzem cultura e por ela são produzidas.
Nessa lógica de pensamento, Sommer (2007) também traz uma ideia de
infância, de um lado ligada a uma categoria social e categoria da história humana e
do outro, como período da história de cada um que, em nossa sociedade, vai do
nascimento até, aproximadamente, dez anos de idade, o que o próprio Estatuto da
Criança e do Adolescente confirma, apenas com uma divergência na faixa etária,
aonde considera criança a pessoa até doze anos de idade incompletos.
É visível que essa definição, que institui a palavra criança a uma pessoa com
até 12 anos de idade incompletos, abdica de um conceito mais elaborado entre criança
e infância. Por outro lado, podemos considerar que infância e criança admitem uma
mesma especificidade, dependendo do contexto em que ela está inserida.
Para Kramer (2007, p 14),
“... as visões sobre a infância são construídas social e historicamente. A
inserção concreta das crianças e seus papéis variam com as formas de
organização da sociedade. Assim, a ideia de infância não existiu sempre e da
mesma maneira. Ao contrário, a noção de infância surgiu com a sociedade
capitalista, urbano-industrial, na medida em que mudavam a inserção e o
papel social da criança na sua comunidade”.
Partindo dessa análise constitutiva da infância numa determinada sociedade
é que pretendo, na seção seguinte, pontuar algumas ideias sobre a instituição das
escolas de educação infantil no Brasil.
2.2 Educação Infantil – em busca de um tesouro escondido?!
“Certamente, em qualquer época, o ser humano teve que educar os seus
filhos.” (Stein, p. 71)
Certamente, a educação é uma preocupação que movimenta e mobiliza a
história de cada época. Mais ainda, quando as crianças, que se mantinham
27
escondidas à margem da figura dos adultos, começam a ser inventadas para atender
uma expectativa de cada tempo e espaço social. Em outras palavras, ao fazer emergir
uma ideia de criança e infância, outras possibilidades passaram a ser pensadas para
educá-las e transformá-las em cidadãs e cidadãos de direitos. Um dos maiores
movimentos que possibilitou a inserção da criança na sociedade civil foi a constituição
de espaços educativos que, com a intenção de auxiliar as famílias no processo de
desenvolvimento das crianças, tornaram-se grandes centros de ensino e
aprendizagem, conhecidos como escola. No que concerne a essa ideia de
constituição da escola, em especial da educação infantil no Brasil, farei os
apontamentos necessários no decorrer desse texto.
Richter (2012) aponta, no seu trabalho de dissertação de mestrado, um
conceito de infância no qual essa é entendida como um termo construído e
compreendido com os avanços da modernidade. Esse conceito que constitui
complexa construção social e cultural possibilitou o enquadramento da criança
pequena a sujeito de direitos civis.
Nessa perspectiva, pensando na possibilidade que o CNE – Conselho
Nacional de Educação– órgão responsável pela elaboração das “leis” que conduzem
a educação de nosso país, vem trazendo sobre a obrigatoriedade do ingresso de
crianças a partir dos 4 (quatro) anos de idade na escola de educação infantil – hoje já
prevista no Plano Nacional de Educação aprovado em 2010 - é que pretendo, nessa
seção, fazer emergir os primeiros movimentos de instituição das escolas de educação
infantil no Brasil. Nessa trajetória histórica, onde a educação voltada para as crianças
pequenas começa a ser priorizada pelos governos – federal, estadual e municipal - e
pela sociedade em geral, é que discuto algumas questões que transcendem ao
simples olhar para a criança como um sujeito pequeno ou de menor idade.
Inicialmente, penso ser interessante começar essa discussão fazendo uma
reflexão sobre alguns aspectos que atravessam as questões legais a respeito da
obrigatoriedade escolar a partir dos 4 (quatro) anos de idade: o primeiro refere-se aos
discursos que vêm sendo produzidos e, de certa forma, implementados pelas
instituições de educação infantil sobre as concepções de infância. Como já havia
assinalado anteriormente, percebe-se nos projetos políticos pedagógicos das escolas
de educação infantil uma carência teórica que possibilite articular a existência ou não
de uma ideia de criança e infância; o segundo aspecto está vinculado às questões de
preconização do processo de alfabetização no contexto das escolas de educação
28
infantil em função da ampliação do ensino fundamental de 8 (oito) para 9 (nove) anos,
quando outras práticas educativas foram e estão sendo adotadas para garantir uma
educação de qualidade para todos. Mas, em que consiste uma educação de qualidade
para todos no Brasil? Como essa educação de qualidade para todos está sendo
pensada no contexto da educação infantil?
A partir desses questionamentos, tratarei de situar na história brasileira os
primeiros movimentos que foram produzidos para/na institucionalização desses
espaços de cuidado à criança pequena e à escola de educação infantil.
Levando em consideração que a educação das crianças provinha do seio
familiar e do convívio com outras crianças da mesma classe social, surgiu a
necessidade, por parte de alguns setores da sociedade capitalista, dentre eles “os
religiosos, os empresariais e educacionais” (Richter, 2012, p. 18), de expansão de
uma educação voltada a essas crianças fora do âmbito familiar. Em decorrência
desses novos contornos que passam a desenhar a criança separada da vida adulta é
que começam a ser estabelecidas novas configurações de educação moral e
formação técnica, que se prolongam da aprendizagem familiar à “aprendizagem pelo
contato com outros indivíduos que passariam a ensinar habilidades e competências”
(Stein, 2003, p. 73).
Por educação moral compreende-se o ato educativo de ensinar e aprender
por meio das relações que se estabelecem entre a criança, consigo mesma e com os
demais. Concomitantemente ao aspecto moral, alia-se a formação técnica, que por
sua vez, possibilita a criança desenvolver habilidades e competências que lhe
permitam atingir metas e objetivos para saber “lidar com o mundo exterior” (Stein,
2003, p.73). Ainda na visão do autor (Stein, 2003, p.74), “uma vez atingido esse
estágio de divisão de processos de aprendizagem, iria tomar forma um conjunto de
instituições que ficariam encarregadas de assumir a responsabilidade desses dois
processos de aprendizagem: o processo moral da educação e o processo técnico da
formação.”
Nesse sentido, com a propagação de novas lutas políticas, econômicas e
sociais da época, em 1879, pela figura do Ministro do Império Leôncio de Carvalho,
instituíram-se os primeiros Jardins de infância no Brasil, cujo objetivo era atender
crianças de três a sete anos de idade. Essa reforma foi considerada como a “primeira
referência à educação da criança menor de sete anos nos documentos oficiais
brasileiros” (Soares, 2008, p. 86).
29
Contrapondo-se às intenções iniciais propostas pelo Ministro do Império aos
Jardins de infância, Rui Barbosa, Deputado da época e grande defensor de uma
reforma no sistema de ensino, declara e defende, por meio de seus pareceres, a
criação dos Jardins de infância, bem como o emprego de um método intuitivo para
instruir a educação das classes populares. Conforme Krieger (2008, p. 23), no ano de
1882, “Rui Barbosa, apresentou um projeto de reforma de instrução do País, pois
considerava o jardim-de-infância a primeira etapa do ensino primário.”
Machado; Lara e Lucas (apud Soares 2008, p 85-86), marcam que,
Os pontos fundamentais da reforma proposta por Rui Barbosa defendiam a
laicidade, a gratuidade e a obrigatoriedade do ensino, propondo mudanças
nos programas e métodos com o objetivo de superar a memorização e o
ensino livresco. Ele defendia que os jardins de crianças eram instituições
educadoras que possuíam enorme grandeza como já apontado
anteriormente. Por isso, o parlamento brasileiro não poderia continuar com
os braços cruzados, mesmo que isso implicasse no desembolso de
consideráveis quantias por parte do Estado, para educar, por meio de
brincadeiras e passatempos, crianças de quatro e cinco anos. [...] Rui
Barbosa também citou o exemplo da Europa e da América setentrional para
mostrar a importância de investimentos nessa área. Também a República
Argentina, desde 1876, já havia nacionalizado esta idéia, disse ele. Esses
exemplos foram utilizados como estratégia para sensibilizar o Estado
brasileiro a investir nesse nível de ensino (MACHADO; LARA; LUCAS, 2004,
p. 27).
Porém, todos os esforços investidos, tanto pelo deputado Rui Barbosa como
pelo Ministro do Império Leôncio de Carvalho para consolidar seus projetos em torno
dos Jardins de infância, não foram suficientes para convencer o Estado a contemplar
a educação das crianças pequenas na legislação brasileira. Durante muito tempo, o
Brasil resistiu em estabelecer um projeto nacional de educação para as crianças
pequenas, fazendo menção apenas “as leis que buscavam proteger a infância pobre,
destinadas ao combate às altas taxas de mortalidade” (Soares, 2008, p 86).
Diante desse cenário, é a partir do século XVIII que a criança começa a ser
percebida como tal e a receber uma atenção especial aos olhos dos adultos, tornandose alvo de uma educação assistencialista. Entende-se por “educação assistencialista”
todo e qualquer atendimento que visa oferecer subsídios básicos para a existência
humana, em especial, as crianças pequenas. Entre as práticas mais casuais
despendidas nesse cuidado à criança pequena destaca-se a preocupação com a
alimentação, a segurança física e a higiene pessoal.
30
Outra perspectiva de educação assistencialista está disposta no Referencial
Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998, p.17 ) e expressa que esse tipo
de “atendimento era entendido como um favor oferecido para poucos, selecionados
por critérios excludentes [....] sem considerar questões de cidadania ligadas aos ideais
de liberdade e igualdade”. A adesão cada vez maior por ambientes que atendessem
a demanda das famílias configurou espaços educativos como creches e programas
pré-escolares, constituídos pelo “acompanhamento das intensificações urbanas, a
participação da mulher no mercado de trabalho e as mudanças na organização e
estrutura das famílias” (RCNEI, p.11). Essa proposta de um cuidar e educar
sistemático possibilitou a ampliação da educação infantil no Brasil e no mundo.
Entretanto, outro enfoque analítico do Referencial Curricular Nacional para a
educação infantil (1998, p. 17) registra que,
O atendimento institucional à criança pequena, no Brasil e no mundo,
apresenta ao longo de sua história concepções bastante divergentes sobre
sua finalidade social. Grande parte dessas instituições nasceram com o
objetivo de atender exclusivamente as crianças de baixa renda [....] Constituirse em um equipamento só para pobres, principalmente no caso das
instituições de educação infantil, financiadas e mantidas pelo poder público,
significou em muitas situações atuar de forma compensatória para sanar as
supostas faltas e carências das crianças e suas famílias.
No Brasil, as especificidades da educação infantil foram reconhecidas
primeiramente na Constituição Federal de 1988, onde “a partir de então a educação
infantil em creches e pré-escolas, passou a ser, ao menos do ponto de vista legal, um
dever do Estado e um direito da criança” (RCNEI,p. 11). A legitimidade do texto
descrito na Constituição Federal de 1988 profere que “a educação, direito de todos e
dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da
sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” Outras atribuições são
distinguidas nessa legislação no que diz respeito aos princípios que devem nortear o
ensino, tais como:
“I – Igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II – liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte
eo saber;
III – pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de
instituições públicas e privadas de ensino;
31
IV – gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais;
V – valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma
da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso
público de provas e títulos, aos das redes públicas;
VI – gestão democrática do ensino público, na forma da lei;
VII – garantia de padrão de qualidade;
VIII – piso salarial profissional nacional para os profissionais da educação
escolar pública, nos termos da lei federal.”(s. p.)
Por consequência dessa regularização da educação infantil como sistema de
ensino pertencente à educação básica, outros documentos foram produzidos para
garantir o acesso à educação de qualidade para todos. A Lei nº 8.069, de 13 de julho
de 1990, que designou o ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente, estabelece
que tal documento “nada mais é do que um instrumento de cidadania, (...) é uma lei,
fruto da luta de movimentos sociais, profissionais e de pessoas preocupadas com as
condições e os direitos infanto-juvenis no Brasil.”(BRASIL, 1990.s. p.) Essa lei prevê,
no seu art. 53 do capítulo IV, que: “ A criança e o adolescente têm direito à educação,
visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, preparo para o exercício da
cidadania e qualificação para o trabalho, assegurando-lhes:
I – igualdade de condições para o acesso e permanência na escola;
II- direito de ser respeitado por seus educadores;
III – direito de contestar critérios avaliativos, podendo recorrer às instâncias
escolares superiores;
IV – direito de organização e participação em entidades estudantis;
V – acesso à escola pública e gratuita próxima de sua residência;” (s.p. )
Posteriomente, com a aprovação da nova Lei de Diretrizes e Bases da
educação Nacional 9394/96, vem afirmar que,
A educação infantil, primeira etapa da educação básica, tem como finalidade
o desenvolvimento integral da criança até 5 (cinco) anos de idade em seus
aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da
família e da comunidade.
Além disso, a lei dispõe que a educação infantil será oferecida em:
I – creches, ou entidades equivalentes, para crianças de até três anos de
idade;
32
II – pré-escolas, para as crianças de 4 (quatro) a 5 (cinco) anos de idade.
Nesse sentido, com a inserção das escolas de educação infantil na educação
básica de ensino, a mesma legislação estabelece no seu artigo 89 que “as creches e
pré-escolas existentes ou que venham a ser criadas deverão, no prazo de três anos,
a contar da publicação desta lei, integrar-se ao respectivo sistema de ensino” (LDB,
s.p). Novamente faço menção à Constituição Federal de 1988, onde fica claro no seu
artigo 30, inciso VI que compete ao município “manter com a cooperação técnica e
financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino
fundamental.” (s.p).
Ressalto que essas alterações de atendimento à criança na educação infantil,
com determinação específica das faixas etárias para cada nível de ensino, foram
promulgadas a partir da reforma educacional nº 11.274/2006, que antecipa o ingresso
de crianças com 6 (seis) anos de idade completos no 1º (primeiro) ano do ensino
fundamental.
Considerando os aspectos legais que a LDB 9394/96 dispõe sobre as
implicações de uma educação voltada para o desenvolvimento integral da criança,
destaco o que Cordeiro (2007, p.58) nos traz sobre a importância dessa legislação
vigente ao estabelecer as instituições de ensino de educação infantil finalidades para
que “esses espaços de creches e pré-escolas não se configurem como um lugar em
que as crianças são confinadas exclusivamente para atender a exigência legal.”
Pontuo que essa é uma preocupação que deve estar constantemente na pauta dos
gestores e de todos que, direta ou indiretamente, estão implicados nessa formação
da criança no que se entende por criança cidadã. Tal questão, o entrelaçamento de
criança e cidadania, discuto no capítulo Gestão democrática e Infância Cidadã, onde
analiso alguns conceitos que também circulam nos documentos legais das escolas de
educação infantil sobre essa questão. Paralelo a essa análise, minha intenção é fazer
uma aproximação das questões que envolvem a gestão democrática no ensino
público em prol de uma infância cidadã.
Nessa lógica, faço alusão às diretrizes do PNE (2001, 13) que afirmam:
A educação infantil é a primeira etapa da Educação Básica. Ela estabelece
as bases da personalidade humana, da inteligência, da vida emocional, da
socialização. As primeiras experiências da vida são as que marcam mais
profundamente a pessoa. Quando positivas, tendem a reforçar, ao longo da
vida, as atitudes de autoconfiança, de cooperação, solidariedade,
responsabilidade. As ciências que se debruçaram sobre a criança nos últimos
33
cinquenta anos, investigando como se processa o seu desenvolvimento,
coincidem em afirmar a importância dos primeiros anos de vida para o
desenvolvimento e aprendizagem posteriores. E têm oferecido grande
suporte para a educação formular seus propósitos e atuação a partir do
nascimento. A pedagogia mesma vem acumulando considerável experiência
e reflexão sobre sua prática nesse campo e definindo os procedimentos mais
adequados para oferecer às crianças interessantes, desafiantes e
enriquecedoras oportunidades de desenvolvimento e aprendizagem. A
educação infantil inaugura a educação da pessoa.
Nesse contexto, penso que essa projeção em torno da educação, em
especial, da educação infantil, etapa pertencente à educação básica, sugere uma
emergência no processo de escolarização das crianças pequenas, acentuando uma
lógica de pedagogização que pretende preparar a criança para os próximos níveis de
ensino.
Entretanto, assinalo que este processo de pedagogização não é novo e,
sobre essa temática, discuto-a mais detalhadamente no capítulo Naturalização da
Infância, em que analiso os efeitos dos discursos que foram e estão sendo produzidos
sobre a infância nos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil,
a partir das reformas educacionais instituídas nos últimos dez anos.
2.3 O coração da Infância – Santa Maria/RS Coração do Rio Grande
Tanta vida diferente, tanta gente vem e vai
Incerteza de quem entra, mas saudade de quem sai...
(letras. mus.br, Beto Pires, Santa Maria, s.p)
Tendo trabalhado até aqui com os aspectos legais que possibilitaram a
constituição das escolas de educação infantil no Brasil, é que a partir desse momento
faço um mapeamento dos aspectos legais do Município de Santa Maria/RS, amparada
pelas Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal (DCEM), no que tange às
exigências previstas para a educação infantil dessa cidade.
Antes da análise, inicio esse trabalho, apresentando algumas características
que marcam a cidade de Santa Maria e das respectivas escolas selecionadas para a
produção de dados dessa dissertação. Pontuo que a minha intenção na escolha das
escolas pertencentes a esse município, partiu da necessidade de compreender o perfil
pedagógico de cada uma das instituições que representam as diferentes categorias
de ensino – pública, privada, laica e confessional - e suas especificidades. Todas elas
reconhecidas e devidamente credenciadas ao Conselho Municipal de Educação de
Santa Maria-RS.
34
Santa Maria – Coração do Rio Grande – é assim conhecida por todos os que
vêm e que passam por essa cidade, localizada no interior do Estado do Rio Grande
do Sul. Também chamada de cidade flutuante – pois por aqui se fazem carreiras
militares e estudantis por um tempo determinado – Santa Maria desfruta de um polo
educacional privilegiado, contando inclusive com uma das melhores universidades do
país, a UFSM – Universidade Federal de Santa Maria/RS.
A partir desse contexto, Santa Maria, assim como os demais municípios que
têm a responsabilidade de acompanhar, orientar, organizar, avaliar o ensino público
em seus níveis de atuação – refiro-me aqui à educação infantil e ensino fundamental,
conforme a Constituição Federal de 1988 – possui um documento legal que produz os
recursos necessários para conduzir a educação das crianças pequenas, jovens e
adultos, conhecido como Diretrizes Curriculares para a Educação do Município
(DCEM). Nessa perspectiva, farei uma breve abordagem sobre as questões que estão
sendo pensadas e discutidas pelo sistema de educação vigente em torno da educação
infantil desse município, mais especificamente.
A primeira escola a ser constituída no município data de 1838. Com o passar
dos anos e com o crescimento demasiado de escolas que atendessem tanto crianças
e jovens da zona rural como da zona urbana, outras instituições foram sendo
incorporadas ao sistema de ensino público do município.
Em 1997, com a Lei Municipal nº 4.123 de 22 de dezembro, foi instituído o
Sistema Municipal de Ensino de Santa Maria, composto de: “Secretaria de Município
da Educação; Conselho Municipal de Educação; Escolas Municipais do Ensino
Fundamental; Instituições de Educação Infantil mantidas pelo Poder Público Municipal
e pela iniciativa privada e Escolas de Ensino Profissionalizante da Rede Municipal.”
(DCEM, p.19 - 20)
Como apontam as Diretrizes Curriculares para a Educação do Município, esse
documento teve seu início em 2005, proposto pela Secretaria Municipal de Educação
(SMED) e veio a se concretizar no ano de 2011. Sua finalidade é oferecer uma política
de currículo que sirva de parâmetro às escolas municipais de Santa Maria/RS. Além
disso, o documento objetiva “a articulação do processo de organização da Educação
Básica, a (re) estruturação dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas, bem como
a adequação e o cumprimento da legislação atual.” (p.4)
Conforme o DCEM, o cenário da educação do município de Santa Maria/RS
organiza-se da seguinte maneira:
35
• 01 escola de artes – EMAET;
• 01 escola de ensino profissionalizante – EMAI;
• 45 escolas de ensino fundamental na zona urbana – EMEF;
• 09 escolas de ensino fundamental do campo – EMEF;
• 19 escolas de educação infantil na zona urbana – EMEI;
• 01 escola de educação infantil do campo – EMEI;
• 04 escolas de educação infantil conveniada – EEI. (DCEM)
Considerando apenas o contexto da educação infantil do município, essa se
desenvolve em 20 escolas municipais de educação infantil (EMEI), 4 escolas de
Educação Infantil conveniadas e em 20 escolas Municipais de ensino fundamental
(EMEF), que atendem crianças de até 6 anos de idade, em turmas de maternal e préescola B (DCEM, p.11)
Entre tantas ações estabelecidas pelo sistema de educação do município nos
últimos anos, destaco como um dos propósitos das Diretrizes Curriculares para a
educação municipal de Santa Maria/RS a criação de documentos específicos para
cada nível de ensino, que prevê para a educação infantil, foco desse estudo, a
seguinte premissa:
Educação Infantil – Infância Cidadã – o direito a educação de 0 a 5 anos –
que reflete os princípios necessários ao desenvolvimento infantil, a
importância da educação para este desenvolvimento, bem como a ação dos
educadores nele envolvidos. (...) Apresenta também as ordens do
conhecimento e aspectos da vida cidadã.” (p.25)
Nessa perspectiva, entende-se que a educação infantil é um espaço que
permite a criança fazer novas descobertas, ampliar seus conhecimentos e
experiências individuais, familiares, culturais e educativas além do ambiente familiar.
Além disso, a educação infantil é considerada uma possibilidade de transição e a
continuidade para o Ensino Fundamental.
A partir dessa concepção de educação infantil – nível de transição e de
preparo para o nível posterior, é perceptível que ainda estamos sendo impulsionados
por uma prática discursiva que se perpetua nas nossas ações pedagógicas cotidianas.
Por outro lado, aponto que as discussões em torno dessa temática, a infância, ainda
são restritas no que tange às novas propostas educacionais que vêm sendo
constituídas em nosso país.
36
Tendo realizado os marcos iniciais da pesquisa, trago, no próximo capítulo,
os caminhos que percorri para a produção e análise de dados realizados nessa
dissertação.
37
3 PROCURANDO NEMO
Em algum lugar além do mar
Ela está lá olhando para mim
E se eu pudesse voar
como pássaros no alto
Então diretamente para seus braços
vou velejar
(...)
Eu sei além da dúvida
Meu coração vai me levar lá em breve
Nós nos encontraremos, eu sei que vamos nos encontrar além da certeza
(...)
(Tradução da música trilha sonora do Filme Procurando Nemo)
Para navegar pelas profundezas dessa imensa e infinita possibilidade que a
infância nos reporta, inicio nesse capítulo uma descrição pelas diferentes marés que
percorri para encontrar os materiais de análise dessa pesquisa.
Ao ser arrastada por uma corrente marítima desconhecida, mas ao mesmo
tempo envolvente, aventurei-me por esses redemoinhos para buscar compreender os
efeitos dos discursos como produção de verdades em nossas práticas educativas, em
especial pelos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas de educação infantil a
respeito da infância. Refiro-me aqui às questões teóricas na qual estudamos e nos
debruçamos durante muito tempo, para embasar e justificar nossas ações
pedagógicas sobre os processos de desenvolvimento infantil. De acordo com Pereira
(2012, p.30), “...todo conhecimento produzido traz junto de si as marcas da
perspectiva estética e política a partir da qual foi construído”.
Foi esse sentimento de (im)potência que esse estudo investigativo me
proporcionou ao iniciar os primeiros movimentos de familiarização com os PPPs das
escolas de educação infantil de Santa Maria/RS. Digo isso, porque ao pensar nos
diferentes contextos em que essas escolas estão inseridas, exigiu uma habilidade
mais aguçada para tentar produzir os dados necessários a fim de estabelecer as
relações com que esses discursos foram ou estão sendo constituídos com as
propostas que legitimam a educação infantil como uma etapa da educação básica.
Em contrapartida, ao realizar uma leitura mais esmiuçada para tentar entender o que
cada escola concebe por infância, também foi um exercício bastante envolvente e
complexo nesse momento da pesquisa. Ao buscar outros elementos textuais como a
Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394/96 e o Plano Nacional de Educação
38
que pudessem me auxiliar num melhor entendimento sobre as linhas legais que
fundamentam a proposta educativa das escolas de educação infantil sobre a
problemática em questão, percebi que ainda há uma forte tendência na utilização de
documentos, tais como os Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação
Infantil, que já sofreram alterações ou que estão sendo considerados ultrapassados
por alguns autores contemporâneos.
Pereira (2012, p. 42) afirma que, “...pensar a infância não significa isolá-la em
sua própria experiência, mas reconhecer nessa experiência os estilhaços da dinâmica
social.” Como referi em capítulos anteriores, pensar a criança/infância não é uma
temática muito simples, pois quando pensamos nesse sujeito como um cidadão
repleto de direitos e deveres perante a legislação vigente, nos deparamos com outras
questões que nos impedem de admitir que a essência infantil não existe, ela é uma
invenção da modernidade. E é uma invenção para produzir efeitos em um
determinado tempo e espaço físico cultural da época em que está se discutindo tal
assunto.
Como afirma Ghiraldelli Jr. (2000, p.46), “quando se trata de julgar questões
que envolvem 'direitos da infância', em geral temos dois grupos de pessoas. Há um
grupo que acredita na ideia da infância como sendo um período prolongado, que se
caracteriza principalmente pela inocência. [...] há um outro grupo que defende a ideia
de que a infância, [...] pode ser pensada como possuindo uma série de características,
mas nunca as de inocência e bondade como essenciais.”
Então, para tal empreitada, selecionei algumas instituições de educação
infantil do município de Santa Maria/RS para analisar as concepções que sustentam
suas ações pedagógicas em seus documentos oficiais e delimitam o seu perfil
educativo – Projetos Políticos Pedagógicos. Transitando pelos diferentes contextos
escolares, tanto da rede privada como da rede pública, num primeiro momento,
consegui obter os PPPs de quatro instituições de ensino, três delas pertencentes à
rede privada e uma da rede pública. Porém, ao iniciar a produção de dados dessa
pesquisa, deparei-me com algumas situações que inviabilizaram a permanência de
duas escolas da rede privada de educação para análise de tais documentos. Uma
delas havia disponibilizado o PPP da escola na forma resumida, pois o documento em
sua íntegra permanece na escola central do estado e a outra estaria passando por
uma transição administrativa. Foi então que decidi recorrer a uma quinta escola,
39
também da rede privada, para agregar outros recursos de análise a que esse trabalho
se propõe.
Atravessando por essa gama de percepções que os PPPs produzem em torno
dessa temática, pretendo nessa discussão fazer uso dos principais conceitos que
configuram a noção de discurso em Michel Foucault, bem como, sua linha de
pensamento sobre saber, poder, governamentalidade e produção de verdades.
Corroborando com essa ideia, faço alusão ao que Fischer (2001, p.1) afirma:“
para analisar os discursos, segundo a perspectiva de Foucault, precisamos antes de
tudo recusar as explicações unívocas, as fáceis interpretações e igualmente a busca
insistente do sentido último ou do sentido oculto das coisas – práticas bastante
comuns quando se fala em fazer o estudo de um 'discurso'”.
Ao mapear os documentos que poderiam servir de base para essa análise
investigativa, percebi o potencial que os Projetos Políticos Pedagógicos teriam nessa
produção de dados para “diagnosticar” as concepções que prevalecem no meio
educacional sobre a questão da infância. Essa proposta foi vislumbrada quando atuei
como coordenadora pedagógica de uma escola de educação infantil particular de
Santa Maria/RS, mas que, num primeiro momento, despertou a minha atenção para
outras questões que considerava mais pertinentes na época, como por exemplo, a
inteiração/conhecimento dos professores por tal documento. Porém, ao descobrir as
possibilidades que poderiam ser extraídas dos PPPs, especificamente sobre a ideia
de infância, essa proposta tomou outros rumos que me permitiram visualizar a infância
como uma problemática atual.
Essa viagem pelo mundo da problematização, como sugere o filósofo Michel
Foucault, para uma nova perspectiva de pesquisa em educação é, segundo Peters e
Besley (2008, p. 31), “dar um passo para trás....questionar significados, condições e
metas é ao mesmo tempo liberdade em relação ao que se faz. É tratar o objeto de
pensamento como um problema”.
A partir disso, tomei a iniciativa de acompanhar as reuniões pedagógicas que
vinham sendo realizadas no final de 2012 pelas escolas municipais de Santa Maria/RS
em parceria com a Secretaria de educação do município. Ao me apresentar à
secretária de educação que estava à frente da Secretaria de educação do Município
nesse período, fui recebida muito calorosamente, mas ao mesmo tempo, com certo ar
de desconfiança sobre o que eu pretendia realizar junto a esse órgão. Após uma breve
conversa com a secretária para explanar sobre a minha intenção de pesquisa, fui
40
encaminhada para a coordenadora responsável pela organização das escolas
municipais de educação infantil. Nesse momento me senti acolhida pela mesma,
porém, no princípio de nossa conversa, também percebi um receio em abrir as portas
das escolas de educação infantil para que eu pudesse vir a observar de que maneira
estavam sendo conduzidos os trabalhos na reestruturação dos projetos políticos
pedagógicos das instituições de ensino. Concluído esse processo de apresentação,
comecei a frequentar as reuniões pedagógicas, que eram agendadas pela própria
coordenadora em concordância e disponibilidade das escolas, ou seja, cada reunião
era realizada numa escola diferente. O público alvo desses encontros, os professores
de educação infantil, participava das palestras ministradas pela coordenadora e após
a sua apresentação teórica, era aberto aos profissionais um tempo para que eles
pudessem emitir suas opiniões, angústias, anseios e realizações vivenciadas no seu
espaço educativo. O interessante dessas colocações dos professores em relação ao
seu cotidiano escolar relacionava-se às dificuldades que eles encontravam para
aplicar seus planejamentos e, a partir dessas ideias, obterem total aproveitamento dos
alunos nas atividades propostas. Outra queixa muito comum correspondia às
expectativas que escola e família têm uma com a outra.
Infelizmente, como
estávamos nos aproximando do final do ano, acabei perdendo o contato com a
Secretaria Municipal de Educação e parti para outras possibilidades mais palpáveis.
Foi então que, ao organizar meu projeto de pesquisa para a qualificação do mestrado,
escolhi fazer uma análise mais adequada dos projetos políticos pedagógicos das
escolas de educação infantil de Santa Maria/RS e suas concepções sobre a infância.
Para selecionar as escolas que seriam envolvidas nessa situação, comecei a pensar
em algumas instituições onde eu pudesse ter fácil acesso por conhecer alguns
profissionais que nelas atuam. A seguir, faço uma breve descrição das escolas
participantes desse estudo:
A primeira escola visitada possui como perfil institucional os valores cristãos
aliados a uma pedagogia confessional. A escola pertence à rede privada de ensino e
está situada num bairro nobre da cidade. Sua clientela é bem variada, pois, além de
atender a comunidade na qual está inserida, ainda contempla um trabalho filantrópico.
Ao me dirigir à diretora responsável pela escola para transmitir minha intenção de
pesquisa, fui informada de que o projeto político pedagógico da escola estaria
passando por um processo de reformulação. Mesmo assim, insisti para adquirir o
material antigo, pois minha ideia era analisar a(s) concepção(ões) da escola em
41
relação ao tema a ser discutido nessa pesquisa: a infância. Ao mesmo tempo, dispus
do argumento de que não citaria o nome da escola no meu trabalho e nem faria um
julgamento sobre a proposta pedagógica da mesma. Então, foi-me prometido que tal
documento seria encaminhado via e-mail e, para que eu pudesse compreender as
bases teóricas que fundamentam a proposta institucional, fui presenteada com um
livro que retrata a história do fundador da congregação.
A outra escola selecionada caracteriza-se por ser uma instituição de ensino
municipal, com aproximadamente 290 (duzentos e noventa) alunos que vivem nessa
comunidade, onde a sede educativa está instalada, sendo a grande maioria crianças
com vulnerabilidade sócial, economica e emocional. A escola, considerada de porte
médio, está localizada no centro da cidade. Antes mesmo de se tonar uma escola,
esse espaço oferecia atividades recreativas com o apoio da UFSM, atendendo
crianças na faixa etária de 4(quatro) a 5 (cinco) anos de idade. Com o passar dos
anos, a creche vinculou-se à Secretaria Municipal de Bem Estar Social, mantida pela
Prefeitura Municipal de Santa Maria/RS. Instituída a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional, 9394/96, a mesma foi transferida para a Secretaria Municipal de
Educação, assumindo, a partir de então, suas peculiaridades como escola de
educação infantil. Visivelmente, é uma escola organizada, com espaços físicos
apropriados para atender crianças de 0 (zero) a 5 anos de idade. Ao conversar com a
diretora da instituição a fim de adquirir o Projeto Político Pedagógico da escola,
agendei um dia e horário para fazer uma visita formal à coordenadora e, assim,
requisitar o material de análise. Ao chegar à escola na data e horário estabelecidos
fiquei aguardando por alguns minutos a chegada da coordenadora pedagógica, mas
com a sua demora, a própria diretora se comprometeu comigo para disponibilizar o
documento, via e-mail.
No que se refere à terceira escola, fiz contato com uma professora que
trabalha numa escola particular de ensino, no setor da educação infantil, para
averiguar a viabilidade de conseguir o projeto político pedagógico da instituição na
qual ela atua. Alguns dias depois, voltei a me encontrar com ela para confirmar a
minha solicitação e, no mesmo momento, me foi explicado que o projeto político
pedagógico da escola, na versão integral, fica numa central em outra cidade do
estado. No entanto, a professora dispunha do documento na forma resumida. Assim
mesmo, resolvi aceitar tal proposta para analisá-la e verificar os dados que
compunham a mesma. Particularmente, não conheço as dependências dessa escola,
42
mas o que se sabe é que a instituição dispõe de um espaço físico privilegiado e,
atualmente, atende em torno de 450 alunos entre a educação infantil e anos iniciais
do ensino fundamental. Vale destacar que a escola possui um trabalho filantrópico e
faz parte de uma rede de ensino confessional, localizada no centro de Santa Maria.
A quarta instituição de ensino a qual requeri tal documento também integra a
rede de ensino particular. Sua estrutura física é de porte pequeno e fica situada num
bairro afastado do centro da cidade. A escola conta com uma clientela de, no máximo
40 (quarenta) crianças entre 2 a 6 anos de idade. Ao saber que a escola havia sido
vendida no início de 2013,fui ao encontro da nova gestão para me apresentar e
solicitar o material desejado. Nesse instante, a Diretora da escola tentou justificar que,
com a mudança de proprietário, a escola estaria passando por um processo de
transição, inclusive fazendo uma revisão do Projeto Político Pedagógico da gestão
anterior. Após algumas dificuldades para conseguir o material tive acesso a um
documento ainda incompleto. Para reiterar os detalhes sobre o material que havia
sido entregue, conversei com uma professora que havia atuado nessa instituição
sobre o antigo projeto político pedagógico e fui informada de que a antiga proprietária
havia solicitado a um grupo de professores que elaborasse um documento que
constasse uma referência teórica para ser apresentado ao Conselho Municipal de
Educação. Ao término dessa construção, o documento foi encaminhado ao seu
destino e nenhuma cópia ficou arquivada nos registros da escola.
Em virtude da falta de recursos de algumas escolas que pudessem contribuir
de forma significativa para a produção de dados dessa pesquisa, tomei a liberdade de
recorrer a outra instituição de ensino privado, de porte médio, localizada às margens
da BR 158, para requerer o seu Projeto Político Pedagógico. Ao ser recebida pela
coordenadora de educação infantil da escola, fui logo justificando a necessidade de
obter o documento solicitado para a realização da pesquisa. Senti que, num primeiro
momento, a gestora ficou um pouco confusa com a minha explanação. Além disso,
percebi certo desconforto da coordenadora em revelar que a escola não teria um
Projeto Político Pedagógico atualizado, em virtude de algumas mudanças como
espaço físico, nome e filosofia institucional.
Então, requisitei o documento que
pertencia à escola anterior e, mesmo assim, houve resistência para a disponibilização
do mesmo, sendo necessário agendar uma visita à direção da escola para obter a
liberação do documento desejado. Uma semana depois, no horário e dia marcados,
43
fui ao encontro da diretora da escola que, no mesmo instante, possibilitou a cópia do
Projeto Político Pedagógico da educação infantil.
Circulando por um conjunto de documentos que sistematizam a ação
educativa das escolas, comecei, assim, a investigação sobre a questão da infância,
utilizando como ferramentas os conceitos de saber, poder e governamentalidade, os
quais discuto a seguir.
3.1 Correntes marítimas – infância entre poder, saber, governamentalidade e
produção de verdade
[...] todas as verdades científicas são construções sociais e portanto
carregadas de valores e interesses sociais e políticos . (Oksala, 2011, p.65)
Entrecruzando as ideias esboçadas até aqui sobre a problemática que essa
pesquisa se propõe a discutir é que pretendo, neste capítulo, aproximar minha
intenção de pesquisa – a infância e os discursos que implicam esse tema nos
documentos oficiais sobre/de educação infantil –, com alguns conceitos sobre saber,
poder, governamentalidade e produção de verdades, constituídos pelos estudos de
Michel Foucault. Por que pesquisar a infância numa perspectiva foucaultiana?
Primeiramente, pela possibilidade que seus estudos proporcionam para compreender
os movimentos históricos como experiências de cada tempo e espaço social.
Também, porque ao estabelecer as relações entre infância, saber, poder,
governamentalidade e produção de verdades, será possível perceber de que modo à
educação, especialmente a educação infantil, vem sendo enquadrada numa “arte de
governar sob a razão do Estado” (Foucault, 2003). Tal expressão nos remete a uma
compreensão de Estado que, como explica Foucault (2003, p. 295) “se governa
segundo as leis racionais que lhe são próprias, que não se deduzem das únicas leis
naturais ou divinas, nem dos únicos preceitos de sabedoria e prudência”.
Diante das mudanças que vêm ocorrendo no cenário educacional brasileiro,
penso que seria de grande relevância iniciar essa discussão sobre os movimentos que
vêm sendo articulados pelas políticas públicas de “inclusão escolar” – não me refiro
aqui à inclusão de alunos com necessidades especiais – em relação à obrigatoriedade
do ingresso de crianças a partir de 4 anos de idade na instituição infantil, até 2016. Na
sequência, pretendo fazer um paralelo entre a tramitação legal referente ao sistema
educacional vigente e as formulações das propostas pedagógicas das escolas de
44
educação infantil acerca dos discursos que tentam alicerçar uma “educação de
qualidade para todos”. Partindo dessa premissa sobre a obrigatoriedade do ingresso
das crianças a partir de 4 anos de idade na escola de educação infantil, aponto que
essa emergência para conduzir as crianças cada vez mais cedo para a escola pode
ser considerada uma estratégia política de governamento para garantir um controle
sobre a população e, consequentemente, um maior gerenciamento sobre a conduta
dos cidadãos. Nessa perspectiva, buscando compreender as relações que se
estabelecem a partir dessa reforma com o pensamento foucaultiano, entende-se que
essa prática discursiva que designa uma arte de governar voltada para “uma
população”
está
associada
a
uma
estratégia
de
poder
denominada
governamentalidade. Segundo Gadelha (2009), entende-se por governamentalidade
“tipos de racionalidade que envolvem conjuntos de procedimentos, mecanismos,
táticas, saberes, técnicas e instrumentos destinados a dirigir a conduta dos homens”
(p. 120).
Temos, ainda, outra possibilidade de compreender a inserção obrigatória de
crianças a partir dos 4 anos de idade na escola, como uma forma de assegurar
determinadas produções de verdades aliados a discursos de poder. Foucault (1977,
p. 229), nos assinala que
“Há efeitos de verdade que uma sociedade como a sociedade ocidental, e
hoje se pode dizer a sociedade mundial, produz a cada instante. Produz-se
verdade. Essas produções de verdades não podem ser dissociadas de poder
e dos mecanismos de poder, ao mesmo tempo porque esses mecanismos de
poder tornam possíveis, induzem essas produções de verdades, e porque
essas produções de verdade têm, elas próprias, efeitos de poder que nos
unem, nos atam.” (1977, p.229)
Entende-se por poder e mecanismos de poder todo o movimento produzido
por uma determinada época para instituir uma verdade e mantê-la sempre no poder.
Ou seja, ao pensarmos em produção de verdade associada às relações de poder
instituídas no campo da educação, é notável como esses discursos vêm
potencializando o atual sistema de educação, em especial, a educação infantil de
nosso país. Refiro-me, novamente, às últimas reformas educativas promulgadas a
partir de 2006 para tentar instituir uma política de saber-poder, onde a criança, na
faixa etária entre 4 (quatro) a 5 (cinco) anos, se torna alvo dessas práticas discursivas.
A partir das ferramentas conceituais sobre saber, poder, governamentalidade
e produção de verdade, as quais atravessam as questões que envolvem a infância
45
como “material de sonhos políticos” é que pretendo no próximo capítulo, Infância
Cidadã, discutir as linhas de ação pedagógica instituídas pelas escolas de educação
infantil na construção de uma infância cidadã.
46
4 NATURALIZAÇÃO DA INFÂNCIA
Para sempre cinderela?!
“...é muito importante que a investigação procure
tanto a discursividade ligada a uma reflexão
sobre as capacidades humanas como a própria
supervisão e estruturação do campo onde decorre
à ação dos indivíduos.”...Depara-se-nos então
uma imensidão de documentos e procedimentos
que conectam, em redes muito delicadas, o pensamento,
as decisões e as aspirações de cada um dos actores seja
com as racionalidades de governo, seja com grupos
e organizações sociais.( Ó, 2009, p.103)
Procurando compreender de que forma as escolas de educação infantil, por
meio dos seus PPPs, constituem uma ideia de infância, inicio esse capitulo fazendo
uma breve análise do trecho que abre essa seção, onde o autor nos possibilita
vislumbrar diferentes perspectivas sobre discursos, documentos, governo, grupos e
organizações sociais para a produção de dados de uma pesquisa investigativa.
Chama-se a atenção para a “cumplicidade” entre alguns elementos fundamentais que
foram ou serão considerados importantes para a estruturação dessa análise. Refirome à fusão entre os discursos que foram e estão sendo produzidos para instaurar uma
ideia sobre a temática a ser investigada, bem como, à ação dos indivíduos envolvidos
nessa proposta de trabalho. Considerando o contexto e a realidade de cada instituição
de educação infantil de Santa Maria/RS, é que a partir desse momento começo a
inferir algumas ideias que circulam nos documentos oficiais dessas instituições sobre
uma possível naturalização da infância construída ao longo da história. Vale ressaltar
que os apontamentos que determinam essa perspectiva de infância serão transcritas
ao longo do texto e sinalizadas pela legenda (A, B e C) estabelecida para caracterizar
cada uma das escolas analisadas.
Frente à materialidade disponibilizada para a produção de dados dessa
pesquisa – os Projetos Políticos Pedagógicos – faço menção a um fragmento do
Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil (1998) que diz,
“...a maioria das propostas concebe a criança como um ser social, psicológico
e histórico, tem no construtivismo sua maior referência teórica, aponta o
universo cultural da criança como ponto de partida para o trabalho e defende
uma educação democrática e transformadora da realidade, que objetiva a
formação de cidadãos críticos. ...Não são explicitadas as formas que
possibilitam a articulação entre o universo cultural das crianças, o
desenvolvimento infantil e as áreas de conhecimento.” (p.43)
47
Tendo em vista a ideia de criança que se estabelece na maioria das propostas
escolares, destaco como vertente analítica para/na formulação desses conceitos a
preferência por uma linha teórica que valoriza/prioriza o sujeito e o compromete na
construção do seu próprio conhecimento, de acordo com o seu contexto cultural. Entre
os discursos analisados, destaco: Implantar uma educação de qualidade, que
reconhece e valoriza as diferenças entre as crianças e, que dessa forma, beneficie a
todos no que diz respeito ao seu desenvolvimento e a construção dos seus
conhecimentos. Criar um ambiente que propicie a vinculação natural da criança ao
ambiente escolar, despertando a responsabilidade, a verdadeira liberdade, a
criticidade e a generosidade, num espírito de confiança e respeito mútuo, e de
cooperação e solidariedade (Escola A). É bom lembrar que a criança participa de um
determinado contexto cultural e social, num determinado contexto histórico. Esse
contexto marca sua vida, influencia seu destino. Portanto, está presente e precisa ser
considerado no seu processo de desenvolvimento e aprendizagem (Escola B). A partir
de estudo, encontros e reflexões a escola reafirmou o compromisso de trabalhar com
a Pedagogia de Projetos, que por sua vez, valoriza as experiências dos alunos, seus
conhecimentos prévios, sua curiosidade e seus interesses, respeitando as
características de cada contexto e as diferenças individuais das crianças (Escola
C).Por outro lado, considero relevante marcar que, ao tentar operar com essas
ferramentas conceituais para enquadrar a criança numa perspectiva de infância,
outros elementos que a constituem permanecem desarticulados. Em outras palavras,
parece-me que a escola encontra dificuldades para estabelecer uma interlocução
entre o sujeito-criança e suas implicações no meio social a qual ele(a) pertence com
outros instrumentos pedagógicos considerados fundamentais para a constituição de
novos saberes articulados à questão da infância.
Nesse sentido, Foucault (2002, p. 26-27) nos aponta que “a ideologia é a
marca, o estigma destas condições políticas ou econômicas de existência sobre um
sujeito de conhecimento que, de direito deveria estar aberto à verdade”. Fazendo uma
análise sobre essa passagem, parece-me que ao depararmo-nos com a possibilidade
de a escola poder estabelecer uma educação voltada para o sujeito em busca da
conquista da sua própria liberdade mais nos tornamos imbricados por uma relação de
poder que nos compromete uns com os outros e, consequentemente, com as ações
que implicam nossas práticas educativas.
48
Nessa perspectiva, aponto que a educação infantil, além de ser um espaço
educativo que visa potencializar o sujeito como sujeito ativo na sociedade, passa a
exercer concomitantemente, uma atividade pedagógica focada em “conceitos” que
perpassam as questões do ser infantil. Articulando essas teorias que fomentam
práticas discursivas e não discursivas na configuração do perfil pedagógico das
escolas de educação infantil às questões relacionadas à infância ressalto, novamente,
uma discordância de proposições acerca dessa problemática. Refiro-me aqui aos
princípios pedagógicos que sustentam uma linha de ação teórica e as práticas
aplicadas no cotidiano escolar.
Entre as questões pontuadas, destaco alguns enunciados presentes nos
PPPs, como a educação infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da
criança, contemplando os aspectos sociais, cognitivos, emocionais e corporais
(Escola B).Numa outra esfera pedagógica, a educação é um contínuo adaptar-se às
necessidades, às etapas e aos ritmos de crescimento vital das pessoas, pois cada ser
possui uma forma original para captar os estímulos provenientes de seu mundo
exterior. Esta pedagogia exige do educador uma grande flexibilidade, capacidade de
adaptação a novas situações, espírito criativo e sensibilidade psicológica para captar
as novas necessidades pessoais e do grupo e fazê-las fluir visando o desdobramento
e crescimento dos que lhe são confiados (Escola A).
Para a Escola C, a educação vislumbra uma pedagogia em que educar
através da brincadeira, da exploração e da expressão das diversas linguagens,
proporcionando a formação da criança em um ser feliz, autônomo, criativo e ético, que
contribua de forma harmoniosa para o desenvolvimento do meio em que esta inserido,
respeitando a diversidade.
Diante desses discursos pedagógicos que ora privilegiam a criança como um
sujeito a ser trabalhado para garantir um futuro promissor, ora estabelece uma relação
entre a criança e o ser em busca da sua própria felicidade, indaga-se: como pensar a
infância numa outra perspectiva pedagógica?
Segundo Narodowski (2001, p.21)
“ a infância representa o ponto de partida e o ponto de chegada da pedagogia.
O desenvolvimento de instrumentos capazes de reconhecer o rumo inicial do
discurso pedagógico precisa antes de mais nada observar de perto esse
elemento anterior e fundamental, essa conditio sinequa non da produção
pedagógica: a infância.”
49
Nessa conjuntura, parece-me que as escolas de educação infantil estão
reforçando experiências históricas, onde as condições pedagógicas estão voltadas
apenas para o saber infantil. A aceleração do processo de alfabetização, em razão da
reforma nº 11.274/2006 que institui o ingresso de crianças a partir dos 6 (seis)anos de
idade completos no ensino fundamental, tem sido o elemento mais relevante nas
práticas pedagógicas dos educadores que atuam diretamente com crianças nessa
faixa etária. Mais uma vez, reporto-me à ideia de Comenius quando ele sugere, em
sua obra Didactica Magna, uma proposta de trabalho que visa “uma nova arte, cada
vez mais racional e mais política, que entra em consonância com a potência de um
Estado, cuja meta é aumentar esta mesma potência tanto em intenção quanto em
extensão” (CORAZZA, 2002, p.156)
Ainda do ponto de vista de Narodowski (2001, p. 21 ),
“a pedagogia, enquanto produção discursiva destinada a regrar e explicar a
produção de conhecimentos no âmbito educativo-escolar, dedica seus
esforços a fazer desses pequenos “futuros homens de proveito” ou
“adaptados à sociedade de maneira criativa, ou “sujeitos críticos e
transformadores”, etc.. A pedagogia obtém na infância seu pretexto irrefutável
para educar e reeducar na escola, para participar da formação dos seres
humanos e dos grupos sociais.”
Reafirmando essas condições básicas para uma formação integral do sujeito,
destaco que, a partir das novas reformas políticas educacionais, a educação infantil
passou a valorizar/transformar os conhecimentos espontâneos em conhecimentos
científicos, envolvendo a criança nesse processo como sujeitos ativos e responsáveis
pela aquisição de novos conhecimentos. Essa relação que se estabelece entre criança
e conhecimento é que permitirá a esse sujeito projetar-se no mundo adulto, através
de instrumentos que facilitarão a sua participação organizada e ativa da
democratização da sociedade. Instrumentos esses que vinculam os interesses infantis
com o conhecimento do mundo e as relações existentes entre os mesmos.
Conforme Barbosa e Horn ( 2008, p. 28), “as diversas mudanças ocorridas
nos últimos 50 anos levam-nos a observar grandes transformações nos modos como
as crianças vivem as suas infâncias [....] passou-se de uma concepção segundo a
qual as crianças eram vistas como seres em falta, incompletos, apenas a serem
protegidos, para uma concepção das crianças como protagonistas do seu
desenvolvimento, realizado por meio de uma interlocução ativa com seus pares, com
os adultos que as rodeiam, com o ambiente no qual estão inseridos.”
50
A partir dessa configuração de infância observa-se fortemente nos discursos
pedagógicos das escolas de educação infantil, por meio de seus projetos políticos
pedagógicos, sejam elas laicas (rede pública ou privada de ensino), filantrópicas e/ou
confessionais, uma intenção filosófica que embasa e fundamenta a educação e suas
práticas educativas. Essas percepções filosóficas se constituem nesses espaços
educativos de aspectos relacionados às questões sociais, psicológicas, políticas,
econômicas (Escolas B e C) e, também, de situações/condições que interpretam o
homem/criança como imagem e semelhança de Deus (Escola A). Em todas elas, a
ênfase na criança supõe que ela é o centro da pedagogia. Todos os recursos
pedagógicos são pensados e estruturados de acordo com a faixa etária da criança e
seu processo maturacional, pois[...] nesse período da vida, a pessoa se constitui como
individualidade, constitui sua identidade, constrói valores, conhecimentos e
significados, desenvolvendo sua singularidade e pluralidade. (Escola B)
Ainda dentro dessa perspectiva filosófica, é interessante salientar a
constituição de princípios/objetivos que permeiam as escolas em seus propósitos
educativos. Para essa especificidade cito as questões culturais que a criança
evidencia por meio de suas ações no contexto escolar, permitindo um
“aperfeiçoamento” de suas práticas reflexivas como condição para a construção de
sua autonomia, criticidade, cooperação, ética, entre outros. Articulando interesses
comuns entre a Pedagogia da autonomia e outras tendências que submergem de um
sistema educacional particular de cada instituição, faço menção a uma proposta que
se estabelece a partir de alguns princípios, objetivos e processos vitais chamados
“estrelas guia” (Escola A). “Estrela guia”é uma expressão, que no meu entendimento,
evoca uma concepção pedagógica de infância que articula o cuidar e o educar de uma
criança em desenvolvimento, levando em consideração o que ela traz na sua
bagagem de conhecimentos aliados aos ensinamentos pedagógicos e religiosos. Sua
subdivisão permeia algumas características que se interligam em todo o sistema
educacional, são elas: Pedagogia do Ideal, Pedagogia da Vinculação, Pedagogia da
Aliança, Pedagogia da Confiança e Pedagogia do Movimento ou Correntes da
Vida(Escola A). Cada uma dessas metodologias adequadas à realidade educacional
da instituição possui intenções diferentes, mas com um propósito em comum, a
formação do novo homem na nova comunidade (Escola A).
Essa produção de ideias acerca da possibilidade de o indivíduo/criança tornarse um ser na sua plenitude pode ser considerada uma tendência audaciosa e
51
inovadora no/para o cenário da educação infantil. De acordo com os eixos norteadores
que embasam outras estruturas pedagógicas, a educação infantil deve contribuir para
que a infância seja vivida de forma intensa e prazerosa no presente (Escola B). As
relações que iremos construir com nossos alunos têm como referência as relações
que acontecem entre escola e as famílias. Temos que somos espelhos das famílias
e, consequentemente dos nossos alunos (Escola C). Consideramos o grande valor da
orientação religiosa na educação que visa formar e configurar a vida dos educandos.
Ela quer abranger a vida prática e de todos os dias, formar princípios, interferir na vida
diária, quer se trate da vida familiar, quer de outras formas de vida comunitária (Escola
A). Em contraposição a esses discursos, aponto que essa possibilidade da
criança/infância ser o alvo da pedagogia moderna incita uma ideia de que é a partir
da sua ‘voz ativa’ que a educação busca formalizar suas propostas educativas,
considerando seus conhecimentos prévios, necessidades, curiosidades e interesses.
Por outro lado, coloca-se em evidência a integridade desses discursos infantis para
estabelecer uma linha de ação única/homogênea, sendo que, o trabalho pedagógico
deve estar fundado nas diferenças individuais e na consideração das peculiaridades
das crianças da faixa etária atendida pela educação infantil (Escola B). Em outras
palavras, proponho a pensar a integridade do discurso das crianças para expressar
seus conhecimentos, necessidades, interesses e curiosidades, sem que esses
elementos sofram interferência de qualquer tipo, modo ou situação de um adulto.
Contrapondo esse conjunto de discursos pedagógicos que sinalizam uma
possível condição na estruturação familiar da criança, faço menção à outra
característica de criança enquadrada num contexto de vulnerabilidade social,
econômica e emocional. Mas, qual(is) a(s) ferramenta(s) conceitual(is) utilizada(s)
pelas escolas para distinguir uma família estruturada para outra considerada
desestruturada? Que ideia de infância entrecruza as questões sociais em que a
criança está inserida? Como a escola percebe e se movimenta para amenizar a
diferença entre as classes sociais? Infelizmente, os PPPs das escolas de educação
infantil, com diferentes perfis pedagógicos, que atendem uma demanda com
diferentes níveis sociais, têm dificuldade para prever uma ideia de infância voltada
para essas diferentes realidades. Em outras palavras, ao definir como parâmetro
pedagógico a “obediência” a algumas características que “normatizam” as crianças e
seu processo de desenvolvimento é perceptível que outras perspectivas de infância
deixam de serem pensadas e tornarem-se verdades no tempo e espaço que se está
52
vivendo/ experienciando. Nessa perspectiva, reforço a ideia de que a população
“pequena” vem sendo alvo de políticas históricas, culturais e sociais que tentam
capturar esses sujeitos cada vez mais cedo para/na escola para gerenciar e conduzir
suas condutas. Essa estratégia de poder e governamento, como bem nos explicita
Foucault (2008, p.140) diz que,
“... a população vai ser o objeto que o governo deverá levar em conta nas
suas observações em seu saber, para chegar efetivamente a governar de
maneira racional e refletida. A constituição de um saber de governo é
absolutamente indissociável da constituição de um saber de todos os
processos que giram em torno da população no sentido lato, o que se chama
precisamente “economia”.”
Baseada nessas conjunturas familiares, chamo a atenção para o papel da
escola como um espaço educativo que busca uma concordância com esses
ensinamentos familiares com o intuito de constituir um canal aberto (Escola C) e,
assim, dispor de um conjunto de ações em prol dessa criança em seu pleno processo
de desenvolvimento. Além disso, é notável o comprometimento da escola com os
aspectos relacionados à vida, estendendo suas atribuições à comunidade escolar,
com o intuito de fazer ser e agir para que a vida aconteça verdadeiramente (Escola
C).
Nesse sentido, um discurso comum que circula em um dos projetos políticos
pedagógicos, em especial, das escolas confessionais, ressalta a importância dessa
etapa para despertar os educandos para a realidade de serem imagem e semelhança
de Deus, valorizando-os em sua dignidade de filhos de Deus, para que seu agir –
desde a mais tenra idade- seja coerente com o seu ser (Escola A).
Outra
característica que permeia essa naturalidade das coisas, do ser e do agir, refere-se
ao homem remido que, por natureza e graça, pertence à ordem da natureza e à ordem
da graça. Por sua vez, a educação é convertida em “harmonizar estas duas
dimensões, considerando que o desenvolvimento se dá num crescimento lento, de
dentro para fora, e de uma totalidade orgânica a outra totalidade orgânica (Escola A).
Argumenta, ainda, que a infância é educável, mas não pedagogizante. Em outras
palavras, a infância não é uma etapa preocupante, sendo que os “critérios de
graduação, ordem e racionalidade presidirão o processo de seu amadurecimento”
(p.47).
53
Aqui, mais uma vez, retoma-se a ideia da família como princípio natural de
vida das crianças. A importância do adulto na (in)formação da criança se revela como
uma base essencial e indispensável na formação desse ser. Entrecruzando essas
implicações/orientações dos adultos no processo de desenvolvimento infantil é visível
que, para que a criança se torne um adulto promissor é de extrema importância a
presença constante da família na condução e supervisão dos conhecimentos de que
ela irá se apropriar.
Por sua vez, Corazza (2002) também discute algumas características
inerentes ao pensamento de Comenius sobre a infância a partir de duas perspectivas:
a influência da religião – relação entre Jesus e as criancinhas – e o discurso
educacional instituído por Comenius. Segundo a autora, pode-se dizer que a obra de
Comenius, intitulada Didactica Magna, revela “práticas que, para falar do infantil,
articularão saberes e poderes religiosos com os conhecimentos científicos e políticos”.
(p. 140)
Para vislumbrar essa concepção do ser infantil e sua aproximação com
questões religiosas, científicas e políticas é interessante marcar que a escola,
enquanto instituição de ensino, tem como objetivo principal proporcionar condições
para o desenvolvimento integral da criança, valorizando seus conhecimentos,
garantindo-lhes um espaço propício para a ampliação de “novas” experiências de vida,
interligadas ao sobrenatural para a formação da cidadania. Agregando outras formas
de experimentação para aquisição do conhecimento, elegem-se os temas transversais
como uma possibilidade para ampliar uma discussão sobre os problemas sociais e,
ao mesmo tempo, valorizar a capacidade de questionar das crianças.
Creio que, para além dos conteúdos pedagógicos de aprendizagem, os temas
transversais representam, segundo os PPPs das escolas, uma gama de atividades
orientadas que possibilitam à criança, através do lúdico, desenvolver as capacidades
mínimas de compreensão do mundo e das relações interpessoais.
Diferentemente do pensamento de Comenius, Rousseau (Streck, 2004)
considerava que para entender a criança e sua gramática é necessária uma
compreensão dos movimentos que a criança mesma estabelece para apreender as
coisas que estão a sua volta. Para ele, o processo educativo deve ocorrer pelas
experiências da infância. É visível que, na concepção de Rousseau, a criança tornase o centro do processo educativo, mas é a partir de suas experiências/vivências
naturais que ela constrói os saberes que futuramente serão úteis para levá-la ao
54
encontro da ciência. À busca de um conhecimento pela criança Rousseau denomina
de “método da criança”. Partindo desse princípio, torna-se visível o papel da educação
infantil como um espaço educativo que vincula naturalmente a criança nesse
ambiente; proporciona experiências de conhecimento nato e religioso; desperta a
responsabilidade, a verdadeira liberdade de cada ser, num espírito de confiança e
respeito consigo mesmo, com os outros, com a natureza e com Deus. Por outro lado,
de que modo essas experiências singulares poderão contribuir significativamente no
processo de formação da criança no momento em que ela vivencia essa formação?
É interessante perceber que, tanto Comenius como Rousseau, tiveram a
preocupação de mencionar em seus estudos a infância como princípio da vida. Para
Comenius, a infância não gerava nenhum tipo de “violência” para a sociedade, pois
na sua constituição não havia inteligência para tal ação, já para Rousseau, a criança
era considerada um fenômeno natural que se constitui de modelos desde o momento
da concepção até o momento em que é inserida na sociedade, sendo corrompida pela
mesma – perdendo sua pureza de estado para um ser conveniente para tal sociedade.
(Streck, 2004)
Frente a essas diferentes posições teóricas, Kohan (2003, p.247 - 248) propõe
uma educação que,
Permite viver a infância como novidade, como experiência, como
descontinuidade, como multiplicidade, como desequilíbrio, como busca de
outros territórios, como história sempre nascente, como devir, como
possibilidade de pensar o que não se pensa e de ser o que não se é, de estar
em outro mundo daquele no qual se está. Se há algo a se preparar por meio
da educação, é a de não deixara infância, a experiência. Preparamo-nos para
recuperá-las, se as perdemos. Se a educação é educação dos que não estão
na infância, dos excluídos da experiência – sejam crianças ou adultos -, a
tarefa de uma tal educação é inventar essa infância e não deixar que se volte
a perder.
Considerando que a infância constitui-se historicamente uma invenção
moderna, penso que essa pesquisa foi e ainda é um trabalho provocativo aos velhos
e novos pesquisadores da educação, para que, como nos chama a atenção a autora
Kramer (2007, p.16), “olhar o mundo do ponto de vista da criança pode revelar
contradições e uma outra maneira de ver a realidade.”
55
5 INFÂNCIA CIDADÃ
“(...) uma época não se deixa capturar por seus contemporâneos a partir dos
grandes movimentos, haja vista que a realidade social e cultural é sempre
mais ampla que a perspectiva de visada possível a compreensão humana.”
(Pereira, 2012, p.28)
Esse capítulo discute de que maneira as escolas de educação infantil de
Santa Maria/RS produzem o que denominei, para fins da análise realizada, como
‘Infância Cidadã.’ Para tal proposta far-se-á uma compreensão dos discursos que
estão dispostos nos Projetos Políticos Pedagógicos das respectivas instituições
selecionadas para essa pesquisa. Paralelo a essas questões, proponho também
discutir como as escolas vêm operando com esses conceitos de infância cidadã para
produzir sujeitos de direitos civis.
Nesse sentido, Foucault (1982) aponta que,
(...) conceituação não deveria estar fundada em uma teoria do objeto – o
objeto conceituado não é o único critério de uma boa conceituação. Temos
de conhecer as condições históricas que motivam nossa conceituação.
Necessitamos de uma consciência histórica da situação presente.” (p.274)
Considerando os movimentos políticos, econômicos e sociais das últimas
décadas sobre a institucionalização da escola de educação infantil, assunto este já
discutido no capítulo intitulado Cara ou Coroa? variações sobre a infância, é notável
a busca incessante das escolas para constituir práticas discursivas que viabilizem um
projeto pedagógico voltado para a formação do cidadão.
De acordo com Sommer (2007, p. 58), (...) há determinadas regras que
sancionam ou interditam a produção e circulação de práticas educativas escolares.”
Nesse
sentido,
rompendo
com
alguns
paradigmas
que
estabelecem
os
“procedimentos” para a reestruturação dos Projetos Políticos Pedagógicos, reportome a um discurso fortemente presente nesses documentos para exprimir uma ideia
que associa gestão democrática e infância cidadã. Entre elas, cito o que está disposto
no PPP da escola da rede pública de ensino, referindo-se a essa prática como um
“atributo indispensável na melhoria do desenvolvimento e desempenho das escolas
de educação infantil.” Salienta-se que essa premissa – gestão democrática- instituída
na Constituição Federal de 1988 e reverenciada na LBD 9394/96 e que prevê uma
possibilidade de fomentar uma discussão participativa entre todos os envolvidos com
56
a educação escolar – gestores, professores, funcionários e comunidade escolar- na
estruturação dos PPPs, institui um discurso devidamente adaptado ao nível de
compreensão de cada escola. Digo isso, porque a partir da análise das questões que
aproximam a ideia de Gestão democrática e infância cidadã, foi possível conhecer as
“fontes inspiradoras” que determinam o perfil pedagógico de cada instituição. Por
outro lado, assinalo que, ao tentar articular uma relação entre gestão democrática e
infância cidadã uma tensa e intensa pluralidade de ideias permitiu difundir essa
temática e, assim, abrir outras perspectivas para atender essa demanda educativa.
De acordo com as Diretrizes Curriculares para a Educação Municipal (2011),
“a gestão democrática propõe a descentralização de decisões com a participação,
mesmo representativa, da comunidade educacional, na construção do Projeto Político
Pedagógico.” (p.38) Nesse sentido, considero pertinente destacar que, ao me referir
a “competência” da gestão democrática escolar, minha intenção é analisar a
concordância desse dispositivo pedagógico as questões que aliam as ideias que
foram e estão sendo instituídas nos discursos dos PPPs sobre a formação de uma
infância cidadã.
Entretanto, importa ressaltar que, gestão, “do latim gestio, refere-se a acção
e ao efeito de gerir ou de administrar.” O termo pode ser instituído em diferentes
contextos, incluindo um tipo bem específico associado à educação denominado
gestão do conhecimento. Esse tipo de gestão “trata de um conceito aplicado às
organizações, que se refere à transferência do conhecimento e de experiências
existentes entre seus membros.” (http://conceito.de/gestao)Já democrática, vem de
democracia, ou seja, uma forma de governo. O termo origina-se do grego antigo
demokratia, ou seja, governo do povo. (http://www.significados.com.br/democracia.)
De acordo com a Constituição Federal de 1988, a expressão gestão
democrática no ensino público marca uma ideia de que é a partir desse dispositivo
que a escola deverá buscar subsídios legais para uma formação de princípios que
nortearão a Educação nacional. Em outras palavras podemos considerar que essa
prática discursiva legitimada na legislação vigente pressupõe outras possibilidades a
escola para elencar novos valores educativos às suas ações pedagógicas. Refiro-me
aqui, fundamentalmente, à ideia de cidadania que circula nos documentos
pedagógicos das instituições para proferir os direitos e deveres da criança e suas
implicações na formação de um sujeito livre.
57
Hillesheim (2008), na sua tese de doutorado, nos assinala uma possibilidade
de pensar a infância cidadã a partir de uma perspectiva platônica como um “material
de sonhos políticos.” (p.75) Essa intenção de tornar a infância alvo de estratégias
políticas e econômicas nos permite vislumbrar a construção de uma sociedade mais
justa para todos. Ao buscarmos uma compreensão dos aspectos legais que incidem
sobre a criança, vista como um sujeito de direitos e deveres sociais, eis que surgem
algumas questões sobre o que a criança pode ou deve representar para nossa
sociedade no futuro. Como a autora nos aponta, “as crianças não valem pelo que são,
mas pelo que virão a ser, sendo que necessitam ser educadas para fazê-las partícipes
de uma polis previamente sonhada.” (p.75)
Nessa perspectiva, Kohan (2003, p.27) destaca que, para Platão, “há uma
conexão direta entre as qualidades de uma polis e as dos indivíduos que a compõem,
qualidades que não estão dadas de uma vez por todas, mas que dependem
fortemente do contexto onde se desenvolvem”. Diante disso, fica visível que numa
perspectiva platônica a concepção de infância não está vinculada diretamente às
crianças pequenas, sendo essas consideradas jovens educáveis para obter condições
necessárias para governar o conjunto. É interessante observar que nesse período
histórico a educação era o único recurso viável para garantir aos jovens uma inserção
social e política privilegiada. Circulando ainda pelo território de Platão, considera-se
que “a infância é um problema filosoficamente relevante enquanto se tenha de educála de maneira especifica para possibilitar que a polis atual se aproxime o mais possível
da normatizada”(Ibidem, p.28-29) . Nesse sentido, Platão alerta: “é necessário pensar
outro cuidado, outra criança, outra educação, uma experiência infantil da verdade e
da justiça, que preserve e cultive o que nessas naturezas há de melhor e o ponha a
serviço do bem comum” (Ibidem, p.28).
Atravessados por esses discursos, penso ser pertinente pontuar, inicialmente,
o conceito de cidadania que subsidiará uma discussão sobre esse assunto e, ao
mesmo tempo, gerar novas perspectivas de compreensão sobre essa temática. Após
essa análise conceitual, sinalizo a partir dos discursos pedagógicos das escolas de
educação infantil de Santa Maria algumas concepções de cidadania que estão sendo
produzidos nesses contextos educacionais. E, para tal empreitada, far-se-á uso da
mesma legenda que sinaliza os discursos pedagógicos das escolas analisadas (A, B
e C) constituída no capitulo anterior para destacar as principais ideias de infância
cidadã de cada escola.
58
Entende-se por cidadania um conjunto de ‘direitos e deveres civis’ que
permitem o sujeito intervir, direta ou indiretamente, no cenário social, político,
econômico e cultural da sociedade em que vive. “A cidadania está relacionada com a
participação social, porque remete para o envolvimento em atividades em associações
culturais (como escolas) e esportivas.” http://www.significados.com.br/cidadania/.
Segundo essa concepção de cidadania, é visível que, à educação compete preparar
o cidadão para exercer sua cidadania. Numa perspectiva foucaultiana, “enquanto o
sujeito humano é colocado em relações de produção e significação, é igualmente
colocado em relações de poder muito complexas”(Foucault, 1982, p.274). Ainda para
o autor,
Essa forma de poder aplica-se à vida cotidiana imediata, que categoriza o
indivíduo, marca-o com a sua própria individualidade, liga-o à sua própria
identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reconhecer e que os
outros têm de reconhecer nele. É uma forma de poder que faz dos indivíduos
sujeitos. (1982, p. 278)
Nesse sentido, tentarei compreender de que forma as escolas de educação
infantil contemplam alguns objetivos teórico-práticos para constituir instrumentos
pedagógicos que auxiliam na formação cidadã.
A seguir passo a transcrever o que dizem os PPPs das escolas analisadas.
Escola A
...possibilitar
a
construção
de
autonomia,
cooperação,
criticidade,
responsabilidade, formação do autoconceito positivo, vinculado ao sobrenatural para
a formação da cidadania.” (p.3)
...despertar os educandos para a realidade de serem imagem e semelhança
de Deus, valorizando-os em sua dignidade de filhos de Deus, para que seu agir –
desde a mais tenra idade – seja coerente com seu ser.” (p.4)
Fazendo uma análise entre a ideia que permeia a palavra cidadania, referida
no início dessa seção e a questão do agir da criança por sua imagem e semelhança
de Deus, penso que essa perspectiva de infância estabelece um ideal de sujeito que
perpassa qualquer possibilidade de compreensão do ser infantil. Ou seja, tenta-se
potencializar um discurso, onde a criança é induzida a assumir características
associadas a algo ligado ao sobrenatural. Essa compreensão de criança e de
conhecimento natural será abordada no capítulo seguinte, onde discuto a questão da
naturalização da infância implicados nos PPPs.
59
Escola B
“A nossa prática educativa se baseia na visão de uma sociedade justa,
solidária, ética e sustentável, vislumbrando a existência de um mundo saudável,
democrático e plural. Acreditamos, assim, contribuir para a formação de cidadãos
conscientes e comprometidos na construção de um mundo melhor. (s.p.)
“A infância não tem seu valor justificado apenas por ser um tempo de
preparação para que no futuro, a pessoa tenha um bom desempenho escolar, seja
um bom cidadão, apresente habilidades requeridas pelo mundo de trabalho, etc.. A
educação infantil deve contribuir para que a infância seja vivida de forma intensa e
prazerosa no presente.” (s.p.)
No que diz respeito à infância cidadã, considero interessante destacar nesses
enunciados uma divergência de ideias que embasam uma mesma proposta
pedagógica. De um lado, quando a escola se refere a uma prática educativa voltada
para uma perspectiva de sociedade mais justa, solidária, ética e sustentável, creio que
essa projeção na figura da criança para transformar uma sociedade e/ou o mundo,
como habitualmente nos referimos, exige que as escolas adotem uma postura
pedagógica, onde a questão da cidadania seja constantemente analisada, pensada e
discutida em todas as ações propostas pelas diferentes áreas do conhecimento. Isso
leva-nos a pensar que, somente por meio dessas reflexões a criança será capaz de
intervir de forma produtiva no contexto em que ela está inserida. Porém, aponto que
essa percepção de cidadania ao qual essa escola de educação infantil vem operando
não condiz com as noções de infância até então apresentadas pela mesma. Por outro
lado, ao enfatizar uma ideia de infância a ser vivida com prazer no presente, penso
que esse embate entre ser consciente dos seus atos e ser criança por criança
sugerem uma incompatibilidade de pensamentos que tentam alicerçar a importância
da formação do sujeito e sua inserção na sociedade.
Escola C
“No momento em que a escola prioriza a vida, ela assume o compromisso de
valorizá-la, cultivá-la e fazê-la desabrochar em todos os sentidos. Assim, o seu papel
será de sensibilizar e de humanizar a comunidade escolar a fim de tornarem-se
cidadãos capazes de perceber e agir na realidade para que a vida aconteça
verdadeiramente.” (p.13)
Em relação ao aspecto político que envolve a cidadania, pode-se entender
que, em grande parte, é na escola (segundo grupo social ao qual pertencemos) que
60
aprendemos a exercer nossos direitos e deveres de cidadão participando ativamente
das decisões.” (p.13)
Neste contexto, a educação pode e tem o papel de contribuir para que as
pessoas possam entender a realidade, transformando, interagindo e recriando-a, com
educandos capazes de escolher e tomar suas decisões, tornando-se verdadeiros
cidadãos, realizando projetos em que a família participe opinando, decidindo e
valorizando as questões sociais.” (p.14)
No primeiro trecho mensurado pela escola C, é perceptível a relação que se
estabelece entre escola e os princípios que norteiam o seu papel educativo na
formação de cidadania. Nessa lógica, fica evidente que a criança, para se tornar um
cidadão “completo”, necessita desenvolver habilidades que possibilitem a ela uma
ação eficaz, para, assim, atuar de forma produtiva no meio social em que ela está
inserida. Neste contexto, a educação nos permite pensar que, a partir de
determinados discursos, é possível caracterizar o que se entende por cidadania na
contemporaneidade. Em outras palavras, é somente na escola que o educando
adquire instrumentos importantes e elementares para a plena conquista da cidadania.
Por outro lado, no segundo enunciado, a escola C busca justificar por meio dos
parâmetros conceituais instituídos legalmente, sustentar as práticas discursivas que
estão sendo constituídas no seu contexto educativo, a partir da ideia de que é na
escola que a criança aprenderá a exercer sua cidadania. O que causa estranheza
nessas afirmações é a forma como a escola vem articulando seus discursos
pedagógicos para referir-se a ideias tão complexas e que dependem de outros
contextos que possibilitam outras perspectivas de intervenções sociais que subjetivam
esse sujeito - a criança. Dessa forma, aponto que, no último fragmento que prevê o
que a escola pode e tem a oferecer para os verdadeiros cidadãos do futuro, ela mesma
tenta instituir um sentido aos vetores escolares que facilitarão o processo de formação
cidadã e, concomitantemente, atingir os objetivos propostos nas linhas de ação
anteriores. Por outro lado, torna-se visível que, ao tentar induzir uma lógica de
pensamento, onde somente a escola dispõe de ferramentas discursivas pedagógicas
na condução de práticas de cidadania, marco como proposição a fragilidade do atual
sistema educativo na tentativa de articular esses saberes – exercício dos direitos e
deveres – numa outra perspectiva de educação para crianças pequenas. Mais uma
vez, reforço a ideia de que as instituições de educação infantil vêm apresentando
61
grandes embates para constituir novas linhas de ações pedagógicas que ultrapassem
os discursos pedagógicos que se naturalizaram como verdades ao longo da história.
Nesse sentido, para compreender mais e melhor as ‘tendências’ que
atravessam os discursos pedagógicos escolares referentes às suas concepções de
criança e a infância, é que, no capítulo seguinte, destaco as linhas teóricas que
embasam essas ideias e que, naturalmente, a tomam como verdades únicas e
absolutas.
62
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todo conhecimento começa com o sonho. Iniciar a última etapa dessa
dissertação com a epígrafe de Rubem Alves me parece apropriado, tendo em vista a
minha motivação para fazer este estudo. A partir de um sonho, segui em busca do
conhecimento necessário para concretizá-lo: investiguei a temática da Infância na
tentativa de compreender os mecanismos que movem o intrincado jogo da educação
infantil, especialmente no que tange às concepções de 'Criança' e de 'Infância'. Uma
das questões que assinalo são os documentos que embasam os projetos políticos
pedagógicos das instituições de educação infantil de Santa Maria/RS e que se
mantêm como referência para fundamentar suas ações pedagógicas. Entre eles, faço
menção ao Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil, documento esse
que tem como propósito auxiliar as escolas “no seu trabalho educativo diário junto às
crianças pequenas.” (p. 5) Pensando sobre os ideais pedagógicos instituídos nesse
documento, assinalo que o mesmo já foi investigado e analisado por autores
contemporâneos, tais como Bujes (2001), que o considera um instrumento didáticopedagógico ultrapassado no que tange às ideias que circundam o ser criança e a
infância. Por outro lado, considero pertinente destacar que poucos são os documentos
mencionados nos PPPs das escolas de educação infantil que possibilitem pensar a
infância por outro viés analítico.
O sonho nada mais é que aventura pelo mar desconhecido... (Rubem Alves)
e foi nas ondas desse desconhecido marque me impulsionei para mergulhar em
profundezas que fossem capazes de me proporcionar formas de sobrevivência e, a
partir dessas experiências estabelecer novas situações de aprendizado. Nessa
incansável busca pelo desconhecido, percebi que podem existir diferentes
movimentos que tentarão instruir nossas ações pedagógicas e legitimá-las como
verdades. Analisando os discursos produzidos sobre infância pelas escolas de
educação infantil de Santa Maria/RS, é perceptível a redundância de teorias que
produzem uma ideia de infância como sendo um período/etapa ou fase do
desenvolvimento humano. Do mesmo modo, assinalo que, a partir desses mesmos
enunciados que sustentam uma prática discursiva que legitima uma determinada ideia
de infância, percebe-se certa resistência das instituições em abrir novas discussões
e, assim, ampliar outras possibilidades sobre a temática em evidência. Evidência essa
que permite difundir a ideia de criança-infância e aluno como sinônimos de um mesmo
63
sujeito, sem mesmo analisar ferramentas conceituais que possam estabelecer as
correlações e diferenças entre elas. Além disso, considero relevante marcar que, ao
deparar-me com os conceitos de criança e infância seguidos pelas instituições de
educação infantil, foi possível vislumbrar uma tendência que atribui para ambas as
palavras um mesmo significado representativo de um discurso pedagógico, como se
as crianças fossem naturalmente portadoras de uma infância e as características que
são atribuídas às mesmas fossem universais.
Nessas circunstâncias em que a escola vem demonstrando sua fragilidade
pedagógica acerca dessa temática, aponto que outras possibilidades de educação
estão sendo implantadas no nosso país. Destaco a lei nº 11.274/2006, que obriga o
ingresso de crianças com 6 (seis) anos de idade completos no primeiro ano do ensino
fundamental. Analisando as condições com que essas políticas públicas vêm
constituindo seus discursos para instituir uma educação de qualidade para todos,
penso que esse conceito de educação que vem sendo incorporado pela legislação
vigente, de certa forma, marca o momento em que essas leis estão sendo
estabelecidas no campo da educação. Refiro-me também aqui à possibilidade do
ingresso obrigatório de crianças a partir de 4 (quatro) anos de idade na escola de
educação infantil, que já está em vigência no Plano Nacional de Educação (2001), que
deverá ser universalizada até 2016. Buscando compreender a lógica acerca dessa
proposta nos discursos legais, supõe-se que essa ação pode ser considerada uma
estratégia de governamento para capturar e gerenciar a conduta dos sujeitos cada
vez mais cedo. Ainda, de acordo com essa perspectiva de educação, penso que as
intenções subentendidas nessas políticas públicas educacionais trouxeram uma
repercussão significativa, principalmente para o cenário da educação infantil, a
começar pelas questões que estão direta ou indiretamente ligadas àconcepção de
infância que cada instituição de educação infantil estabelece no seu Projeto Político
Pedagógico. Concomitantemente, surgem indagações sobre a função desse nível de
ensino que, por sua vez, já é parte institucional da educação básica. Nessa
perspectiva, Veiga-Neto (2000) sinaliza a necessidade de analisarmos a gama de
mudanças que estão acontecendo no setor educacional, nas relações entre
escolarização e as novas configurações advindas dessas mudanças no mundo
contemporâneo, mais especificamente no novo formato de governamentalização
surgido nas últimas décadas.
64
Aponto que, diante dessa proposta– obrigatoriedade do ingresso de crianças
a partir de 4 (quatro) anos de idade – é pertinente que as escolas de educação infantil
sejam instigados a produzir outras possibilidades de pensamento em torno das ideias
de criança e infância. Penso que, ao buscar outra compreensão de criança e de
infância como uma ‘invenção’ ou ‘descoberta’ da modernidade, e não como algo já
dado, “natural”, bem como problematizar alguns dos sentidos que se têm atribuído às
mesmas, como, por exemplo, a ideia da infância como preparação para a vida adulta
e a constituição de uma infância cidadã, as escolas terão como constituir outros
sentidos educativos às crianças nessa faixa etária.
Tendo em vista a necessidade de estabelecer outras vertentes analíticas que
pudessem auxiliar as escolas a refletir sobre novas perspectivas de infância, naveguei
por uma corrente de incertezas, rupturas e muitos embates. Dessa forma, na medida
em que me apropriava do pensamento foucaultiano, mais se tornava evidente a
necessidade de desnaturalizar/descristalizar um pensamento fortemente enraizado,
cultivado e calcado por um determinado ideal pedagógico.
Diante dessa complexidade de ensinar e aprender na educação básica, e,
especificamente na educação infantil, suponho que ainda estamos muito calcados na
ideia de que é na escola que as crianças são “ensinadas” a serem cidadãos do mundo
e que, por meio dessa relação, elas adquirem o saber necessário para operar com
alguns elementos essenciais à vida no presente e no futuro. Outro aspecto que chama
a atenção associada à questão da cidadania refere-se aos termos usados pelas
escolas de educação infantil para inferir uma ideia de Infância Cidadã. Autonomia,
criticidade, respeito mútuo, são palavras muitas vezes utilizadas nos documentos,
como se estivessem acima de quaisquer suspeitas e não enraizadas em determinadas
formações históricas e culturais, sendo que cada uma dessas palavras expressa uma
especificidade da educação na formação de sujeitos com direitos e deveres civis.
Assim, estar comprometido com a formação da cidadania das crianças é estar,
concomitantemente, imbricado em relações de poder que nos subjetivam enquanto
partícipes de uma organização social que se estabelece a partir de ações mútuas de
poder.
Dessa forma, considero relevante destacar que, ao pensarmos a escola como
a única forma para garantir a formação de um sujeito cidadão do e para o mundo pode
ser um equivoco. É importante que, enquanto profissionais da educação, possamos
produzir outras discussões que venham ao encontro dos movimentos sociais e
65
culturais da época em que estamos inseridos. Em especial, as questões que foram ou
estão sendo constituídas sobre criança e infância nos referenciais teórico-práticos que
instituem o perfil pedagógico das escolas de educação infantil de Santa Maria/RS.
66
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discursos sobre infância nos projetos políticos pedagógicos