Da língua para a linguagem: outros rumos de pesquisa1
João Wanderley Geraldi2
Não sei o que seria a verdade, a não ser por algo que buscamos
e que nunca fixaremos definitivamente. Mas creio que a
perspectiva permite um olhar mais pleno. Olhar e ver-se
olhando. (Alejandro Zambra. Entrevista ao Estado de S.Paulo,
08.03.2014)
Introdução
A partir do final dos anos 1980 começou a se tornar comum, entre
nós, o surgimento de novos cursos de pós-graduação que, substituindo
tradicionais denominações como “Letras” e “Linguística”, se chamam de
“Estudos da Linguagem”, às vezes com especificações muito próprias dos
respectivos programas, como “Linguagem e Sociedade”, “Linguagem e
Ensino”, etc.
Creio que estas novas denominações não são gratuitas e desvelam
um movimento interno nos estudos linguísticos que já podem, passados
estes anos, serem visitados, buscando as motivações destas mudanças. Este
o objetivo deste texto, em que retomo estudos anteriores sobre a mesma
temática.
1. As ciências, seus mitos e suas promessas
1
Texto de aula magna proferida em 17.03.2014 nos Programas de Pós-Graduação em Letras
da Univ. Federal de Pernambuco. Este texto retoma dois textos anteriores: “Promesas y mitos
de la ciencia moderna”, in.Untoiglich, Gisela. En la infancia los diagnósticos se esrciben con
lapiz. Buenos Aires : Colección Conjunciones, 2013; e “Heterocientificidade nos estudos
linguísticos”, publicado in. Grupo de Estudos de Gêneros Discursivos. Palavras e
Contrapalavras: Enfrenando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos : Pedro & João
Editores, 2012, p. 19-39.
2
Professor Titular aposentado da Unicamp. [email protected]
Iniciemos esta reflexão com uma visão panorâmica sobre a ciência
moderna. Apesar do percurso histórico extremamente heterogêneo pelo
qual a humanidade chegou às ciências contemporâneas, o esquecimento
permanente desta caminhada nos faz crer que as verdades construídas no
presente sempre foram verdades e, segundo a perspectiva universalista
que adotamos, como se o presente fosse o fim da história, e que as
verdades de hoje serão também verdades no futuro. No entanto,
A ciência não brotou de um homem, nem foi o produto da
concepção imaculada de um método abstrato e universal,
senão uma criação híbrida, plural e multifacética, engendrada
por uma comunidade na qual conviveram e se fertilizaram
mutuamente religiosos e magos, artesãos e filósofos,
engenheiros e comerciantes, matemáticos e experimentadores,
aristotélicos e neoplatônicos, místicos e racionalistas, numa
verdadeira orgia de pensamento-ação-percepção-criação.
(Denise Najmanovich. O feitiço do método)
As “verdades científicas” são expressas sem voz, mas tiveram seus
momentos de voz humana e condenação. A passagem da admissão do
sistema ptolomaico para o sistema copernicano não se fez numa só geração.
Ainda em 1615, o cardeal Belarmino (que tentara salvar Giordano Bruno),
escreveu:
Se houvesse alguma prova real de que o Sol se encontra no
centro do Universo, de que a Terra ocupa a terceira esfera, e
de que o Sol não gira em torno da Terra senão a Terra em
torno do Sol, então nos veríamos obrigados a proceder com
grande circunspecção em explicar as passagens das
Escrituras que parecem ensinar o contrário, e deveríamos
dizer que não os compreendemos antes de declarar falsa uma
opinião que se tem demonstrado verdadeira. Mas não creio
que exista tal prova, posto que não se me há mostrado
nenhuma. Demonstrar que se salvam as aparências, supondo
o Sol no centro e a Terra nos céus, não é a mesma coisa que o
demonstrar realmente. Creio que pode existir a primeira
demonstração, mas tenho graves dúvidas acerca da segunda, e
em caso de dúvida não se pode abandonar as Sagradas
Escrituras tal como as interpretam os Santos Padres (apud
Najmanovich, op. cit. P. 47-48)
Mas também em meados do Século XIX encontraremos outro
exemplo:
Augusto Comte, fundador da doutrina positivista, expôs
publicamente sua “manifesta hostilidade ao microscópio na
lição XLI do Cours de Philosophie Positive. Recordemos que
Leewenhoek observou pela primeira vez o mundo novo dos
“’animálculos’ microscópicos a meados do século XVII,
logrando que muitos dos seus contemporâneos o
considerassem diletante e fantasioso”. (idem, p. 43)
Os dois exemplos são suficientes para nos mostrar que o correr do
tempo se fez e se faz necessário para que o novo seja aceito, e que a
construção do novo conhecimento não se fez nem se faz sem ‘escândalos’
no presente, de modo que se pode pensar até mesmo em dizer que um novo
paradigma somente se torna hegemônico não pelo convencimento da quase
totalidade dos cientistas, mas com a morte dos cientistas mais velhos. Entre
Leewenhoek e Pasteur se passaram dois séculos! E só depois deste a
existência do micromundo deixou de ser controvertida.
Esta longa caminhada – recortada de festejos pontuais pelas novas
descobertas científicas – se fez fundada na promessa prefacial de que à
razão humana nenhum acesso é negado. Tudo saber, tudo conhecer, é a
primeira promessa e o primeiro mito da modernidade.
Este projeto ambicioso da modernidade iluminista começa a ser
posto em questão desde os primórdios do século XX. Mas Kant já havia
dito que entre as atividades humanas, há as que não se deixam reduzir ao
conhecimento científico: aquela da política e aquela da pedagogia. Freud,
mais tarde, reconhecerá que a psicanálise também não se deixa reduzir à
cientificidade a que estávamos habituados. Saussure nos inícios da
Linguística realmente moderna acaba afirmando que “o ponto de vista cria
o objeto”, de modo que o sonho de que era a realidade que se desvendava
com o conhecimento científico vai ficando para trás. Giles Gaston Granger
(1974) ao reconhecer que “todo conhecimento científico se desdobra num
universo de linguagem” e que “longe de ser uma simples vestimenta do
pensamento, a linguagem é então colocada como a atividade radical
condicionando todo conhecimento objetivo”, mostra que todo fazer
científico faz uma redução da experiência global para o nível do fenômeno
captado pela atividade quase estruturante da linguagem e somente a partir
desta constroi-se o objeto efetivo de estudos, numa segunda abstração
estruturante. Assim, em verdade sempre vamos deixando resíduos nos
modelos científicos que construímos. Estes resíduos podem constituir, para
usar uma expressão kuhniana, um conjunto de fenômenos que
recalcitrantes de uma ciência anormal, até que um novo modelo se constroi
incluindo estes resíduos, mas produzindo outros. Sempre se recomeça, e o
que se aprende expande o mundo vivido que o novo objeto, dentro de uma
nova teoria, não recobrirá produzindo novos resíduos.
O segundo grande mito que nos trouxe a ciência moderna foi o da
predição do que acontecerá, em seus raciocínios implicativos. Tudo
prever, tudo prescrever. Sempre que as condições X ocorrem, ocorrerá Y
(X -> Y). Esta preditibilidade na ciência é produto da sua forma de
construção do conhecimento: para cada Y há uma causa (ou um conjunto
de causas), independentemente de qual Y se trata.
A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos
pressupostos epistemológicos e das regras metodológicas [...].
É um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à
luz de regularidades observadas, com vista a prever o
comportamento futuro dos fenómenos. A descoberta das leis
da natureza assenta, por um lado, [...], no isolamento das
condições iniciais relevantes [...] e por outro lado no
pressuposto de que o resultado se produzirá indepentemente
do lugar e do tempo em que se realizarem as condições
iniciais. Por outras palavras, a descoberta das leis da
natureza assenta no princípio de que a posição absoluta e o
temo absoluto nunca são condições iniciais relevantes.
(Santos, 1987, p. 16)
O conhecimento garantiria sua verdade somente quando o que
permite predizer realmente acontece, sob as condições dadas. Talvez a
prática médica possa nos fornecer contra exemplos. Na relação entre
enfermo e médico, o que o primeiro busca é a cura, fundado na esperança
que atribui ao segundo o poder curativo, fundado num saber. O médico,
usando as técnicas de diagnóstico (hoje muito mais fundadas em signos
fornecidos pela engenharia médica do que em sintomas apontados pelo
enfermo), prescreve na expectativa de que neste organismo repita-se o que
estatisticamente foi verificado para as terapêuticas aconselháveis dados os
signos que fazem interpretar “o não silêncio dos órgãos”, já que uma das
definição tradicional de saúde é “o silêncio dos órgãos”. Embora a
utilização de signos tenha alterado as relações entre paciente e médico,
aumentando o poder deste de decidir como observou Canguilhem
A partir del momento en que la medicina deja de fundar su
diagnóstico en la observación de síntomas espontáneos para
apoyarlo en el examen de signos provocados, las relaciones
respectivas de enfermo y médico con la naturaleza se
transforman. El enfermo, al no poder diferenciar él mismo los
signo de los síntomas, se inclia a considerar natural cualquier
conducta adoptada exclusivamente en función de los síntomas.
(Canguilhem, 2004, p. 29)
No entanto, todo médico tem consciência dos limites de eficácia dos
seus saberes, e mais, “não ignora que nenhuma cura é um retorno” ao
estado anterior, numa reversibilidade dos fenômenos, crença em que se
fundaram toda a mecânica e a cosmologia clássica.
Assim, nossos conhecimentos transformados em técnicas e caminhos
de ação, conhecem hoje sua fabilidade. Reconhecemos hoje como mito
prever e prescrever deterministicamente o futuro. Para dizer em termos
poéticos
Confiamos
en que no será verdad
nada de lo que pensamos
(António Machado, Abel Martín, p.691)
O mito da reversibilidade é consequência da desconsideração do
tempo e do espaço como condições iniciais importantes. A atemporalidade
permite tratar o mundo como “organismo inerte”. As coisas sem tempo são
desde sempre mortas: se deixam captar mesmo que não saibamos sua
linguagem. Qualquer erro poderia ser remediado, porque sempre seria
possível desfazer o feito.
No mundo da ciência, desde a relativização introduzida por Einstein,
e depois com Heisenberg e Bohr no domínio da microfísica, sabemos que
não resolvemos tudo e que modificamos até mesmo o objeto que estudamos
pelos instrumentos que usamos. Foi preciso que as questões ecológicas
aparecessem para que a consciência da irreversibilidade começasse a
emergir também no senso comum.
Retomemos aqui as quatro grandes constatações teóricas apontadas por
Santos (1987) como fundamentais para a crise do paradigma científico
moderno:
(a) A questão einsteiniana da relatividade da simultaneidade dos
acontecimentos distantes que leva a um círculo vicioso: a fim de
determinar a simultaneidade dos acontecimentos distantes é
necessário conhecer a velocidade; mas para medir a velocidade é
necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos;
(b) Heisenberger e Bohr, tratando as medições locais, demonstram que
não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem
o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de
medição não é o mesmo que lá entrou;
(c) A impossibilidade, em certas circunstâncias, de encontrar dentro de
um dado sistema formal a prova da sua consistência, pois mesmo
seguindo à risca as regras da lógica matemática, é possível formular
proposições indecidíveis (cf. Gödel);
(d) A teoria das estruturas dissipativas de Prigogine e o princípio da
“ordem através de flutuações”: há uma lógica de auto-organização
numa situação de não-equilíbrio. (Santos, 1987, p. 24-28)
Chegamos assim a uma
...nova concepção da matéria e da natureza [...] dificilmente
compaginável com a que herdamos da física clássica. Em vez
da eternidade, a história; em vez do determinismo, a
imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração,
a espontaneidade e a auto-organização; em vez da
reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da
necessidade, a criatividade e o acidente.
Aceitar que nossos conhecimentos não dão conta de tudo, que há
mistérios insondáveis com as capacidades de que dispomos enquanto
homens (e não deuses da razão), é aceitar o acaso e o acontecimento. Em
outras palavras, aceitar que “a vida é demasiado preciosa para ser
esbanjada num mundo desencantado” (Mia Couto, Jesusalém, na voz de
Silvestre Vitalício, p. 25).
Por fim, somos guiados pelo mito da homogeneidade tomada como
um bem em si. Trata-se de imaginar que tudo pode ser expresso sem
indeterminações, tudo pode ser compartilhado entre conhecedores,
tudo deve ser homogeneizado.
Aponto aqui para um destes lugares em que esta emergência aparece
despudoradamente: a objetividade e neutralidade da ciência.
Para
expressar os conhecimentos alcançados e compartilhá-los com outros, a
ciência construiu sua própria língua, aparentemente lógica, fundada na
suposta exatidão da matemática. Todos empregariam seus termos nos
mesmos sentidos, sem ambivalências, sem ambiguidades, sem perigos. Mas
nas definições e codificações escondem-se as dúvidas; nas expressões
exotéricas escondem-se os desconhecimentos; nas fórmulas descarnadas
pela abstração, esconde-se o desprezo pelo singular, pelo único e pelo
irrepetível.
O mito de que tudo podemos expressar e, portanto, compartilhar, é a
recuperação de um estado suposto existente antes de Babel. O mito de
Babel faz supor que antes todos se expressavam com uma mesma língua.
Reunidos na construção da torre para chegar aos céus e aos deuses, os
homens foram castigados por seu orgulho precisamente com a diferença de
línguas. Numa só cajadada, o mito introduz duas consequências: (a) a
suposição de uma unidade perdida – que a linguagem da ciência se esforça
por recuperar e (b) a interpretação de que a diferença é um castigo.
Infelizmente, este mito bíblico funda nossas concepções sobre a
diversidade!
Por outro lado, toda a diferença exige um tratamento distinto. Se os
objetos do conhecer são distintos, distintas devem ser as formas de
aproximação compreensiva. Como a igualdade é uma construção que
desbasta o real das diferenças, a ciência se fundou no processo de negação
do único, da unidade em benefício da generalização e da abstração.
A ciência moderna consagrou o homem como ser epistêmico, mas o
expulsou do processo de produção de conhecimentos. Uma ciência de
manipulação do mundo não precisa do sujeito empírico em sua gestação;
no entanto, com a crise da ciência moderna, a nova ciência que emerge
demanda precisamente a presença do sujeito no processo de sua produção
porque reconhece que os conhecimentos são também produtos da analogia,
da argúcia, da astúcia em estabelecer novas relações e enxergar novas
possibilidades. As disciplinas e os métodos são incapazes de explorar
novos caminhos. Somente o homem é capaz.
Se pudéssemos fazer uma redução a fórmulas lógicas, os raciocínios
que levam à verdade da ciência moderna são da ordem da implicação: “se
p, q”; “se q, r” e assim sucessivamente, de tal modo que a conclusão final
também será expressa na mesma fórmula: “se Y, X”. O raciocínio que se
impõe hoje, diante da complexidade, dos acasos e dos acontecimentos é da
ordem da adição: “p & q & r & …”. Toda vez que adicionamos nova
informação, o produto final de nossa análise pode se alterar ou pode se
confirmar com maior peso.
Cada novo aspecto do sentido resulta da adição no presente de uma
informação antes não disponível. A referência à intrepidez no
conhecimento faz abandonar qualquer imagem da segurança de um
método. E mais, “a resignação do cognoscente; a reverência” são atitudes
daqueles que sabem que a verdade jamais receberá um carimbo de “causa
finita”.
2. Configurações, neste novo contexto, dos estudos da linguagem
Desde o gesto inaugural de Saussure, os estudos linguísticos
detiveram-se no objeto por ele formulado: a língua. Um sistema de formas
cujo estudo se fez, de modo particular, pelo método da comutação,
extremamente útil no estudo dos aspectos fonológicos da língua e com uma
aplicação menos produtiva na morfologia. Tanto que o estruturalismo de
base saussureana não nos ofereceu qualquer teoria sólida na área da sintaxe
e, muito menos, na área da semântica.
O desenvolvimento dos estudos sintáticos exigiu uma reviravolta,
realizada particularmente por Chomsky e seus seguidores: não mais uma
análise empírica da realidade linguística superficial, a partir da qual se
construíram as abstrações, mas um ponto de partida abstrato para chegar à
realidade superficial. Nos vários modelos da teoria, dois princípios nunca
foram abandonados: o universalismo e o dedutivismo, com o qual
realmente a ciência linguística chegaria de fato à ciência moderna: dedutiva
e universal em seus princípios. Deixemos os sintaxistas com seus
problemas insolúveis dentro deste modelo de ciência moderna – os
modelos se sucedem com uma rapidez incrível e cada um deles se
apresenta como “teoria”, sem qualquer visitação aos fenômenos que
justificaram os modelos anteriores: um fazer sem história.
A insatisfação com estes modelos, patente à medida que a explicação
dos sentidos – razão de ser do sistema língua – fizeram surgir outras
perspectivas. Foram os estudos dos sentidos que levaram a uma nova
reviravolta nos estudos linguísticos, não só porque estes dependem
crucialmente do contexto, mas também porque não se deixam reduzir às
regras do estilo “Se p, q”.
Apenas para exemplificarmos estes movimentos, consideremos o
esforço de certas teorias semânticas em incluir no sistema “língua” um
conjunto de fenômenos antes considerados da fala: a semântica
argumentativa é exemplar nesta tentativa; a teoria dos atos de fala acaba
por incluir como necessário pensar o que se faz quando se fala; a lógica da
conversação implica considerar movimentos próprios da troca linguística
que não são verbais (e, portanto, não pertencem ao “sistema”), e assim
sucessivamente.
Foi, no entanto, a demanda por “métodos seguros de compreensão de
textos” que romperam o dique de forma mais definitiva. A Linguística
Textual abandona por completo a tentativa de uma descrição de base
causal, para elaborar categorias analíticas capazes de explicar certo “mal
estar” diante de textos que não preencham certas condições que lhe são
próprias: informatividade, coesão, coerência, referencialidade e coreferencialidade são princípios e não regras que se devem seguir para
produzir um texto. É possível ver problemas de informatividade de um
texto, uma vez ele tenha sido elaborado. Mas não há uma regra que permita
ao produtor do texto comportar-se de modo tal que seu texto tenha a
informatividade necessária! Esta a diferença entre um princípio que se deve
ter em conta e uma regra que se deve seguir (como a da concordância de
gênero ou número, na sintaxe).
A análise do discurso vai além: exige que o estudo de um discurso,
superficializado num texto, se faça tendo presente as condições de sua
produção, o que acarreta aproximar de forma muito profunda a relação
entre linguagem e sociedade, mais ao estilo da “sociologia da linguagem”
(cujos autores mais importantes são Bourdieu, Bernstein, e entre nós
Gnerre) do que ao estilo da sociolinguística (em que pontifica Labov).
Com a análise do discurso retorna aos nossos estudos um conjunto de
questões que a Linguística moderna havia deixado de lado: as questões da
retórica e da argumentação, as questões do estilo, as questões das afiliações
ideológicas dos discursos.
Qual o “custo” desta virada? O abandono da “língua” (no sentido
saussureano) como objeto de estudos e a aproximação com a linguagem e
seu funcionamento social. O custo é a perda das seguranças e das
afirmações de verdade; a vantagem é uma compreensão melhor do
fenômeno que se quer estudar, abandonando as amarras da definição de um
método infalível que nos trouxe poucos resultados (ao menos para a
compreensão dos sentidos). Por isso, estamos num movimento que vai “da
língua para a linguagem”, recuperando um terreno que os estudos
linguísticos clássicos haviam abandonado para a filosofia da linguagem,
para a psicologia e para a sociologia.
Surgem outras perspectivas analíticas. Tomemos como exemplo a
teoria dialógica que procede de Bakhtin. Nela, necessariamente, deve-se
reconhecer a infinitude do processo dialógico, em que todo dizer e todo
dito dialogam com o passado e o futuro, e paradoxalmente deve reconhecer
a unicidade e irrepetibilidade dos enunciados produzidos em cada diálogo.
Aceitar esta fórmula paradoxal: todo enunciado é único, mas nenhum é
isolado.(Sériot, P. p.12) implica abandonar a posição epistemológica que
somente admite como científico (e verdadeiro dentro de cada teoria) o
enunciado relativo àquilo que se repete, àquilo que é imutável, àquilo que é
produto da abstração deduzidas todas as particularidades, todas as
singularidades como “desvios” não significativos da realidade concreta.
Manter-se no terreno dos fios que ligam os enunciados numa cadeia
infinita de enunciados, é admitir também que alguns destes fios são
invisíveis para o analista, de modo que o resultado de seu trabalho não
pode ser oferecido como uma “verdade”, mas como uma análise
compreensiva e responsiva dos enunciados sobre que se debruça.
E tratando da linguagem, é possível construir uma metodologia (não
um método) capaz de orientar o pesquisador no emaranhado de
complexidades que a linguagem comporta, evitando descaminhos que
podem conduzir ao tratamento de questões que não lhe dizem respeito
(ainda que nada no mundo humano esteja isolado), assumindo como
próprio o que é próprio de outros campos (por exemplo, usar categorias
sociológicas na análise da linguagem não é fazer sociologia, mas se
aproximar da linguagem com ferramentas fornecidas por outras áreas do
conhecimento, o que permite iluminar pontos escuros, focar algo ainda não
visto etc.).
Antes, estabeleçamos uma distinção operatória: um método é um
conjunto de princípios de descoberta que, seguidos com rigor, levam a
descobertas surpreendentes. Descartes expôs um método, mas Leibniz vai
dizer que Descartes, seguindo seu método, descobriu coisas interessantes,
mas se outro pesquisador seguir as mesmas regras somente descobrirá o
que Descartes já descobrira: será preciso, para fazer descobertas
surpreendentes, desobedecer ao método metodicamente diante de outros
objetos sobre os quais se debruça o pesquisador. Fazer isso é dispor de uma
metodologia: um modo particular, às vezes somente explicitável a
posteriori na dialética da exposição, quando se ordenam o que pode ter sido
descoberto desordenadamente. Dispor de uma metodologia é dispor de
princípios, que precisam ser aliados à intrepidez, à astúcia, à argúcia e à
perspicácia. Dispor de um método é ter corrimãos definindo a caminhada
para se descobrir o que previamente se conhecia, sem expor-se ao
desconhecido.
Em verdade, a relação do pesquisador não se dá diretamente com as
“coisas”, mas com seus Outros. Entre estes, obviamente há os sujeitos de
sua própria pesquisa, para quem os resultados chegarão apenas na forma de
tecnologias que venham a ser “inventadas” a partir das descobertas. Mas há
os sujeitos que sobredeterminam a sua prática – os outros cientistas – e que
lhe cobrarão a “metodologia”, a explicitação do método empregado para
chegar aos resultados obtidos. No entanto, Leibniz já havia dito que
Descartes, seguindo seu método, descobriu coisas interessantes, mas se
outro pesquisador seguir as mesmas regras somente descobrirá o que
Descartes
já
descobrira:
será
preciso,
para
fazer
descobertas
surpreendentes, desobedecer ao método metodicamente porque outros são
os objetos sobre os quais se debruça o pesquisador. Ora, a
sobredeterminação metódica seguida à risca somente permitirá que se diga
o dizível, o previsível. Pofr isso é necessário propugnar por uma
metodologia aberta, a cujos princípios devem se associar as astúcias do
pesquisador.
Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador
limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo
de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente)
elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição.
(Ginzburg, 1989, p. 179)
Embora o autor citado esteja fazendo referência ao conhecimento
obtido através de indícios, sabemos que “as pretensões de conhecimetno
sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades” (idem, p.177).
Certamente abandonar o método não significa abandonar o rigor; significa
abrir-se para a multiplicidade dos sentidos possíveis diante da
complexidade das coisas, das gentes e de suas relações, para chegarmos
não a conhecimentos seguros mas irrelevantes e sim para arriscarmo-nos
por outros percursos de produção de conhecimento relevante. Como ensina
Bakhtin
A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranharse na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não
pode vir a ser científica na acepção de índole científica das
ciências exatas.
A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é
profundamente cognitiva. Pode servir diretamente à prática
vinculada às coisas.
“Cumpre reconhecer a simbologia não como forma não
científica mas como forma heterocientífica do saber,
dotada de suas próprias leis e critérios internos de
exatidão” (Aviérintsiev). (Bakhtin, op. cit., p. 399)
A citação se justifica: nesta passagem Bakhtin nos aponta que todo
trabalho de interpretação dos sentidos opera isomorficamente através de
outros sentidos expressos também eles simbolicamente. Como em Peirce, o
Interpretante não é o sujeito que interpreta, mas um signo com que se
interpreta o signo, abrindo para uma cadeia semiótica cujo fim é um ponto
estabelecido pelos interesses do processo interpretativo.
Aceitar que o comentário tem um papel é admitir que a interpretação
pode conter juízo de valor, entonação avaliativa, não é neutra e nem
pretende ser. Foucault (1996) também mostrou o quanto o comentário
funciona como um mecanismo de ordenação dos discursos porque de um
lado pretende dizer o que já está lá no texto comentado e, portanto, o
repete; sobretudo controla os discursos porque o comentário lhes fixa os
sentidos, aqueles que, a partir da autoridade do comentador, passam a ser
sempre atribuídos ao texto comentado. O exemplo histórico mais evidente é
a interpretação da Bíblia, cujos sentidos fixados pelos Padres da Igreja
repercutiram de forma crucial na história, como mostram os processos
contra Giordano Bruno e Galileu Galilei, ou as muitas “heresias” entre as
quais se destaca aquela de Lutero.
Aceitar o comentário positivamente, com seus juízos de valor, é
aceitar a falibilidade da interpretação: é aceitar “o momento correspondente
de resignação do cognoscente; a reverência” de quem sabe que o sentido é
inacabável. Esta é a humildade da verdade, a verdade que nos guia no
cotidiano.
O aprofundamento do empreendimento interpretativo resulta da
ampliação do contexto, fazendo emergirem mais vozes do que aquelas que
são evidentes na superfície discursiva. Não para enxergar nestas vozes a
fonte do dizer, mas para fazer dialogarem diferentes textos, diferentes
vozes. O múltiplo como necessário à compreensão do enunciado, em si
único e irrepetível. A unicidade se deixa penetrar pela mulplicidade.
Cotejar textos é a única forma de desvendar os sentidos.
Por fim, mas sem esgotar os sentidos a que a passagem citada
remete, a heterocientificidade própria das ciências humanas – “o objeto das
ciências humanas é o ser expressivo e falante” (p.395) é consequência de
seu objeto, não reduzido a “coisa morta” sobre que se debruçaria o
pesquisador. A Linguística teria encontrado este tipo de objeto na língua, e
por isso é apontada por Ginzburg (1989) como a única ciência humana que
resolveu o impasse galileano, tornando-se uma “ciência moderna”. Mas os
linguistas sabem perfeitamente que ao fazerem isso abandonaram qualquer
pretensão de tratar dos sentidos3. Ao deixar de lado os sentidos, a
Linguística mutila até mesmo a língua, pois esta se funda nos sentidos.
Mesmo um princípio de descoberta simples como o da comutação exige
que se leve em conta precisamente o sentido, que subrepticiamente retorna
à Linguística das formas.
3
É significativo, por exempo, a dificuldade que encontrou a Análise do Discurso para ser
considerada uma disciplina da Linguística, e justamente porque visa os sentidos dos discursos.
Por outro lado, mesmo no interior desta, é forçoso reconhecer que o sentido dado a um
discurso se faz através de um discurso que por seu turno pode ser objeto de outra análise.
Também nesta disciplina os critérios de validação são internos e sua cientificidade é sempre
posta em questão pela Linguística em seu sentido estrito. Assim como a Análise do Discurso
(talvez fosse melhor falar em Análises de Discurso) passou a compor o elenco das disciplinas
que os linguistas estudam, também os estudos bakhtinianos (com o nome que venha a ter de
“translinguística”, “metalinguística” ou “meta-linguística”) acabarão por encontrar na
academia um espaço próprio no campo dos estudos linguísticos.
Com nossa heterocientificidade, tentando desvendar a verdade do
enunciado singular – um discurso literário ou não – construindo para ele
uma
interpretação
cuja
profundidade
depende
crucialmente
das
possibilidade de ampliação dos contextos possíveis, e por isso das
condições do sujeito que analisa, como encontrar indicações metodológicas
para a caminhada?
Voltemos a Bakhtin:
Desmebramento da compreensão em atos particulares. Na
compreensão efetiva, real e concreta, eles se fundem
indissoluvelmente em um processo único de compreensão,
porém cada ato particular tem uma autonomia semântica
(de conteúdo) ideal e pode ser destacado do ato empírico
concreto. 1) A percepção psicofisiológica do signo físico
(palavra, cor , forma espacial). 2) Seu reconhecimento
(como conhecido ou desconhecido). A compreensão de seu
significado reprodutível (geral) na língua. 3) A
compreensão de seu significado em dado contexto (mais
próxima e mais distante). 4) A compreensão ativo-dialógica
(discussão-concordância). A inserção no contexto
dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu
grau de profundidade e de universalidade. (Bakhtin, op. cit,
p.398)
Estes momentos detectáveis no processo de construção de uma
compreensão podem nos oferecer alguns subsídios aos processos de
pesquisa. Sobretudo, um estudo bakhtiniano não existe sem um objeto
empírico que é preciso ter presente. Não há análise de discurso sem
discurso (1). O processo de reconhecimento exige um conhecimento, até
mesmo para afirmar um desconhecimento. Como este conhecimento se
constitui? Como um falante reconhece um enunciado como pertencente a
sua língua? Conhecendo a língua (obviamente não no sentido de Saussure),
o que ele aprende por uma atividade objetificante: a palavra do outro que
aprendo nos processos interativos torna-se palavra própria-alheia com que
passo a aprender outras palavras até que as palavras se tornam “minhas”
por esquecimento da origem. Estas palavras que conheço e com as quais
reconheço outras palavras ou o retorno da mesma palavra (reconhecimento)
são produtos de abstrações do falante porque lhe exigiu que
descontextualizasse as palavras dos enunciados ouvidos e respondidos
construindo um conhecimento abstrato necessário ao reconhecimento4.
Aquilo que ainda não reconheço preciso conhecer para poder analisar (2).
A contextualização do enunciado é essencial porque todo enunciado
“reflete uma realidade extra verbal”. Se na conversa cotidiana importa
encontrar nestes contextos os elementos não ditos mas presentes no
horizonte comum dos interlocutores para poder dar sentido aos enunciados,
na intrepretação a profundidade da penetração dependerá crucialmente dos
elementos de especificação do contexto e dos com-textos com que o
analista faz o texto dialogar (3). A compreensão ativo-dialógica implica na
não submissão à palavra do outro, de que se toma distância para dar espaço
às contrapalavras necessárias à compreensão e à análise. Aqui entram o
comentário, o juízo de valor, a produtividade dos conceitos presentes no
texto para outros contextos, etc. (4).
Dar contextos a um texto é cotejá-lo com outros textos,
recuperando parcialmente a cadeia infinita de enunciados a que o texto
responde, a que se contrapõe, com quem concorda, com quem polemiza,
que vozes estão aí sem que se explicitem porque houve esquecimento da
origem. Bakhtin nos dá dois grandes exemplos de trabalho de interpretação
analítica: seus estudos das obras de Dostoievski e de Rabelais. Ao ir
cotejando os textos com outros textos vai-se elaborando conceitos ou
reutilizando conceitos produzidos em outros estudos (até mesmo de outros
campos) com que se aprofunda a penetração na obra em estudo. O
resultado apresentado é uma “tese” no sentido de que contém um ponto de
4
Por isso todo o falante de uma língua é capaz de abstração. As generalizações dos cientistas levam esta
capacidade ao mais alto nível, mas o processo é o mesmo.
vista argumentado em que se sustenta a interpretação construída. Mas uma
tese não tem qualquer valor absoluto de verdade. Voltemos ao que se disse
anteriormente: a tese aqui se constroi por raciocínios aditivos (p & q & r &
x & y …) de modo que os sentidos são inacabáveis (e as relações com
outros textos também, não importa se esta relação esteve ou não presente
no processo de produção do discurso/texto em estudo. Interpretar é
construir um sentido para um discurso, para um texto, e a validade desta
interpretação se mede por sua profundidade e pela consistência e coerência
de seus argumentos.
Para além do “cotejo de textos”, que outros caminhos seriam
possíveis para a pesquisa contemporânea em linguagem? Certamente
continuarão a existir os estudos da linguística moderna (e eles podem ser
úteis, mas a eles não se pode reduzir o todo complexo do funcionamento da
linguagem). Este caminho, no entanto, parece-me praticamente inútil para
aqueles que se debruçam sobre fenômenos mais amplos como a questão das
forças dos discursos (força política, ideológica, mobilizadora de mentes e
corações), a questão do ensino, cuja complexidade não pode ser reduzida a
objetos a serem conhecidos independentemente dfas razões para conhecer
(a não ser responder a testes das avaliações inernacionais, nacionais e
regionais, para os quais os estudantes são hoje preparados), a questão dos
direitos à fala, ampliados pelas tecnologias hoje disponíveis ou a questão
da construção dos sentidos dos acontecimetnos por diferentes sujeitos
sociais.
Para estas questões, as metodologias que a Linguística clássica
moderna construiu são praticamente inúteis. Nossos lugares de inspiração
talvez devam ser aqueles da Linguística Textual e da Análise do Discurso,
que assumiram que seus estudos produzem categorias analíticas que
auxiliam os processos de produção e compreensão de textos, e não “regras”
para compreender ou produzir textos.
Para estudar estas questões, temos que nos aproximar da sociologia e
da história. Caminhos possíveis nos são indicados pela “investigação
narrativa” (construção de sentidos), pelo “paradigma indiciário” (no
cotejo de textos e de seus valores sociais), pela pesquisa histórica do
cotidiano (onde história e literatura se aproximam), pelos estudos
culturais (onde nossos objetos adquirem uma avaliação social).
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