REVISTA ÂMBITO JURÍDICO ®
Precat?s alimentares de S?Paulo. As institui?s se revezam para protelar os pagamentos
Antes da Emenda 62/09, conhecida como emenda do calote, o valor dos precatórios eram pagos diretamente pelas entidades políticas devedoras
mediante depósitos nos respectivos autos do processo onde foram expedidos os títulos judiciais exequendos. Feitos esses depósitos nas quatorze
Varas da Fazenda Pública, os levantamentos desses valores eram imediatamente autorizados pelo juiz a favor dos credores.
Entretanto, as verbas consignadas no orçamento anual a esse título, apesar de vinculadas ao Poder Judiciário, eram sistematicamente desviadas
sendo até programados mensalmente esses desvios pelos governantes, gerando uma montanha de precatórios, ditos impagáveis. Não se faziam os
pagamentos, portanto, por falta de recursos financeiros impunemente desviados. Apesar desse fato caracterizar crime de responsabilidade e ato de
improbidade administrativa e, em alguns casos, crime de prevaricação (não inclusão orçamentária da verba requisitada e obrigatória até o advento da
EC nº 62/09), temos notícia de um único caso de condenação por ato de improbidade de um ex Prefeito da Capital de São Paulo, cujo processo
pende de julgamento da apelação perante o E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.
A confusa EC n° 62/09 alterou a sistemática de pagamento dos precatórios. Agora, quem faz o pagamento direto é o Poder Judiciário por conta dos
recursos financeiros depositados mensalmente pelos Estados e Municípios cujos montantes variam de 1%, 1,5% e 2% da receita corrente liquida das
entidades políticas devedoras, conforme o caso. Só que até hoje a sociedade, nem os credores, sabem o quanto já foi depositado e quanto já foi
pago.
Sabe-se que só o Município de São Paulo, desde dezembro de 2009, já depositou mais de R$ 1,7 bilhões para pagamento de precatórios, mas
sequer houve o início de pagamento dos precatórios alimentares, que têm precedência sobre os demais, passados mais de dois anos desde o início
dos depósitos judiciais. Não há justificativa ou explicação plausível para tanta demora.
Antes, não se pagava porque não havia recursos financeiros por conta dos desvios programados. Agora, existe uma montanha de dinheiro
depositado à disposição da Justiça, mas os pagamentos não acontecem por conta das alegadas dificuldades técnicas de operacionalização da
sistemática implantada pela EC n° 62/09.
De fato, essa confusa e nebulosa EC n° 62/09 criou a figura de precatórios alimentares com privilégio qualificado (credores idosos e aqueles
acometidos de doença grave), mas para receber apenas até 3 vezes o valor da requisição de pequeno valor. O excedente a esse diminuto valor
permanece como crédito com privilégio simples. O legislador constituinte não pensou na complicação que esse benefício de tão pequenina monta iria
causar. Ou será que isso foi premeditado para confundir os Tribunais? [1]
Como não há previsão constitucional e nem fila específica de credores superprivilegiados o Tribunal, para tentar organizar essa fila, vem notificando o
Estado e os Municípios para oferecerem a relação desses credores. Providência, data vênia, inócua, pois o Estado e os Municípios não podem dar
cumprimento a essa determinação porque simplesmente não sabem, e nem têm como saber, quem são os credores acometidos de doença grave e
quem são os idosos.
Dentro desse quadro fático resta claro que a única providência cabível a cargo do Tribunal é a expedição de Edital ou outro nome que se queira dar,
fixando um prazo em dias para que os interessados requeiram comprovadamente a condição de doentes e de idosos. Esse Edital seria publicado
no Diário Oficial e no site do Tribunal contando, ainda, com a sua divulgação pela OAB/SP e AASP.
Findo o prazo assinalado no Edital, seria organizada a fila de precatórios com privilégios qualificados. Terminada essa fila iniciaria, de imediato, o
pagamento dos precatórios alimentares e não alimentares que têm filas distintas, mas, de sorte a preservar sempre a preferência dos primeiros.
O que não faz sentido é aguardar a apresentação voluntária de precatoristas com privilégios qualificados quando eles bem entenderem: 2, 5, 10 ou
20 anos. Em direito tudo tem que ter um prazo para exercício do direito. Ao que sabemos, passados mais de dois anos da EC nº 62/09, muitos
credores ainda estão reunindo documentações (RG e atestado médico) para requerer o privilégio qualificado. Parece óbvio que assim jamais terá
início o pagamento dos demais precatórios.
Na verdade, não é uma questão difícil de resolver. Tudo é muito simples. Falta, na verdade, vontade política de pagar.
Outrossim, a sistemática permitida pela Resolução nº 123/CNJ (art. 8º-A) autorizando o Tribunal girar com os numerários pertencentes a
precatoristas, para pagamento imediato, não é salutar. Promove o desvio da finalidade institucional do Poder Judiciário atribuindo-lhe funções típicas
do Poder Executivo. Cabe ao Poder Executivo respeitar a autonomia administrativa e financeira do Poder Judiciário inscrita no art. 99 e § 1º, da CF,
disponibilizando, mensalmente, os recursos financeiros correspondentes às dotações orçamentárias (art. 168 da CF), provendo o Judiciário com os
recursos indispensáveis ao exercício de suas atividades jurisdicionais. O “cortes” que tradicionalmente são feitos nas propostas orçamentárias do
Judiciário configuram verdadeiro atentado ao princípio da autonomia e independência desse Poder. Lembro-me que em 2001 um dos ilustres
integrantes do E. Tribunal de Justiça impetrou mandado de segurança contra o governador do Estado, o Presidente da Assembléia Legislativa do
Estado e o Presidente do Tribunal de Justiça para suspender a tramitação do Projeto de Lei de Orçamento Anual em que a verba proposta pelo
Judiciário paulista havia sido reduzida unilateralmente pelo Executivo. O Vice-Presidente do E. Tribunal, Des. Álvaro Lazzarini, acertadamente,
concedeu a medida liminar paralisando a tramitação legislativa, o que conduziu a uma solução negociada. É sumamente lamentável que o Poder
Judiciário tenha que se preocupar em buscar fontes alternativas de receita para garantir a sua sobrevivência como Poder autônomo e independente.
Se o princípio federativo estivesse funcionando a contento nada disso seria necessário.
Aquela Resolução, em tese, pode até contribuir para a morosidade no pagamento dos precatórios, tendo em vista que é pública e notória a carência
de recursos financeiros destinados ao Poder Judiciário pela Lei Orçamentária Anual com base nos limites fixados pela Lei de Responsabilidade Fiscal
[2] que desconhece a realidade de cada Estado-membro.
Em São Paulo, as quatorze Varas da Fazenda Pública com vinte e oito juízes que autorizavam os levantamentos judiciais ficaram reduzidas a uma
única Vara de Execução de Precatórios com pouquíssimos serventuários. Essa Vara única herdou milhares de processos em fase de execução
estocados nas quatorze Varas. Daí a demora exagerada no exame de cada processo para deferir o levantamento, o que era perfeitamente previsível
pela autoridade que assim procedeu. E mais, os poucos levantamentos determinados pelo juiz continuam dormitando mais de seis meses nos
escaninhos da burocracia. Não há servidores suficientes para elaborar os mandados de levantamento. Antes, os escreventes das quatorze Varas não
demoravam mais de 24 horas para elaboração dos mandados de levantamento. A quem aproveita, afinal, essas demoras? Até mesmo os
especuladores sem escrúpulos estão tirando proveito dessa situação calamitosa adquirindo os precatórios com deságio de 70% dos indefesos
credores que preferem receber um pouco que seja enquanto em vida.[3] Esse fato é público e notório, mas ninguém faz nada para agilizar os
pagamentos, embora os recursos financeiros tenham sido disponibilizados de há muito tempo. Por que razão foi mexer em um sistema que estava
dando certo? Por que alterar o time que está ganhando?
Teoricamente, o novo sistema é racional, mas é preciso dotar o novo órgão com a infraestrutra necessária. Centralização dos serviços, sem estrutura
material e pessoal sempre foi um desastre. Um juiz não pode fazer as vezes de 28 juízes e nem meia dúzia de escreventes podem fazer as vezes de
centenas de escreventes.
A intenção do legislador constituinte de substituir o pagamento direto pelas entidades devedoras pelo depósito judicial à disposição do Tribunal
certamente foi o de possibilitar o pagamento imediato, e não para que o Tribunal ficasse girando com os recursos financeiros depositados. Isso pode
ensejar motivos para retardar o pagamento dos precatórios. Quanto maior a demora, maior os rendimentos.
Não é, evidentemente, o caso do Tribunal de Justiça de São Paulo, hoje, presidido pelo eminente Desembargador Ivan Sartori de reconhecida
capacidade profissional e de ilibada reputação moral e sobretudo corajoso[4], que por várias oportunidade, declarou a inconstitucional da EC n° 62/09
por afrontar a coisa julgada saindo na vanguarda de outros Tribunais, inclusive, do STF que não tem demonstrado muita vontade em prosseguir no
julgamento iniciado no ano passado. Lembre-se que o julgamento da inconstitucionalidade da EC nº 30/00 que decretou a segunda moratória
constitucional levou quase dez anos. A decisão só veio à luz ao término dos dez anos de moratória, assim mesmo em sede de medida cautelar.
Em que pese os visíveis defeitos da EC n° 62/09, quando ela transferiu a responsabilidade de pagamento dos precatórios das entidades devedoras
para o Tribunal que proferiu a decisão exeqüenda foi para evitar os desvios de verbas e ensejar o pronto pagamento dos precatórios, à medida que
os depósitos mensais à disposição do Judiciário fossem sendo feitos. Não se imaginou que os recursos depositados à disposição da Justiça seriam
aplicados no mercado financeiro por via de um banco oficial, o que na prática não difere de um desvio de finalidade.
Lamentavelmente, os Poderes Executivo, Legislativo e, agora, o Judiciário vêm se revezando na política de protelação de pagamento de precatórios,
fato que já mereceu a atenção do Tribunal de Direitos Humanos da OEA que levará a matéria a julgamento. Os meios e as razões podem ser
diferentes, mas a dor e o sofrimento dos credores prejudicados pela demora são os mesmos, da mesma forma que o descrédito da população na
atuação do Poder Judiciário que não tem assegurado o princípio da efetividade da jurisdição. Não fosse a fé e a esperança que sempre procurei
nutrir de há muito eu teria abandonado a nobre, mas penosa carreira de advogado para tornar-me um pescador nos finais de semana. Nunca
concordei com o diagnóstico de que o Poder Judiciário é um Poder irremediavelmente falido. Sempre acreditei e continuo acreditando que na
Magistratura Brasileira existem juízes de elevado valor ético-moral, comprometidos com a efetiva distribuição da justiça, atentos aos reclamos dos
jurisdicionados.
Finalmente, é preciso que o Tribunal de Contas competente exija dos Chefes do Judiciário local, com fundamento no parágrafo único, do art. 70 da
CF a prestação anual de contas mediante apresentação de relatório discriminativo das importâncias recebidas em depósito, de relatório dos juros e
da correção monetária propiciados pelos depósitos em contas bancárias oficiais, de relatório dos precatórios pagos com a discriminação de seus
valores, e de relatório final apontando o saldo existente no banco oficial. Esses relatórios devem ser divulgados e disponibilizados por todos os meios
previstos na Lei de Responsabilidade Fiscal em nome do princípio da transparência assegurado por essa lei. A sociedade e, principalmente, os
credores têm o direito de saber o que é feito com os dinheiros que lhes foram reservados.
Notas:
[1] Esse privilégio qualificado representado por um valor irrisório tem sido a grande causa comprometedora do sistema de pagamento de precatórios.
Sem ele os precatórios alimentares e não alimentares estariam sendo pagos à medida dos depósitos efetuados pelas entidades devedoras. Essa
erva daninha, plantada no seio da Emenda 62 sob o simpático manto de proteção dos idosos e dos doentes, está produzindo seus efeitos maléficos.
[2] Às vezes, esse limite fica aquém do permitido pela LRF por conta das arbitrariedades cometidas pelo Executivo que não respeita a proposta
orçamentária apresentada pelo Tribunal na forma do § 1º, do art. 99 da CF. [3] Toda vez que recebo um comunicado de que aquele credor, que
telefonava ancioso e periodicamente para saber do prazo de pagamento do seu precatório, já faleceu sinto-me muito mal. É impossível conter as
emoções. Fico a imaginar se o meu escritório falhou em algum aspecto. [4] Ele, na verdade, herdou uma verdadeira massa falida em matéria de
precatórios. Mas, se ele tiver o mesmo tino administrativo que tem demonstrado no exercício da meritória função judicante ao longo de sua carreira,
temos a esperança de que essa situação insustentável sob todos os aspectos será paulatinamente superada. E assim muitos idosos e doentes
poderão receber em vida os precatórios de natureza alimentícia que aguardam na fila desde o ano de 2001.
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